Erro de tipo e erro de proibição

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o sistema legal português tem ainda em conta
Erro de tipo e erro de proibição
a adequação da concreta consequência
jurídica do regime do erro e a proximidade
Frederico de Lacerda da Costa Pinto
material das diversas constelações de casos
Faculdade de Direito da Universidade Nova
para, em função da dicotomia exclusão do
de Lisboa (www.fd.unl.pt)
dolo / eventual exclusão da culpa, operar
uma reorganização das tipologias do erro.
1. A compreensão do regime do erro
através da dicotomia erro de tipo/erro de
proibição
encontra-se
2. O erro em Direito Penal é uma ausência
em
ou falsa representação da realidade, como
Portugal, no plano doutrinário, desde a tese
afirma a doutrina3 e se infere da noção de
de doutoramento de Jorge de Figueiredo
dolo (art. 14.º do CP) - que pressupõe uma
Dias (publicada em
ultrapassada
1969)1
e, no plano
exacta consciência (intelectual) da situação
legislativo, desde a entrada em vigor do
fáctica do crime - e do âmbito do erro sobre
Código Penal de 1982 (adiante citado como
a ilicitude (art. 17.º do CP) - configurado
CP).
sobre a actuação “sem consciência da
A solução acolhida na lei portuguesa desde
ilicitude do facto”. O objecto do erro
essa altura autonomiza dois regimes de erro
relevante coincide com o objecto do dolo ou
em função do objecto do mesmo (arts 16.º e
com o substrato da consciência da ilicitude.
17.º do CP), mas este não é o único critério
que
preside
a
tal
organização,
sendo
Direito Criminal, Coimbra, 1963, pp. 389 e ss.;
Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, PG,
I, Lisboa, 1992, pp. 332 e ss; Teresa Beleza Direito
Penal, II, Lisboa, 1983, pp. 227 e ss, 305 e ss, 340
e ss. Germano Marques da Silva, Direito Penal
Português, PG II, Lisboa, pp. 201 e ss. .
Referências específicas encontram-se ainda em
Martim de Albuquerque, Para uma distinção do erro
sobre o facto e do erro sobre a ilicitude em
Direito Penal, Lisboa, 1968; Teresa Serra,
Problemática do erro sobre a ilicitude, Coimbra,
1985; Augusto Silva Dias, A relevância jurídicopenal das decisões de consciência, Coimbra, 1986;
José António Veloso, Erro em Direito Penal, Lisboa,
1993; Rui Pereira, “Justificação do facto e erro em
Direito Penal” in Jornadas de Homenagem ao
Professor Cavaleiro de Ferreira, Lisboa, 1995, pp.
25 e ss; Manuel Cortes Rosa, “La función de
delimitación de injusto e culpabilidad” in
Schünemann/Figueiredo Dias/ Silva Sanchez,
Fundamentos de un sistema europeo del Derecho
penal, Barcelona, 1995, pp. 247 e ss; Teresa Beleza
e Frederico da Costa Pinto, O regime legal do erro e
as normas penais em branco, Coimbra, 1999;
Maria Fernanda Palma, “A teoria do crime como
teoria da decisão penal” in RPCC 9 (1999), pp.
571 e ss e, depois, O princípio da desculpa em Direito
Penal, Coimbra, 2005, pp. 206 e ss.
igualmente relevante (e decisiva) a natureza
do erro: consoante o erro tenha subjacente
um problema de apreensão intelectual da realidade
ou um problema de diferente valoração da
realidade; no primeiro caso (erro intelectual)
estamos perante um problema inerente ao
processo de formação do dolo do agente
(que pode levar à sua negação), no segundo
caso (erro moral) estamos perante um
problema da atitude ético-jurídica do agente
perante os valores do sistema penal, ou seja,
um problema de culpa2. Além destes aspectos
Jorge de Figueiredo Dias, O problema da
consciência da ilicitude em Direito Penal,
Coimbra, 1969.
1
Para uma visão completa sobre o regime legal do
erro plasmado no Código Penal, veja-se, além das
demais obras citadas neste texto, Figueiredo Dias,
Direito Penal, PG I, Coimbra, 2004, pp. 340 ee ss,
374 e ss, 490 e ss e 578 e ss; Taipa de Carvalho,
Direito Penal, PG II, Porto, 2004, pp. 129 e ss,
155 e ss, 321 e ss, 339 e ss; Eduardo Correia,
2
Referências em Teresa Beleza e Frederico Costa
Pinto, O regime legal do erro (cit. nt. 2), 10 e ss.
3
1
São objecto idóneo do erro de tipo (que leva
criminalmente por erro sobre a idade legal da
à exclusão do dolo) os elementos do facto
imputabilidade, quando pensa que beneficia
ilícito. Ficam de fora deste círculo os
de uma causa de exclusão da punibilidade que
pressupostos e elementos do tipo de culpa, as
não existe realmente ou quando pensa que o
motivações
do
agente,
os
elementos
facto é sancionado não com uma pena
autónomos
da
punibilidade
(condições
(criminal) mas com uma mera sanção de
objectivas de punibilidade e causas de não
Direito de Mera Ordenação Social (ou seja,
punibilidade), a sanção e os pressupostos
que não é um crime mas uma simples contra-
processuais4.
ordenação administrativa). Estas hipóteses de
Esta afirmação tem de ser objecto de uma
erro não são relevantes para excluir o dolo do
ressalva quanto ao chamado erro indirecto
agente, como acontece nas modalidades de
sobre o facto que se traduza na errada
erro do art. 16.º do Código Penal, mas
apreensão de pressupostos das causas de
podem ser relevantes no processo de análise
exclusão da ilicitude e das causas de exclusão
e atribuição de responsabilidade jurídico-
da culpa, pois o art. 16.º, n.º 2 do Código
penal na exacta medida em que expressem
Penal reconhece-lhes relevância excludente
uma diferente consciência da ilicitude (penal)
do dolo, numa versão muito alargada da
do agente, sujeita aos crivos de (não)
teoria limitada da culpa (muito ampla pois
censurabilidade do erro previstos no art. 17.º
abrange não só o erro sobre pressupostos
do CP.
fácticos de uma causa de justificação, como
também de uma causa de exclusão da culpa)5.
3. O art. 16.º do Código Penal prevê cinco
Por outro lado, pode não se verificar um
modalidades de erro que variam em função
problema de erro intelectual que exclua o
do objecto da errada representação do
dolo, mas existir um problema de consciência
agente, tendo todas no entanto a mesma
da ilicitude quando ocorra um erro sobre
consequência: é excluída a imputação dolosa
pressupostos do tipo de culpa, sobre
do
elementos das causas de não punibilidade ou
responsabilidade por negligência (art. 16.º, n.º
mesmo sobre o tipo de sanção, na exacta
3 CP) sujeita a duas condições: se existir tipo
medida em que isso pode significar que o
legal negligente para o facto e caso se
agente não tem consciência da ilicitude penal
comprove a concreta negligência do agente (à
do facto. Por exemplo, quando o agente
luz do art. 15.º CP).
pensa que não pode ser responsabilizado
facto,
ficando
ressalvada
a
Dessas cinco modalidades só duas têm
como objecto elementos do facto típico: (1) o
Para uma análise da questão na doutrina
portuguesa, veja-se Teresa Beleza e Frederico da Costa
Pinto, O regime legal do erro (cit. nt. 2), pp. 10 e
ss.
erro sobre elementos de facto e (2) o erro sobre
Figueiredo Dias, Direito Penal (cit. nt.. 2), pp. 374
e ss; Taipa de Carvalho, Direito Penal (cit. nt. 2) pp.
155 e ss, Rui Pereira, “Justificação do facto” (cit.
nt. 2), pp. 25 e ss; Manuel Cortes Rosa, “La función
de delimitación de injusto e culpabilidad” (cit. nt.
2), pp. 253; Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto,
O regime legal do erro (cit. nt. 2), pp. 23 e ss.
(de exclusão do dolo ou, melhor, da
4
elementos normativos de um tipo de crime. Mas,
além disto, são tratados sob o mesmo regime
5
imputação dolosa do facto) os casos de (3)
erro (intelectual) sobre a existência de proibições cujo
conhecimento seja razoavelmente indispensável para
que o agente possa tomar consciência da ilicitude do
2
facto (art. 16.º, n.º 1, terceira parte, do CP) e
(que incide sobre elementos que não
os casos de (4) erro sobre pressupostos das causas
integram o facto típico), encontrando uma
de justificação e (5) e de erro sobre pressupostos das
solução materialmente justa e adequada ao
causas de desculpa (art. 16.º, n. 2 do CP).
caso concreto: a actuação do agente é mais
Verificada uma situação desta natureza o
próxima do crime negligente do que de um
facto não é imputável ao agente a título
crime
doloso,
devendo
ser
a
sua
doloso. Ou seja, o erro produz o seu efeito
responsabilidade analisada de acordo com
jurídico (exclusão da imputação dolosa) uma
aquele padrão.
vez identificado, sem esse efeito estar
condicionado por qualquer outro critério.
5. O art. 17.º do Código Penal regula o erro
Como veremos não é este o regime do erro
sobre a ilicitude, configurando a relevância
sobre a ilicitude do facto previsto no art. 17.º
do mesmo como uma eventual causa de
do CP.
desculpa do agente. A falta de consciência da
ilicitude do facto (que pode resultar quer de
4. No n.º 2 do art. 16.º consagra-se uma
uma ausência de consciência da ilicitude, quer
solução alargada da teoria limitada da culpa,
de uma representação deficiente da mesma
que conduz não só à exclusão da imputação
que redunda numa forma de ausência de
dolosa em casos de erro sobre pressupostos
consciência do ilícito) pode excluir a culpa se
fácticos de uma causa de exclusão da
for não censurável (art. 17.º, n.º 1 CP). Caso
ilicitude, como também na hipótese de se
tal falta de consciência da ilicitude seja
tratar de uma causa de exclusão da culpa. A
censurável mantém-se a responsabilidade por
solução é contudo limitada ao erro que incide
crime
sobre “um estado de coisas” representado
especialmente atenuada (art. 17.º, n.º 2 CP).
doloso,
podendo
a
pena
ser
pelo agente e que, se existisse realmente,
Este regime evidencia que o art. 17.º do CP
levaria à exclusão da ilicitude ou da culpa.
foi construído para crimes dolosos, não
Com esta configuração o regime não se
sendo contudo de excluir, em minha opinião,
aplica, em minha opinião, aos casos de erro
a sua aplicação analógica a crimes negligentes
sobre elementos de direito, sobre a existência
em que o agente evidencie um concreto erro
ou sobre os limites de uma causa de
sobre a ilicitude penal do facto que esteja na
justificação ou de desculpa (em tais casos
origem do não cumprimento do cuidado
podemos estar perante um erro sobe a
devido (o que não é de todo pacífico na
ilicitude do facto), embora a questão seja
doutrina portuguesa)6.
controvertida
na
doutrina
portuguesa.
A lei enuncia o critério a usar pelo aplicador
Quando é aplicável o art. 16.º, n.º 2 do CP a
do Direito para decidir da relevância do erro
errada avaliação do agente sobre a situação e
(a censurabilidade do mesmo) mas não
a possibilidade que tinha de actuar de forma
concretiza o conceito, cuja densificação é
correcta são aspectos a ponderar ao nível da
feita pela doutrina em função do conceito de
negligência da sua conduta.
Com esta solução a lei portuguesa sobrepõe
a
natureza
do
erro
(erro
Contra, num contexto de problematização da
questão, Figueiredo Dias, Direito Penal (cit. nt 2),
pp. 661-662.
6
puramente
intelectual) ao problema do objecto do erro
3
culpa adoptado7. A doutrina portuguesa
agente quando associados ou enquanto
considera
expressão de um projecto de vida (realização
em
regra
inadequado
ou
insuficiente aferir a censurabilidade do erro
da autonomia e identidade da pessoa)11.
sobre a ilicitude a partir de simples critérios
de evitabilidade do erro ou de exigibilidade
6. Algumas situações de erro sobre a
do conhecimento, apontando antes para a
proibição são, como se referiu, tratadas no
adopção de critérios materiais de culpa.
Código Penal Português como um problema
Assim, não censurável será o erro quando se
inerente ao processo de formação do dolo do
pode ainda identificar uma “recta consciência
agente e não como um problema da
ético-jurídica do agente” (fidelidade ou
consciência da ilicitude. Trata-se dos casos de
correspondência aos valores juridicamente
erro sobre proibições legais que o agente
reconhecidos)8;
formulação,
carece de conhecer efectivamente como
censurável é o erro que “revela uma
patamar de acesso à consciência da ilicitude
personalidade indiferente perante o dever-ser
do facto que pratica (art. 16.º, n.º 1, terceira
jurídico
ou,
penal”9.
noutra
linha
de
parte, do CP). A autonomia desta modalidade
uma
tal
de erro pressupõe que em relação a algumas
perspectiva (a simples aferição da “rectitude
incriminações a consciência intelectual da
da consciência errónea” à luz dos valores do
existência
sistema penal) poderá ser insuficiente (ou
formação da consciência ética que dirige a
mesmo impossível) perante a complexidade e
conduta humana12. Essa necessidade pode
heterogeneidade social, económica e cultural
resultar da novidade da incriminação, da
das sociedades actuais, sendo necessário
neutralidade
incluir também nas condições de apreciação
contempla (e que, por si só, não permite
da culpa jurídico-penal “critérios de justiça e
inferir a sua relevância jurídico-penal) ou da
de
que
ausência de sedimentação social do seu
simultaneamente não cedam à unilateralidade
desvalor. Relevante é que em tais casos não
de um modelo de valores dominante e sejam
se pode exigir ao agente que conheça a
preventivamente significativos”10. Critérios
ilicitude penal do facto sem conhecer
que poderiam passar, ainda nesta proposta
(intelectualmente) a existência da proibição.
fundada numa “ética das emoções”, pela
Qualquer valoração errada do agente neste
ponderação
domínio
investigação,
Noutra
sugere-se
responsabilidade
da
que
colectiva
justificação
moral
das
emoções que estão subjacentes ao erro do
da
tem
proibição
axiológica
por
base
condiciona
do
um
facto
erro
a
que
de
conhecimento. Ou seja, esta modalidade de
erro pressupõe que nestes casos a consciência
Em pormenor, Figueiredo Dias, Direito Penal (cit.
nt 2) pp. 580-591.
7
Em pormenor e com profundidade, Maria
Fernanda Palma, O princípio da desculpa (cit. nt.
2), pp. 208 a 215.
12 Uma análise profunda do tema encontra-se em
Figueiredo Dias e Pedro Caeiro, “Erro sobre
proibições legais e falta de consciência do ilícito”
in RPCC 5 (1995), pp. 245 e ss. Ainda, Figueiredo
Dias, Direito Penal, (cit. nt. 2), p. 346 e ss.
Depois, Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto, O
regime legal do erro (cit. nt. 2), pp. 25-29.
11
Figueiredo Dias, Direito Penal (cit. nt. 2), pp. 586591.
8
Taipa de Carvalho, Direito Penal (cit, nt. 2), p.
328.
9
Maria Fernanda Palma, RPCC 9 (1999), p. 578
(cit. nt. 2). Depois, da mesma Autora, O princípio
da desculpa (cit. nt. 2), pp. 206 e ss.
10
4
intelectual
da
proibição
condiciona
a
Este texto foi preparado para a Revista Penal,
formação da consciência da ilicitude, o que
editada pelas Universidades de Huelva e Salamanca,
pode acontecer nomeadamente em função da
em Maio de 2007.
natureza da proibição (noutra forma de
colocar o problema, estaríamos perante mala
prohibita e não mala in se)13.
7. Do regime sumariamente exposto
resulta que a lei portuguesa sobrepõe o
critério da natureza do erro (erro intelectual,
erro moral) ao critério decorrente do objecto
do erro. Além disso, as soluções legais são
traçadas tendo em conta a procura de
respostas adequadas ao problema concreto
colocado,
ou
seja,
buscando
soluções
materialmente justas, e não em função do
que seria ditado formalmente pelo sistema
dogmático, como acontece com o erro sobre
proibições “artificiais” (art. 16.º, n.º 1,
terceira parte, do CP) ou com o erro sobre os
pressupostos das causas de justificação ou de
desculpa (art. 16.º, n.º 2 do CP). Finalmente,
característica ainda do pensamento penal
português neste domínio é a abertura à
construção de critérios materiais de culpa
para aferir a não censurabilidade da falta de
consciência da ilicitude em Direito Penal, que
- apesar das reservas de que pode ser objecto,
mas que, por razões de espaço, não se podem
aqui desenvolver – constitui uma linha de
construção dogmática própria e original.
Sobre a distinção, com grande profundidade,
Augusto Silva Dias, “Delicta in se” e “Delicta mere
prohibita”: uma análise das descontinuidades do
ilícito penal moderno à luz da reconstituição de
uma distinção clássica, Lisboa, 2003 (dissertação
de doutoramento, em curso de publicação), pp. 44
e ss e passim .
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