a judicializacao do direito fundamental a saude - TCC On-line

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
ANDRÉA JANSSON HABITZREUTER
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE.
CURITBA
2014
ANDRÉA JANSSON HABITZREUTER
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Curso de Graduação em Ciências Jurídicas da
Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel em
Direito.
Orientador: Profª Dra. Thaís Goveia Pascoalato
Venturi
CURITIBA
2014
ANDRÉA JANSSON HABITZREUTER
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel no Curso de Direito da
Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba, _____ de ___________________ de 2014.
_______________________________________________________
Curso de Direito
Universidade Tuiuti do Paraná
Orientadora: Prof. Doutora Thaís Goveia Pascoalato Venturi
Professor 2 (Titulação e nome completo)
Instituição 2
Professor 3 (Titulação e nome completo)
Instituição 3
Ao Samir e meu filho Bruno –
obrigada por trazerem tanta alegria à minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família e meus amigos pelo incentivo e apoio
constante.
Agradeço à Professora Thaís Goveia Pascoalato Venturi, orientadora que
foi tão importante na minha vida acadêmica e no desenvolvimento desta monografia.
Meu agradecimento especial ao Samir e meu filho Bruno pela inspiração e
pelo carinho.
Ensinar não é transferir conhecimento,
mas criar as possibilidades para a sua
própria produção ou a sua construção.
Paulo Freire
RESUMO
O presente trabalho dedica-se à análise da concretização do direito fundamental à
saúde no Brasil e a atuação do Poder Judiciário, tendo em vista o crescente número
de demandas, as quais visam o fornecimento de tratamentos e medicamentos não
contemplados nas listas e protocolos clínicos do Sistema Único de Saúde. O
fenômeno da judicialização do direito fundamental à saúde se intensificou nos
últimos anos, ocasionando a expedição mensal de milhares mandados em todo o
país, tornando-se uma preocupação para o Estado. Sob este enfoque, o objetivo é
analisar se pode e deve o Poder Judiciário intervir para que o Poder Executivo
cumpra o seu dever constitucional de garantir o direito à saúde, legalmente
estabelecido pelas normas que regem o Sistema Único de Saúde, bem como para a
concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: direito à saúde; medicamentos; judicialização; Estado.
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO .................................................... Erro! Indicador não definido.
2.
DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................................... 11
2.1.
CONSIDERAÇÕES GERAIS ........................................................................ 11
2.2.
DEFINIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................................. 12
2.3.
CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO
DE 1988 .................................................................................................................... 16
2.3.1.
Os direitos fundamentais da primeira geração ............................................. 17
2.3.2.
Os direitos fundamentais da segunda geração ............................................ 18
2.3.3.
Os direitos fundamentais da terceira geração1Erro! Indicador não definido.
2.3.4.
Os direitos fundamentais da quarta geração ................................................ 21
2.3.5.
Os direitos fundamentais da quinta geração ................................................ 23
2.4.
A EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS ...................................................................................................... 24
3.
DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E A SAÚDE NA CONSTITUIÇAO
FEDERAL DE 1988 .................................................................................................. 28
3.1.
DO DIREITO À VIDA .................................................................................... 28
3.2.
DO DIREITO À SAÚDE ................................. 2Erro! Indicador não definido.
3.2.1.
Considerações essenciais ............................. 2Erro! Indicador não definido.
3.2.2.
Direto à Saúde na Constituição Federal de 1988 e na Legislação
Infraconstitucional ..................................................................................................... 30
3.3.
DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL . 35
3.3.1.
Princípio da Prevenção ................................................................................. 35
3.3.2.
Princípio da Universalidade da Cobertura e do Atendimento ....................... 36
3.3.3.
Princípio da Reserva do Possível ................................................................. 37
3.3.4.
Princípio da Igualdade .................................................................................. 39
3.3.5.
Princípio da Integralidade ............................................................................. 40
3.4.
O
MODELO
BRASILEIRO
DE
SAÚDE
PÚBLICA
SEGUNDO
A
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ............................................................................ 41
3.5.
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL ......................................... 43
3.5.1.
Considerações essenciais ............................................................................ 43
3.5.1.1. A Política Nacional de Medicamentos ...................................................... 44
4.
A TUTELA JURISDICIONAL DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL ..... 4Erro!
Indicador não definido.
4.1.
DA JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS4Erro!
Indicador
não
definido.
4.2.
MODELO
BRASILEIRO
DE
SAÚDE
PÚBLICA
SEGUNDO
A
CONSTITUIÇÃO E A NÃO APLICAÇÃO ILIMITADA DA CONSTITUIÇÃO PARA A
CONCESSÃO JUDICIAL DE MEDICAMENTOS ...................................................... 53
4.3.
A RACIONALIZAÇÃO DA DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS E
TRATAMENTOS DE SAÚDE DIANTE DO ALTO CUSTO E DA AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DE SUA EFICÁCIA ...................................................................... 55
4.4.
A CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL E A NÃO COBERTURA
TOTAL DO ESTADO PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS ................ 56
4.5.
O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES ....................................... 60
4.6.
DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO
AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA 175 .......... 65
5.
CONCLUSÃO............................................................................................... 68
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 71
1.
INTRODUÇÃO
A vida e a saúde são os direitos mais elementares do ser humano,
pressupostos de existência dos demais direitos, adequando-se na categoria de
direito público subjetivo fundamental, razão pela qual merece especial proteção
jurídica.
Atualmente, há um notório crescimento de demandas judiciais que visam o
fornecimento de medicamentos gratuitos pelo Estado, indispensáveis à saúde e à
manutenção da qualidade de vida do cidadão.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, caput, garante, entre outros
bens igualmente significativos, a inviolabilidade do direito à vida. Ainda, o artigo 6º
do mesmo diploma normativo, ao especificar os direitos sociais, inclui dentre estes o
direito à saúde. Diante disso, a fim de dar-se efetividade aos direitos anteriormente
referidos, a Carta Magna, em seu artigo 196, disponibiliza instrumento jurídico
amplo, ao impor textualmente ao Estado (compreendido aqui em seu sentido lato,
incorporando, portanto, todas as facetas como a executiva, legislativa e, em
especial, a judiciária) o dever impostergável de propiciar a todos os cidadãos o
acesso universal do direito á saúde, como consectário do direito á vida.
Este trabalho visa verificar a legitimidade de atuação do Poder Judiciário na
efetivação do direito social à saúde, diante da sua crescente intervenção nas
políticas públicas de saúde, em especial por meio do provimento conferido aos
pedidos de fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde.
Presta-se, ainda, a expor o entendimento adotado pela doutrina e pela
jurisprudência quanto ao tema abordado, ou seja, realizando-se um contraponto
entre o direito à vida e à saúde e a obrigação do Estado (em sentido lato) em
realizar o amplo atendimento à saúde da população, independentemente de normas
infraconstitucionais.
Ademais, será abordada a questão da competência entre os entes federados
para a prestação dos serviços de atendimento à saúde da população, de acordo
com o entendimento adotado quanto à interpretação do artigo 196 da Constituição
Federal.
Os objetivos específicos compreendem a análise dos limites impostos pela
9
racionalização da dispensação de medicamentos ante o alto custo e ausência de
comprovação da eficácia do fármaco, pela clausula da reserva do possível e no
tocante a questão das decisões proferidas pelo Judiciário estarem por violar o
princípio da separação de poderes.
10
2.
DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1
CONSIDERAÇOES GERAIS
Os direitos fundamentais são o resultado de uma evolução histórica ocorrida
por meio das lutas e rupturas sociais que buscavam a dignidade humana e a
consolidação dos direitos fundamentais para resguardá-la dos abusos de poder
praticados pelo Estado.
Dentro do novo Estado Democrático de Direito, delineado pelo artigo 1° da
Carta Magna, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos basilares da
República Federativa do Brasil.
A dignidade da pessoa humana remete a uma obrigação estatal de fornecer
ao individuo as condições mínimas para a sua sobrevivência, sendo assim, vale
dizer que todo cidadão possui direito a uma vida digna.
A Constituição Federal de 1988 fez a previsão em seu Titulo II, Dos Direitos e
Garantias Fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos específicos (artigos 5°
a 17), assegurando a plena inserção destes comandos em nosso ordenamento
jurídico. Tais direitos foram divididos em: dos direitos e deveres individuais e
coletivos (Capítulo I), dos direitos sociais (Capítulo II), da nacionalidade (Capítulo
III), dos direitos políticos (Capítulo IV) e dos partidos políticos (Capítulo V).
Alexandre de Moraes em uma breve análise da Constituição quando da
divisão dos direitos e garantias fundamentais, assinalou:
Direitos individuais e coletivos – correspondem aos direitos diretamente
ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade,
como, por exemplo: vida, dignidade, honra, liberdade. Basicamente, a
Constituição de 1988 os prevê no art. 5º [...]; Direitos sociais – caracterizamse como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em
um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições
de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social,
que configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático,
conforme preleciona o art. 1º, IV. A Constituição Federal consagra os
direitos sociais a partir do art. 6º; Direitos de nacionalidade – nacionalidade
é o vínculo jurídico político que liga um indivíduo a um certo e determinado
Estado, fazendo deste indivíduo um componente do povo, da dimensão
pessoal deste Estado, capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao
cumprimento de deveres impostos; Direitos políticos – conjunto de regras
que disciplina as formas de atuação da soberania popular. São direitos
públicos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitatis,
11
permitindo-lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos
negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da
cidadania. Tais normas constituem um desdobramento do princípio
democrático inscrito no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal [...].
A Constituição regulamenta os direitos políticos no art. 14; Direitos
relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos
– a Constituição Federal regulamentou os partidos políticos como
instrumentos necessários e importantes para preservação do Estado
Democrático de Direito, assegurando-lhes autonomia e plena liberdade de
1
atuação, para concretizar o sistema representativo.
Flávia Piovesan alerta-nos que:
Ao analisarmos a carta dos direitos fundamentais expostos pela
Constituição, percebemos uma sintonia com a Declaração Universal de
1948, bem como com os principais pactos sobre os Direitos Humanos, dos
quais o Brasil é signatário. Intensifica-se a interação e conjugação do Direito
internacional e do Direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção
dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica, fundadas na
2
primazia dos direitos humanos.
Conforme José Afonso da Silva:
É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos
do Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os
fundamentais, e entre eles, uns que valem como base das prestações
positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social, e
3
cultural a fim de efetivar a dignidade da pessoa humana.
Deste modo, verifica-se que a Constituição Federal de 1988 previu
especificamente, de forma inovadora, os direitos fundamentais garantidos à
população, ou seja, direitos que não podem ser abdicados e que devem ser
garantidos obrigatoriamente pelo Estado.
2.2 DEFINIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988 expandiu os valores da dignidade da pessoa
humana e elevou a vida, a integridade física e a saúde propriamente dita à condição
de direitos fundamentais. São bens indisponíveis, imprescritíveis, e insuscetíveis de
1
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 22.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3. ed. São Paulo:
Max Limonad, 1997. p. 46.
3
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 93.
12
2
alienação.
A inalienabilidade está relacionada à dignidade da pessoa humana, pois
assim como o homem não pode ser livre para ter ou não dignidade, também não
poderá transigir com os direitos fundamentais. Disso decorre que a preterição de um
direito fundamental não será justificada pelo simples fato de o titular do direito nela
consentir.
A característica da irrenunciabilidade dos direitos fundamentais significa que,
em regra, eles não podem ser renunciados pelo seu titular, em razão de possuírem
uma eficácia objetiva de modo a não importarem apenas ao sujeito ativo, mas
interessarem a toda coletividade. Entretanto, em nome da autonomia contratual,
admite-se a renúncia excepcional, de certos direitos, como é o caso da intimidade e
da privacidade. Nesse aspecto, lembra Gomes Canotilho que, embora se admitam
limitações voluntárias de direitos específicos em certas condições, não é possível a
renúncia a todos os direitos fundamentais. Além de estar sujeita a revogação a
qualquer tempo, a renúncia deve guardar razoável relação com a finalidade
pretendida com a mesma.4
Os direitos fundamentais são imprescritíveis na medida em que são sempre
exercíveis e o seu não exercício não acarreta a perda da exigibilidade pelo decurso
do tempo, mesmo porque, estão sempre em processo de agregação e não permitem
a regressão ou eliminação dos direitos já devidamente conquistados.
Apesar de se pronunciar muito o termo direitos fundamentais, podemos
observar que ainda existe uma variedade de terminologias que vem sendo
empregadas para designá-los. No entanto, a despeito das divergências doutrinárias,
todas as definições apontam a um mesmo rumo:
(...) os direitos fundamentais podem ser entendidos como a concreção
histórica do princípio da dignidade humana - os direitos fundamentais do
homem “pré-existem” a qualquer ordenamento jurídico, pois são direitos que
5
decorrem da própria natureza humana.
Segundo José Afonso da Silva, direitos fundamentais são direitos positivados,
4
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed., Coimbra:
Almedina, 2001. p. 422-423
5
FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem
versus a liberdade de expressão e informação. Sérgio Antônio Fabris (Editor). Porto Alegre: editora,
1996. p. 17.
13
cujo conteúdo varia conforme os valores, princípios e estruturas de determinada
sociedade, os quais buscam concretizar a vida digna, livre e igual de todas as
pessoas6.
Para Ingo Sarlet, os direitos à vida, liberdade e igualdade correspondem
diretamente às exigências mais elementares de dignidade da pessoa humana. Nesta
esteira, aponta a dignidade da pessoa humana da seguinte forma:
Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor
do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
7
da vida em comunhão com os demais seres humanos.
É justamente nesse aspecto que reside a obrigatoriedade do Estado em
garantir um padrão de vida em que sejam respeitados os objetivos e fundamentos
da República Brasileira, como a dignidade da pessoa humana, a construção de uma
sociedade livre justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a
redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Mas não é suficiente.
A fim de disponibilizar às pessoas uma vida condizente com a dignidade que
lhes é indispensável, obrigatoriamente o Estado deverá garantir o acesso do cidadão
e de quem mais o valha, aos direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia,
lazer, segurança e previdência social.
Segundo SARLET, três características consensualmente atribuídas a
Constituição Federal de 1988 podem ser consideradas como extensivas ao título de
direitos fundamentais: (i) seu título analítico no sentido de seu grande número de
dispositivos legais, com a intenção de salvaguardar uma série de reivindicações e
conquistas e evitar a supressão de direitos pelos poderes constituídos; (ii) o
pluralismo acolhendo demandas nem sempre harmoniosas entre si, reconhecendo
6
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 178.
7
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
14
vários direitos sociais, liberdades, direitos políticos, religiosos etc.; (iii) e seu forte
cunho programático e dirigente, pois tem-se um substancial emaranhado de
disposições
constitucionais
dependentes
de
regulamentação
legislativa,
estabelecendo programas, fins, imposições, diretrizes, a serem perseguidos,
implementados e assegurados pelos Poderes Públicos. 8
Em outros termos, todos os Poderes e entes estatais estão vinculados aos
direitos fundamentais. O constituinte teve a pretensão de instituir que os direitos
fundamentais obrigam a todos os Poderes do Estado, ou seja, Legislativo, Executivo
ou Judiciário nas esferas federal, estadual e municipal.
Assinala Gilmar Ferreira Mendes que os direitos fundamentais são
concebidos, originariamente, como direitos subjetivos públicos, isto é, como direitos
do cidadão em face do Estado. Se se considerar que os direitos fundamentais são
prima facie direitos contra o Estado, então parece correto concluir que todos os
Poderes e exercentes de funções públicas estão diretamente vinculados aos
preceitos consagrados pelos direitos e garantias fundamentais. 9
O Estado é, portanto, o instrumento principal na busca da efetividade dos
direitos fundamentais.
Nesse sentido, Clémerson Merlin Cléve, afirma:
Todos os poderes do Estado, ou melhor, todos os órgãos constitucionais,
têm por finalidade buscar a plena satisfação dos direitos fundamentais,
Quando o Estado se desvia ele está, do ponto de vista político, se
deslegitimando, e do ponto de vista jurídico, se desconstitucionalizando – é
isso que nós precisamos ter em mente. (...)
Assim, podemos dizer que a Constituição Federal define alguns aspectos e
retira do debate político uma série de outros. Ela, que tem uma dimensão
política, tem outra dimensão que é despolitizadora, quer dizer, isto que está
definido politicamente a partir de agora é direito e, como questões
nucleares, estão e haverão de estar fora do debate político, porque são
princípios fundamentais, porque são objetivos fundamentais, por que são
cláusulas pétreas ou por que são direitos fundamentais. O papel da política,
nesta circunstância, é decidir “o como”, porque “o que” já está definido pela
10
Constituição.
8
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 77.
9
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 4. ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 116.
10
CLÉVE, Clémerson Merlin. O Controle da Constitucionalidade e a Efetividade dos Direitos
Fundamentais in Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.
388/389.
15
Nota-se, portanto, que a efetividade desses direitos não depende apenas de
sua previsão normativa, mas também, de ações concretas do Estado para
implementação dessas ações.
Robert Alexy afirma que os direitos fundamentais podem ser definidos como
aquelas posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão relevantes,
que seu reconhecimento ou não-reconhecimento não pode ser deixado à livre
disposição do legislador ordinário.11
Desde seu surgimento, passando pelo crescente processo de fortalecimento e
reconhecimento, muitas foram as modificações ocorridas na seara dos direitos
fundamentais. A doutrina clássica, encabeçada por Norberto Bobbio em sua clássica
obra A Era dos Direitos, ao tratar da evolução dos direitos fundamentais ao longo da
histórica refere-se a gerações de direitos fracionando essa evolução em direitos de
primeira, segunda e terceira geração, a saber, direitos de liberdade, da igualdade e
da fraternidade, mas há quem sustente uma quarta, e até mesmo uma quinta
geração de direitos fundamentais.12
2.3 CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE
1988
Os direitos fundamentais surgiram em consonância com a demanda de cada
época, motivo pelo quais os estudiosos costumam dividi-los em gerações ou
dimensões, conforme sua ingerência nas constituições. Paulo Bonavides foi um dos
principais constitucionalistas que leu os direitos fundamentais a partir de um perfil
histórico, agrupando os mesmos em gerações de direitos.13
Ingo Sarlet não adota o termo “geração”, referindo-se à “dimensão”. Isso
porque a idéia de “geração” está diretamente ligada à de sucessão, substituição,
enquanto que os direitos fundamentais não são substituídos de uma geração por
outra. A distinção entre gerações serve apenas para situar os diferentes momentos
em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem
11
ALEXY, Robert. Theori der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt, 1994. p. 407.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45.
13
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2011.
16
12
jurídica.
De acordo com Ingo Sarlet, explicando a opção pelo termo dimensões:
Em que pese o dissídio na esfera terminológica, verifica-se crescente
convergência de opiniões no que concerne à idéia que norteia a concepção
das três (ou quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos
fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetória existencial
inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras Constituições
escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em
constante processo de transformação, culminando com a recepção, nos
catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e
diferenciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto as
transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica
ao longo dos tempos. Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos
fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do
processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos
fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade
no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera
14
do moderno ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos.”
Portanto, independente de qual seja a terminologia adotada, o fato é que
nota-se uma convergência de opiniões quanto à existência de três, quatro ou cinco,
dependendo
do
posicionamento
adotado,
gerações/dimensões
de
direitos
fundamentais.
2.3.1 Os direitos fundamentais da primeira geração
São denominados direitos fundamentais de primeira geração os direitos e
garantias individuais e políticos clássicos, que valorizam o individuo como pessoa
frente ao Estado, cuja atuação se vê limitada pela esfera de autonomia dos
particulares, portanto, direitos de cunho individual e referem-se às liberdades
negativas clássicas, que enfatizam o princípio da liberdade. Correspondem,
basicamente, aos direitos civis e políticos15, tais como o direito de voto, de
participação política, de igualdade, do devido processo legal e do habeas corpus.16
Segundo Noberto Bobbio, “num primeiro momento, afirmaram-se os direitos
14
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 55.
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p.
563.
16
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 56.
17
de liberdade”, os chamados direitos de primeira geração.17
Eles surgiram juntamente com a Revolução Francesa, entre os séculos 18 e
19, como formar de afastar o poder monárquico e assegurar a classe burguesa,
então surgente, os direitos mínimos para o exercício da sua atividade. Desta forma,
eles tinham como fundamento a “limitação do poder do Estado e a reserva para o
indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao
Estado”.18
Em virtude disso, eles também são chamados de liberdades negativas, vez
que “constituíam verdadeiro obstáculo à interferência estatal”19. Eles limitam a
atuação do Poder Público, “buscando controlar e limitar os desmandos do
governante, de modo que este respeite as liberdades individuais da pessoa
humana”20.
Paulo Bonavides ao fazer referência aos direitos de primeira dimensão afirma
que os direitos fundamentais de primeira dimensão representam exatamente os
direitos civis e políticos, que correspondem à fase inicial do constitucionalismo
ocidental, mas que continuam a integrar os catálogos das Constituições atuais
(apesar de contar com alguma variação de conteúdo), o que demonstra a
cumulatividade das dimensões.21
Enfim, os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade são direitos de
resistência ou de oposição perante o Estado.
2.3.2 Os direitos fundamentais da segunda geração
Os direitos fundamentais de segunda geração são os direitos sociais, culturais
e econômicos, que impõe um fazer ao Estado. Ao Estado se atribui um
comportamento ativo na implementação de políticas públicas de prestação de
serviço de cunho social, tais como saúde, educação, trabalho, assistência social,
17
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 32.
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 32.
19
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2012, p.
617-618.
20
OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach de. A Teoria Geracional dos Direitos do Homem. Disponível
em:
<http://www.theoria.com.br/edicao0310/a_teoria_geracional_dos_direitos_do_homem.pdf>.
Acesso em: 01 ago. 2014, p.18.
21
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993.
18
18
entre outros, com vistas à realização da justiça social. Também, entre os direitos
sociais incluem-se as liberdades sociais, como o direito de greve e de livre
associação, aqueles relacionados ao direito dos trabalhadores, como repouso
semanal remunerado e férias.
Ingo Wolfgang Sarlet ressalta que os direitos de segunda dimensão atribuem
ao Estado um comportamento ativo na realização da justiça social.22
Traçando um paralelo entre os direitos de primeira e segunda geração,
George Marmelstein afirma que os direitos de primeira geração tinham como
finalidade, possibilitar a limitação do poder estatal e permitir a participação do povo
nos negócios públicos. Já os direitos de segunda geração impõem diretrizes,
deveres e tarefas a serem realizadas pelo Estado, no intuito de possibilitar aos seres
humanos melhores qualidade de vida e um nível de dignidade como pressuposto do
próprio exercício da liberdade, proporcionando o desenvolvimento do ser humano,
fornecendo-lhe as condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária
liberdade.23
Nessa nova geração, o Estado ganha novo papel, o de agir, de assegurar e
garantir a igualdade entre as pessoas, e por isso esses direitos também são
denominados de direitos de igualdade. Eles são “animados pelo propósito de reduzir
material e concretamente as desigualdades sociais e econômicas até então
existentes, que debilitavam a dignidade humana”24.
Conforme anota Bonavides, os direitos fundamentais da segunda geração
nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separa, pois
equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.25
2.3.3 Os direitos fundamentais da terceira geração
São compreendidos como direitos de terceira geração aqueles de titularidade
coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, que diversamente das dimensões
22
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 56.
23
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Altas, 2008, p. 50.
24
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2012, p.
623.
25
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p.
564.
19
até então existentes, não se destina especificamente à proteção dos interesses
individuais, mas protege interesses de titularidade coletiva ou difusa, consagrando
os
princípios
da
solidariedade
ou
fraternidade.
Destaca-se
o
direito
ao
desenvolvimento e a uma nova ordem econômica mundial, direito ao patrimônio
comum da humanidade, direito à paz, a proteção ao meio ambiente e qualidade de
vida, desenvolvimento da comunicação, direito de informática, impacto tecnológico e
ao patrimônio comum da humanidade.
Nesse sentido, Alexandre de Moraes cita:
Por fim, modernamente, protegem-se, constitucionalmente, como direitos de
terceira geração os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, que
englobam um direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável
qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a
outros direitos difusos, que são, no dizer de José Marcelo Vigliar, os
interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre
elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso (Ação civil pública. São
26
Paulo: Atlas, 1997. p. 42).
Segundo Sarlet, compreende-se que os direitos fundamentais de terceira
geração são usualmente denominados como de solidariedade e fraternidade, de
modo especial em face de sua implicação universal ou, no mínimo, transindividual, e
por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua
efetivação. Aduz, ainda que no que tange a sua positivação, é preciso reconhecer
que a maior parte destes direitos fundamentais de terceira geração não encontrou
seu reconhecimento na seara do direito constitucional, estando, no entanto,
consagrado no âmbito do direito internacional, do que dá conta um grande número
de tratados e outros documentos transnacionais.27
Segundo Bonavides, os direitos de terceira geração são dotados de altíssimo
teor de humanismo e universalidade que tem por destinatário o gênero humano,
num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de
existencialidade concreta.28
No século XX, após grandes conflitos mundiais, novas reivindicações sociais
26
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 26.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 58.
28
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p.
569.
20
27
passaram a fazer parte do cenário internacional e das sociedades contemporâneas.
As condições para a ampliação do conteúdo dos direitos do homem se
apresentavam através de novas contradições e confrontos que exigiam respostas
visando à garantia e proteção da vida e das liberdades29. Desta forma, a paz é
considerada um direito difuso e coletivo, essencial para assegurar a vida em
coletividade. Contudo, esse entendimento não é unânime, sendo que Paulo
Bonavides sugere que o direito à paz é um direito fundamental de quinta geração,
em virtude da se este possuir características que o destacam dos demais direitos
aqui apontados, como a seguir será apresentado.
Para essa corrente doutrinária, o direito à paz é mais do que um direito
coletivo, mas sim um direito plural, concebido para ser reivindicado por todos os
povos, e não somente por um. “O sujeito do direito (a totalidade dos seres humanos
vivos), assim, contrapõe o seu direito ao conjunto dos Estados e a cada um deles,
em particular”.30
2.3.4 Os direitos fundamentais da quarta geração
Na atualidade existem doutrinadores que defendem a existência dos direitos
de quarta geração ou dimensão, que ainda aguarda sua consagração na esfera do
direito internacional e das ordens constitucionais internas, apesar de ainda não
haver consenso na doutrina sobre qual o conteúdo dessa espécie de direito. A
quarta geração dos direitos do homem se refere à manipulação genética, à
biotecnologia e à bioengenharia, abordando reflexões acerca da vida e da morte,
pressupondo sempre um debate ético prévio. Através dessa geração se determinam
os alicerces jurídicos dos avanços tecnológicos e seus limites constitucionais.31
A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, da
UNESCO, é o marco histórico da quarta geração de direitos fundamentais que
29
OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach de. A Teoria Geracional dos Direitos do Homem. Disponível
em:
<http://www.theoria.com.br/edicao0310/a_teoria_geracional_dos_direitos_do_homem.pdf>.
Acesso em: 01 ago. 2014, p. 19.
30
SYMONIDES, Janusz. Direitos Humanos: novas dimensões e desafios. Brasília: UNESCO Brasil,
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2003, p. 82-83.
31
OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach de. A Teoria Geracional dos Direitos do Homem. Disponível
em:
<http://www.theoria.com.br/edicao0310/a_teoria_geracional_dos_direitos_do_homem.pdf>.
Acesso em: 25 jul. 2014, p. 21.
21
reconhece logo no artigo 1° que o genoma humano é patrimônio da humanidade; no
artigo 2°, que ninguém pode ser discriminado em virtude de suas características
genéticas; e, no artigo 4°, que o genoma não pode ser objeto de negociação
financeira.32
Dito isso, busca-se a preservação da individualidade humana e da
diversidade do genoma, proibindo o seu uso com fins não humanísticos, meramente
privatistas. Estabelecendo, assim “limites éticos em relação à intervenção acerca do
patrimônio genético do ser humano”33.
Paulo Bonavides defende a existência dos direitos de quarta geração, com
aspecto introduzido pela globalização política, relacionados à democracia, à
informação e ao pluralismo, conforme abaixo transcrito:
A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma
referência de valores. (...) Há, contudo, outra globalização política, que ora
se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal.
Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que
interessa aos povos da periferia. Globalizar direitos fundamentais equivale a
universalizá-los no campo institucional. (...) A globalização política na esfera
da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás,
correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. É
direito de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o
direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta
do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece
o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (...) os
direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos
sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à
paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a
34
pirâmide cujo ápice é o direito à democracia.
Além de Paulo Bonavides, outros constitucionalistas vêm promovendo o
reconhecimento dos direitos de quarta geração ou dimensão, conforme podemos
perceber nas palavras do mestre Marcelo Novelino, quando ressalta que:
(...) tais direitos foram introduzidos no âmbito jurídico pela globalização
política, compreende o direito à democracia, informação e pluralismo. Os
direitos fundamentais de quarta dimensão compendiam o futuro da
32
UNESCO. Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122990por.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2014, p. 07.
33
OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach de. A Teoria Geracional dos Direitos do Homem. Disponível
em:
<http://www.theoria.com.br/edicao0310/a_teoria_geracional_dos_direitos_do_homem.pdf>.
Acesso em: 25 jul. 2014, p. 22.
34
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p.
571-572.
22
cidadania e correspondem à derradeira fase da institucionalização do
Estado social sendo imprescindíveis para a realização e legitimidade da
35
globalização política.
Conclui-se que os direitos fundamentais de quarta geração guardam
identidade com a evolução da tecnologia, sendo que o direito busca e deve
acompanhar tal evolução, a fim de resguardar os direitos que se encontram
envolvidos.
2.3.5 Os direitos fundamentais da quinta geração
Existem autores que defendem a existência de uma quinta geração ou
dimensão de direitos fundamentais. Paulo Bonavides dedica um capítulo sobre a
quinta geração de direitos fundamentais em sua obra Curso de Direito
Constitucional, afirmando que a Paz seria um direito de quinta geração.
Segundo Bonavides:
(...) a paz é o corolário de todas as justificações em que a razão humana,
sob o pálio da lei e da justiça, fundamenta o ato de reger a sociedade, de
modo a punir o terrorista, julgar o criminoso de guerra, encarcerar o
torturador, manter invioláveis s bases do pacto social, estabelecer e
conservar, por intangíveis, as regras, princípios e cláusulas pétreas da
comunhão política. O direito à paz é o direito natural dos povos. Valores,
portanto, providos de inviolável força legitimadora, única capaz de construir
a sociedade da justiça, que é fim e regra para o estabelecimento da ordem,
36
da liberdade e do bem comum na convivência dos povos.
Ainda, conforme afirmação de Paulo Bonavides, o direito à paz surgiu
primeiramente na Declaração das Nações Unidas, sendo que posteriormente, foi
mencionado na Declaração da Conferência de Teerã sobre os Direitos Humanos37,
de 13 de maio de 1968, que reconheceu que a “paz constitui uma aspiração
universal da humanidade, e que para a realização plena dos direitos humanos e as
35
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2008, p.
229.
36
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p.
590.
37
UNESCO. Declaração da Conferência de Teerã sobre os Direitos Humanos. Disponível em:
<http://dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/teera.htm>. Acesso em: 01 ago. 2014.
23
liberdades fundamentais são indispensáveis à paz e à justiça”38.
Ou seja, a ausência de paz é prejudicial ao cumprimento dos direitos
humanos.
Entretanto, foi a Resolução 33/73, aprovada na 84ª Sessão Plenária da
Assembleia da ONU, de 14 de dezembro de 1978, que consagrou expressamente a
paz como direito fundamental, ao tratar sobre a preparação das sociedades para
viver em paz. Neste há o reconhecimento de que “la paz entre las naciones es el
valor supremo de la humanidad, que aprecian em el más alto grado todos los
principales movimientos políticos, sociales y religiosos”39.
Faz-se necessário destacar que a divisão descrita das gerações ou
dimensões dos direitos fundamentais trata-se de um método meramente acadêmico,
uma vez que os direitos dos seres humanos não devem ser divididos em gerações
ou dimensões estanques, retratando apenas a valorização de determinados direitos
em momentos históricos distintos.
2.4 A EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Todo dispositivo da Constituição Federal, especialmente aqueles referentes
aos direitos fundamentais, são possuidores de determinado grau de eficácia e
aplicabilidade, devido a normatização imposta pelo Poder Constituinte.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, § 1°, outorgou a aplicação
imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, porém
existem controvérsias acerca da operacionalização e eficácia do serviço a ser
prestado. O significado e o alcance do artigo 5°, § 1°, CF/88 para as diversas
categorias de direitos fundamentais gera controvérsia na literatura jurídicoconstitucional no que tange à sua eficácia e aplicabilidade.40
As normas definidoras de direitos fundamentais, além de aplicáveis a todos os
38
BONAVIDES, Paulo. A Quinta Geração de Direitos Fundamentais. Disponível em:
<http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/3_Doutrina_5.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2014, p. 83.
39
ONU.
Resolução
n.
33/73.
Disponível
em:
<http://daccess-ddsny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/367/12/IMG/NR036712.pdf?OpenElement>. Acesso em: 01
ago. 2014, p. 57.
40
Artigo 5°, § 1º, da Constituição Federal: As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata.
24
direitos fundamentais, apresentam caráter de normas-princípios, pois delas podem
ser extraídos os efeitos jurídicos necessários para a efetivação do direito à saúde,
pois do contrário, os direitos fundamentais se limitariam a ficar na esfera da
disponibilidade dos órgãos estatais.
Adotando o critério da proporcionalidade e da harmonização dos valores
estabelecidos por Alexy em sua Teoria dos Direitos Fundamentai, o papel da
eficácia e aplicabilidade do direito à saúde é essencial, vez que é a variante
elementar do princípio fundamental da pessoa e do respeito à dignidade humana,
que é o princípio que norteia e permeia a totalidade de nossa Lei Fundamental e
sem o qual a própria acabaria por renunciar à sua própria humanidade, perdendo até
mesmo a sua razão de ser.41
Ingo Wolfgang Sarlet destaca a problemática de se compreender os direitos
fundamentais, inclusive os sociais, como normas de plena eficácia, a dispensar a
intermediação do legislador. O referido autor sustenta que até mesmo os defensores
mais ardorosos de uma interpretação restritiva da norma reconhecem que o
Constituinte pretendeu, com sua expressa previsão no texto, evitar o esvaziamento
dos direitos fundamentais, impedindo que os permaneçam letra morta no texto da
Constituição42.
Diante disto, como ressalta Sarlet:
A melhor exegese da norma contida no art. 5°, parágrafo 1°, de nossa
Constituição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho
inequivocamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de
mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos
órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos
direitos fundamentais (...) [sendo certo, por isto, que] seu alcance (isto é, o
quantum em aplicabilidade e eficácia) dependerá do exame da hipótese em
43
concreto, isto é, da norma de direito fundamental em pauta.
Com isto surge uma presunção em favor da aplicabilidade imediata e eficácia
plena das normas de direitos fundamentais, pois, a recusa de sua aplicação em
virtude da falta de ato concretizador deve ter caráter excepcional e ser
41
ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 157.
42
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p. 274.
43
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p.245-246.
25
convincentemente justificada à luz do caso concreto. Portanto, ainda segundo Ingo
Wolfgang Sarlet:
No caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado ao art. 5°,
parágrafo 1°, de nossa Lei Fundamental, pode-se afirmar que aos poderes
públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair das normas que os
consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgandolhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas
constitucionais, já que não há como desconsiderar a circunstância de que a
presunção da aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita em favor
dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua
44
fundamentalidade formal no âmbito da Constituição.
Deste modo, pode-se afirmar que, em certo sentido, os direitos e princípios
fundamentais regem e governam a própria ordem constitucional.45
Celso Bastos sustenta que os direitos fundamentais são, em princípio,
diretamente aplicáveis, regra que, no entanto, comporta duas exceções: a) quando a
Constituição expressamente remete a concretização do direito fundamental ao
legislador, estabelecendo, por exemplo, que este apenas será exercido na forma
prevista em lei; b) quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos
mínimos indispensáveis que lhe possam assegurar a aplicabilidade, no sentido de
que não possui a normatividade suficiente à geração de seus efeitos principais sem
que seja necessária a assunção, pelo Judiciário, da posição reservada ao
legislador.46
José Afonso da Silva afirma que a eficácia e aplicabilidade das normas que
contêm os direitos fundamentais dependem muito de seu enunciado, pois se trata de
assunto do Direito Positivado, e por regra, as normas que consubstanciam os
direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e
aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais
são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta,
mas são tão juridicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto
mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da
44
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p. 246.
45
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p. 247.
46
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 11. Aufl. São Paulo: Saraiva, 1989. p.
393.
26
democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais.47
De qualquer modo, o que se observa é uma crescente no sentido de que os
direitos fundamentais são de eficácia plena e aplicabilidade imediata, havendo cada
vez mais doutrinadores adotando tal posicionamento, bem como julgados neste
mesmo sentido.
47
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2013. p. 182.
27
3. DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E A SAÚDE NA CONSTITUIÇAO
FEDERAL DE 1988
3.1 DO DIREITO À VIDA
A atual Constituição Federal permitiu importantes conquistas sociais e
políticas, consagrando a prevalência de determinados direitos fundamentais, dentre
eles o direito à vida e à saúde.
O art. 5º, caput, assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes em
nosso País a inviolabilidade do direito à vida, sendo esta uma garantia basilar,
originadora dos demais direitos, já que o exercício de qualquer outro pressupõe sua
existência.
O direito à vida é o primeiro e mais fundamental direito tutelado pelo
ordenamento jurídico. Mais do que essencial, é um direito "essencialíssimo"48,
porque dele dependem todos os outros direitos, razão pela qual a sua proteção se
dá em todos os planos do ordenamento: no direito civil, penal, constitucional,
internacional, etc.
Luiz Edson Fachin, lembra que o direito à vida é "condição essencial de
possibilidade dos outros direitos. Desenvolve-se aí a concepção da supremacia da
vida humana e que, para ser entendida como vida, necessariamente deve ser
digna".49
Para Alexandre de Moraes, “o direito humano fundamental à vida deve ser
entendido como direito a um nível de vida adequado com a condição humana, ou
seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médico-odontológica, educação,
cultura, lazer e demais condições vitais”.50
Conforme orienta José Afonso da Silva, “a vida disposta no texto
constitucional não corresponde apenas ao seu sentido biológico, inclui também o
aspecto da unidade, da identidade e da continuidade do processo vital que vai do
48
A expressão é de Santos Cifuentes (Cf. CIFUENTES, Santos. Derechos personalísimos. Editorial
Astrea, 2ª ed..Buenos Aires: 1995, p.232).
49
FACHIN, Luiz Edson. A Tutela Efetiva dos Direitos Humanos Fundamentais e a Reforma do
Judiciário. Disponível em: <http://www.affigueiredo.com.br/artigos/direhumfundarefojud.pdf>. Acesso:
21 ago. 2014, p. 14.
50
MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 35.
28
momento do nascimento até a morte.” 51
Nesse aspecto, é certo que o direito fundamental à vida permanece atrelado
ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao acesso à saúde, pois a existência
digna depende das prestações necessárias à preservação, manutenção e ao
restabelecimento da saúde.
Em virtude da expressiva relevância pública das ações e serviços de saúde, o
próprio texto constitucional tratou de atribuir ao Poder Público o poder de dispor
sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.
Ainda, foi estabelecido que tais ações e serviços públicos integram uma rede
regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, organizado conforme
as diretrizes nele previstas, que serão estudadas mais adiante.
3.2 DO DIREITO À SAÚDE
3.2.1 Considerações Essenciais
A saúde, juntamente com a previdência e a assistência social, compõe o
Sistema da Seguridade Social no Brasil, vigente na atualidade por conta de
expressa disposição na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada
em 5 de outubro de 1988. 52
A etimologia da palavra saúde advém do adjetivo latino salute, cujo
significado é salvação, conservação da vida.53
Na atualidade, convive-se com uma diversidade considerável de concepções
de saúde, entre as quais algumas bastante conhecidas que funcionam como
referências mundiais e nacionais, é a da Organização Mundial da Saúde – OMS,
que propôs a realização das Conferências Mundiais de Saúde com integração de
todos os países que define e conceitua o substantivo saúde como “um estado
completo de bem-estar físico e mental do ser humano, e não apenas a ausência de
51
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 197.
52
Artigo 194 da Constituição Federal: A seguridade social compreende um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos
à saúde, à previdência e à assistência social.
53
DICIONÁRIO, Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 1822.
29
enfermidade”.54
No entanto, há de se registrar que a conceituação de saúde formulada pela
OMS não satisfaz, tendo em vista que o conceito não é operacional devido à
expressão “bem-estar” ser de cunho altamente subjetivo, sendo de difícil
quantificação. A implementação desse direito social depende muitas vezes de
políticas e verbas públicas suficientes para o completo bem-estar físico, social e
mental.55
Diferentemente do que permeia a sabedoria comum, a saúde compreende
aspectos mais amplos que a simples condição de estar saudável, pois a concepção
de saúde que permeia as relações humanas não pode ser compreendida de maneira
abstrata ou isolada.
A concepção abrangente de saúde assumida no texto constitucional aponta,
segundo MEC, para:
(...) uma mudança progressiva dos serviços, passando de um modelo
assistencial, centrado na doença e baseado no atendimento a quem
procura, para um modelo de atenção integral à saúde, no qual haja
incorporação progressiva de ações de promoção e de proteção, ao lado
56
daquelas propriamente ditas de recuperação.
A busca pelo bem-estar físico, mental e social é objetivo final a ser alcançado
pelo direito à saúde, mas depende de outros fatores determinantes e condicionantes
para a sua efetivação, tais como os direitos à proteção do meio-ambiente,
saneamento, educação, bem-estar social, assistência social, e ao acesso aos
serviços médicos de saúde.
3.2.2 Direto à Saúde na Constituição Federal de 1988 e na Legislação
Infraconstitucional
54
EUA.
Constituição
da
Organização
Mundial
da
Saúde.
Disponível
em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-daorganizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 16 ago. 2014, p. 1.
55
BAHIA, Cláudio José Amaral; ABUJAMRA, Ana Carolina Peduti. Segunda Seção. A justiciabilidade
do direito fundamental à saúde: concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana. Revista dos Tribunais. São Paulo: volume 892, n. 99, Fev./2010, p. 58.
56
MEC.
Parâmetros
Curriculares
Nacionais
–
Saúde.
Disponíve
em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/saude.pdf>. Acesso: 21/08/2014, p. 67.
30
Sobre a Constituição Federal de 1988, Bahia e Abujamra explicitam que:
(...) afinada com a evolução constitucional contemporânea e o direito
internacional, incorporou o direito à saúde como bem jurídico digno de tutela
jurisdicional, consagrando-o como direito fundamental, e, outorgando-lhe
uma proteção jurídica diferenciada no âmbito da ordem jurídico57
constitucional pátria.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet:
O direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente
direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do
Estado e terceiros na saúde do titular, bem como - e esta a dimensão mais
problemática – impondo ao Estado a realização de políticas públicas que
busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para além
disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde,
tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos,
realização de exames da mais variada natureza, enfim, toda e qualquer
58
prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde.
O direito à saúde, corolário do próprio direito à vida, está sobejamente
assegurado na Constituição Federal, podendo ser compreendido a partir do seu
preâmbulo, bem como de dois dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,
quais sejam, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, previstos nos incisos II e
III do artigo 1º da Carta Magna. 59
O Título II da CF/88 elenca os chamados Direitos e Garantias Fundamentais,
onde presente se encontra o direito à saúde encarado sob dois ângulos, quais
sejam, (i) como direito individual, em decorrência do direito à vida e (ii) como direito
social, em decorrência de um dever do Estado em agir positivamente no sentido de
implementar políticas que tenham por finalidade a melhoria das condições de vida
aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social e o respeito à
dignidade da pessoa humana.
57
BAHIA, Cláudio José Amaral; ABUJAMRA, Ana Carolina Peduti. Segunda Seção. A justiciabilidade
do direito fundamental à saúde: concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 892, n. 99, fev/2010, p.60.
58
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas Considerações em Torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade
do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Disponível em
<http://www.direitopublico.com.br/pdf_10/DIALOGO-JURIDICO-10-JANEIRO-2002-INGOWOLFGANG SARLET.pdf >. Acesso em: 20 ago. de 2014.
59
Artigo 1º da Constituição Federal: A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana.
31
No âmbito fundamentalista formal do direito à saúde, a Constituição Federal
de 1988 outorgou às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
aplicação
imediata
(artigo
5°,
§1°),
conferindo-lhes
especialmente
uma
normatividade reforçada que não mais se encontra na dependência de uma
concretização pelo legislador infraconstitucional, para que possam vir a gerar
plenitude de seus efeitos, pois atualmente não mais se fala em direitos fundamentais
na medida da lei, mas sim, em leis na medida dos direitos fundamentais.60
A Constituição Federal de 1988, de caráter eminentemente social, reconhece
em seu artigo 6º, caput, a saúde como um direito social fundamental, que exige do
Estado prestações positivas no sentido de efetivá-la, sob pena de ineficácia de seu
exercício, pois precisa ser implementada por meio de políticas públicas sociais e
econômicas.61
Já o artigo 7º da CF/88 traz a garantia à saúde do trabalhador em seu meio
ambiente do trabalho.
Os artigos 23, 24 e 30 definem as competências dos entes Federados quanto
à matéria saúde. O primeiro define como “competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” o cuidado com a saúde das pessoas
portadoras de deficiência. O artigo 24 da CF/88 define a competência concorrente
legislativa da União, dos Estados e do Distrito Federal sobre proteção e defesa da
saúde. O artigo 30 determina a competência aos Municípios para prestar os serviços
de atendimento à saúde da população.
Mais adiante, no Título VIII, reservado à Ordem Social, em seu Capítulo II,
Seção II, tratou a Constituição do Direito à Saúde e conferiu à saúde especial
destaque e proteção na medida em que expressamente estabelece, em seu artigo
196 que a saúde é direto de todos e dever do Estado, que a deve prestar, portanto,
a todos os cidadãos, indistintamente, obedecendo-se o princípio do acesso universal
e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.62
Ademais, o artigo 197 da Constituição Federal de 1988 qualifica as ações e
60
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2000, p. 311.
Artigo 6º, caput, da Constituição Federal: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
62
Artigo 196 da Constituição Federal: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
32
61
serviços de saúde como de relevância pública, e estes devem ser prestados
diretamente ou através de terceiros, caso em que o Poder Público exercerá
regulamentação, fiscalização e controle.63
Para Fernando Zandoná, o Título VIII, da Constituição Federal de 1988 – “Da
Ordem Social”, Capítulo II – “Da Seguridade Social”, Seção II – “Da Saúde”, auferiu
os seguintes contornos ao direito à saúde: a) foi reconhecido como direito de todos;
b) ao Estado foi imposto o dever de garanti-lo mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos; e, c) foi
determinado que o acesso à saúde deve ser universal e igualitário às ações e
serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.64
Mais adiante, o artigo 198, II determina expressamente seja priorizada a
prevenção de doenças, através de ações e serviços prestados diretamente pelo
Poder Público ou por entes privados, integrados em uma rede regionalizada e
hierarquizada, conhecida como Sistema Único de Saúde (SUS), que deverá velar
pelo “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais”65.
O artigo 227 da CF/88, por sua vez, determina como dever da “família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem” o direito à
vida, saúde, alimentação, educação, lazer, dentre outras garantias.
Nesse contexto fundamental de defesa da vida, da dignidade, da saúde das
pessoas, visando o atendimento integral nessa área, a Constituição Federal impõe
que as ações e serviços públicos de saúde constituam um sistema único, onde
adquirem prioridade os serviços assistenciais.
Por seu turno a Lei Orgânica da Saúde, 8.080/90, que regulamenta as ações
63
Artigo 197 da Constituição Federal: São de relevância pública as ações e serviços de saúde,
cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa
física ou jurídica de direito privado.
64
ZANDONÁ, Fernando. Política Nacional ou Judicial de Medicamentos. Disponível em:
<http://www.revistadoutrina. trf4.jus.br/indices/Materias/Direito_Constitucional.htm, 2008>. Acesso
em: 15 ago. 2014.
65
Artigo 198 da Constituição Federal: As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais; III - participação da comunidade.
33
e serviços de saúde estabeleceu que a atuação do Estado, no que tange à saúde se
efetivaria através do Sistema Único de Saúde – SUS. Em seu artigo 3°, refere-se a
vários direitos afins com o direito à saúde e à qualidade de vida, mencionando que a
saúde possui características correlacionadas com a educação, a moradia, o
trabalho, o saneamento básico, a renda, o meio ambiente, o lazer e o acesso aos
serviços essenciais.66
A essas ponderações impõe somar-se a diretriz do SUS consistente na
integralidade da assistência terapêutica, inclusive farmacêutica, prevista no art. 6º, I,
alínea d, da Lei 8080/90, sendo que o seu art. 7º, inciso II, define a integralidade da
assistência como sendo um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso, em todos
os níveis de complexidade do sistema.67
Assim, para fins de aplicação do artigo 196 da Constituição Federal de 1988,
pode-se conceituar s saúde como um processo sistêmico destinado a promover o
bem-estar-físico, psíquico e social, assim como a melhorar a qualidade de vida de
cada pessoa dentro da realidade social em que se encontra inserida.68
No mesmo sentido disciplina a Lei Estadual nº 14.254, de 04 de dezembro de
2003, ao assegurar direitos aos usuários do SUS no Estado do Paraná, bem como a
recente edição da Carta dos Direitos de Usuários da Saúde, editada pelo Ministério
da Saúde ao buscar proporcionar a melhoria da qualidade do atendimento à saúde
dos usuários, baseando-se em seis princípios: i) direito ao acesso ordenado e
organizado aos sistemas de saúde; ii) direito ao tratamento adequado e efetivo para
seu problema; iii) direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer
66
Artigo 3° da Lei Orgânica da Saúde 8.080/90: Os níveis de saúde expressam a organização social
e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a
atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
67
Artigo 6° da Lei Orgânica da Saúde 8.080/90: Estão incluídas ainda no campo de atuação do
Sistema Único de Saúde - SUS: I - a execução de ações: (...) d) de assistência terapêutica integral,
inclusive farmacêutica. Artigo 7°: As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados
contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde - SUS são desenvolvidos de
acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos
seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de
assistência; II - integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das
ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os
níveis de complexidade do sistema.
68
BAHIA, Cláudio José Amaral; ABUJAMRA, Ana Carolina Peduti. Segunda Seção. A justiciabilidade
do direito fundamental à saúde: concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 892, n. 99, fev/2010, p. 59.
34
discriminação; iv) direito a atendimento que respeite à sua pessoa, seus valores e
seus direitos; v) responsabilidades do cidadão para que seu tratamento aconteça de
forma adequada; e vi) direito ao comprometimento dos gestores da saúde para que
os princípios anteriores sejam cumpridos.69
Portanto, a Constituição da República bem como os diplomas legais
mencionados tutelam firmemente o direito de todos à saúde e impõe ao Estado
brasileiro o dever de garanti-lo.
3.3 DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
Além do princípio da dignidade humana, outros postulados constitucionais são
relevantes. A saúde integra a seguridade social e, por conta disso, aplicam-se todos
os princípios constitucionais insculpidos no artigo 194 da Carta Magna.70
Nessa dimensão, principalmente com a introdução no ordenamento jurídico
de um Sistema Único de Saúde, depreende-se a fundamental importância dos
princípios regentes do direito à saúde nesse sistema, quais sejam, da prevenção, da
universalidade, da reserva do possível, da integralidade e da igualdade.
3.3.1 Princípio da Prevenção
O Poder Público deve atuar não só na seara curativa, mas também apoiando
e desenvolvendo iniciativas visando à informação e conscientização da população
sobre a importância da prevenção de doenças, estimulando o cidadão a assumir o
seu papel no controle das principais doenças que atinge a sociedade.
A prevenção assume um papel notório, eis que naturalmente impedir que o
69
Art. 167 da Constituição do Estado do Paraná: A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à prevenção, redução e eliminação de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para a
sua promoção, proteção e recuperação. Art. 169: As ações e serviços públicos de saúde integram
uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema estadual de saúde, organizado de
acordo com as seguintes diretrizes: I – municipalização dos recursos, serviços e ações, com posterior
regionalização dos mesmos, de forma a apoiar os Municípios; II – integralidade na prestação das
ações, preventivas e curativas, adequadas às realidades epidemiológicas; III – integração da
comunidade, através da constituição do Conselho Estadual de Saúde, com caráter deliberativo,
garantida a participação dos usuários, prestadores de serviços e gestores, na forma da lei.”
70
Artigo 194 da Constituição Federal: A seguridade social compreende um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos
à saúde, à previdência e à assistência social.
35
mal aconteça deve ser o principal objetivo de uma política pública, seja pelo viés de
impedir o próprio fato danoso ou, ainda, de impedir as consequências do mesmo.71
O papel da prevenção, além de ser benéfica para a população, é de suma
importância para o Poder Público, haja vista que, se eficaz, pode influenciar
diretamente na redução de gastos públicos.
É como diz o conhecido ditame popular: “melhor prevenir do que remediar”.
3.3.2 Princípio da Universalidade da Cobertura e do Atendimento
O princípio da universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, I, CF),
é um dos que sustentam muitas pretensões judiciais na área de saúde.
De acordo com Ana Cláudia de Redecker, o princípio da universalidade é
assim interpretado:
O Estado deve garantir igual proteção – saúde, previdência e assistência –
indistintamente a todas as pessoas residentes no País, sejam empregados
ou não (universalidade subjetiva), em todas as situações de risco social
(universalidade objetiva ou de atendimento), devendo ser não só reparadora
72
das necessidades, mas também preventiva do seu surgimento.
Os serviços de saúde devem atender o máximo de situações a fim de cobrir o
maior número de beneficiários. Conforme dispõe o artigo 5º, caput da Constituição
de Federal de 1988, a prestação do serviço público de saúde deve estar disponível a
todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, independentemente da
condição econômica, compartilham os mesmos serviços públicos de saúde.
O acesso universal igualitário reclama uma prestação pública de saúde em
que se observem as particularidades dos grupos, conforme afirma Roger Raupp
Rios:
[...] numa sociedade plural e diversa, cumprir a obrigação de propiciar acesso
universal igualitário significa, na medida do possível, considerar a diversidade
cultural, social, econômica e geográfica presente nos indivíduos e grupos
destinatários das políticas públicas de saúde, tornando o sistema de fornecimento
71
MEDEIROS, Leandro Peixoto. O princípio da prevenção sob o enfoque ambiental e da Saúde: Um
Imperativo
Sócio-Democrático.
Disponível
em:
<
http://www.idbfdul.com/uploaded/files/2013_10_11123_11145.pdf> Acesso em: 22 set. de 2014.
72
REDECKER, Ana Cláudia. Artigo 194. In: BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de
Moura. Comentários à Constituiçao Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 2112.
36
de bens e serviços pertinentes à saúde capaz de atendê-los. Nessa linha de
pensamento, pode-se falar num direito difuso a um sistema de saúde que
conjugue medidas genéricas e medidas específicas (que considerem a
especificidade de cada grupo) de prevenção e promoção da saúde, como aponta,
73
por exemplo, a ideia de redução de danos entre usuários de drogas.
O que se observa na cruel realidade brasileira, é que os usuários de menor
poder aquisitivo do Sistema Único de Saúde, justamente os que mais necessitam,
enfrentam inúmeras dificuldades de acesso ao Sistema, bem como ao Poder
Judiciário, o que dificulta a fruição integral dos serviços prestados através do SUS.
De acordo com o texto constitucional, o acesso universal significa que todos,
independentemente da condição financeira podem usufruir dos mesmos serviços
públicos de saúde. Porém, depreende-se da jurisprudência brasileira, que a
hipossuficiência vem sendo utilizada como requisito para a concessão da tutela
jurisdicional de fornecimento de medicamentos/tratamentos pelo Estado.
3.3.3 Princípio da Reserva do Possível
“A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico
da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre
infinitas a serem por eles supridas”74.
O princípio da reserva do possível decorre do princípio da eficiência
positivado no caput do artigo 37 da Lei Maior, e que significa que a Administração
Pública deve ser organizada de modo a alcançar os melhores resultados na
prestação do serviço público, sendo que os recursos públicos devem ser aplicados
prioritariamente no atendimento das necessidades essenciais da população, em
consonância com a realidade econômica do país.
A respeito da “reserva do possível” em conjugação com os direitos
fundamentais Gustavo Amaral ensina que:
A Administração Pública é, por definição, a gestão de meios escassos para
73
RIOS, Roger, Raupp. Direito à saúde, universalidade, integralidade e políticas públicas: princípios e
requisitos em demandas judiciais por medicamentos. Disponível em:
<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/indices/Materias/Direito_Constitucional.htm>. Acesso em: 20
ago. 2014.
74
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 236.
37
atender a necessidades ilimitadas. Há nela, intrinsecamente, uma constante
escolha. Ora, suponha-se que em uma dada ocasião o Poder Público se
veja diante de um dilema: dispõe de um volume de recursos suficientes ou
para tratar milhares de doentes vítimas de doenças comuns à pobreza ou
para tratar pequeno número de doentes terminais de doenças raras ou de
cura improvável. Nessa situação, não seria possível deslocar a apreciação
para o Judiciário, pois a legitimidade da pretensão das duas categorias de
doentes é igualmente legítima, mas são faticamente excludentes. Ora,
posições ditas 'progressistas', de exigibilidade direta das prestações
positivas, independentemente da mediação legal e orçamentária, levam a
um impasse em situações como esta. A resposta comum é, na verdade,
75
uma evasiva: trata-se de problema do executivo.
Conforme preconiza o Enunciado nº 29 das Câmaras de Direito Público do
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, referindo-se ao fornecimento gratuito de
medicamentos, o direito à vida, à dignidade da pessoa humana e ao mínimo
existencial, prevalecem sobre a teoria da reserva do possível.76
Para Fernando Facury Scaff, a reserva do possível é um conceito econômico
que expressa a escassez de recursos, que impõe sejam eleitas prioridades a partir
da disponibilidade financeira, sejam nas escolhas feitas pelo Estado, sejam nas
escolhas feitas pelo indivíduo em sua vida privada.77
Tiago Lima Breus a entende como condição de realidade para a
Administração não custear a promoção de direitos sociais, que só é aplicável
quando comprovado que os recursos existentes estão sendo aplicados de forma
adequada.78
Na teoria de Ricardo Lobo Torres, a reserva do possível não se aplica ao
mínimo existencial, ou seja, aos direitos fundamentais sociais, contudo é totalmente
compatível com os direitos sociais, cuja implementação depende de reserva de lei e
efetiva realização pela Administração Pública, por isso o entendimento de que houve
um desvirtuamento do conceito pela doutrina brasileira, que passou a considerar a
reserva do possível para a efetivação dos direitos fundamentais e do mínimo
75
AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e o conflito entre poderes. In:
TORRES, Ricardo Lobo. (org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro, Renovar,
2001, p. 114.
76
PARANÁ, Tribunal de Justiça. Disponível em: http://www.tjpr.jus.br/enunciados. Acesso em: 21 ago
2014.
77
NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 97.
78
BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: Problemática da concretização
dos Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte:
Fórum, 2007, p. 272.
38
existencial.79
Para além disso, Sarlet defende que a denominada reserva do possível
possui uma dimensão tríplice que compreende a efetiva disponibilidade fática dos
recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, bem como a disponibilidade
jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda intima conexão com a
distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e
administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento,
notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional
federativo, e,
já na perspectiva
do eventual titular de um direito a prestações
sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da
prestação, em especial no tocante à exigibilidade e, nesta quadra, também da sua
razoabilidade.80
Dessa
feita,
indaga-se
acerca
da
efetividade
do
fornecimento
de
medicamentos pelo Estado frente à reserva do possível, vez que o fornecimento de
medicamentos à população deve observar determinados critérios, dentre os quais o
custo que ela representa para os cofres públicos.
Quando levada em juízo, há os que defendem a negativa do Poder Judiciário
no fornecimento de medicamentos que não estão contemplados nos Protocolos
Clínicos e Diretrizes Terapêutica do Ministério da Saúde. Argumenta-se que não
existem recursos suficientes para atendimento de todas as necessidades dos
indivíduos e que, assim, devem ser atendidas as necessidades escolhidas pelo
legislador e pelo administrador enquanto prioritárias, diante da disponibilidade
financeira do Estado.
A cláusula da reserva do possível será melhor analisada adiante.
3.3.4 Princípio da Igualdade
A igualdade enquanto princípio demonstra a existência de desigualdades
entre indivíduos dentro de uma mesma comunidade.
79
AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e o conflito entre poderes. In:
TORRES, Ricardo Lobo. (org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro, Renovar,
2001, p. 106.
80
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 287.
39
Para Ricardo Augusto Dias da Silva:
É imperioso destacar sobre o princípio da igualdade na área de saúde, que
a distribuição de serviços e bens de saúde efetivos deve estar disponível
segundo as necessidades de cada individuo, mas acima de tudo representa
a garantia de acessibilidade a todos, sem distinção, que do SUS
81
necessitem.
Celso Antônio Bandeira de Mello aduz que a igualdade é um princípio que
visa a duplo objetivo, a saber: de um lado propiciar garantia individual (não é sem
razão que se acha insculpido em artigo subordinado à rubrica constitucional “Direitos
e Garantias Individuais”, contra perseguições) e, de outro, tolher favoritismos.82
Atenção à saúde com igualdade, tratando os iguais de forma igualitária e os
desiguais de forma desigual, com vistas a alcançar a igualdade substancial, se
mostra necessária, a fim de proporcionar a justiça aos mais necessitados, para se
atinjam os objetivos fundamentais da República estabelecidos na Lei Fundamental.
3.3.5 Princípio da Integralidade
O princípio da integralidade significa precisamente assegurar ao usuário um
tratamento completo e individualizado, segundo suas necessidades e exigências, a
ser custeado pelo Poder Público. O serviço de saúde deve incluir ações de
prevenção, recuperação e tratamento em qualquer nível de complexidade, levandose em consideração que o ser humano é uma totalidade, um todo indivisível.
Segundo Roger Raupp Rios:
De acordo com o princípio da integralidade deve ocorrer uma racionalização
do sistema de serviço de saúde que deve ocorrer de modo hierarquizado,
buscando articular ações de baixa, média e alta complexidade, bem como
83
humanizar os serviços e as ações do sistema único de saúde.
81
DIAS DA SILVA, Ricardo Augusto. Direito fundamental à saúde. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2010, p. 120.
82
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade. São Paulo:
Malheiros, 1995, p. 17.
83
RIOS, Roger, Raupp. Direito à saúde, universalidade, integralidade e políticas públicas: princípios e
requisitos
em
demandas
judiciais
por
medicamentos,
2009.
Disponível
em:
<http://www.revistadoutrina.trf4.jus. br/indices/Materias/Direito_Constitucional.htm>. Acesso em: 20
ago. 2014.
40
A Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 199020 regula, em todo o território
nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em
caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público
ou Privado.
A referida norma dispõe acerca das condições para a promoção, proteção e
recuperação
da
saúde,
a
organização
e
o
funcionamento
dos
serviços
correspondentes.
Dentre as atribuições do sistema previstas no artigo 6º da Lei nº 8.080/90,
está a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e
outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção.
3.4 O MODELO BRASILEIRO DE SAÚDE PÚBLICA SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA
Primeiramente, para a compreensão adequada do tema, importa formular
uma breve síntese a propósito do funcionamento do Sistema Único da Saúde –
SUS, criado por imposição de normas constitucionais.
O direito à saúde, expresso no artigo 196 da Constituição Federal de 1988,
por ser fundamental à dignidade e à vida da pessoa humana, não pode ser
interpretado como mera norma programática, que se limita a traçar princípios,
objetivos e programas visando à realização dos fins sociais do Estado, posto que
frusta e limita o caráter pluralista, dirigente e principiológico da carta Política, cujo
objetivo direciona-se para concretização de uma justiça social que legitime o Estado
Democrático de Direito.
Segundo Regina Maria Macedo:
Ao falar em normas programáticas, não é possível questionar a sua
imperatividade, mas apenas a sua efetividade. [...] não se pode negar que
cabe à entidade estatal fazer valer direitos de cunho social, tais como os
definidos na Constituição Federal brasileira de 1988, no art. 6º, nos
84
seguintes termos: [...].
O Direito à saúde será efetivado, de acordo com o artigo 198 da Lei Maior,
84
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade,
operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 172.
41
através de ações e serviços prestados diretamente pelo Poder Público ou por entes
privados, integrados em uma rede regionalizada e hierarquizada, conhecida como
Sistema Único de Saúde (SUS), que deverá velar pelo “atendimento integral, com
prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”85.
Diante da relevância pública da saúde, outorgou-se aos entes federados,
através dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988, a assistência pública
à saúde. A edição da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, complementada pela
Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, regulamentou o Sistema Único de Saúde SUS.
Com efeito, o art. 7° da Lei n 8.080/90 - Lei Orgânica da Saúde – LOS - traça
os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, dentre os quais: (i) a
universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
(i) a integralidade da assistência; (iii) a igualdade da assistência à saúde.
Conforme dispõe o art. 198, § 1°, da Constituição Federal, o financiamento do
Sistema Único de Saúde será realizado com recursos do orçamento da seguridade
social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras
fontes. Em complemento, a Emenda Constitucional n° 20/98 determinou que a lei
definirá os critérios de transferência de recursos para o sistema único de saúde
ações de assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, e dos Estados para os Municípios, observada a respectiva contrapartida
de recursos.
O SUS estabeleceu a Política Nacional de Medicamentos, como parte
essencial da Política Nacional de Saúde, através da Portaria MS/GM n° 3.916, de 30
de outubro de 1998, garantindo as necessárias segurança, eficácia e qualidade dos
medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles
considerados essenciais, bem como estabelecendo as atribuições de cada esfera
governamental quanto ao fornecimento de fármacos.
Dessa forma, o fornecimento de medicamentos pelo Poder Público à
população passou a observar a Política Nacional de Medicamentos, a qual será
85
Artigo 198 da Constituição Federal: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma
rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais; III - participação da comunidade.
42
analisada mais adiante.
O SUS tem caráter público, deve compreender uma rede de serviços
regionalizada, hierarquizada e descentralizada, com direção única em cada esfera
de governo (municipal, estadual e federal) e sob controle dos usuários por meio da
participação popular nas Conferências e Conselhos de Saúde.
A despeito de que a legislação estabeleça um modelo de atenção integral à
saúde, o que inclui a prática de ações de promoção, proteção e recuperação, as
políticas públicas e privadas para o setor favorecem, em muitos casos, a
disseminação da idéia que a saúde se concretiza exclusiva ou prioritariamente
mediante o acesso a serviços, em especial ao tratamento médico.
3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL
3.5.1 Considerações Essenciais
Eduardo Appio, citando Jean Carlos Dias, define políticas públicas:
São programas de intervenção estatal a partir de sistematizações de ações
do Estado voltadas para a consecução de determinados fins setoriais ou
gerais, baseadas na articulação entre a sociedade, o próprio Estado e o
86
mercado.
Tais políticas são “instrumentos de execução de programas políticos
baseados na intervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar
igualdade de oportunidades aos cidadãos” 87.
No Brasil, as políticas públicas de saúde são traçadas democraticamente, por
intermédio da Comissão Intergestores Tripartite (integrada pela União, pelos
Estados e pelos Municípios) e com a participação da comunidade, integram uma
rede regionalizada e hierarquizada, organizada de forma descentralizada, com
direção única em cada esfera de governo.
Para instituir as políticas públicas e possibilitar a realização concreta do direito
à saúde, o Estado precisou se organizar na distribuição de competências e eleição
86
APPIO. Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2007, p.
133.
87
APPIO. Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2007, p.
136.
43
de prioridades, em virtude da imensa gama de indivíduos a serem atendidos (toda a
população).
Portanto, para a correta compreensão das políticas de saúde regidas pelo
SUS, segundo nosso modelo constitucional, é imperativo o conhecimento de normas
infraconstitucionais consubstanciadas em Portarias, tanto do Ministério da Saúde,
quanto das Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde, cujos fundamentos de
validade repousam na Lei 8.080/90.
3.5.1.1 A Política Nacional de Medicamentos
O Ministério da Saúde é o órgão do Poder Executivo Federal responsável
pela organização e elaboração de planos e políticas públicas voltados para a
promoção, prevenção e assistência à saúde dos brasileiros. É função do Ministério
da Saúde dispor de condições para a proteção e recuperação da saúde da
população, reduzindo as enfermidades, controlando as doenças endêmicas e
parasitárias e melhorando a vigilância à saúde, dando, assim, mais qualidade de
vida ao brasileiro.88
A Política Nacional de Medicamentos, aprovada pela Portaria GM/MS nº
3.916, de 30 de outubro de 1998, determina que toda a ação a ela relacionada
esteja em perfeito ajuste com as suas diretrizes, prioridades e responsabilidades e
tem como propósito precípuo “garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade
dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles
considerados essenciais.” 89
A Portaria nº 3.916, confere a este órgão o poder-dever de estabelecer e
concretizar ações que visem à atualização contínua da Relação Nacional de
Medicamentos
Essenciais
(Rename),
priorizando
aqueles
medicamento
de
assistência ambulatorial e, ainda, que garantam a prevenção e o combate das
88
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/gestor/default.cfm.
Acesso em 21 ago. 2014.
89
BRASIL, Portaria GM/MS nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html> Acesso em 21 ago.
2014.
44
moléstias mais comuns.90
Esta Política encontra-se estruturada, sobretudo, em cautelas, contemplando
diretrizes e definindo prioridades relacionadas “à legislação – incluindo a
regulamentação – inspeção, controle e garantia da qualidade, seleção, aquisição e
distribuição, uso racional de medicamentos, desenvolvimento de recursos humanos
e desenvolvimento científico e tecnológico.” 91
A Política Nacional de Medicamentos definiu como diretrizes a consecução
das seguintes questões: (i) Adoção de Relação de Medicamentos Essenciais
(RENAME) – trata-se de uma relação de “produtos considerados básicos e
indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população”, que
devem estar permanentemente disponíveis; (ii) Regulamentação Sanitária de
Medicamentos – diz respeito ao registro de medicamentos, autorização para o
funcionamento de empresas e restrições e eliminações de produtos inadequados ao
uso; (iii) Reorientação da Assistência Farmacêutica – tem por finalidade facilitar o
acesso da população aos medicamentos essenciais, de forma descentralizada,
racionalizada e eficaz; (iv) Promoção do Uso Racional de Medicamentos – tem por
objetivo orientar a população quanto ao uso de medicamentos e adotar a produção,
comercialização,
prescrição
e
uso
dos
medicamentos
genéricos;
(v)
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – tal diretriz tem por meta o incentivo da
revisão das tecnologias e formulação farmacêutica e da dinamização de pesquisas
na área; (vi) Promoção da Produção de Medicamentos – os laboratórios oficiais
deverão atender à demanda dos medicamentos essenciais, dando-se ênfase aos
genéricos; (vii) Garantia da Segurança, Eficácia e Qualidade dos Medicamentos – as
atividades relacionadas a tais diretrizes deverão ser feitas através de inspeção e
fiscalização, mediante ações do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária; (viii)
Desenvolvimento e Capacitação de Recursos Humanos – deve-se buscar recursos
humanos, seja qualitativa, seja quantitativamente, o que é de responsabilidade das
90
BRASIL, Portaria GM/MS nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Disponível
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html> Acesso em 21
2014.
91
BRASIL, Portaria GM/MS nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Disponível
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html> Acesso em 21
2014
em:
ago.
em:
ago.
45
três esferas gestoras do SUS. 92
A epigrafada política decorre da necessidade de se promover o uso racional
de medicamentos mediante critérios de diagnóstico de cada doença, com o
tratamento preconizado com medicamentos disponíveis e doses corretas, com
mecanismos de controle, acompanhamento e a verificação de resultados.
Desta política surge a construção dos Protocolos Clínicos e Diretrizes
Terapêuticas - PCDT, sob a inspiração do movimento internacional da medicina
baseada em evidencias, e pelo qual passou a disseminar o conhecimento e a
assunção de responsabilidades outrora não explicitadas com envolvimento da
comunidade científica e demais agentes, para atendimento da saúde como direito
universal e de acesso igualitário, consoante preconizado na Constituição Federal.
Sobressai disto, a imposição de se fixar critérios embasados em estudos
científicos e sociais, os quais irão nortear as ações e políticas públicas. Daí, o dever
da administração pública pautar-se na Constituição, nas leis e demais normas do
Mistério da Saúde para a promoção da política de acesso aos medicamentos,
assegurando a adequada quantidade, qualidade e eficácia, garantindo o direito
social de acesso à saúde.
O fornecimento de medicamentos pelo SUS obedece a esta padronização de
procedimentos instituída pela Política Nacional de Medicamentos que se impõe
como um meio de viabilizar um tratamento eficaz e seguro ao paciente, além de
implementar o uso racional dos medicamentos/tratamentos e conseqüente respeito à
gestão da coisa pública e do erário.
Assim sendo, os gestores do SUS buscaram construir consensos terapêuticos
a respeito do tratamento de doenças específicas, indicação e o uso de
medicamentos, bem como a avaliação e acompanhamento dos hábitos de
prescrição, dispensa e resultados terapêuticos. Todo o arcabouço trazido pela
Política Nacional de Medicamentos instituiu os critérios científicos objetivos de
atuação estatal na assistência farmacêutica. Com base nesses critérios, portanto, é
que o Estado pauta a sua atuação, que deve ser baseada em critérios definidos de
92
BRASIL, Portaria GM/MS nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html> Acesso em 21 ago.
2014
46
maneira científica e objetiva para que o sistema seja viável.
Deve-se ter claro que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
possuem competência solidária para o fornecimento de medicamentos à população,
conforme previsão constitucional.
O artigo 196 da Constituição Federal é claro ao dispor que:
[...] a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação.
Da interpretação da aludida norma constitucional é possível afirmar que a
acepção do termo “Estado” refere-se a todos os entes que compõe a federação, qual
seja União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.
Sobre a questão, revela-se esclarecedora a lição de JOSÉ AFONSO DA
SILVA:
[...] A norma do art.196 é perfeita, porque estabelece explicitamente uma
relação jurídica constitucional em que, de um lado, se acham o direito que
ela confere, pela cláusula a saúde é direito de todos, assim como os
sujeitos desse direito, expressos pelo signo todos, que é signo de
universalização, mas com destinação exclusiva aos brasileiros e
estrangeiros residentes – aliás, a norma reforça esse sentido a prever o
acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde –, e, de outro
lado, a obrigação correspondente, na cláusula a saúde é dever do Estado,
compreendendo aqui a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios que podem cumprir o dever diretamente ou por via de entidade
93
da Administração indireta.
Consoante estabelece o artigo 23, inciso II da Constituição Federal, é
competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
cuidar da saúde e da assistência pública, razão pela qual os entes integrantes da
federação atuam em cooperação administrativa recíproca, visando alcançar os
objetivos descritos pela Constituição.
Por conseguinte, em razão de ser solidária a responsabilidade entre os entes
que compõe a federação, nenhum deles poderá invocar qualquer óbice com objetivo
de abster-se do cumprimento deste preceito constitucional.
93
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2007,
p.768.
47
No mesmo contexto, o Enunciado nº 16 do Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná, orienta a responsabilidade solidária entre União, Estados e
Municípios para garantir o acesso à saúde para todos, no sentido de que:
As medidas judiciais visando a obtenção de medicamentos e afins podem
ser propostas em face de qualquer ente federado diante da
responsabilidade solidária entre a União, Estados e Municípios na prestação
94
de serviços de saúde à população.
Nesse sentido já decidiu a d. Corte do Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná:
AGRAVO (ART. 557, § 1º CPC) - DECISÃO DO RELATOR QUE NEGOU
SEGUIMENTO À APELAÇÃO CÍVEL - ARGUMENTOS DO RECORRENTE
QUE NÃO SÃO APTOS A MODIFICAR A DECISÃO MONOCRÁTICA DEVER DO ESTADO EM FORNECER EXAMES E MEDICAMENTOS À
PESSOA SEM RECURSOS FINANCEIROS PARA ARCAR COM O
TRATAMENTO - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DE TODOS OS
ENTES FEDERADOS NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE À
POPULAÇÃO, PODENDO QUALQUER UM DELES SER DEMANDADO
(ENUNCIADO N°. 16 DESTA CORTE DE JUSTIÇA) - ESCOLHA DA VIA
MONOCRÁTICA PARA PRONUNCIAMENTO JUDICIAL QUE ENCONTRA
BASE LEGAL E SE MOSTRA CORRETA PARA ANÁLISE CASO EM
TELA. DECISÃO DENEGATÓRIA DE SEGUIMENTO MANTIDA AGRAVO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJPR - 4ª C.Cível - A 1128387-3/01 - Cantagalo - Rel.: Guido Döbeli - Unânime - - J. 28.01.2014)
(destacou-se)
Pelo exposto, conclui-se que, apesar da competência administrativa
estabelecida pelas normas infraconstitucionais, para o atendimento à saúde pelo
Estado, tanto a doutrina quanto a jurisprudência firmaram-se no sentido de que os
entes federados respondem solidariamente pela obrigação, devendo cada um tomar
todas as medidas cabíveis para proteção da vida e da saúde da população.
94
PARANÁ, Tribunal de Justiça. Enunciado nº. 16 das Câmaras de Direito Público. Disponível em:
http://www.tjpr.jus.br/enunciados. Acesso em: 21 ago 2014.
48
4. A TUTELA JURISDICIONAL DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
4.1 DA JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
O inciso XXXV, do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, dispõe que “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto,
sempre que houver violação do direito, o Poder Judiciário, no exercício da jurisdição,
será chamado a intervir e aplicar o direito ao caso concreto.95
Não se olvida que a Constituição prevê expressamente o Princípio da
Inafastabilidade do Controle Jurisdicional ou Princípio da Proteção Judiciária (art. 5º,
XXXV, CF), que constitui “a principal garantia dos direitos subjetivos”96.
Assim, havendo violação a um direito social, seja de forma direta, seja em
decorrência de omissão legislativa, o Judiciário tem o “poder-dever de aplicar o
Direito, extraindo das normas constitucionais, até a exaustão, toda a sua
potencialidade”97.
Na lição de Eros Roberto Grau:
O Poder Judiciário é o aplicador último do direito. Isso significa que, se a
Administração Pública ou um particular – ou mesmo o Legislativo - de quem
se reclama a correta aplicação do direito, nega-se a fazê-lo, o Poder
98
Judiciário poderá ser acionado para o fim de aplicá-lo.
A falta ou deficiência dos serviços de saúde prestados pelo Estado, seja a
assistência farmacêutica e/ou fornecimento de insumos terapêuticos, ameaça o
direito à vida e, em muitos casos, é capaz de produzir lesão irreparável. Sendo
assim, é legítima, dentro deste contexto, a intervenção jurisdicional que visa a
afastar lesão ou ameaça a esse direito. Inúmeras são as ações ajuizadas com o fim
de coagir o Estado a prestar tratamentos de saúde.
Sobre a questão, Alexandre de Moraes esclarece que o reconhecimento do
caráter cogente do artigo 196 da Constituição Federal de 1988 afasta as alegações
95
MORAES. Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 23ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 82.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 131.
97
BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais: Eficácia e Acionabilidade à Luz da Constituição de
1988. Curitiba: Juruá, 2007, p. 260.
98
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 9. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2004, p. 335.
49
96
de interferência na esfera de atuação do Poder Executivo, pois a atuação do Poder
Judiciário não seria para a construção de políticas públicas, função exclusiva da
Administração e do Legislativo, mas para a concretização do direito à saúde diante
de sua lesão ou ameaça de lesão. O individuo tem direito subjetivo a ver tutelado de
forma positiva o seu direito de personalidade de saúde, o que ocorrerá, sob a
perspectiva do Direito Público, por meio de aplicação do seu direito fundamental de
mesma natureza. Para tanto, o magistrado, analisando as peculiaridades do caso
concreto, não poderá perder de vista as limitações financeiras do Estado, a
regulamentação estabelecida ou não pela ANVISA e pelo SUS, a natureza da
doença que acomete o individuo, as possíveis soluções que a medicina disponibiliza
e a eficácia dessas medidas.99
É importante ressaltar que, conforme entendimento do STF, o Poder
Judiciário não criará as normas para a efetivação do direito à saúde e muito menos
traçará políticas públicas. O que de fato ocorre é que a grande maioria das normas
infraconstitucionais já existe para tornar o direito concreto, faltando na verdade sua
implementação pelo Poder Executivo. Diante disso, o Poder Judiciário vai apenas
concretizar um direito existente, o que é totalmente diferente de criá-lo, como
advogam alguns. Não há qualquer interferência indevida na esfera de atuação dos
demais Poderes e nem mesmo “judicialização” do direito à saúde, mas somente
concretização.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acata a tese de que a omissão
Estatal não pode vir a prejudicar o direito fundamental e indisponível à saúde,
portanto, havendo ofensa a esse direito, cabe ao Judiciário determinar que se
cumpram as medidas necessárias à efetivação do mesmo.
Neste sentido, já decidiu o STF:
DIREITO CONSTITUCIONAL.
SEGURANÇA
PÚBLICA AGRAVO
REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE
JULGAMENTO.
AUSÊNCIA
DE
INGERÊNCIA
NO
PODER
DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 144 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a segurança é prerrogativa
constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas
públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas
99
URBANO, Hugo Evo Magro Corrêa. Notas sobre a efetivação do direito fundamental à saúde.
Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 47, n. 188, out./dez. 2010, p.188.
50
que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder
Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando
inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem
que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do
Poder Executivo. Precedentes.3. Agravo regimental improvido. (559646
PR ,Relator: Min. ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 07/06/2011, STF,
Segunda Turma) (destacou-se)
ADMINISTRATIVO – CONTROLE JUDICIAL DE POLITICAS PÚBLICAS –
POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS – DIREITO À SAÚDE –
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – MANIFESTA NECESSIDADE –
OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO OPONIBILIDADE DA
RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL. 1. Não podem os
direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador,
sendo de fundamental importância que o Judiciário atue como órgão
controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar
que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido
com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser
utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais,
igualmente fundamentais. 2. Tratando-se de direito fundamental,
incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho
jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada
política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente
quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômicofinanceira da pessoa estatal. 3. In casu, não há empecilho jurídico para que
a ação, que visa a assegurar o fornecimento de medicamentos, seja dirigida
contra o município, tendo em vista a consolidada jurisprudência desta Corte,
no sentido de que "o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de
responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de
modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para
figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à
medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros" (REsp
771.537/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005.
Agravo regimental improvido). (destacou-se)
AGRAVO
REGIMENTAL
NO
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. Implementação de políticas públicas. Possibilidade.
Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência.
Reserva do possível. Invocação. Impossibilidade. Precedentes. 1. Esta
Corte já firmou a orientação de que o Ministério Público detém
legitimidade para requerer, em Juízo, a implementação de políticas
públicas por parte do Poder Executivo de molde a assegurar a
concretização de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos
garantidos pela Constituição Federal, como é o caso do acesso à
saúde. 2. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode
determinar que a Administração pública adote medidas assecuratórias
de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais sem
que isso configure violação do princípio da separação de poderes. 3. A
Administração não pode invocar a cláusula da “reserva do possível” a fim de
justificar a frustração de direitos previstos na Constituição da República,
voltados à garantia da dignidade da pessoa humana, sob o fundamento de
insuficiência orçamentária. 4. Agravo regimental não provido. (STF. AI
674764/AgR/PI; Rel. Min. Dias Toffoli; Primeira Turma; Julgamento
04/10/2011). (destacou-se)
51
Trecho do voto do Min. Humberto Martins no AgRg no RECURSO ESPECIAL
Nº 1.136.549 - RS (2009/0076691-2):
Em decisão recente, e que pode ser considerada como um marco para uma
nova interpretação do princípio da separação dos Poderes, entendeu a
Corte Suprema nos autos da ADPF-45 que: "É certo que não se inclui,
ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder
Judiciário – e nas desta Suprema Corte em especial – a atribuição de
formular e implementar políticas públicas, pois nesse domínio, o
encargo reside, primeiramente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Tal incumbência no entanto, embora em bases excepcionas, poderá
atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais
competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que
sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a
eficácia e integridade de direitos individuai e/ou coletivos impregnados
de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas
revestidas de conteúdo programático." (STF. ADPF – 45 MC/DF. Rel.
Min. Celso de Mello, julgado em 29.4.2004, DJ 4.5.2004.) (...) Assegurar um
mínimo de dignidade humana por meio de serviços públicos essenciais, tais
como a educação e a saúde, é escopo da República Federativa do Brasil,
que não pode ser condicionado à conveniência política do administrador
público. Entendo que a omissão injustificada da administração em efetivar
as políticas públicas essenciais para a promoção da dignidade humana não
deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, afinal de contas este
não é mero departamento do Poder Executivo, mas sim um Poder que
detém parcela da soberania nacional. (destacou-se)
O Estado tem o dever de assegurar efetivamente o direito à saúde a todos os
cidadãos, como corolário da própria garantia do direito à vida. A Constituição
Federal, em seus dispostos, garante o acesso universal e igualitário às ações e
serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, assegurando,
portanto, a sua proteção nas órbitas genérica e individual.
A divisão de tarefas entre os entes governamentais e a organização do
Sistema Único de Saúde não podem obstaculizar o direito do indivíduo à percepção
de medicamentos e/ou tratamentos indispensáveis.
A “judicialização” da saúde se caracteriza como uma alternativa eficaz para
conter as omissões do Estado.
O simples fato de um medicamento e/ou tratamento ser caro ou não estar
incluído nas listas e protocolos do SUS não é justificativa para a sua não concessão.
É louvável a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTO A PESSOA PORTADORA DE DOENÇA GRAVE E
CARENTE DE RECURSOS ECONÔMICOS. VIA ELEITA ADEQUADA.
PRESCRIÇÃO
FORMALIZADA
POR
MÉDICO
ESPECIALISTA.
DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. IRRELEVÂNCIA DE O
52
FÁRMACO NÃO SE ENCONTRAR INSERIDO NOS PROTOCOLOS
CLÍNICOS E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE.
DESCUMPRIMENTO DE DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA OU À SAÚDE
(CF, ARTS. 6.º E 196) QUE PERMITE A CHAMADA "JUDICIABILIDADE
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS". ORDEM CONCEDIDA. (1) "Eventual
ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode
obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a
minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso,
não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento" (STJ,
2.ª Turma, RMS n.º 11.129/PR, Rel. Min.Francisco Peçanha Martins, j. em
02.10.2001).(2) A medicina é ciência que não trabalha com soluções únicas
ou absolutas. Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, como
fundamento para indeferir o fornecimento de medicamentos, são genéricos
e podem não representar a melhor alternativa, sendo digno de maior
confiança o diagnóstico e a prescrição realizados pelo médico que atende o
paciente, de modo que "Comprovado por atestado médico que o impetrante
deve fazer uso do medicamento solicitado, certo é que tem ele direito
líquido e certo a que este lhe seja fornecido pelo Estado" (TJPR, 5.ª CCv.,
MandSeg. n.º 662.652-2, Rel. Juiz Eduardo Sarrão, j. em 27.07.2010).
(TJPR - 5ª C.Cível em Composição Integral - MS - 1190808-6 - Foro Central
da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Adalberto Jorge
Xisto Pereira - Unânime - - J. 26.08.2014) (destacou-se)
Não se trata, portanto, de uma sobreposição do Judiciário em relação ao
Executivo, mas apenas de tornar verdadeiramente eficaz os fundamentos e
princípios da própria Constituição da República. Acrescente-se que, se restringindo
a prestação da saúde, se restringe também os direitos à saúde e à vida, violando-se
o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
4.2 MODELO BRASILEIRO DE SAÚDE PÚBLICA SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO E
A NÃO APLICAÇÃO ILIMITADA DA CONSTITUIÇÃO PARA A CONCESSÃO
JUDICIAL DE MEDICAMENTOS
O artigo 196 da Constituição da República, suporte comum às liminares,
tutelas antecipadas e provimentos jurisdicionais finais concedidos para determinar
ao
Poder
Público
o
fornecimento
incondicional
de
toda
e
qualquer
medicação/tratamento a quem comparecer em juízo, não tem o alcance e a
dimensão que lhe vem sendo atribuído, segundo entendimento do Estado (lato
sensu), pois a persistir tal entendimento, exceder-se-á em muito os limites da
obrigação estatal, estabelecidos pelo constituinte, que não pretendeu criar um
sistema inviável. Ainda, é comum a alegação estatal de que não há país no mundo
que pratique política pública de saúde de forma irrestrita, principalmente quanto ao
53
fornecimento gratuito de medicação.
Para o Estado (lato sensu), toda medicação lançada no mercado traz
embutida no seu preço os pesados custos laboratoriais investidos em pesquisa e
desenvolvimento, os quais permanecem aí agregados até o vencimento das
patentes, independentemente da comprovação de resultados. Aduz ainda, que a
interpretação do artigo 196 da Constituição da República, deve ser harmônica com
outras normas que ordenam e controlam as políticas de saúde pública, sob pena de
ficar caracterizada verdadeira invasão de competências pela substituição de função
legislativa pelo Judiciário.
O texto do referido dispositivo, amarra o cumprimento deste dever do Poder
Público às políticas sociais e econômicas que visem: (i) à redução do risco de
doença e de outros agravos; (ii) ao acesso universal e igualitário das pessoas; e (iii)
às ações e serviços destinados à promoção e recuperação da saúde. Vale dizer que
existe sim um dever que ser cumprido pelo Estado, desde que observadas as
demais regras ditadas por uma política pública de saúde.
Isso é o que determina o aludido artigo 196. Mas o constituinte remeteu o
dever de dispor sobre regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços
de saúde ao legislador ordinário, conforme se extrai da norma do artigo 197 da
Constituição Federal de 1988.100
Segundo o entendimento do Estado (lato sensu), trata-se, portanto, de uma
norma constitucional de eficácia contida, cujos limites são determinados pela Política
Nacional de Saúde Pública definida pela legislação ordinária, que não pode ser
desconsiderada
pelo
Poder
Judiciário.
Tais
políticas
são
traçadas
democraticamente, por intermédio da Comissão Intergestores Tripartite (integrada
pela União, pelos Estados e pelos Municípios) e com a participação da comunidade,
sendo que, segundo o artigo 198, do texto constitucional: “as ações e serviços
públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um
sistema único”, organizado de forma descentralizada, com direção única em cada
esfera de governo.
100
Artigo 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público
dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação,fiscalização e controle, devendo sua execução
ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito
privado.
54
Os dispositivos constitucionais citados são fundamento de validade da Lei
Orgânica da Saúde, a Lei Federal n. 8.080 de 19 de setembro de 1990, que
sistematizou as políticas de saúde. Nela, o artigo 9º estipula uma direção única a ser
exercida em cada esfera de governo pelo Ministério da Saúde, pelas Secretarias de
Saúde ou órgão equivalente, conforme o caso, sendo que em diversos trechos
determina como sendo da competência de tais órgãos a elaboração de normas
específicas, com a finalidade de organizar os diversos setores da saúde pública,
viabilizando o seu gerenciamento.
Portanto, conclui o Estado (lato sensu) que para a compreensão das políticas
de saúde regidas pelo SUS – Sistema Único de Saúde, definido pelo artigo 4º da Lei
Orgânica da Saúde, como “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por
órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração
direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”, segundo o modelo
constitucional, é imperativo o conhecimento de normas infraconstitucionais
consubstanciadas em leis (em especial a Lei 8.080/90) e portarias, tanto do
Ministério da Saúde quanto das Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde,
sendo certo que o desconhecimento da Política Nacional de Medicamentos conduz a
uma equivocada aplicação do artigo 196, da Constituição, que não possui, a
amplitude que lhe vem sendo dada pelo Poder Judiciário.
4.3
A
RACIONALIZAÇÃO
DA
DISPENSAÇÃO
DE
MEDICAMENTOS
E
TRATAMENTOS DE SAÚDE DIANTE DO ALTO CUSTO E DA AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DE SUA EFICÁCIA
Outra questão que surge na negativa ao fornecimento de medicamento pelo
Estado (lato sensu) e que não pode ser ignorada, especialmente no que se refere
aos medicamentos e tratamento de caráter excepcional, é o da prescrição de
tratamento de alto custo, sem que se tenha certeza do êxito do tratamento, que
acaba por trazer gastos infindáveis ao erário público, que devem ser evitados pelas
decisões judiciais. Muitas vezes, o médico, com boas intenções, mostra ao paciente
que existe um remédio/tratamento novo para a patologia, prescrevendo-o sem levar
em consideração os estudos clínicos publicados e que tenham comprovação
55
científica. Tratamentos ainda sem comprovação científica são válidos na busca da
cura. Porém, não pode o Poder Público ser coagido a custear tratamentos que não
têm eficácia comprovada, até porque, como se disse anteriormente, a Política
Nacional de Medicamentos, infelizmente, tem limites.
Por mais que a Constituição preveja o direito à saúde, que é indiscutível,
indispensável e indisponível, a distribuição gratuita de medicamentos tem de
observar as regras sobre que se baseia a referida Política. O dinheiro público é
limitado, e tem de ser gasto de forma adequada e racionalizada, sob pena de se
inviabilizar todo o sistema de saúde, construído nos últimos anos e que vem sendo,
na medida do possível, de grande valia para a diminuição, tratamento e cura de
doenças.
Segundo Canotilho, a interpretação da Constituição tem como ponto de
partida a reserva do possível, ideia segundo a qual “os direitos sociais só existem
quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos” 101.
Segundo entendimento do Estado, determinar que este custeie despesas de
tratamento sem eficácia comprovada acaba por impor um gasto excessivo aos
cofres públicos, que, na área atinente à saúde, possui questões mais básicas a
tratar, haja vista o estado de miséria em que se encontra grande parte da população
brasileira, como campanhas de vacinação, prevenção de doenças, combate de
moléstias cujo tratamento possui comprovação científica sólida, entre outros.
4.4 A CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL E A NÃO COBERTURA TOTAL DO
ESTADO PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS
O Poder Judiciário tem examinado inúmeros pedidos para determinar que o
Estado (lato sensu) forneça medicamentos e tratamentos de saúde, sob a alegação
de que a Constituição da República estabeleceu que a saúde é direito fundamental a
ser perseguido e implementado, conforme previsão dos artigos 6º e 196, entretanto,
o excesso de judicialização das políticas públicas tem levado a uma violação à
regras e princípios estampados na Constituição da República, por invasão indevida
101
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed.,
Coimbra: Almedina, 2001, p. 471.
56
no controle orçamentário ou ainda, e em especial, porque implica em conceder um
privilégio ao autor da ação em detrimento da coletividade.
Ao discorrer sobre o tema, Luís Roberto Barroso aborda o ponto crucial do
debate:
Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de
uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o
direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios
orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais
dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é
o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros.
102
Não solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão.
O Supremo Tribunal Federal tem empregado o termo “cláusula da reserva do
possível”103, tratando-a, portanto, como “elemento externo relevante”104 na
consecução de políticas públicas pelo Poder Judiciário.
Conforme nos ensina Ana Paula de Barcellos:
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico
da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase
105
sempre infinitas a serem por eles supridas.
Ana Carolina Lopes Olsen, afirma que é preciso ponderar a efetivação dos
direitos sociais de acordo com os Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade,
empregando-se a cláusula da reserva do possível como limite racional à
concretização do direito fundamental à saúde. Isso porque “não se pode exigir do
102
Disponível em <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf>. Acesso em 10 set.
2014.
103
Nesse sentido: Brasil. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 45. Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)
versus Presidente da República. Relator: Ministro Celso de Mello. Decisão de 29 abr. 2004:
”EMENTA: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade
constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de
políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da
jurisdição constitucional atribuída ao supremo tribunal federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à
efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação
do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". necessidade de
preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador
do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de
concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração) (destacou-se)”.
104
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 258.
105
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 261.
57
Estado e da sociedade algo fora dos padrões do razoável, do adequado, do
necessário e do estritamente proporcional”106.
Dessa forma, defende-se a judicialização das políticas públicas, contudo
devem ser fixados limites à atuação do Poder Judiciário, de acordo com critérios que
a doutrina e a jurisprudência vêm construindo em decorrência do altíssimo número
de demandas judiciais pleiteando a distribuição gratuita de medicamentos.107
Nesse diapasão, Luís Roberto Barroso propõe que o Poder Judiciário só
determine o fornecimento de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se
os experimentais e os alternativos, deverá optar por substâncias disponíveis no
Brasil, medicamento genérico, de menor custo e por fim deverá considerar se o
medicamento é indispensável para a manutenção da vida.108
Esses critérios, na realidade, preservam a saúde e a vida do jurisdicionado,
pois o Estado não pode ser compelido a fornecer medicamentos que não tenham
sua eficácia devidamente comprovada, bem como os que não foram aprovados pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária ou ainda indicados para outra finalidade,
uma vez que a eficácia e a segurança na ministração desses medicamentos ainda
não foram comprovadas.
Outrossim, o fornecimento indiscriminado de remédios pode gerar a prática de
irregularidades, pois há relatos de que médicos têm entregue aos pacientes,
juntamente com a receita, o cartão de um advogado, havendo, ainda indícios de que
há laboratórios encarecendo o custo de medicamentos alterando minimamente a
fórmula.109
Portanto, a dispensação de medicamentos deve ater-se a parâmetros
razoáveis, que garantam a efetivação dos direitos sociais, mas que não
comprometam o orçamento de maneira que onere o Estado, inviabilizando o
desenvolvimento de outras políticas públicas, sendo mister, que a dispensação de
medicamentos seja feita de forma responsável, sob pena de prejudicar a vida e a
106
OLSEN. Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais: Efetividade frente à Reserva do
Possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 213.
107
Disponível em: <http://www.agenciaaids.com.br/noticias-resultado.asp?Codigo=9411>. Acesso
em: 19 abr. 2008.
108
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2008, p.
14.
109
Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/noticias/diversos/elival%20em%20vit%C3%B3ria.htm>.
Acesso em 19 abr. 2008.
58
saúde da pessoa, indo contra o objetivo previsto na Lei Maior.
A concessão ou não da medida depende da análise do caso concreto, não
sendo possível estabelecer padrões gerais para todas as hipóteses, uma vez que as
situações são individuais.
Os Tribunais Superiores, em sua maioria, têm garantido o fornecimento do
remédio requerido, sob o argumento de que o direito à saúde é absoluto e
prepondera sobre qualquer outro princípio constitucional.
De qualquer forma, o próprio STF já trouxe alguns balizamentos para as
ações desta natureza, permitindo o excepcional controle pelo Judiciário da omissão
estatal relacionada às políticas públicas.
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL –
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – BLOQUEIO DE CONTAS DO
ESTADO – POSSIBILIDADE.
1. Tem prevalecido nesta Corte o entendimento de que é possível, com
amparo no art. 461, § 5º, do CPC, o bloqueio de verbas públicas para
garantir o fornecimento de medicamentos pelo Estado.
2. Embora venha o STF adotando a "Teoria da Reserva do Possível"
em algumas hipóteses, em matéria de preservação dos direitos à vida
e à saúde, aquela Corte não aplica tal entendimento, por considerar
que ambos são bens máximos e impossíveis de ter sua proteção
postergada.
3. Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 878.441/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma,
julgado em 10/04/2007, DJ 20/04/2007 p. 340) (destacou-se)
Importa lembrar ainda que os direitos sociais previstos na Constituição, nas
palavras de Clémerson Merlin Cléve, são:
[...] direitos de satisfação progressiva, cuja realização encontra-se
estreitamente ligada ao PIB (Produto Interno Bruto) e, portanto, à riqueza do
país. [...] Isso não significa dizer que possam ser considerados como meras
normas de eficácia diferida, programática, limitada. Certamente não. São
direitos que produzem, pelos simples reconhecimento constitucional, uma
eficácia mínima. [...] Ora, referidos direitos criam, desde logo, também,
110
posições jurídico-subjetivas positivas de vantagem (embora limitadas).
Diante disso, constata-se que, a cláusula da reserva do possível não é apta a
afastar a obrigação do Estado no que tange à prestação de serviços de saúde em
favor da população.
110
CLÉVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito
Constitucional e Internacional, n. 54, 2006.
59
4.5 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
Os tribunais vêm reconhecendo o dever do Estado (lato sensu) em dar
atendimento de saúde integral à pessoas atingidas por doenças que ponham em
risco a própria vida. Além de liminares em medidas cautelares e em mandados de
segurança, a declaração desse direito vem sido proclamada igualmente em ações
ordinárias, tornando definitiva a obrigação assistencial do ente público.
Neste sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS E AFINS A PESSOA
PORTADORA DE DIABETES MELLITUS TIPO I.PRESCRIÇÃO
FORMALIZADA POR MÉDICA ESPECIALISTA.DESCUMPRIMENTO DE
DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA OU À SAÚDE (CF, ARTS. 6.º E 196)
QUE PERMITE A CHAMADA "JUDICIABILIDADE DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS". APELAÇÃO DESPROVIDA, COM A CONFIRMAÇÃO DA
SENTENÇA RECORRIDA EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO, DE
OFÍCIO CONHECIDO.(1) "A dispensa de reexame necessário, quando o
valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a sessenta
salários mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas" (Súmula 490/STJ).
No caso em exame, a sentença recorrida tem natureza mandamental
porque impôs uma ordem para o ente público fornecer o medicamento
solicitado, sendo incerto o valor pecuniário do direito controvertido, não
havendo, assim, como aplicar a exceção prevista no § 2.º do art. 475 do
CPC.(3) "Eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não
pode obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a
minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso, não
dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento" (STJ, 2.ª Turma,
RMS n.º 11.129/PR, Rel. Min.Francisco Peçanha Martins, j. em
02.10.2001).(4) A medicina é ciência que não trabalha com soluções únicas
ou absolutas. Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, como
fundamento para indeferir o fornecimento de medicamentos, são genéricos
e podem não representar a melhor alternativa, sendo digno de maior
confiança o diagnóstico e a prescrição realizados pelo médico que atende o
paciente, de modo que "Comprovado por atestado médico que o impetrante
deve fazer uso do medicamento solicitado, certo é que tem ele direito
líquido e certo a que este lhe seja fornecido pelo Estado" (TJPR, 5.ª CCv.,
MandSeg. n.º 662.652-2, Rel. Juiz Eduardo Sarrão, j. em 27.07.2010).
(TJPR - 5ª C.Cível - AC - 1202013-0 - Foro Central da Comarca da Região
Metropolitana de Curitiba - Rel.: Adalberto Jorge Xisto Pereira - Unânime - J. 02.09.2014) (destacou-se)
AGRAVO - INTERPOSIÇÃO EM FACE DA DECISÃO QUE NEGOU
SEGUIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL - FORNECIMENTO
DE MEDICAMENTO - ESTADO POSSUI O DEVER DE FORNECER O
MEDICAMENTO, O QUE NÃO IMPLICA EM DESRESPEITO ÀS
POLÍTICAS PÚBLICAS - RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA - INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 196 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL - INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA RESERVA
DO POSSÍVEL - CUSTAS PROCESSUAIS - CONDENAÇÃO DO ESTADO
DO PARANÁ - CABIMENTO - DECISÃO EM CONFORMIDADE COM A
JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DESTA CORTE - CORRETA APLICAÇÃO
60
DO ARTIGO 557, CAPUT DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - AGRAVO
DESPROVIDO. (TJPR - 4ª C.Cível - A - 1226053-6/01 - Umuarama - Rel.:
Regina Afonso Portes - Unânime - - J. 19.08.2014) (destacou-se)
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO.AÇÃO CIVIL PÚBLICA
JULGADA PROCEDENTE.FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A
PESSOA PORTADORA DE ANSIEDADE GENERALIZADA (CID F 41.1).
ALEGAÇÃO DE QUE O MEDICAMENTO NÃO ESTÁ INSERIDO EM
PROTOCOLO
CLÍNICO.DENECESSIDADE.
PROTOCOLOS
ELABORADOS PELO MINISTÉRIO DA SAÚDE QUE SERVEM APENAS
COMO PARÂMETRO. NÃO VINCULAÇÃO DO ENTE PÚBLICO.
MEDICAMENTO DEVIDAMENTE PRESCRITO POR PROFISSIONAL DA
ÁREA DA SAÚDE. RESERVA DO POSSÍVEL.INAPLICABILIDADE.
DEVER DO ESTADO EM GARANTIR O DIREITO À SAÚDE,
CONSAGRADO
NO
ARTIGO
196
DA
CONSTITUIÇÃO
FEDERAL.INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA
LEGALIDADE, PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE NÃO ENCONTRA ESPAÇO
NO PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E DA
PROPORCIONALIDADE. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E
DESPROVIDO E, EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO REDUÇÃO DA
MULTA FIXADA PARA R$ 500,00 (QUINHENTOS REAIS) DIÁRIOS, EM
CASO DE DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO IMPOSTA. (TJPR - 4ª
C.Cível - ACR - 1229892-5 - Umuarama - Rel.: Coimbra de Moura Unânime - - J. 12.08.2014) (destacou-se)
É cediço o entendimento de que não é permitido ao Judiciário determinar as
prioridades orçamentárias da Administração, mas ao impor a aquisição de
medicamentos essenciais à pessoas carentes, portadoras de doença grave, o Poder
Judiciário, simplesmente atende a um princípio fundamental que é a valorização da
vida humana.
A Constituição Federal estabelece no artigo 2º que "são poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".
O artigo 196 da Constituição Federal é claro ao dispor que “(...) a saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.”
Da interpretação da aludida norma constitucional é possível afirmar que a
acepção do termo “Estado” refere-se a todos os entes que compõe a federação, qual
seja União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.
Sobre a questão, revela-se esclarecedora a lição de José Afonso da Silva:
61
[...] A norma do artigo 196 é perfeita, porque estabelece explicitamente uma
relação jurídica constitucional em que, de um lado, se acham o direito que
ela confere, pela cláusula a saúde é direito de todos, assim como os
sujeitos desse direito, expressos pelo signo todos, que é signo de
universalização, mas com destinação exclusiva aos brasileiros e
estrangeiros residentes – aliás, a norma reforça esse sentido a prever o
acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde –, e, de outro
lado, a obrigação correspondente, na cláusula a saúde é dever do Estado,
compreendendo aqui a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios que podem cumprir o dever diretamente ou por via de entidade
111
da Administração indireta.
Consoante estabelece o artigo 23, inciso II da Constituição Federal, é
competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
cuidar da saúde e da assistência pública, razão pela qual os entes integrantes da
federação atuam em cooperação administrativa recíproca, visando alcançar os
objetivos descritos pela Constituição.
Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - AGRAVO REGIMENTAL EM
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO SÚMULA 282/STF - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS LEGITIMIDADE PASSIVA - AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Ausência de
prequestionamento dos artigos 6º, 36, § 2º da Lei 8.080/90, 8º e 15 da LC
101/2000, e das respectivas teses, o que atrai a incidência do óbice
constante na Súmula 282/STF. 2. Esta Corte, em reiterados precedentes,
tem reconhecido a responsabilidade solidária do entes federativos da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios no que concerne à
garantia do direito à saúde. Ainda que determinado serviço seja
prestado por uma das entidades federativas, ou instituições a elas
vinculadas, nada impede que as outras sejam demandadas, de modo
que todas elas (União, Estados, Município) têm, igualmente,
legitimidade para figurarem no pólo passivo em causas que versem
sobre o fornecimento de medicamentos. (...) 4. Agravo regimental não
provido. (AgRg no Ag 909.927/PE, Rel. Ministra DIVA MALERBI
(Desembargadora Convocada TRF 3ª Região), Segunda Turma, julgado em
21/02/2013, DJe 27/02/2013)
De igual maneira, posicionou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO
DE FAZER COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. SENTENÇA
QUE CONDENOU O ESTADO DO PARANÁ A FORNECER OS
EQUIPAMENTOS, INSUMOS E MATERIAIS NECESSÁRIOS AO
CONTROLE DO DIABETES MELLITUS TIPO I. PRELIMINAR DE
111
SILVA. José Afonso da. in COMENTÁRIO CONTEXTUAL À CONSTITUIÇÃO, 4ª. ed., São Paulo:
MALHEIROS, 2007, p.768
62
ILEGITIMIDADE
PASSIVA.
RESPONSABILIDADE
DA
UNIÃO.
EQUIPAMENTO DE ALTO CUSTO. NÃO ACOLHIMENTO. OBRIGAÇÃO
SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO NO CUSTEIO E
GERENCIAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. A AÇÃO PODE
SER
PROPOSTA
CONTRA
QUALQUER
DOS
ENTES
RESPONSAVELMENTE SOLIDÁRIOS. DIREITO À SAÚDE. DIREITO DE
ÍNDOLE FUNDAMENTAL CUJA CONCRETIZAÇÃO NÃO PODE SER
RESTRITA POR ATOS INFRALEGAIS COMO AS PORTARIAS DO
MINISTÉRIO DA SAÚDE. FARTA DOCUMENTAÇÃO FORNECIDA
PELOS
MÉDICOS
RESPONSÁVEIS
PELO
TRATAMENTO
COMPROVANDO A NECESSIDADE DO USO DA BOMBA DE INFUSÃO
DE INSULINA. EXCEPCIONALIDADE DA ATUAÇÃO DO PODER
JUDICIÁRIO
NO
CONTROLE
DE
POLÍTICAS
PÚBLICAS.
INTERFERÊNCIA NECESSÁRIA E LEGÍTIMA NO PRESENTE CASO
PARA GARANTIR A REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DOS
AUTORES.DESNECESSIDADE DE ESGOTAMENTO DAS TERAPIAS
DISPONIBILIZADAS PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE PARA
DEFERIMENTO DO FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO INDICADO
PELO MÉDICO QUE
ACOMPANHA O PACIENTE.RECURSO
CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA EM REEXAME
NECESSÁRIO. (TJPR - 4ª C.Cível - AC 999882-3 - Foro Central da
Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Maria Aparecida
Blanco de Lima - Unânime - J. 19.03.2013) (destacou-se)
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE
SEGURANÇA - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO
("TRASTUZUMAB") À PORTADORA DE CARCINOMA DUCTAL
INFILTRANTRE (NEOPLASIA MALIGNA DE MAMA) E CARENTE DE
RECURSOS ECONÔMICOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO
PEDIDO. PRELIMINAR AFASTADA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
ENTRE A UNIÃO, OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS
MUNICÍPIOS PELA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO ÚNICO DE SAÚDE.
PRESCRIÇÃO POR MÉDICO. DOCUMENTAÇÃO APTA A COMPROVAR
A NECESSIDADE DO FORNECIMENTO DA MEDICAÇÃO E A 2
EXISTÊNCIA DE ATO COATOR. RECEITUÁRIO DE MÉDICO
PARTICULAR VÁLIDO. LIMINAR CONFIRMADA. RECURSO DE
APELAÇÃO CONHECIDO E DESPROVIDO, SENTENÇA CONFIRMADA
EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO. (TJPR - 4ª C.Cível - ACR 9590410 - Londrina - Rel.: Lélia Samardã Giacomet - Unânime - J. 19.03.2013)
(destacou-se)
Diante disso, o conflito entre o dogma da separação de poderes e o direito
fundamental de proteção à vida, considerando as regras especiais de interpretação
do texto constitucional, forçoso considerar que há valores que se sobrepõem a
outros. Resta claro que, o bem jurídico de maior relevância a ser tutelado é a vida,
que está assegurado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal".
O Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento que, frente à
negativa/omissão do Estado em prestar atendimento à população carente, que não
possui meios para a compra de medicamentos necessários à sua sobrevivência,
63
deve o Judiciário emitir preceitos através dos quais possam os necessitados
alcançar o benefício almejado. Ainda, decidiu pela dispensa das formalidades
burocráticas da licitação, para o fim de se adquirir os medicamentos indispensáveis
à saúde e à subsistência dos cidadãos, consoante disposto no art. 24, inciso IV, da
Lei n. 8.666/93, aplicável por analogia.112
Ressalte-se ademais, que se fosse preciso aguardar toda a burocracia da
administração pública, o tardio fornecimento dos medicamentos tornaria a medida
absolutamente inócua, considerando-se a situação da pessoa gravemente enferma.
Dessa forma, é mister reconhecer que o argumento da Separação dos
Poderes não pode ensejar o afastamento do controle jurisdicional nas atividades
governamentais, sob pena de se inviabilizar as políticas públicas.113
Pode-se concluir que a atuação judicial, consubstanciada no Princípio da
Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, é legítima, já que tem por missão proteger
lesão ou ameaça a direitos, não se podendo argüir que a Separação dos Poderes
impede o controle das omissões legislativa e executiva pelo Poder Judiciário.
Conforme exposto, a autonomia e a independência dos Poderes do Estado não são
rígidas e absolutas, sendo necessária a interferência do Judiciário a fim de se evitar
abuso de poder e promover o bem comum, isso tudo conforme a doutrina dos Freios
e Contrapesos.114
112
Artigo 24, inciso IV, da Lei n. 8.666/93: É dispensável a licitação: IV – nos casos de emergência ou
de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa
ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros
bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimentos da situação
emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas, no
prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos à licitação anterior e esta,
justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso,
todas as condições preestabelecidas.
113
GOTTI, Alessandra Passos; PIOVESAN, Flávia; MARTINS, Janaína Senne. A Proteção
Internacional dos Diretos Econômicos, Sociais e Culturais. In: Temas de Direitos Humanos. 2. ed. São
Paulo: Max Limonad, 2003: “A implementação dos direitos sociais exige do Judiciário uma nova
lógica, que afaste o argumento de que a “separação dos poderes” não permite um controle
jurisdicional da atividade governamental. Essa argumentação traz o perigo de inviabilizar políticas
públicas, resguardando o manto da discricionariedade administrativa, quando há o dever jurídico de
ação”.
114
PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. A Jurisdição constitucional: a liberdade de
conformação
do
legislador
e
a
questão
da
legitimidade.
Disponível
em:
<http://www.idcb.org.br/artigos/dr%20oriana/Aatuacao.pdf>. Acesso em: 20 maio 2008. p. 12:
“Boaventura de Sousa Santos, em pesquisas sobre Os tribunais nas sociedades contemporâneas,
destacou o Brasil como o país no qual, apesar do predomínio de uma cultura jurídica cínica e
autoritária, se multiplicavam os sinais do ativismo dos juízes comprometidos com a tutela judicial
eficaz de direitos, referindo-se nesse contexto ao Movimento Direito Alternativo. Eliane Botelho
Junqueira interligou o surgimento dos Juízes Alternativos com o processo de democratização que
64
Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, para o qual o
Poder Judiciário tem o dever de conformação da cláusula inserta no artigo 196 CF,
havendo, portanto, necessidade da revisão do dogma da Separação de Poderes.115
4.6 DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO AGRAVO
REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA 175
A concessão de medicamentos por intermédio do Poder Judiciário foi objeto
de intensa discussão perante o Supremo Tribunal Federal. A decisão em comento
foi proferida no Agravo Regimental interposto pela União contra decisão da
Presidência do Supremo Tribunal Federal, na qual foi indeferido o pedido, formulado
pela União, de suspensão de tutela antecipada n° 175, contra acórdão proferido pela
1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, na Apelação Cível n°
408729/CE.
Houve a realização de audiência pública nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e
7 de maio de 2009, e aquela C. Corte passou a traçar algumas diretrizes para o
fornecimento de medicamentos por meio de recurso ao Poder Judiciário,
especialmente considerando o fato de que a aquisição e a entrega de medicamentos
tornou visível o confronto entre a ordem jurídica liberal e os conflitos de natureza coletiva, processo
esse derivado da necessidade de garantia de direitos sociais mínimos para a maioria da população.
115
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº. 45. Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) versus Presidente da República.
Relator: Ministro Celso de Mello. Decisão de 29 abr. 2004: “[...] parece-nos cada vez mais necessária
a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e
da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no
Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos
constitucionais. A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende,
naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para
o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a
conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos
Poderes (...). Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover
diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico,
ensino, de moradia ou alimentação. Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do
Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de
atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm
percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado
aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de
obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a
renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles
que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de
direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais”.
65
implicam o dispêndio de verbas públicas em favor de cidadão (ou parcela de
cidadãos) específico.
Conforme o voto do Ministro Gilmar Mendes (no Agravo Regimental na
Suspensão de Tutela Antecipada 175, Pleno, DJ 30.04.2010), a primeira indagação
a ser feita quando do fornecimento de medicamentos é a de se saber se há política
pública que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Se a prestação de
saúde não estiver dentre as políticas do SUS, o Ministro Gilmar Mendes assevera
que “é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de (1) uma omissão
legislativa ou administrativa; (2) de uma decisão administrativa de não-fornecê-la; ou
(3) de uma vedação legal a sua dispensação.” (AgRg na STA 175, Pleno, DJ
30.04.2010).
Quando há uma decisão administrativa quanto ao não fornecimento, é
necessário verificar qual é a motivação da negativa.
Embora, como regra geral, os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas
definidos pelo Sistema Único de Saúde devam ser privilegiados, não se pode ignorar
que, em casos específicos, os medicamentos previstos como regra geral podem não
surtir os efeitos esperados. E, assim, faz-se necessário definir um tratamento
específico para a paciente.
Como reconheceu o Ministro Gilmar Mendes no voto que se está a
mencionar, “Essa conclusão [de prevalência dos protocolos clínicos e diretrizes
terapêuticas ditados pelo SUS] não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder
Judiciário ou de a própria Administração decidir que medida diferente da custeada
pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do
seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso.”
(AgRg na STA 175, Pleno, DJ 30.04.2010).
Ficou firmado o entendimento de ser possível a atuação do Poder Judiciário
em casos envolvendo o direito à saúde, pela necessidade de preservação da
integridade e da intangibilidade do individuo, configurada no mínimo existencial.
Se por um lado a Administração Pública tem recursos escassos para aplicar
na concreção do direito à saúde e, de outro, o Poder Judiciário tem a missão de
tutelar a violação de direitos, para evitar alegações de interferência de um Poder em
outro, o STF traçou critérios para a atuação dos magistrados diante de casos
66
envolvendo o direito à saúde. Busca-se com tais critérios criar balizas legítimas para
a atuação do Poder Judiciário em casos que reclamem sua atuação para garantir o
direito à saúde e, em última instância, à vida, sem perder de vista as limitações
fáticas e jurídicas que recaem sobre a Administração.116
Por último, consoante decidido pelo STF, em se tratando de competência
comum dos Entes da Federação, são eles responsáveis solidários na prestação do
direito à saúde, isto é, caso um ente não possua recursos financeiros suficientes
para satisfazer o direito subjetivo, poderá o Ente superior ou inferior ser obrigado a
prestá-lo, o que os tornam partes legítimas para figurar no pólo passivo da demanda.
116
URBANO, Hugo Evo Magro Corrêa. Notas sobre a efetivação do direito fundamental à saúde.
Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 47, n. 188, out./dez. 2010, p. 187/188.
67
CONCLUSÃO
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios basilares da República
Federativa do Brasil. Assim, a partir do referido princípio, foram estabelecidos os
direitos fundamentais, os quais se encontram garantidos na Constituição Federal de
1988, dentre eles o direito à vida e o direito social à saúde (o qual foi elevado à
esfera de direito fundamental).
Os
direitos
fundamentais
são
bens
indisponíveis,
imprescritíveis,
e
insuscetíveis de alienação, sendo, ainda, considerados como direitos subjetivos
públicos, eis que o Estado possui obrigatoriamente o dever de garanti-los dandolhes efetividade através das políticas públicas.
Ademais, os direitos fundamentais podem ser classificados em direitos de
primeira,
segunda,
terceira,
quarta
e
quinta
dimensão,
dependendo
do
posicionamento doutrinário.
Todos os dispositivos da Constituição Federal são possuidores de
determinado grau de eficácia e aplicabilidade. No caso dos direitos fundamentais, a
controvérsia cinge-se quanto ao fato de serem, ou não, possuidores de eficácia
plena e aplicabilidade imediata, sendo que, cada vez mais se observa tanto a
doutrina quanto a jurisprudência positiva neste mesmo sentido.
O direito à vida, sendo um direito fundamental, está previsto no artigo 5º, da
Carta Magna e é considerado um direito essencialíssimo, haja vista que dele
dependem todos os demais direitos.
O direito à saúde trata-se de um direito social com status de direito
fundamental e está previsto principalmente no artigo 6º e 196 da atual Constituição,
devendo ser entendido não apenas como ausência de enfermidade, mas também
como direito ao completo bem-estar físico. O referido direito está intimamente ligado
com o direito à vida.
A competência para proteção do direito à saúde encontra-se estabelecida nos
artigos 23, 24 e 30 da Constituição Federal. Entretanto, o que se verifica atualmente
é a nova interpretação adotada quanto ao artigo 196, do mesmo diploma normativo,
o qual dispõe que o direito à saúde é dever do Estado, sendo que Estado deve ser
entendido em seu sentido lato, mais especificamente como União, Estados membros
68
e Municípios.
Ainda, quanto à prestação do atendimento à saúde, constata-se da analise da
legislação constitucional que o artigo 196 impõe a efetividade do direito à saúde, o
qual deve ser prestado através de políticas sociais e econômicas. O artigo 197
determina que, nos termos da lei, o Poder Público deve regulamentar, fiscalizar e
controlar a execução de tais políticas. No mais, o artigo 198 dispõe acerca do
Sistema Único de Saúde.
Neste contexto, foi instituída a Leu Orgânica da Saúde, Lei nº. 8.080/90, a
qual dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde,
a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. A referida lei, além de reproduzir alguns dos artigos constitucionais
que versam sobre o direito à saúde, também dispõe acerca da competência
administrativa para a prestação do atendimento à saúde da população, inclusive no
tocante ao fornecimento de medicamentos.
Existem, ainda, os princípios que norteiam o direito à saúde, os quais são:
princípio da prevenção, princípio da universalidade da cobertura e do atendimento,
princípio da reserva do possível, princípio da igualdade e o princípio da
integralidade.
O Estado, com a finalidade de proporcionar o direito à saúde, através de
políticas públicas, estabeleceu a Política Nacional de Saúde e, como parte essencial
dessa, a Política nacional de Medicamentos, a qual, por sua vez, regulamente a
questão do fornecimento de medicamentos gratuito pelo Poder Público. Ainda,
restou estabelecida uma distribuição de competências e eleição de prioridades, em
virtude da imensa gama de indivíduos a serem atendidos.
Dessa forma, ante os diversos mandamentos normativos, o Estado
estabeleceu a Política Nacional de Saúde e, como parte essencial dessa, a Política
Nacional de Medicamentos, a qual, por sua vez, regulamente a questão do
fornecimento de medicamentos gratuito pelo Poder Público. Ainda, restou
estabelecida uma distribuição de competências e eleição de prioridades, em virtude
da imensa gama de indivíduos a serem atendidos.
A Política Nacional de Medicamentos, aprovada pela Portaria GM/MS nº
3.916/98, determina que os entes federados, ao prestarem o atendimento à saúde,
69
obedeçam estritamente às diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde, sendo
este o responsável por elaborar e atualizar a Relação Nacional de Medicamentos
Essenciais (Rename), listando quais os fármacos que podem ser fornecidos
gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, observando-se, ainda, uma
competência específica para o Município, para o Estado e para a União.
Entretanto, conforme foi explicitado nesta monografia, a doutrina e a
jurisprudência firmaram o entendimento no sentido de que o atendimento à saúde
deve ser prestado independentemente da competência administrativa estabelecida
pelas normas infraconstitucionais, eis que o direito à vida e o direito à saúde da
população devem prevalecer sobre procedimentos burocráticos do Estado.
Ocorre que, muitas pessoas que procuram o atendimento à saúde, mais
especificamente quando solicitam o fornecimento gratuito de medicamentos,
possuem seus pedidos negados pelo Estado, sob a justificativa de que não estão de
acordo com a Política Nacional de Medicamentos. Dessa forma, verifica-se um
notório crescimento de demandas que visam uma imposição ao Poder Público no
sentido de que lhes forneçam um adequado tratamento com o fornecimento de
fármacos, consultas médicas, etc.
Constata-se, portanto, a atual “judicialização” da saúde, a qual se caracteriza
como uma alternativa eficaz para conter as omissões do Estado.
Da “judicialização” do atendimento à saúde decorrem diversas controvérsias,
desde a interpretação que é dada ao artigo 196 da Constituição Federal, a
racionalização da dispensação de medicamentos ante o alto custo e ausência de
comprovação da eficácia do fármaco, aplicação da cláusula da reserva do possível e
a questão das decisões proferidas pelo Judiciário estarem por violar o princípio da
separação de poderes.
Concluiu-se com a presente pesquisa, que faz necessário maior debate
sobre o tema e principalmente uma solução para a questão da prestação de
atendimento à saúde da população, pois de um lado observou-se ser imprescindível
a proteção do direito à vida e à saúde da população, porém, por outro viés, verificase que existem entreves enfrentados pelo Estado, que na maioria das vezes geram
a negativa do atendimento pleiteado pelo cidadão.
70
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