Afinal o que significa o inconsciente ? Michel Henry leitor de Freud.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
Afinal o que significa o inconsciente ?
Michel Henry leitor de Freud.
in Oficina de Filosofia das Ciências Sociais e Humanas
Nuno Miguel Proença e Marta Filipe Alexandre (Eds.)
Lisboa: Setembro de 2009, pp. 157-165.
ISBN 978-989-8247-01-8
http://cfcul.fc.ul.pt/publicacoes/publicacoes.html
Nuno Miguel Proença∗
Estou desde finais de 2007 como pós-doutorando do Centro de
Filosofia das Ciências e tenho estado interessado pelas obras de Michel Henry
e de Henry Maldiney em que estão presentes perspectivas filosóficas sobre a
origem da Psicanálise. É por essa razão, e porque me interessa a maneira
como as noções de «pulsão», de «afecto» e de «inconsciente» se elaboraram
na filosofia antes de serem empregues pela psicanálise que me interessei por
um texto de Michel Henry de que vos proponho hoje uma apresentação. Tem
por título «Significação do conceito de inconsciente para o conhecimento do
homem»1. Encontra-se numa recolha de textos com o título «Auto-doação» e
é oriundo de uma conferência pronunciada por Henry na Academia das
Ciências de Moscovo, no dia 31 de Maio de 1986, aquando de um colóquio
com o título «O Inconsciente».
Permitam-me que comece por uma série de perguntas às quais
certamente já encontraram resposta. Seremos capazes de enumerar de cor as
palavras que conhecemos ? Quem é que está actualmente consciente da série
∗
1
Pós-doutorando, CFCUL.
«Signification du concept d’inconscient pour la connaissance de l’homme», in Auto-donation, Paris,
Beauchesne, 2004, pp. 87-110. A tradução dos trechos citados é da nossa responsabilidade.
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de termos e da significações destes, que conhece numa língua, a começar pela
língua natal ? E se nos sentássemos a escrever uma a uma as palavras que
conhecemos, de quantas nos lembraríamos de facto ? De um número
certamente inferior àquelas que de facto sabemos. Onde é que se encontram
as palavras que às vezes nos faltam, e que conhecemos, e que procuramos e
que não encontramos ou que encontramos às vezes enleadas no novelo de
outras tantas? Uma resposta seria simples, aparentemente : encontram-se na
nossa memória, claro, mas algures nela onde, por uma razão qualquer, não
acedemos só pela vontade e da qual, por isso, parece que não estamos
conscientes. A meu ver estas perguntas permitem-nos entender aquilo que
Freud nos apresenta com o nome de inconsciente, não aquilo a que o próprio
dá o nome, num texto de 1926 sobre « A manipulação da interpretação dos
sonhos», de misterioso inconsciente, mas a série de materiais que a um
momento ou outro escapa à nossa consciência apesar de determinar os
conteúdos desta, e sobretudo aqueles que parecem excedê-la: lapsos, afasias,
actos falhados, inibições, fobias, esquecimentos, erros sucessivamente
renovados, por exemplo, e, claro, entre outras coisas, os sonhos. Ora, é
precisamente a possibilidade dos conteúdos de consciência serem
determinados por materiais não conscientes que parece levantar um problema
à filosofia e nomeadamente à filosofia do conhecimento na qual a consciência
tem um papel predominante.
O esclarecimento fenomenológico de Michel Henry sobre a
Significação do conceito de inconsciente para o conhecimento humano
desconstói a incompatibilidade aparente entre as hipóteses freudianas para a
constituição de uma psicologia do inconsciente e as restantes ciências
humanas no sentido em que situa as primeiras na continuação do momento
metafísico que serve de fundamento às segundas. Mas porquê?
«A questão do conhecimento do homem é muito particular,
simultaneamente solidária e diferente da questão do conhecimento em geral.
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O conhecimento é as mais das vezes o conhecimento de algo que é em-si
estranho ao próprio conhecimento, algo de opaco e de cego que precede, ao
que parece, o olhar que o conhecimento fará incidir sobre ele e que, graças a
esta, será tirado do seu lugar natural para ser levado, nela e por ela, até à luz.
O ente da natureza, a pedra, o átomo, a molécula, banham numa espécie de
noite original e cósmica que quase não se pode pensar e de onde o
conhecimento os vem arrancar para os projectar perante este olhar da
consciência de modo a oferecê-los a esta. O homem, pelo contrário, se o
considerarmos no que tem de específico, quer dizer naquilo que o diferencia
de qualquer outro ente, não precisa, para aceder à luz da fenomenalidade, de
intervenção de um princípio que não seja ele e que viria subtraí-lo
posteriormente a uma dimensão anterior de escuridão, é ele-próprio esta luz,
ele próprio o conhecimento, é «consciência»»2. A tese assim resumida parece
simples de entender : a Humanitas do homem seria assim definida como
«fenomenalidade,
mais
precisamente,
como
fenomenalização
da
fenomenalidade e assim em oposição radical com aquilo que pelo contrário se
encontrara em-si desprovido do poder de cumprir a obra da manifestação. No
pensamento de Descartes, esta oposição é a da alma e do corpo»3.
A consideração é bastante geral mas é importante. Não só porque,
como relembra M. Henry, «antes da psicanálise e como seu antecessor
incontornável, o conceito de inconsciente vai também levantar-se e aparecer
em todo o lado na filosofia clássica ocidental como recusa ou consequência
do cogito de Descartes»4, mas também porque, no seguimento — pelo menos
histórico— disto, o inconsciente vai ser apresentado por Freud como aquilo
que da vida psíquica excede a actualidade da manifestação consciente. A ideia
de que Freud é um herdeiro tardio do desenvolvimento da metafísica
2
M.Henry, «Signification du concept d’inconscient pour la connaissance de l’homme», in Auto-donation,
Entretiens et conférences, p.87.
3
Ibid.
4
Ibid., p.88.
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Ocidental é a tese de fundo da Genealogia da psicanálise que Michel Henry
escreveu poucos anos antes da conferência pronunciada em Moscovo e que
reencontramos neste texto.
O primeiro texto de Freud ao qual Henry presta atenção é de 1912 e
tem por título «Abrégé de psychanalyse» e é importante por verificar a
hipótese de que a noção de consciência com a qual Freud trabalha e a partir da
qual elabora as suas hipóteses é aquela que o senso comum herdou de forma
mais ou menos esclarecida da tradição metafísica. « A primeira indicação de
Freud, diz Henry, não deixa de parecer decepcionante ou até mesmo
desconcertante». E o que é que escreve o Freud de 1912 ? Escreve que «não é
preciso explicar aqui aquilo a que damos o nome de consciente e que é o
consciente dos filósofos e do grande público». Uma segunda resposta, escreve
Henry, impressiona pelo contrário pela sua clareza. Depois de ter contestado a
identificação filosófica tradicional entre «psíquico» e «consciente», a Nota
sobre o inconsciente em psicanálise de 1912 declara de forma categórica :
«Chamemos pois « consciente » a representação que está presente à nossa
consciência e que percebemos como tal e digamos que é este o único sentido
do termo « consciente»». A partir desta definição de consciente, escreve
Henry, chegamos depressa ao inconsciente pelo caminho que é o de Freud :
«Se de facto a essência da consciência reside na representação, quer dizer na
posição frente a si sob forma de um redobrar ou de um desdobrar, qualquer
representado, quer dizer o poisado em frente, o que é visto e conhecido – no
texto de Freud : «A representação que está presente à nossa consciência e que
percebemos como tal» - encontra-se afectada pela finitude que é própria a
qualquer representação como tal e que é a do espaço de luz aberto por ela.
Noutros termos: só me posso representar uma coisa de cada vez, claro com
uma zona de co-apresentação marginal sempre co-dada mas em todo o caso
estreita e já afogada na sombra. Se portanto ser, é ser consciente e, se ser
consciente é ser representado, então a quase totalidade deste ser fica fora da
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representação efectiva ou actual»5. Não estamos longe da constatação de há
pouco de que conhecemos muitas mais palavras do que aquelas que somos
capazes de enumerar. Sobretudo se tivermos em mente a ideia de que as
palavras são acompanhadas de representações e estas de palavras. Se
prosseguirmos a leitura do texto de Henry damo-nos assim conta de que
«podemos ainda exprimir esta finitude ontológica radical ao dizer que da
representação está excluído quase todo o representado». E é de facto aquilo
que encontramos, dito de outra forma, no texto de Freud que Henry cita:
«Podemos ir mais longe, escreve Freud, e admitir, como esteio da tese de um
estado psíquico inconsciente, que a consciência não comporta a cada
momento senão uma conteúdo mínimo de tal forma que, à parte este, a maior
parte daquilo a que chamamos conhecimento consciente se encontra
necessariamente, durante os mais longos períodos, em estado de latência,
portanto num estado de inconsciência psíquica. Se tomássemos em
consideração a existência de todas as nossas lembranças latentes, passaria a
ser perfeitamente inconcebível contestar o inconsciente» («O Inconsciente»,
in Metapsicologia). Henry chama no entanto a nossa atenção para as
insuficiências desta hipótese que, no seu entender, Freud partilha com a
filosofia e a psicologia do seu tempo e nomeadamente com Bergson e que
retoma a resposta clássica que à pouco demos às nossas perguntas iniciais: as
lembranças nas quais já não pensamos são conservadas no inconsciente. «Mas
a memória é compreendida por Freud, no entender de Henry, da mesma
maneira que por toda a esta filosofia e toda esta psicologia, como uma
faculdade representativa»6. É aí que residem as dificuldades da demonstração
freudiana: «não é pois só às lembranças, mas a todas as representações, a
todas as que ultrapassam o campo reduzido da actualidade consciencial, que
se aplica esta demonstração com a sua consequência: a sua hipóstase sob
5
6
Ibid. p.88.
Ibid. p.89.
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forma de representações virtuais num inconsciente grosseiramente realista
inventado com o propósito de as receber nele»7. Esta hipótese deveria então
rejeitar-se por não parecer trazer nada de novo, nem à metafísica nem às
ciências humanas.
Segue, nos termos de Henry, uma desconstrução da metafísica da
representação e do objectivismo que caracteriza o conhecimento que só se
baseia nela e que a psicanálise partilha porque o conceito de inconsciente que
é o dela a determinado momento resulta desta mesma metafísica. Só que,
escreve Henry, «Desconstruir não quer dizer rejeitar pura e simplesmente e
desconhecer o mundo da representação, o próprio mundo. Desconstruir quer
dizer trazer à luz um fundamento mais profundo sobre o qual se eleva a
representação e sem a qual não seria nada». E talvez a psicanálise tenha um
papel a desempenhar ao termo desta desconstrução. E mais adiante: «o
fundamento derradeiro da representação e assim do pensamento no sentido
em que habitualmente é entendido e nomeadamente no «penso, sou», só se
obtém pela exclusão e mesmo pela expulsão da representação e assim do
próprio pensamento»8. Ora, o que esta desconstrução traz à tona, não é a
recusa psicótica da vida psíquica, nem uma detestação do pensamento, é antes
o que a afectividade tem de não erradicável. «Aquilo a que os psicólogos
chamam afecto, sentimento, etc. é sempre só a objectivação posterior daquilo
que é edificado interiormente em nós próprios, como se edifica o primeiro
aparecer, a essência original da Psique, quer dizer, a prova de si mesmo inekstática que encontra a sua efectuação fenomenológica e assim a sua
substancialidade fenomenológica na afectividade de que falamos»9. Já agora
permitam-me que vos leia a maneira como Henry fala desta afectividade
transcendental que desvela por uma leitura de Descartes das duas primeiras
Meditações Metafísicas e das Paixões da Alma, a mesma leitura com que
7
Ibid., p.90.
Ibid., p.95.
9
Ibid. p.98.
8
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inaugura a Geneaologia da Psicanálise: «Transcendental, a afectividade não é
aquilo a que chamamos um afecto, um sentimento, o sofrimento ou a angústia
ou a alegria, mas aquilo que faz com que algo como o afectivo em geral seja
possível e alastre a sua essência em todo o sítio em que se cumpre, antes da
ek-stase do mundo, a primeira implosão de si da experiência, o pathos
primitivo do ser e dessa forma de tudo o que é e será»10. E essa afectividade
escapa à radicalidade da dúvida que incide sobre o conteúdo das
representações e sobre tudo aquilo que se dá no horizonte onde se ex-põe o
que o espírito pode ver, com os sentidos ou o intelecto. Resta um video
videor, diz Descartes «parece-me que vejo. Ora, continua Henry, falaciosa ou
não, a visão não deixa de existir enquanto dela se faz prova, em cada ponto do
seu ser, na sua afectividade e por ela. Sentimus nos videre diz Descartes»11. A
qualidade afectiva da vista, independentemente da verdade dos conteúdos que
são os seus e enquanto estando relacionada com os conteúdos do mundo, é
verdadeira, tão verdadeira como o horror, «intacto no seu próprio ser, na
carne da sua afectividade, mesmo que o mundo da representação se tenha
dissipado na ilusão do sonho» que a suscitou.
É precisamente a partir desta «dimensão de experiência na qual o que
deve ser entendido como Fundo da Psique se sente a si-próprio numa
imediação radical, antes da «relação a» um «ob-jecto», antes do surgimento
de um mundo e independentemente dele» que Henry vai esclarecer a
significação da hipótese do inconsciente, noutro momento da sua elaboração.
«Se a Psique se revela originalmente a si-própria na imediação do afecto e do
seu pathos, independentemente do afastamento da objectividade e antes de
qualquer representação, então toda […] [a] problemática [de um inconsciente
das representações latentes na qual se encontra tudo aquilo que escapa à
realidade psíquica] se desmorona. Por duas razões. «Por um lado, diz Henry,
10
11
Ibid.
Ibid., p.99.
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o psíquico não é constituído em si-próprio […] como ser representado,
também não tem de conservar esta estrutura, que não é a sua, quando se
encontra posto fora da actualidade fenomenológica da consciência, quer dizer,
precisamente fora do ser representado. O conceito de representação
inconsciente é absurdo. Por outro lado, é esta essência interior e original da
Psique que tem de ser por fim pensada por si-própria se quisermos adquirir
um conhecimento novo e mais profundo do homem, que não o reduza, como
na filosofia tradicional da consciência ou nos seus rebentos positivistas, ao
sujeito vazio ou ao conteúdo morto de uma representação»12. E nesse caso, o
que é que resta da alma? «O que está sempre em posse da alma, diz Henry,
relembrando Descartes não é o conteúdo representativo das ideias, é o poder
de as formar. Assim sendo, a análise, deixando o universal da representação
deve virar-se para estas determinações essenciais da Psique que são Força e
Poder». Mas em que sentido é que estes dois termos são entendidos no texto
de Henry? «O nosso corpo, por exemplo, é o conjunto dos poderes que temos
sobre o mundo ao qual nos abre por todos os sentidos e pela sua motricidade.
Mas só é tal porquanto é capaz de se apoderar de cada um dos seus poderes de
forma a coincidir com eles e a pô-los à obra. Uma tal coincidência não é mais
do que a subjectividade original e essencial que é a prova imediata dos seus
poderes, o saber deles portanto, mas um saber que, em vez de os representar,
se identifica com eles e com a possibilidade de princípio de os manifestar –
um saber fazer, portanto»13. E também, agora no que diz respeito à Força:
«Temos experiência da uma força com a qual coincidimos e que por esta
razão podemos pôr em obra. O meu corpo original é um posso que sou, é um
fazer imediatamente provado e vivido na praxis subjectiva do mundo». E já
agora, antes de voltarmos às consequências para a avaliação da significação
do conceito de inconsciente, «não há passagem, aliás enigmática, do
12
13
Ibid., p.100
Ibid., p.101.
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subjectivo ao objectivo, mas um só movimento que nos é dado duas vezes, a
primeira na sua realidade sob forma desta praxis vivida, a segunda na
objectividade de uma representação mundana»14 que, poderíamos dizer, é o
movimento duplo que compõe o trabalho da objectivação própria às ciências
humanas.
Tendo isto em mente, é fácil de entender o que Henry diz de seguida:
«O conceito freudiano de inconsciente não é só uma consequência e um
avatar da metafísica da representação, implica, de forma mais essencial, a sua
rejeição. Assim se desvela a sua significação profunda, aquela que nos conduz
para fora da representação em direcção ao domínio irrepresentável da vida, do
qual acabamos de reconhecer o primeiro traço: o da acção, da força, da praxis.
Esta inflexão do conceito freudiano de inconsciente em direcção às camadas
originais e fundamentais da nossa experiência deixa-se adivinhar na Nota
sobre o inconsciente em psicanálise de 1912»15. É a «eficiência dos
pensamentos inconscientes durante o seu estado de inconsciência, é portanto a
actividade
enquanto actividade inconsciente, quer dizer, produzindo-se e
desdobrando-se independentemente da consciência representativa enquanto
tal e antes dela, que tem agora o papel de argumento principal» para a
justificação da hipótese do inconsciente, já não é o reaparecimento dos
conteúdos de memória ao cabo de um certo tempo, e de forma involuntária,
depois de terem permanecido em latência. A tese de um «inconsciente
eficiente» é também aquela segundo a qual «não só a acção só é possível em
estado de inconsciência, como só se efectua como tal, fora da representação,
precisamente enquanto poder em coerência consigo na imanência radical da
Noite de uma subjectividade primordial onde não há nem afastamento nem
distância em relação a si, nem intencionalidade nem objecto, onde a luz da
objectividade e da consciência representativa não se levanta nem nunca
14
15
Ibid. p. 102.
Ibid.
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chega. Ora, continua Henry, esta Noite original não é nem a da cegueira nem
a do caos, sede dos instintos irracionais cuja ameaça sempre suspensa sobre o
mundo luminoso dos homens se trata de conjurar. E é por isso que na Noite
reside algo de fundamental para conhecimento humano, mesmo para o
conhecimento científico. Nesta Noite «habita um saber primitivo e essencial,
o saber da vida, o saber-mover-as-mãos, o saber-mexer-os-lábios, o sabermover-os-olhos que precede, por exemplo, qualquer leitura, tornando assim
possível a aquisição do saber científico, precedendo-o consequentemente e
fundando-o propriamente. Um tal saber, em virtude do qual eu me levanto e
ando, acompanha a humanidade desde as origens, e permite-lhe habitar a
terra. É um saber que é um saber-fazer, um saber do fazer e que consiste nesse
próprio saber. Por esta razão chamamos-lhe praxis e compreendemo-lo não
como aquilo que se trataria de reduzir e de eliminar progressivamente
enquanto incompreensível e irrepresentável – que penetra pouco a pouco a luz
da consciência. É precisamente um irrepresentável em si, irredutível ao saber
do conhecimento científico, o que este pressupõe em todas as suas
tramitações como condição despercebida mas incontornável do seu acesso a
tudo o que ele sabe e antes de mais a tudo o que faz»16. É a este
irrepresentável que uma metafísica da representação dá o nome de
inconsciente.
Se quisermos estabelecer, com Michel Henry, a significação positiva do
conceito de inconsciente, temos portanto de entender duas coisas. Primeiro
este inconsciente «não serve de argumento a nenhum irracionalismo, antes
constitui o fundamento e a condição inicial de qualquer saber, mesmo do
saber científico»17. Depois, que o «Fundo da Psique humana não poderia ser
um inconsciente absoluto que nada distinguiria de um ente natural, tal como a
16
17
Ibid., p.103.
Ibid.
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pedra»18. O inconsciente antes se refere « a uma primeira esfera de
experiência e precisamente à própria experiência na sua forma inicial – o que
Freud reconhece, escreve Henry, à sua maneira na Psicopatologia da vida
quotidiana quando, ao propor uma teoria geral das concepções mitológicas,
religiosas e metafísicas do mundo, as explica como projecção exterior da
realidade psíquica e assim como desvelo perante a consciência representativa.
A projecção supõe o conhecimento obscuro daquilo que projecta»19. O trecho
da obra de Freud que Henry cita diz de facto o seguinte: «O conhecimento
obscuro dos factores e dos factos psíquicos do inconsciente (por outras
palavras: a percepção endopsíquica destes factores e destes factos) reflecte-se
[…] na construção de uma realidade supra-sensível, que a ciência transforma
numa psicologia do inconsciente»20.
Em termos fenomenológicos, o que é que isto quer dizer, e como é que
se funda? Esta afirmação deve poder indicar uma forma de experiência que,
apesar de estranha à ek-stase da objectividade, e à posição das representações
como objectos, não deixa por isso de ser uma experiência efectiva. Ora,
pergunta Henry, será que existe uma fenomenalidade irredutível ao mundo? A
resposta, que é afirmativa, passa de novo pela noção de inconsciente tal como
a apresenta Freud: por ser constituído no seu Fundo pelo afecto, o
inconsciente verifica essa hipótese de uma experiência efectiva não objectiva.
No artigo com o título «Inconsciente», Freud escreve o seguinte, que Michel
Henry cita: «é da essência de um sentimento o ser apercebido, logo ser
conhecido pela consciência » e também «Não há, em sentido próprio, afectos
inconscientes como há representações inconscientes»21. Enquanto é
representado pelo afecto, o inconsciente não tem nada de inconsciente. E,
como lembra Henry, é o sentido profundo da doutrina ao mesmo tempo que o
18
Ibid., p.104.
Ibid.
20
Freud, Psychopathologie de la vie quotidienne, Paris, Payot, 276.
21
Freud, Métapsychologie, Paris, Gallinard, 1968, p.82 e 84.
19
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da terapia que se encontra aqui em questão»22 e que a análise do recalcamento
ilustra. Este, explica, incide sempre em realidade sobre a associação de uma
representação e de um sentimento, associação que tem por efeito quebrar. É a
representação à qual o sentimento estava fenomenologicamente associado que
é recalcada e assim empurrada para o inconsciente. Separado desta, o
sentimento liga-se a outra representação, que é tomada doravante pela
consciência como a manifestação desta última […]. Ora, neste processo de
desestruturação e de reestruturação que é o do recalcamento, o sentimento
nunca deixou de ser conhecido, só o seu sentido, neste caso a representação à
qual estava primitivamente associado, é «desconhecida». O trecho de Freud
que Henry cita (e que eu não retomo) sublinha as consequências que isto tem
em termos dos procedimentos terapêuticos necessários para restabelecer a
ligação inicial e que permitem uma liquidação adequada da tensão afectiva,
por uma lado, e, por outro, a constituição de uma história essencial da
afectividade a partir da análise do destino das pulsões, a história das ligações
sucessivas e das sucessivas transformações dos afectos de alguém à medida
que se instauram «relações sucessivas significativas com o mundo da
representação antes d(a afectividade) ser de uma certa forma conduzida à sua
essência própria: o que acontece quando se levanta a angústia, não a angústia
perante o objecto (Realangst) mas a angústia pura, ou se preferirmos a
angústia perante a pulsão»23.
Se retomarmos a questão da significação filosófica do conceito de
inconsciente para o conhecimento humano, podemos então dizer, com Henry,
que «aqui se dá a pensar a ligação essencial Força/Afecto que constitui o
Fundo da Psique, ao mesmo tempo que o da psicanálise»24 e que se deixava
entrever nas análises sobre o corpo e a potencialidade. «O Fundo da Psique,
de facto, é a pulsão, mas esta não é propriamente psíquica senão enquanto
22
Ibid., p.105.
Ibid., p.106.
24
Ibid.
23
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afecto, o qual é precisamente o «representante» do sistema bio-energético do
organismo na Psique»25. A hipótese mantém-se desde o Esquisso de uma
psicologia científica e vai atravessar a obra de Freud apesar de algumas
transformações. E qual é esta hipótese? É a de que o sistema bio-energético
tem dois tipos de neurónios de que resultam a afecção interna e a afecção
externa do indivíduo vivo»26 como diz Michel Henry. A afecção ou a
excitação interna não é mais do que a pulsão e «não vêm do mundo exterior,
mas do interior do organismo vivo» e por isso não se lhe pode fugir,
contrariamente ao que se passa com a excitação externa em presença de um
perigo, por exemplo, que, provocando a fuga, liquida o afluxo de energia que
provoca. Como pulsão, a afecção interna é afecção de um eu por si-próprio ou
a sua auto-afecção, de maneira que, sublinham e Freud e Henry, é permanente
por «nunca agir como uma força de impacto momentânea, mas sempre como
uma força constante »27, por outro lado não oferece a possibilidade de se lhe
escapar, «porque o eu não pode escapar a si-próprio»28, por mais que se
esforce por isso, nas formas tão frequentes de negativismo e de detestação de
si tão características dos estados psicóticos, como relembra Freud num texto
sobre a «Denegação». E por isso, na leitura de Henry, a pulsão, no fim de
contas não designa em Freud uma moção particular, mas o facto de nos autoimpressionarmos a nós-próprios sem que nunca se possa escapar a si-próprio
e, enquanto esta auto-impressão é efectiva, o peso e o encargo de nóspróprios»29.
Então, e para terminar, retomando a exposição de Michel Henry, «a pulsão é o
que ela é sobre o fundo nela do afecto e da essência da afectividade nele – da
essência da vida. A partir desta essência da vida que é a pulsão, é fácil
25
Ibid. Henry parece, no entanto, não ter em consideração que para além do afecto, também a própria
representação é um representante da pulsão.
26
Ibid., p.106.
27
Ibid.
28
Ibid., p.107.
29
Ibid. p.107.
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compreender o conjunto dos fenómenos da Psique mas sem dúvida também
os da cultura e da civilização em geral, porquanto as diversas culturas e
civilizações que já existiram à superfície da terra representam as diversas vias
desenhadas e abertas pela necessidade com vista à sua satisfação»30. E, por
último, retomando a questão inicial, e tentando responder-lhe, «a significação
do conceito de inconsciente para o conhecimento do homem, consiste em
remeter, no ser deste, para um domínio mais profundo que o da consciência
clássica, quer dizer do pensamento entendido como conhecimento objectivo,
como representação. O mundo da representação e das suas determinações só é
inteligível a partir de uma instância que lhe é irredutível, a das pulsões, dos
desejos, da necessidade, da acção, do trabalho, que lhe dão a sua forma, uma
forma mais antiga do que a do pensamento e que este só pode reencontrar
posteriormente. A reflexão sobre o afecto e as pulsões não tem por efeito
cortar-nos do mundo onde vivem os homens, mas pelo contrario, fazer-nos
voltar às suas raízes para exibir o naturante verdadeiro, a autêntica ratio»31.
30
31
Ibid.
Ibid., p.108.
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