O meu primeiro mestre de filosofia

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Paul Ricoeur, “Mon premier maître en philosophie”, em Marguerite Léna (dir.), Honneur aux
maîtres, Paris, Critérios, 1991, pp. 221-225.
Texto reproduzido com a amável autorização de Marguerite Léna.
O meu primeiro mestre de filosofia
Agradeço a Marguerite Léna a oportunidade de afirmar a minha dívida em relação a Roland
Dalbiez, que foi o meu primeiro mestre de filosofia no Liceu de rapazes em Rennes durante os
três anos respeitantes ao ciclo final e os anos do curso superior de Letras (1930-1933).
A carreira de Roland Dalbiez foi insólita: antigo oficial da marinha, educado na filosofia clássica
e na neo-escolástica, passara sem dificuldade o concurso de agregação e, após os inícios em
Laval, veio encarregar-se da classe de filosofia do nosso liceu.
O homem era alto, de uma fragilidade robusta, de aparência mais concentrada do que afável,
e sobretudo severamente vestido (ah! a camisola que trazia por baixo do seu casaco e que
despia ao entrar na sala de aula – forma racional de se comportar em relação às intempéries!).
O seu curso, rigorosamente construído, e pronunciado com uma lentidão acentuada, que
convinha à tomada de apontamentos, quase exaustiva, decorria numa atmosfera
vincadamente estudiosa. De acordo com o seu ensino, importava, acima de tudo, o conceito
bem formado, o argumento bem construído, a tese formulada com clareza no final de uma
disputa ordenada. Bem entendido, esta pedagogia racional era adaptada com um grande
escrúpulo às exigências do programa oficial que impunha um longo percurso psicológico, uma
paragem muito breve na lógica formal e indutiva, uma passagem pela moral com corolário na
metafísica. Roland Dalbiez redistribuía as matérias do programa entre dois grandes conjuntos,
teórico e prático: o primeiro reagrupava a psicologia do conhecimento, a lógica e a metafísica
do verdadeiro, o segundo, a psicologia das emoções, do hábito e da vontade, a moral e a
metafísica do Bem, - sendo que a noção de Ser reagrupava os seus transcendentais que nós
aprendíamos a converter entre eles e com o Ser.
O inimigo declarado era o idealismo em todas as suas formas. Descartes, Berkeley, Hume,
Kant, Brunschvich, que reinava na Sorbonne (ignorava-se Hegel), eram objeto de uma
refutação constante e global, uma vez examinados os textos em sua defesa. O maior
argumento oposto aos idealismos era que eles desconheciam gravemente a prioridade do real
em relação ao conhecimento consciente dele próprio. O nosso mestre procurava convencernos de que no idealismo a consciência era semelhante a um gancho mergulhado no vazio e
condenada, por falta de suporte exterior a compreender-se a ela mesma num redobramento
vão. A desrealização de que o idealismo era acusado, encontrava-se assim compreendida
como uma doença mental de tipo psicótico. Nós, os seus alunos, percebíamos mal a relação
muito estreita que existia entre esse tratamento clínico do idealismo e as pesquisas que o
nosso mestre conduzia então no campo da psicanálise freudiana (só entravam na nossa aula
ecos da Interpretação dos sonhos e da Psicopatologia da vida quotidiana, que nos divertiam
mais do que nos instruíam). Roland Dalbiez publicava, de facto, em 1936, na Desclée de
Brouwer, as suas teses sobre O método psicanalítico e a doutrina freudiana.
Podemos espantar-nos que um filósofo neo-escolático tenha podido entrar na aventura de
uma interpretação filosófica da psicanálise, numa época em que a obra de Freud estava
inacabada e sobretudo, provocava escândalo. A relação era realmente estreita entre a filosofia
de Dalbiez e a sua reconstrução da psicanálise (por meio da expressão “método psicanalítico”,
ele entendia muito mais do que o método de tratamento e nela incluía a teoria do
inconsciente, a da libido e das nevroses; rejeitava, pelo lado da doutrina, o materialismo e o
que ele continha de extrapolações induzidas no domínio da cultura, da moral e da religião). O
que alimentava a simpatia por Dalbiez era fundamentalmente a tese segundo a qual o
psiquismo é uma realidade natural irredutível à consciência; era, além disso, a instauração de
relações de causalidade entre a libido e os seus produtos1. Assim, ele via a psicanálise
inscrever-se numa filosofia da natureza de estilo aristotélico. O facto Freud ter expressado
esse naturalismo fundamental, que desqualificava a consciência, a partir do vocabulário de um
materialismo médico, isso estava de acordo com a época e denunciava não só a filosofia
idealista como o seu adversário simétrico – e merecido! - o positivismo cientista.
Só dez ou quinze anos mais tarde é que tomei consciência da minha dívida em relação ao
filósofo Roland Dalbiez, cuja envergadura não distingui sob a figura do nosso professor.
Mas antes de falar da temática pela qual estou em dívida relativamente ao meu primeiro
mestre, que me seja permitido evocar as duas marcas que ele imprimiu em mim.
Se aprendi mais tarde com Gabriel Marcel a arte da discussão dialogada e com Husserl a da
descrição exata, é a Roland Dalbiez que devo o modelo didático que me esforcei por colocar
em prática, isto é, uma maneira de ensinar sem consideração pela confidência, pelo
impressionismo, pela aproximação superficial, pela desistência.
Pronuncio a palavra desistência: toco aqui a mais severa lição que o meu primeiro mestre me
deu: ao jovem estudante que ponderava com receio entregar-se de corpo e alma aos
tormentos da dúvida e da guerra intestina – mais assustadora do que a controvérsia assassina , o meu mestre dizia: não vos desvieis do que temeis encontrar; não contorneis nunca os
obstáculos, mas afrontai-os de frente. Este conselho foi entendido como um encorajamento –
o que digo? uma imposição – a “fazer filosofia”.
1
“O princípio de causalidade foi a estrela diretriz de Freud. Todo o efeito é evidência da sua causa. Esse
velho axioma aristotélico condensa numa breve intuição todas as pesquisas psicológicas do mestre de
Viena” Dalbiez, o.c., I, p.331
É ao meditar sobre as relações do voluntário e do involuntário, durante os anos de cativeiro,
depois ao redigir, no regresso, a tese de doutoramento que devia constituir o tomo I da
Philosophie de la Volonté, que reencontrei o meu primeiro mestre de filosofia, ou antes, que o
descobri na sua obra publicada. O capítulo sobre o inconsciente, enquadrado por um capítulo
sobre o caráter e um outro sobre a vida, a morte e o nascimento, toma a forma de uma longa
discussão com Dalbiez, citado quase em cada página. Nessa época tentava conciliar uma
filosofia da consciência fortemente marcada pelo Husserl das Ideen e o que eu chamava uma
fenomenologia do oculto; encontrava-me, deste modo, em oposição com o que denunciava
como uma física mental. Matava assim o meu pai com todas as flechas dirigidas
sucessivamente contra o “realismo” freudiano do inconsciente, contra a “física” freudiana do
inconsciente, contra o “geneticismo” freudiano. Mas as aporias que levantavam essas críticas –
assim falava eu do “modo de existência do inconsciente na consciência”, do “modo de
necessidade próprio do inconsciente”, da “noção de “matéria” afetiva” - constituíam outras
tantas homenagens involuntárias prestadas ao Freud de Dalbiez. Além disso, pergunto-me
hoje, se não era a noção de “Involuntário absoluto”, do qual o inconsciente não constituiria
senão uma componente, que constituía mais manifestamente a marca da influência do meu
primeiro mestre: não se conjugava a crítica do “idealismo” do cogito cartesiano, a qual ecoa
ainda nos muros do Liceu (de rapazes!) de Rennes, com a evocação de um “consentimento à
necessidade”, o apelo à “paciência” em relação a si mesmo, contrário a toda a arrogância de
um sujeito pretensamente mestre do sentido?
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