Das formações do inconsciente e dos clínicos em formação. Ester Trevisan.1 Fala-se muito da transmissão da psicanálise na Universidade. Vou partir da transmissão em uma instituição de Saúde Mental, o Caps2 Cais mental centro, num momento de passagem no tratamento dado à doença mental, onde se introduz, além da abordagem psiquiátrica, o psicosocial. O Caps é uma instituição pública e se caracteriza por ser um serviço substitutivo à internação hospitalar, quando isto é possível. Recebemos no Cais centro, adultos com transtornos psíquicos graves, na sua maior parte psicoses, depressões severas com risco de suicídio, neuroses incapacitantes, pessoas que se colocam em situação de auto ou hetero agressão, situações de crise e surto psicótico. Estes pacientes são endereçados a nós por outros serviços de saúde da cidade, mas fazemos também uma tentativa de construir laços com os chamados “loucos de rua”, o que tem se revelado uma clínica bastante específica e que demanda muitas reflexões e interlocução com outras áreas de conhecimento, sobretudo com os trabalhadores sociais. O Cais é, portanto, um lugar bastante “movimentado” tanto do ponto de vista de quem aporta para buscar tratamento, quanto para quem ali trabalha ou se encontra em algum momento de sua formação. A equipe funciona de modo interdisciplinar e a presença de estagiários e residentes, vindos de diferentes áreas, é uma constante em nosso serviço, desde a sua fundação. Tenho me ocupado mais diretamente, desde 2001, da supervisão institucional dos alunos de psicologia da UFRGS que ali fazem o estágio de psicopatologia e acompanhamento terapêutico3. Há uma autorização que é condição para que o trabalho clínico se institua. Em alguns alunos, podemos encontrar uma dificuldade inicial em sair do campo da exigência acadêmica e estabelecer junto ao paciente um lugar de endereçamento possível, outros se vêem presos a um desejo de curar, de fazer o bem, ou ainda encerrados em um discurso pedagógico. Retorna sempre, do lado do supervisor institucional, a pergunta do que é possível transmitir quando se está no encontro da psicanálise com a instituição de saúde e neste cenário do psicossocial. Retorna, pois é uma questão já colocada em Freud, repetidas vezes, como por exemplo no artigo de 1912, Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise4 em que aponta para 1 Psicanalista, membro da APPoA. Membro da Equipe do Caps cais mental centro-PoA. Caps: Centro de atenção psico-social. 3 Acompanhamento Terapêutico (At). Dispositivo de intervenção clínica que vem sendo colocado em prática a partir de Programa do Curso de Psicologia Social e Institucional da UFRGS coordenado pela professsorapesquisadora Analice Palombini. 4 Freud, Sigmund. Obras Completas, Standard, vol XII. 2 1 alguns riscos da prática clínica, quando somos tomados por um certo furor curandis, por exemplo. Freud sublinha que suas interrogações partem de uma experiência que lhe é singular e aponta para dificuldades com as quais vamos sempre nos deparar na nossa formação. Alfredo Jerusalinsky, em aula de 1995, na Associação Psicanalítica de Porto Alegre, sublinha um ponto fundamental do trabalho do psicanalista que é de estarmos às voltas com letras, inscrições, registros; a psicanálise como um dispositivo de leitura das formações do inconsciente. Este pequeno fragmento nos remete a pensar os impasses e dificuldades da transmissão da psicanálise, sejam quais forem os lugares onde se dá esta transmissão: “As interrogações acerca das formações do inconsciente têm diferentes tentativas de resposta. Lacan retorna aos tempos freudianos e sublinha que, para Freud, há três pontos de articulação das formações do inconsciente. Estes três pontos, que se resumem em um só, são: a filiação, a identificação e a sexuação. Porque quando se produzem formações do inconsciente, elas têm a ver ou com as origens, se faz sintoma acerca das origens (filiação); se faz sintoma acerca do ser (identificação); e se faz sintoma acerca do gozo (sexuação). Lacan sublinha que Freud inventou o dispositivo de leitura das formações do inconsciente articulado nestes três conceitos fundamentais, conceitos que sugerem os posteriores: o conceito de recalque, o conceito da repetição, o conceito de pulsão (fundamentalmente estes três).”5. Pensamos estar “bem informados” acerca do psicopatológico, do sintoma, temos um saber muito bem construído acerca do que fazer, porém, é no contato com o paciente, é no encontro mesmo com a clínica que todo este imaginário é colocado à prova, quando suportamos pôr de lado nossa “reserva teórica” para ler aquilo que se apresenta de modo a que algo do sujeito possa advir. No contexto da instituição de tratamento, a presença do estagiário, a meu ver, é fundamental quando ele consegue, através de seu posicionamento clínico, provocar um buraco, um intervalo, no saber da instituição acerca deste ou daquele paciente. No caso do acompanhamento terapêutico, especificamente, este “corpo-a-corpo” da clínica tem nos ensinado sobre um certo intervalo necessário entre o saber e o ato em presença. 5 Aula do Percurso Escola da APPoA em 04/10/1995. Transcrição não revisada pelo autor. 2