o serviço social e as relações étnico-raciais e de gênero na

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O SERVIÇO SOCIAL E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E DE GÊNERO
NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
Gracyelle Costa1
RESUMO
A análise volta-se para a assistência Social, com ênfase nas unidades de CRAS - Centro
de Referência Social e no trabalho social realizado em grupos com as famílias. O objetivo
é problematizar como a lógica racionalizadora institucional pode ser fator de ampliação
ou limitação da percepção do(a) assistente social quanto as peculiaridades do público
atendido nesta política, que tem como maioria mulheres negras. Na atuação profissional
que transita entre os perigosos meandros da invisibilidade e a produção de percepções
específicas sobre esta população usuária e suas famílias, se situará a necessidade da
abordagem das relações de gênero e étnico-raciais para o alcance do CRAS como um
espaço potencial para a produção de resistências e identidades positivadas.
Palavras-chave: assistência social; gênero; raça; desigualdades; política social.
INTRODUÇÃO
O ideário neoliberal gestado no seio do capitalismo monopolista imputou aos
serviços da esfera econômica uma nova modalidade de gestão e funcionalidade. O âmbito
estatal e os serviços sociais não se furtaram deste processo que incidiu diretamente nas
políticas públicas que passaram a ser desenvolvidas sob uma lógica gerencial e esta
realidade atingiu os processos de trabalho do assistente social. O Sistema Único de
Assistência Social e os Centros de Referência de Assistência Social, um de seus serviços
que opera na proteção Social Básica numa perspectiva preventiva de ocorrências de risco
e vulnerabilidade às famílias, não está alheio a estes rebatimentos. Este contexto nos
provoca à reflexão sobre o quanto a racionalização dos serviços atinge a maneira sobre a
qual o assistente social enxergará seu usuário, se numa perspectiva totalizadora ou
meramente massificada postas as exigências do referido serviço, nesta perspectiva a
ênfase da análise traz as relações étnico-raciais e de gênero no centro do debate para
compreender a relevância que estas têm tido no desenvolvimento das atividades em grupo
Gracyelle Costa Ferreira é assistente Social com experiência no SUAS, cursa Mestrado em “Trabalho e
Políticas Sociais” pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (PPGSS/UERJ), pós-graduanda Lato Sensu em “Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça”
pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Endereço eletrônico: [email protected]
1
com as famílias através de alguns documentos institucionais e especialmente a análise
quanto às potencialidades do debate, se qualificado, considerando aqui o(a) assistente
social como um dos profissionais impulsionadores desta discussão.
A racionalização das políticas sociais: os rebatimentos sobre os processos de
trabalho do Serviço Social na Assistência Social
O Brasil vivenciou a adoção do neoliberalismo no bojo da economia e do Estado
de modo peculiar. Se no fim da década de 80 temos a aprovação da Constituição Federal
(1988), que por sua vez, prezava por forte apelo à responsabilização do Estado frente à
oferta de políticas sociais, já na década seguinte os resultados dos ventos neoliberais
fazem-se sentir na nossa economia dependente e o que vivenciamos é o desmoronamento
da máquina estatal no trato das políticas sociais, com forte apelo ao mercado e à
“sociedade civil”. Destarte, a lógica racionalizadora do gerenciamento que anteriormente
se limitava à indústria fabril (IAMAMOTO, 2007), passa paulatinamente a invadir a
órbita do Estado e das políticas sociais, aliados aos princípios de gasto mínimo, eficiência
e eficácia, incidindo de forma abissal sobre os processos de trabalho do assistente social.
Ora, os serviços com os quais o assistente social opera passam a estar
subordinados a uma lógica análoga à que envolve o processo de produção de mercadorias.
Tal determinação provoca no trabalho alinhado à esfera da prestação de serviços,
rebatimentos profundos e tais alterações e recaem de forma direta sobre os demais campos
da sociedade, seja o político, econômico, cultural etc. e que passam a determinar
alterações não apenas no setor de serviços, mas no processo de trabalho do Serviço Social
(ALMEIDA, 1996).
Com isso objetiva-se elucidar que as alterações que se gestam no interior do
processo produtivo não isentam de mudanças a esfera do Estado, as políticas sociais e
seus serviços sociais, e tampouco e por consequência não deixa imune o processo de
trabalho do assistente social. Ora, Serviço Social, profissão inserida na divisão social e
técnica do trabalho, não é endógena, não se autodetermina (GRANEMANN, 1999) e,
portanto, não está alheio às mudanças operadas na dinâmica da sociedade em que se situa.
Aqui nos restringiremos a pensar tais inflexões na política de assistência social, no âmbito
do CRAS – Centro de Referência de Assistência Social.
A lógica do capitalismo monopolista, revigorado pelo neoliberalismo, cada vez
mais traze rebatimentos às políticas sociais, ainda mais restritas e focalizadas, dispostas
a filtrar os mais necessitados dentre os necessitados abatidas ainda pela privatização e
terceirização dos serviços. Outros impactos como a intervenção técnico burocrática,
racional e sob o controle gerencial também atingem esta política social e provocam
alterações significativas nos processos de trabalho do conjunto dos profissionais que nela
opera, dentre eles o assistente social.
Atualmente, a Política Nacional de Assistência Social se organiza sob a forma
de Sistema Único de Assistência Social - SUAS, que por sua vez é regulado por Normas
Operacionais Básicas (do SUAS e de Recursos Humanos) e realizada através de serviços
sociais ofertados por equipamentos públicos, que abrangem o território nacional
respeitando seu caráter descentralizado e territorializado, para o atendimento aos que
desta política necessitam. A organização deste Sistema ocasionou importantes mudanças
na política de assistência social.
O trabalho do assistente social na política de assistência social hoje não
tem como ser pensado sem a referência da Política Nacional de
Assistência Social e do Sistema Único de Assistência Social, visto que
condensam, no plano geral conquistas históricas em torno do
reconhecimento da assistência social como política pública e encerram
novas racionalidades que passam a presidir os modos como os serviços
assistenciais são prestados. Destacamos dentre eles: a organização da
política em programas, projetos, benefícios, serviços e atividades; a
hierarquização dos serviços por grau de complexidade em Proteção
Social Básica, com a estruturação dos Centros de Referência da
Assistência Social (CRAS) e Proteção Social Especial e os centros de
Referência Especializados da Assistência Social (CREAS –
responsáveis pelos serviços de média e alta complexidade); a
matricialidade
sociofamiliar;
a
descentralização
políticoadministrativa; a primazia da responsabilidade do Estado na condução
da política e a territorialização. É a partir destas racionalidades que os
processos de trabalho na área de assistência passam a ser desenvolvidos
(ALMEIDA; ALENCAR, 2011, p. 156).
Atualmente
o
CRAS
configura-se
enquanto
expressão
máxima
da
descentralização e aproximação da assistência social aos territórios socialmente
vulneráveis e busca atuar na direção ao combate à extrema pobreza e na aquisição de
direitos sociais. Este serviço é também caracterizado como a porta de entrada do SUAS
e conforme o Censo CRAS 2014 (BRASIL, 2015a), nos municípios brasileiros estão
implantadas 8.088 unidades de CRAS. Definido como unidade pública estatal, constituída
no âmbito do SUAS e com interface com as demais políticas públicas, tais centros
“articulam, coordenam e ofertam os serviços, programas, projetos e benefícios da
assistência social”, segundo indica a própria LOAS, recentemente atualizada.
É imperioso destacar que, posta a formatação de um Sistema Único de
Assistência Social, a partir de 2005, a padronização racional de formas de atendimento à
população usuária dos serviços da assistência social, como o CRAS, tornou-se um dos
eixos desta política. Assim posto, a instância a nível federal responsável pela política de
assistência social, o MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
passou produzir prontuários, manuais, orientações técnicas, sistemas de monitoramento,
dentre outros para balizar o atendimento realizado pelos profissionais, dentre eles o
assistente social ao público atendido. Para além disso, rotinas institucionais, horários de
funcionamento dos serviços são fatores pelas quais os usuários passaram a ter que se
adaptar, numa espécie de “disciplinamento e enquadramento dos usuários”, utilizando os
termos de Costa (2000), que situa como este processo ocorre no Sistema Único de Saúde.
Outra característica importante (e que envolve a atuação no Estado) é a de que o
assistente social ao ser requisitado atualmente na política de assistência social, além do
conhecimento teórico metodológico que sua formação generalista o oportuniza tornandoo apto a exercer a profissão, necessita também dedicar-se ao estudo e apreensão dos
marcos regulatórios que estruturam esta política. É interessante observar que Almeida &
Alencar (2011, p. 157), a estruturação através da Política Nacional e do SUAS “impactam
de maneira inédita na organização dos processos de trabalho seja nas unidades públicas
como privadas, visto que apontam para racionalidades que não faziam parte do universo
institucional desta política setorial”. Tais marcos, aliados a outros que variam desde a
legislação, portarias, resoluções, instruções técnicas, normas operacionais, desenhos
institucionais dos programas e serviços etc. que se reatualizam com certa frequência dada
a necessária integração dos serviços dentro do próprio SUAS, a exemplo do CRAS.
Essas produções institucionais despertam interesse de estudo na medida em que
ergue o questionamento quanto à possibilidade destes materiais estarem limitando (ou
não) a visão dos profissionais que atuam no CRAS, em especial o assistente social, quanto
a abordagem de determinados debates em atividades realizadas em grupo, como o trato
das relações de gênero e étnico-raciais. Indicadores e pesquisas indicam que o público
majoritário atendido pela assistência social é constituído por mulheres negras,
expressando como a desigualdade social incide sobre este segmento com maior
intensidade. É na esteira deste movimento que opera a confluência entre gênero, raça e
classe - pensados aqui de forma dinâmica, complexa e entrelaçada que emerge o
questionamento sobre o Serviço Social, no seio da assistência social, pode estar sendo
conduzido a manter a invisibilização de identidades destes(as) usuários(as) negros(as) e
suas famílias ou o que é tão grave quanto, a contribuir com o reforço a comportamentos
socialmente esperados a este segmento.
As relações étnico-raciais e de gênero no CRAS e o Serviço Social
A forma como relações de étnico-raciais e de gênero se desenvolveram no Brasil,
incidiu de modo latente na realidade da população negra e das mulheres, com a forte
presença do racismo e do sexismo. Ainda que a resistência e a rebeldia destes segmentos
tenham demonstrado sua não-conformação com a ocupação “papéis” socialmente
esperados, marcas deste processo são visíveis ainda hoje. No acesso a moradias precárias,
menores salários, situações de desemprego, para citar alguns indicadores, são as mulheres
negras figuram como protagonistas (IPEA, 2011). Por outro lado, nos altos índices de
homicídios de jovens no Brasil, são os negros os que mais morrem, fenômeno tratado por
autoras como Almeida (2014) como o “genocídio da juventude negra”. Pesquisas atuais
do MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, órgão responsável
pela organização desta política em âmbito nacional, informam que 73,88% dos titulares
do Programa Bolsa Família2 entre homens e mulheres são negros (DATA SOCIAL, 2015).
Sobre o total geral de beneficiários titulares do Programa, 93% dos beneficiários titulares
são mulheres e 68% negras, o que denota quem são os que da política de assistência social
necessitam.
São estes beneficiários que detém prioridade no acesso aos equipamentos
públicos da assistência, dentre eles o CRAS. O trabalho social desenvolvido no CRAS
tem no PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias, seu principal eixo.
O PAIF contempla ações que variam desde a acolhida dos usuários, estudos sociais,
orientações, encaminhamentos, visitas domiciliares (dentre outros), até a realização do
acompanhamento familiar individual ou em grupos, através de oficinas formadas pelos
responsáveis pela família (BRASIL, 2012). O Censo CRAS (BRASIL, 2015a), ao
O Programa Bolsa, criado pela Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, “é um programa de transferência
direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o país. O
Bolsa Família integra o Plano Brasil Sem Miséria, que tem como foco de atuação os milhões de brasileiros
com renda familiar per capita inferior a R$ 77 mensais e está baseado na garantia de renda, inclusão
produtiva e no acesso aos serviços públicos” (BRASIL, 2015b).
2
expressar a quantidade de grupos do PAIF - realizados em sua maioria com os
responsáveis familiares - nas unidades de CRAS em âmbito nacional em agosto de 2014,
indicou que 26.648 grupos foram ofertados neste período. Destes, a quantidade de
famílias regularmente participantes dos grupos no mês de agosto/2014 totalizaram
561.852. Esta mesma pesquisa apontou que destas famílias, 429.007 fora o total de
mulheres participando das atividades do PAIF.
De forma complementar ao PAIF, o CRAS também oferta o SCFV – Serviço de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos, que contempla atividades socioeducativas
que se realizam através de grupos organizados de acordo com o ciclo de vida de seus
participantes, entre crianças, adolescentes, jovens e idosos principalmente (BRASIL,
2009). O PAIF e o SCFV buscam, resguardadas suas metodologias próprias de
organização, contribuir para a materialização da matricialidade sociofamiliar do SUAS já
expressa em 2004 na Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2009).
O trabalho social do PAIF e também do SCFV, têm na atuação dos profissionais
como principal esteio de sustentação como meio de desenvolvimento. As oficinas em
grupo do PAIF, de acordo com a metodologia do serviço, devem ser conduzidas por
técnicos de nível superior, tendo na prática a presença mais significativa de assistentes
sociais e psicólogos; e, as atividades do SCFV são direcionadas por educadores sociais
(trabalhadores com no mínimo nível educacional médio) orientados no planejamento por
técnicos de nível superior da equipe do CRAS3. Entretanto, é necessário lembrar que além
de documentos que constam as orientações gerais para o desenvolvimento do trabalho do
CRAS, todas estas atividades têm organizadas pelo MDS instruções que sugerem os
temas a serem trabalhados com os grupos. Mas como as relações de gênero e étnicoraciais ali comparecem?
Carloto e Mariano (2010, p. 459), explicam que embora o documento de
Orientações Técnicas do CRAS “empregue a categoria ‘gênero’ em alguns momentos, a
rigor ele opera com uma cegueira de gênero quando trata dos procedimentos de
atendimento”. Afluindo nesta direção, podemos pressupor que esta cegueira opera de
modo tácito sobre a população negra atendida pelo serviço, reiterando o que chamaremos
de conduta monocromática que sob o manto da pobreza define a invisibilização da
identidade étnico-racial dos indivíduos diante dos profissionais. É como se negritude e
3
A equipe de referência do CRAS e que desenvolve o trabalho social com as famílias através do PAIF é
regulamentada pela Norma operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS, a NOB-RH/SUAS e
Resolução CNAS nº17/2011 e contempla as categorias profissionais de nível superior que podem atuar no
SUAS, dentre elas o Serviço Social. A equipe do SCFV é integrada pelo técnico de referência de nível
superior do CRAS e pelo educador social de acordo com as resoluções do CNAS n° 09/2014 e n° 17/2014.
pobreza fossem notas uníssonas e este fenômeno que de caráter social, se tornasse natural,
ou pior, naturalizado, dispensando sua problematização ou questionamentos.
Sobre o PAIF e o SCFV nos limitaremos a situar dois exemplos ilustrando como
tanto gênero quanto a dimensão étnico-racial são tratadas, vale ainda lembrar que de
forma entrelaçada raramente comparecem nas normativas do CRAS.
O documento “Orientações técnicas sobre o PAIF: O Serviço de Proteção e
Atendimento Integral à Família – PAIF, segundo a Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais” destaca que “o trabalho social com famílias deve incorporar, no
âmbito das ações culturais, diferentes práticas e linguagens culturais, valorizando a
produção comunitária e a participação popular” e no trato das “práticas culturais
vinculadas a etnias específicas, o PAIF deve ser um vetor de concretização dos direitos
sociais e superação da invisibilidade”, tudo isso “por meio da proteção dos direitos e
memórias culturais, práticas comunitárias e identidade racial e étnica dos povos e
comunidades atendidas” (BRASIL, 2012, p. 15). Aqui, embora se perceba de modo nítido
a conotação voltada para as questões culturais étnicas, logo em seguida o documento
indica que “é importante destacar que as ações do PAIF não devem se resumir a atrações
culturais” (BRASIL, 2012, p. 15). Contudo, além de não haver qualquer destaque à
população negra, também não há apontamentos sobre como as ações do PAIF poderão
ocorrer para além das ditas “atrações culturais” no trato da identidade étnico-racial.
No que tange os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV,
cada ciclo etário possui orientações específicas para o desenvolvimento das atividades
junto a tais grupos, aqui nos deteremos às Orientações para o desenvolvimento do SCFV
para Crianças de 0 (zero) a 06 (seis) anos. Neste documento, não há nenhuma referência
sobre a construção da identidade racial ou de gênero das crianças, a única relação em que
se trabalha a questão de gênero nos é apresentada da seguinte maneira:
A interação com adultos e outras crianças e o brincar contribuirão para o
processo de socialização, ajudando-as a perceber os papéis familiares e sociais
e as diferenças de gênero, a compreender e aceitar regras, a controlar sua
agressividade, a discernir entre fantasia e realidade, a cooperar, a competir e a
compartilhar, dentre outras habilidades importantes para o convívio social
(SEDH / PR, 2006 apud BRASIL, 2011, p. 16).
É crucial analisar esta máxima de modo crítico, posto que ao demonstrar que há
“papeis” específicos, poderia possibilitar o reforço negativo sobre o “lugar” da mulher na
família e na sociedade. Este papel socialmente esperado de “mulher-mãe” e que ronda o
CRAS fora denunciada por Carloto & Mariano (2010) e Mioto (2004) . Isto posto, além
do CRAS em certa medida invisibilizar as questões relativas às relações desiguais de
gênero a qual é submetida grande parte das mulheres atendidas por este serviço, teríamos
a produção de uma certa percepção sobre a realidade, promovendo-se a retomada da
tradição do cuidado como pertencente ao sujeito feminino. Na convergência desta
invisibilidade para com o trato das relações de gênero no desenvolvimento do trabalho
com o segmento atendido pelos serviços, aqui acrescentamos a possibilidade do
apagamento da realidade vivenciada pelo povo negro. Ora, nos documentos orientadores
dos serviços PAIF e do SCFV, gênero e raça são na maioria das vezes “conceitos”
elencados de forma pontual, ainda que - voltamos a dizer, - os usuários atendidos sejam
majoritariamente negros e mulheres, mais especificamente mulheres negras.
Numa realidade que opera nas relações sociais a confluência entre gênero, raça
e classe - pensados aqui de forma dinâmica e complexa – é que se questiona os limites e
possibilidades do Serviço Social no trato deste do debate étnico-racial e de gênero diante
da formatação institucional da assistência social e do CRAS. O peso da burocracia e da
racionalização nesta política, estaria contribuindo para o Serviço Social operar com certa
cegueira quanto às dimensões étnico-raciais e de gênero que atravessam as vidas
destes(as) usuários(as)? Assim estes(as) usuários(as) estariam sendo meramente
massificados à categoria daqueles que vivem em situação extrema pobreza? Ou o
conservadorismo que tanto o Serviço Social quanto a Assistência Social trazem em suas
origens ainda permanecem vivos ainda que sob a forma de ranços4?
Suscitamos estas problemáticas na medida em que, além da possível
invisibilidade que assume as questões ético-raciais da população negra no bojo da
produção institucional desta política, ainda existe a presença de um certo teor normativo
quanto à demarcação de formas “ideais” de cuidado tendem a conduzir ao reforço de
disparidades de gênero nas famílias (TEIXEIRA, 2010). Se o assistente social, passa a
seguir de maneira acrítica e automatizada tais recomendações, desconsiderando a
realidade e especificidade do público atendido teríamos uma atuação profissional rumo à
supressão de identidades que o plasmam. Ora, estaria então contribuindo na produção e
disseminação de “verdades” unilaterais sobre o corpo, gênero, raça, sexualidade etc.
contribuindo com a conformação de “lugares” sociais, direitos e expectativas, tudo isso
4
Em 1986 Elisabete Pinto em seu Trabalho de Conclusão de Curso, mais tarde publicado sob a forma de
livro com o nome “O Serviço Social e a questão étnico-racial” (2003), por meio de entrevistas com
assistentes sociais atuantes na política de assistência social tanto atestou a ausência da discussão étnicoracial no Serviço Social e na assistência quanto denunciou a presença de juízos de valores dos profissionais
sobre a população negra atendida, sendo a precursora deste debate nesta área.
em detrimento do reconhecimento das múltiplas e diversas experiências dos usuários, que
desta política necessitam.
Ao se furtar de uma visão crítica e integral sobre os(as) usuários(as) e famílias
atendidos e estas dimensões que entrelaçam suas relações sociais, o assistente social como
integrante da equipe de referência do CRAS, no processo de condução dos atendimentos
ou no planejamento e realização dos trabalhos em grupo poderia estar contribuindo com
a invisibilidade das especificidades que envolvem o público usuário do serviço, além da
supressão das diversas identidades que os plasmam.
Aqui realizamos o chamamento ao assistente social para o apuramento de suas
lentes para melhor enxergar os meandros do gênero, da raça que permeiam os(as)
usuários(as) e suas as famílias. Diferentemente do passado na qual o Serviço Social
considera-se neutro, hoje a categoria profissional reconhece em âmbito legal que cabe
com mais afinco o "empenho na eliminação de todas as formas de preconceito,
incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados
e à discussão das diferenças", conforme expresso no Código de Ética profissional (1993),
embora, é claro, pensar para além desta dimensão constitui desafio e responsabilidade de
todos(as).
Identificamos no trabalho social realizado em grupos no CRAS, através do PAIF
e do SCFV um escopo privilegiado na política de assistência para a sensibilização quanto
às disparidades de gênero, raça e classe que afetam estas famílias em sociedade. Mas o
CRAS deve ser tomado acima de tudo, neste aspecto, como local para promover a
desconstrução de imaginários sociais historicamente edificados, - como o estereótipo de
mulheres como cuidadoras natas, mulheres negras como objetos sexuais, submissas, aptas
a trabalhos menos remunerados e de menores prestígios ou dos homens negros como
potencial agressor e/ou violador de mulheres e predisposto ao crime – e não como espaço
para reforçá-los. O CRAS ao trabalhar com a família e com a comunidade territorial tem
o poder de espaço provocador e de (re)construtor de identidades positivadas e o assistente
social pode ser o profissional a impulsionar este seu caráter.
Se por um lado o assistente social ao se inserir no CRAS já encontra uma
estrutura de trabalho, com rotinas de trabalho intensificadas e instruções orientadoras para
o trabalho em grupos que - como brevemente situamos aqui - apontam para uma certa
limitação no âmbito do debate étnico-racial e de gênero não devemos nos esquecer de que
o assistente social é detentor do que Iamamoto (2014; 2008; 2012) denomina como
“relativa autonomia” na condução de seu trabalho. Se temos que o assistente social oferta
um serviço – e sabemos que o serviço é aquele em que a produção e o consumo se
realizam simultaneamente – a relação direta que o profissional estabelece com o usuário
atendido se configura enquanto ponto crucial para a busca da superação das amarras
institucionais que aqui situamos.
A importância identificada ao se alinhavar este debate no bojo das atividades
com crianças, adolescentes, jovens, homens, mulheres e idosos dos grupos famílias é
situar como relações de gênero e raça não se limitam a ser tratados de forma específica
apenas em datas comemorativas, mas que trata-se de algo que compõe a rotina deste
público atendido e que não se restringe a ser um assunto a ser tratado apenas entre
mulheres, entre negros ou entre mulheres negras, este é um assunto de interesse de todos
e todas na medida em que apenas no plano analítico podemos separar as múltiplas
dimensões das relações sociais – seja em gênero, sexualidade, étnico-racial, geração – no
plano real estas se desenrolam intrinsecamente (KERGOAT, 2010), nos relacionamos
mutuamente com diversos segmentos.
Ao lidar diretamente com esta população usuária dos serviços o assistente social
ganha a possibilidade de estimular a proposição de estratégias de resistência, agência e
ações coletivas visando a aproximação aos movimentos sociais na busca pela resistência,
entendendo resistência nos termos de Almeida (2011, p. 64), como “todo ato de
negociação, enfrentamento ou ruptura com a ordem social vigente”. Daí a necessidade do
Serviço Social desde o processo de formação de novos profissionais reivindicar a
centralidade da abordagem das relações étnico-raciais e de gênero. Estar a par e
consciente quanto a este debate possibilita o fortalecimento em torno de uma luta coletiva,
que deve ser assumida por todos e todas na perspectiva da construção de um projeto
societário mais justo, reconhecendo nas diferenças de identidade de gênero, sexualidade,
pertencimento étnico-racial, dentre outros, possibilidades contributivas para a
transformação e não como fonte de dominação.
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