Niklas Luhmann ‘fora do lugar’? Desafios atuais da teoria dos sistemas vistos pelo debate brasileiro. Pedro Henrique RIBEIRO1 Resumo (900 toques) O artigo discute as críticas que autores brasileiros dirigiram à teoria dos sistemas de Niklas Luhmann no tocante à questão da “diferenciação funcional”. Este debate é inovador, pois transcende os usuais debates axiológicos que permeiam esta teoria e aborda questões problemáticas do “labirinto” luhmanniano. O debate centra-se nas limitações da diferenciação funcional em determinados contextos da sociedade mundial, cujo reconhecimento incentivou novas explicações: “modernidade periférica” (Marcelo Neves), “integração por sistemas de contato” (Luhmann), ou “retorno imprevisto da dialética na teoria” (Bachur). Discute-se, por fim, o conceito de modernidade periférica como típico-ideal à luz da questão “inclusão/exclusão”, enfrentando as críticas que ele recebeu (Villas-Bôas Filho). Propõe-se uma releitura do conceito de “periferia” e apontam-se questões em aberto para a teoria dos sistemas. Palavras-chave: teoria dos sistemas, Niklas Luhmann, Marcelo Neves, Pensamento social brasileiro. 1 Bacharel em Ciências Sociais pela USP (2009) e em Direito pela PUCSP (2009). Mestrando em Direito do Estado na USP sob orientação do Prof. Marcelo Neves. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. [email protected] / http://lattes.cnpq.br/3107415230667320 1 Resumo expandido. (9.000 toques) A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann é uma teoria sociológica de grande alcance que trabalha com questões abstratas do pensamento social para desenvolver uma “super teoria” da sociedade moderna. Talvez por seu elevado nível de abstração – e pela não compreensão de suas diferenças com o estrutural-funcionalismo parsoniano – os debates em torno desta teoria circunscrevem-se a apontar sua resignação em apresentar um contraponto crítico da sociedade (Habermas), ou afirmar que esta é uma teoria conservadora, pois acabaria com “o homem” (Izusquieda). Poucos estudos, contudo, percorrem o “labirinto” da teoria a fundo a ponto de mobilizá-lo para o debate teórico sociológico propriamente dito – sem perder-se nele. Usualmente, ou a teoria dos sistemas é adotada cegamente como “catálogo de conceitos”, ou é ela rejeitada por completo como um “bastião do conservadorismo”. Essa formulação do debate parece pouco frutífera para uma teoria sociologicamente tão relevante. Não obstante Luhmann sustentar que não faz uma “teoria de médio alcance” (Middlerange theory, no sentido de Robert Merton), foram críticas de cunho empírico feitas por pesquisadores brasileiros que incentivaram o debate sobre limites da teoria da diferenciação funcional como característica principal da sociedade mundial (Weltgesellschaft) moderna. A acusação de “provincianismo empírico” da teoria luhmanniana (Neves, em 1992) teve efeitos relevantes no desenvolvimento de pesquisas ulteriores do próprio Luhmann. A teoria dos sistemas de Luhmann parte de pressupostos epistemológicos da teoria geral dos sistemas para criar uma descrição da sociedade moderna como um sistema social autopoiético cujo elemento é a comunicação. A sociedade é o sistema social mais abrangente e conta com diversos sistemas sociais “parciais” também autopoiéticos como religião, ciência, arte, direito, política, economia, etc. Cada sistema é compreendido não como um “objeto”, mas como uma “forma de dois lados”, ou seja, uma distinção: sistema/ambiente (System/Umwelt). É trabalhada uma “teoria da evolução” da sociedade, demonstrando como processos de “variação, seleção e (re)estabilização” ocorrem em processos de diferenciação da sociedade. Sem adentrarmos questões específicas da teoria, temos que Luhmann aponta como característica distintiva da sociedade moderna a diferenciação funcional. Com o advento da modernidade a sociedade torna-se supercomplexa e descentralizada (heterárquica e multicêntrica, ou seja, sem nenhum “sistema central”). Isso gera uma “pressão seletiva” (Selektionszwang) impulsionando a diferenciação por funções que geram sistemas funcionalmente diferenciados – os sistemas parciais. Portanto, para Luhmann, a sociedade 2 moderna torna-se “inacessível” do ponto de vista de sua totalidade: “uma sociedade organizada em subsistemas não dispõe de nenhum órgão central. É uma sociedade sem vértice”, o que implica reconhecer que a “inclusão” na sociedade é regulada por diferentes sistemas sociais (parciais). Luhmann afirma que a característica marcante da sociedade moderna é sua diferenciação por sistemas sociais funcionais autopoiéticos, ou seja, caracterizados pelo fechamento operacional. Isso implica determinada autonomia operativa sistêmica frente a outros sistemas sociais. Não mais a sociedade moderna caracteriza-se por uma “cosmovisão” e por diferenciações hierárquicas ou de estamentos sociais. Não são mais estes princípios hierárquicos ou territoriais que dirigem os mecanismos de seleção (“pressão seletiva”) da sociedade. Para Luhmann, a sociedade moderna funcionalmente diferenciada não pode regular a inclusão de forma uniforme: a inclusão é regulada internamente pelos diversos sistemas sociais separadamente, havendo a diferenciação destes sistemas parciais. Enfim, cada sistema parcial consegue operar de acordo com seus próprios elementos e próprios códigos: a ciência opera com base no código “verdade/falsidade”, direito no “lícito/ilícito”, a política no “poder/não-poder” ou “governo/oposição”, a economia no “ter/não-ter”, etc. A tentativa de se aplicar a teoria luhmanniana em contextos regionais como o da “América Latina”, reconhecendo que a diferenciação funcional não ocorre de forma tão homogênea na sociedade mundial, gerou debates interessantes na sociologia (jurídica) brasileira. A principal crítica dirigida a Luhmann é de autoria de Marcelo Neves e sustenta que a sua teoria incorreria em um “provincianismo empírico”. Neves parte do pressuposto de que a “sociedade mundial moderna trouxe consigo uma bifurcação do desenvolvimento entre as regiões do globo terrestre: a sociedade global é socialmente divida em um centro e uma periferia”. Esta divisão é, pois, estreitamente vinculada a uma “profunda desigualdade econômica no desenvolvimento inter-regional, trazendo conseqüências significativas na reprodução de todos os sistemas sociais, principalmente no político e no jurídico”. Marcelo Neves concebe esta diferença centro/periferia da modernidade como um tipo ideal weberiano, ou seja, uma “utopia”. Nas palavras de Max Weber, no “que se refere à investigação, o conceito do tipo ideal propõe-se a formar o juízo da atribuição. Não é uma “hipótese, mas pretende conferir a ela meios expressivos unívocos”. Com esta distinção típico-ideal, Neves pôde apresentar diversas hipóteses acerca de questões específicas deste contexto regional; dentre elas os diagnósticos da falta de autonomia do direito brasileiro por generalização de “corrupção sistêmica” além de uma teorização 3 específica sobre a cidadania. Em linhas gerais, utilizando a tese luhmanniana antiga da inclusão como acesso e dependência a sistemas sociais [este argumento de Neves foi desenvolvido em 1992]. Marcelo Neves descreve que a falta de autonomia do direito na modernidade brasileira generalizou relações de subintegração (muita dependência e pouco acesso) e sobreintegração (pouca dependência e muito acesso); o que gerou efeitos destrutivos para a cidadania entendida como inclusão jurídica com tratamento igualitário. Por sua vez, Orlando Villas-Bôas Filho apresentou diversas críticas a este conceito, duas de maior relevância: (i) a distinção centro/periferia na modernidade seria “pré-moderna” e levaria a uma questão teleológica de “valorização do centro”, encarando-se a periferia como “contrapartida negativa de processos bem-sucedidos noutras regiões”, (ii) Além disso, sustenta o autor que seria mais frutífera uma “redução da escala de análise” (“micro história”) para se conhecer as peculiaridades do sistema jurídico brasileiro no plano de suas organizações, o que seria “complementado por pesquisa empírica” auxiliando em uma “compreensão adequada” das peculiaridades do sistema jurídico brasileiro. O próprio Luhmann revê sua teoria da diferenciação funcional para abordar “situações típicas de países localizados na modernidade periférica”, em que grande parte das pessoas fica privada das prestações dos sistemas funcionais. Luhmann faz uma descrição positiva destes contextos afirmando a existência de redes de integração social no plano da interação (sistemas de contato) como “cadeias de amizade”, relações patrão/cliente em forma de redes “parasitárias” frente a sistemas funcionais. Luhmann não explica esta questão como “corrupção”, mas antes como um alto grau de integração social diversa (no plano das interações). O reconhecimento desta questão para Luhmann foi tão importante que o autor admite que na modernidade periférica a diferença inclusão/exclusão pode chegar a ser um “metacódigo”), a ponto de fazer com que a exclusão seja de tal natureza que as “pessoas” passem a contar apenas como “corpos”. Além disso, João Paulo Bachur argumenta a partir de diálogos com a teoria crítica para sustentar que a questão específica do reconhecimento dos limites da diferenciação funcional – que atribui relevância maior para a diferença “inclusão/exclusão” demonstraria um momento de crise da teoria dos sistemas, em que Luhmann apresentaria um momento de contradição argumentativa, uma vez que demonstraria que a diferenciação funcional geraria sua própria negação, ou seja, a diferenciação funcional geraria contextos de desdiferenciação funcional – e de exclusão social; incorrendo, pois, em um momento dialético: algo que sua teoria manifestamente visa afastar. 4 Este trabalho pretende, após trabalhar mais vagarosamente o intrincado debate acima, propor uma abordagem que trabalhe uma noção de “modernidade periférica” desvinculada a contextos político-jurídicos, adotando a noção de “contextos de periferia”. Neles, não é apenas a questão da corrupção sistêmica que atua na indiferenciação sistêmica, mas antes uma questão de superintegração por sistemas de contato (como afirmou posteirormente Luhmann). Apresentam-se argumentos contrários às críticas de Orlando Villas-Bôas Filho e João Paulo Bachur, no sentido de desenhar um programa de estudos a partir da teoria dos sistemas de Luhmann que abordem a questão da exclusão social a partir da noção de “periferia”. 5