Núcleo de Estudos em Concorrência e Sociedade (NECSO) Coordenadores: Prof. Celso Campilongo Guilherme Missali e Luiz Felipe Ramos Módulo II: Governo e Empresariado: o contexto brasileiro 4º Encontro (30/09): Competição e Hierarquia – uma questão cultural? Exposição: Amanda Langanke e Ana Cavalli Textos: DAMATTA, Roberto, O que faz o brasil, Brasil? (1986), Rio de Janeiro, Rocco, 65-78. SOUZA, Jessé, Niklas Luhmann, Marcelo Neves e o ‘culturalismo cibernético’ da moderna teoria dos sistemas in Roberto Dutra, João Paulo Bachur (org.) Dossiê Niklas Luhmann (2013), Belo Horizonte, Editora UFMG. Texto 1: O que faz o Brasil, Brasil? 1. O autor inicia defendendo a ideia que as sociedades funcionam em uma alternância entre o cotidiano e ocasiões extraordinárias. 1.1 Essa alternância pode ser feita tanto de forma individual quanto coletiva. 1.2 As ocasiões extraordinárias são os componentes da memória, tanto individual quanto coletiva. 1.2.1. Homem enquanto único animal que se constitui pela lembrança e pelo esquecimento. 1.3 Há uma tendência de as sociedades fazerem coisas parecidas, estabelecendo os mesmos eventos extraordinários e a mesma rotina e, dessa forma, uma mesma memória, a chamada memória social. 1.3.1 A memória social é a tradição, a cultura de uma sociedade. Ela é marcada pela habitualidade e por momentos de crise, acidente, festas, milagres, os quais são responsáveis pela alternância. 1.3.2 No Brasil, as situações rotineiras são ligadas ao trabalho e a tudo aquilo que se é obrigado a realizar. Enquanto que a alternância se dá pelas festas, feriados e ausência de trabalho para o outro. 1.3.2.1.1 O autor aponta que essa alternância são expressões de uma mesma realidade, como duas faces de uma mesma moeda. 1.3.2.1.2 Festa é sinônimo de alegria; trabalho, sinônimo de castigo. É na festa que se vive o mito da ausência de hierarquia, poder e dinheiro, e todos se harmonizam pelas conversas e por meio da música. 1.3.3 Nas sociedades industriais, o trabalho traz a ideia de formação do homem pelo homem. Há uma forte característica e cultivo de ideais de controle, racionalidade, previsibilidade e produtividade. Interferência mínima de fatores internos e externos, para evitar a ocorrência do extraordinário. 1.3.3.1.1 Apesar das medidas contra o extraordinário, o não-planejado é inevitável, mas nem sempre é negativo. Podem resultar em situações de união e solidariedade entre os indivíduos. Nem sempre o extraordinário é não planejado, também pode ser momentos pensados e esperados pela sociedade, com o objetivo de construir a memória coletiva e a identidade e tradição sociais, como as festas populares. 2. O carnaval na memória social do Brasil 2.1 Todas as sociedades constroem suas próprias festas. No Brasil, a mais popular é o carnaval, que perturba em sua própria definição, por excluir desde logo os elementos que fazem a festa acontecer, tais como ordem, economia e política. 2.1.1 O carnaval é essencialmente alegre, exigindo esse sentimento para que possa acontecer. A liberdade também é definição de carnaval, pois gera uma ausência momentânea de miséria, obrigações e trabalho. É a oportunidade de, em um mundo de escassez, ter a experiência do excesso. 2.1.1.1.1 O carnaval é concebido como uma onda irresistível que nos domina periodicamente. É, portanto, uma inversão planejada e esperada do mundo. Traz consigo a descoberta de que todos são, ou podem ser, iguais, independentemente da estrutura social. 2.1.1.1.2 No carnaval, a ordem é subvertida na troca do uniforme pela fantasia. Enquanto o uniforme ordena, padroniza e hierarquiza, a fantasia descontrói e, além de disfarçar, permite ser tudo o que se deseja, mas que a vida não permitiu, possibilitando passar de ninguém a alguém. É a possibilidade de, em um mundo de regras e dominação, experimentar a sensação de liberdade. 2.1.1.1.3 O que se tem é um cenário social de inversão de regras, roupas e discursos, e abertura de espaço para expressão de desejos, humanidade e sinceridade. Nesse processo de libertação, a individualidade é a moeda corrente, pois todos podem ser indivíduos singulares, sem hierarquia e repressão do cotidiano. 3. A realização da competição no carnaval 3.1 O carnaval possibilita a liberdade de fazer críticas sociais, que são reprimidas na habitualidade, e valoriza a competição dos mais diversos tipos (músicas, escolas, fantasias). 3.1.1 A competição é algo extraordinário na rotina do Brasil, uma sociedade marcada por ordens tradicionais, em que as relações de parentesco, a cor e os títulos são tão determinantes que não possibilitam uma real mobilidade. Sendo assim, o concurso público e a competição não são utilizados como algo normal entre nós. 3.1.2 O carnaval é o momento em que se pode mudar de lugar pelo próprio empenho, por isso é inversão, pois possibilita isso em uma sociedade em que mobilidade da posição social é um fenômeno distante. É a possibilidade do fraco inverter a ordem social perante o forte, do feminino predominar sobre o masculino, de inversão em direção à liberdade e à igualdade, ainda que essa alternância sirva, ao fim, para revelar a ordem e a hierarquia. Texto 2: Niklas Luhmann, Marcelo Neves e o “culturalismo cibernético” da moderna teoria sistêmica 1. O autor sustenta a TESE de que os argumentos científicos são uma das mais importantes formas modernas de se justificar e legitimar situações de dominação injusta, repetindo os pressupostos clássicos da teoria da modernização conservadora 1.1. Neste contexto, a ciência social crítica tem como uma de suas tarefas principais explicitar a violência simbólica das teorias justificadoras da realidade distorcida 1.1.1. Teorias de modernização (1950-60): legitimavam um mundo dominado, em vários aspectos, pelos EUA, através da utilização das diferenças existentes entre as diversas sociedades para justificar a relação de forças entre elas 1.1.1.1. Não há esforço no sentindo de tentar entender a origem de tais diferenças, mas sim quanto ao uso das diferentes tradições culturais para dividir as sociedades, separando-as entre desenvolvidas/centrais e subdesenvolvidas/periféricas (culturalismo) 1.1.1.2. Elas são, assim, uma continuação da distinção racista, que, até os anos de 1920, possuía legitimidade e reconhecimento internacional; isto porque o culturalismo, da mesma forma que o racismo, “essencializa”/torna ontológicas as diferenças existentes entre as sociedades 1.1.1.2.1. Faz isso pela absorção acrítica de todo tipo de preconceito e pela idealização do que é tomado como ponto positivo da comparação 1.1.2. As teorias de modernização não morreram: seus pressupostos, relativos a uma distinção cultural, continuam a fundamentar todos os escudos conservadores, sob a forma de um discurso pretensamente científico 1.1.2.1. Mesmo em teorias de alta sofisticação, como a sistêmica de Luhmann, repete-se o modelo das teorias de modernização 1.1.2.1.1. Necessidade de reconstrução dos temas centrais de outra forma, com outros conceitos e pressupostos 1.2. Passos para a demonstração da tese: 1.2.1. Críticas: 1.2.1.1. Ao tratamento dado por Luhmann na questão da exclusão periférica 1.2.1.2. Ao tratamento dado por Marcelo Neves para esclarecer a singularidade social da América Latina como exemplo concreto de sociedades periféricas 1.2.2. Demonstração da aproximação destas teorias ao culturalismo conservador, cujo pensador mais influente, no Brasil, é Roberto DaMatta. 2. Nikla Luhmann e as novas máscaras do preconceito transformado em ciência 2.1. Apresentação da teoria de Luhmann relativa à “exclusão social” 2.1.1. Cada um dos sistemas funcionais, diferenciados entre si, teria uma regra de inclusão/exclusão específica, com consequências dramáticas para a estabilidade e possibilidade de desenvolvimento de cada sociedade 2.1.1.1. Consequência disto seria que as desigualdades só poderiam ser produzidas dentro dos respectivos sistemas diferenciados, impossibilitando a legitimação de desigualdades permanentes abrangendo todos os sistemas funcionais 2.1.1.2. Como explicar, então, a exclusão quase total, em quase todos os sistemas sociais diferenciados, de parcelas significativas da população (1/3 no caso brasileiro)? 2.1.1.2.1. Noção de “redes de relacionamento”: Luhmann, neste sentido, justifica a desigualdade permanente por resquícios do mundo prémoderno nestas sociedades, como traços de pessoalidade. Isto faz com que estes sistemas sejam híbridos, ou seja, nos quais características pré-modernas tenham que se adaptar a uma realidade moderna organizacional 2.1.1.2.2. Há, com isso, migração das antigas relações diretamente pessoais para o terreno moderno das organizações (no seu acesso, finalidades etc): comando das redes de relacionamento sobre as organizações (simbiose) 2.2. Críticas: 2.2.1. Quanto às premissas teóricas adotadas: apesar de insistir na existência de uma “sociedade mundial”, Luhmann apenas o faz no campo material (como mera troca econômica), não preenchendo a lacuna teórica da percepção da estrutura “simbólica comum” 2.2.1.1. Sua teoria, deste modo, não permite conhecer a estrutura simbólica e imaterial subjacente ao capitalismo, responsável por sua violência simbólica peculiar – isto porque esta estrutura, na verdade, não é neutra, tampouco deve ser vista como única 2.2.1.1.1. Assume-se como verdade a “ideologia meritocrática”, supondo-se uma competição socialmente igualitária sobre a qual as redes de relacionamento operariam a distorção 2.2.2. Quanto às regras de inclusão/exclusão e redes de relacionamento: 2.2.2.1. Aproximação da noção de “redes de relacionamento” às explicações culturalistas tradicionais – expressa características “pré-modernas”, na medida em que define que o que afasta sociedades como o Brasil das mais “modernas” é a presença de redes pessoais que decidem sobre o padrão de exclusão/inclusão 2.2.2.2. Ausência de explicação do porquê, nos países em desenvolvimento, há inegável dinamismo econômico e social e, ao mesmo tempo, padrões de desigualdade permanente 2.3. Conclusão: apesar de usar uma terminologia “cibernética”, a teoria de Luhmann aproximase muito das soluções propostas pelo próprio culturalismo conservador, com idealização das sociedades avançadas 2.3.1. O privilégio é visto como produto das redes de relacionamento, e não como produto normal de um processo que tora invisíveis os pressupostos sociais 2.3.2. Aproximação com o pensamento de DaMatta: 2.3.2.1. Pessoa x não pessoa, com base na participação nas redes de relacionamento pessoais 2.3.2.2. Corrupção generalizada como produto deste sistema, que passa a ser visto como o padrão nestas sociedades, e como exceção nas ditas modernas 2.4. Consequência: 2.4.1. A naturalização dos preconceitos nacionais chega na esfera dos indivíduos destas sociedades, vistos como sujos, corruptos e inconfiáveis 2.5. Reflexão proposta pelo autor: 2.5.1. A questão não é negar a existência de corrupção em países como o Brasil, mas desqualificar a distinção qualitativa entre sociedades, percebidas como tipos diferentes 2.5.1.1. Estas redes de relacionamento estariam ausentes nos países “modernos”? 2.5.1.2. Será que a corrupção não é parte fundamental e indissociável de todo o sistema econômico e político moderno? 3. Marcelo Neves ou o Raimundo Faoro sistêmico 3.1. Apresentação geral do pensamento de Neves: “reinterpretação criativa” de teorias de alto grau de sofisticação do centro (teoria sistêmica) para o esclarecimento de uma sociedade periférica 3.1.1. “Para Neves, a formação dos sistemas autônomos responde ao desafio de transformar a complexidade não estruturada do meio ambiente em complexidade sistêmica estruturada” 3.1.1.1. No Brasil, e na América Latina, a crescente complexidade da sociedade não acarreta a formação de sistemas funcionais autônomos (complexidade não estruturada), donde surgem os problemas ausentes em outras sociedades, como a exclusão social 3.1.1.1.1. Os códigos binários intrassistêmicos e seus critérios funcionais são confundidos e bloqueados reciprocamente 3.1.1.1.2. Isto implica numa corrupção sistêmica permanente, comprometendo o primado da diferenciação funcional. Nos países centrais, a corrupção não chegaria tão fundo, restringindo-se ao nível das organizações 3.1.2. Propõe, assim, uma mudança da teoria sistêmica, já que a corrupção, na América Latina, impede o primado da inclusão como ponto de partida dos sistemas funcionais – é a exclusão que assume o primeiro plano 3.1.2.1. Conclusão de que o primado da diferenciação funcional para a existência de uma sociedade mundial não se realiza a não ser nos países avançados 3.2. Críticas: 3.2.1. Anacronismo de sua interpretação: a reinterpretação de teorias “do centro” não foi acompanhada por um conhecimento crítico e refinado sobre estas mesmas teorias, o que levou a conferir um manto de “modernidade” a proposições velhas e anacrônicas: 3.2.1.1. É a mesma forjada do Sérgio Buarque, que inverteu o mito nacional de Gilberto Freyre, sem criticar seus pressupostos, teoria repetida e aprofundada por Raimundo Faoro e Roberto DaMatta Sérgio Buarque inverte os sinais levantados por Freyre, 3.2.1.1.1. conferindo caráter negativo ao antes visto como ambíguo da sociedade brasileira – seu conteúdo emotivo, personalista. A partir daí, o Estado, lócus destas redes de relacionamento, passa a ser visto como lugar privilegiado da ineficiência e corrupção; o mercado idealizado, por sua vez, passa a ser visto como reino de todas as virtudes Este desnível entre as sociedades garante, além do racismo e 3.2.1.1.2. predomínio de interesses das classes altas nacionalmente, a legitimidade a toda troca desigual no campo internacional 3.2.1.2. Marcelo Neves repete esta mesma tradição conservadora brasileira 3.2.2. Cegueira teórica como fruto da idealização das sociedades avançadas e restrição à análise dos capitais sociais: impede a análise dos fatores que realmente constroem e explicam a hierarquia social dominante em cada sociedade – os capitais impessoais (econômico ou cultual) 3.2.2.1. Os capitais impessoais, desconsiderados por Neves, são a origem dos capitais sociais, que é, assim, sempre derivado e secundário. Não os estudar implica desperceber a gênese sociocultural das diferentes classes sociais (“o estilo de vida”, “a naturalidade do comportamento em reuniões sócias”, etc) 3.2.2.1.1. Na classe média, a transmissão dos capitais impessoais é mesmo invisível 3.2.2.1.2. O particularismo do processo de modernização brasileiro está na existência de uma classe que sequer tem acesso às precondições sociais, morais e culturais que permitam essa apropriação dos capitais impessoais 3.3. Conclusão: como Luhmann, apresentação do culturalismo com roupagem nova e, ainda, desconsideração dos capitais impessoais, culminando na superficialidade da análise. Apesar de postular que as desigualdades graves na esfera econômica condicionam a impossibilidade de diferenciação dos outros subsistemas, não mostra como se dá esta influência e os seus pressupostos 4. Conclusão: Esta concepção sistêmica, apesar de avançada no campo de abstração, compromete a reflexão acerca das realidades sociais que pressupõem uma presença transistêmica, fragmentando a realidade a ponto de torná-la irreconhecível. Ela não consegue explicar o que efetivamente implica essa exclusão total ou quase total de qualquer subsistema moderno, ao não admitir que essa exclusão advém de vários subsistemas ao mesmo tempo. Este é o “racismo inarticulado”, transformado em “ciência”, que povoa como um sentimento difuso toda a sociologia. Existem diferenças fundamentais entre os países “do centro” e os “periféricos” que precisam ser estudadas.