XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 1 A 5 DE SETEMBRO DE 2003, UNICAMP, CAMPINAS, SP SOCIÓLOGOS DO FUTURO Fronteiras seletivas: Niklas Luhmann, onde as ciências se encontram. FABRÍCIO MONTEIRO NEVES 1 Fronteiras seletivas: Niklas Luhmann, onde as ciências se encontram1. A demarcação de territórios de saber acompanhou o processo de fragmentação da filosofia em disciplinas antes tratadas conjuntamente e fazendo parte de uma mesma área do conhecimento. Novos campos daí surgidos reivindicaram a condição de ciência, específica, bem dizendo, diferenciada de outras às quais anteriormente se viam imbricadas. Esta demarcação foi crucial para que disciplinas como a biologia, a química e a física individualizassem interesses e trabalhassem para o seu próprio desenvolvimento, excluindo o papel do enciclopedista (um filósofo sem fronteiras), criando o químico, o físico e o biólogo. A sociologia, e as ciências humanas de forma geral, acompanhou este caminho criando seus limites, seus métodos e definindo seus objetos, ainda que nesta tentativa os limites com a biologia, por exemplo, não tenham ficado claros entre positivistas como Emile Durkheim ou evolucionistas como Herbert Spencer. É o que nos mostra o sociólogo alemão, recentemente falecido, Niklas Luhmann (1927-1998). Para além da biologia, ele tenta abarcar o "todo social" com uma teoria que leva em conta contribuições de pelo menos duas outras contribuições proveniente de outras disciplinas, quais sejam, o segundo princípio da termodinâmica e a cibernética. Faz na tentativa de formular uma nova teoria sistêmica, agora "eliminando" os indivíduos e enfatizando os sistemas sociais nos quais estes interagem. Uma postura anti-iluminista, alvo de críticas por parte de J. Habermas (2000) que, justamente, tocavam o ponto a que este artigo se dedica: o contato da teoria social luhmaniana com a física, a biologia, a matemática e a cibernética. 1 Este artigo é resultado de uma revisão na monografia de conclusão do curso de ciências sociais que havia feito sob orientação da Dra Paula Mousinho Martins na Universidade Estadual do Norte Fluminense. Resolvi retomá-lo devido uma necessidade de reler Luhmann para incluí-lo em minha dissertação de mestrado no PGPS/CCH/UENF. 2 Nesta perspectiva revisitarei a "lógica das formas" do matemático G. Spencer Brown, a teoria autopoiética dos biólogos Chilenos H. Maturana e F. Varela, as "estruturas dissipativas" do físico I. Prigogine e a cibernética da "ordem pelo ruído" de Von Foerster. O argumento central é de que o caminho de Luhmann foi o inverso do de seus colegas sociólogos, os quais se esforçaram para se distanciarem de explicações biológicas, cibernéticas etc..., criando limites epistemológicos, afirmando a sociedade como "lugar" de uma lógica específica. Luhmann explode estes limites, convergindo disciplinas díspares para se chegar a uma robusta teoria social sistêmica, que nos salta aos olhos principalmente por esta proposta interdisciplinar. Luhmann transcende o escopo explicativo sociológico já em sua proposta epistemológica. A teoria sistêmica de Luhmann, como o próprio nome indica, tem na noção de sistema e entorno os seus conceitos chave. Na verdade o conceito de sistema é oriundo da Sociologia funcional e estrutural norte-americana elaborada por Talcott Parsons2. Conquanto Luhmann tenha dele um entendimento bastante diverso, principalmente no que diz respeito a importância dos indivíduos na constituição do sistema, como ficará mais claro adiante. Como dito anteriormente, o autor faz uso de diversas teorias científicas contemporâneas. Uma dessas teorias foi formulada pelo matemático George Spencer Brown, e é fundamental para compreendermos a descrição luhmanniana da sociedade. A discussão gira em torno do conceito de forma. A forma é "forma de uma distinção" (Luhmann, 1995): opera uma distinção quando da demarcação de duas partes. A forma é uma linha de fronteira, um limite que separa duas partes e que leva à indicação de uma ou de outra na distinção; conseqüentemente, é o lugar de onde se deve partir para proceder a novas operações. Na distinção, as partes são delimitadas e a indicação de uma pressupõe a da outra, ou seja, nenhuma parte é "algo em si mesmo" (Luhmann & De Georgi, 1993). Isto é de extrema importância, como veremos a seguir. 2 Diferentemente de Luhmann, que foi seu aluno nos Estados Unidos, Parsons entende os sistemas sociais "constituído pela interação direta ou indireta dos seres humanos entre si" (Parsons, 1976) 3 O princípio matemático da forma elimina a autonomia do que é distinto, já que uma parte está imbricada na outra no momento da distinção. Conceitos contrapostos, como guerra/paz e silêncio/barulho, não existiriam isoladamente: as formas determinam-se simultaneamente e, neste sentido, operações do tipo "determinar", "indicar", "conhecer", "atuar" são, na verdade, o mesmo que fixar uma forma, instaurar uma diferença e produzir um "corte" no mundo. Surge então a questão do sistema e do entorno, crucial para Luhmann, sobretudo devido aos problemas da complexidade e evolução envolvidos em sua teoria dos sistemas. O conceito de "forma" contribui para a demarcação dos limites entre o sistema e o entorno. Vale lembrar, no entanto, que sistema e entorno englobam as duas partes de uma única forma: o conjunto, o todo. Desta definição nenhum sistema escapa, corresponda ele a uma família, às leis, a um organismo ou à sociedade. Os sistemas distinguir-se do entorno (sempre mais complexo) mediante operações auto-referenciais, isto é, intrínsecas ao próprio sistema. Numa operação recursiva - que opera contingentemente com suas próprias operações - produzindo novas formas de maneira cega, e imanente pois o sistema é fechado sobre si mesmo (clausura operacional). Quando, então, o sistema se refere a alguma coisa, distinguindo-a de si mesmo, "fala" ainda de si mesmo: de suas próprias operações. Neste ponto faz-se necessária a introdução de um outro conceito localizado fora do receituário explicativo das ciências sociais, mais precisamente no espaço as vezes obscuro da teoria física. Luhmann acrescenta à distinção sistema/entorno os conceitos de output e input (encontrados no segundo princípio da termodinâmica) utilizados pelo químico Ilya Prigogine (1996) em seus estudos sobre os sistemas abertos que incessantemente trocam energia e informação com o ambiente. Estes sistemas, para manterem-se vivos, devem ir ao encontro de sua dispersão energética (output), consumindo do entorno uma compensação (input) que os faz distinguirem-se deste. A relação de dependência sistema/entorno evolui, assim, a partir de algumas condições e segundo uma "ordem pelo ruído" o famoso conceito cibernético de Heins Von Foerster (Luhmann, 1995) também muito utilizado pela teoria biológica do francês Henri Atlan (1992). Isto significa 4 que as operações do sistema são auto-organizadas, isto é, surgem em conseqüência delas mesmas a partir de informações (ruídos) provindas do entorno complexo (input). Nos sistemas sociais estas informações ambientais são, a princípio, carentes de sentido, que somente as próprias operações do sistema podem lhes garantir. Este processo de troca informacional entre o sistema e o entorno os diferencia pela redução de complexidade operacionalizada pelo primeiro, que, como dito, dará sentido às investidas caóticas do segundo, porém esta atribuição de sentido sempre se dá através de uma redução de complexidade. Este processo imperará uma diferenciação interna no sistema, que começa, de forma autoorganizada, a se complexificar e, consequentemente, a evoluir (Araujo & Waizbort, 1999). Estas operações são, na verdade, o que se conhece como autopoiésis, mais um conceito da biologia cunhado pelos biólogos Chilenos H. Maturana e F. Varela (1997). Na autopoiésis os sistemas se definem (criam identidade) a partir de suas própria operações. Tais operações são dependentes do sistema onde são produzidas o que, por sua vez, produz o próprio sistema. Segue-se portanto um processo circular de auto-produção de componentes capazes de darem sentido às informações do entorno e, por isso, distinguirem-se do mesmo. Luhmann e De Georgi acrescentam: "Todas as relações entre um sistema autopoiético e o seu entorno têm um modo não específico, o qual não exclui absolutamente que um observador possa especificar o que ele mesmo quer ou pode ser" (Luhmann & De Georgi, 1993) A especificação do sistema é ela mesma também uma forma, correspondendo a uma eleição que ocorre internamente no sistema e que só faz sentido neste. Isto é o que se chama "clausura operacional" (Maturana, 1978; Luhmann, 1995), característica atribuída aos sistemas autopoiéticos por serem fechados sobre si mesmos, embora não isolados do entorno: sua abertura é 5 resultado de suas próprias operações. Tal clausura sobre seus próprios processos internos nos remete a alguns problemas relacionados à relação sistema/entorno. O que é "causa e efeito" no que diz respeito a esta relação? O que é dentro e o que é fora? De Onde se faz este juízo? Aqui, o observador (ou o ponto de onde se observa) ganha "extremos poderes decisórios". É ele quem decide através de dois processos: distinguir e indicar. Se ele indica, logicamente já se distingue; o contrário também é verdadeiro: se ele se distingue, indica. O sistema no qual se observa torna-se também o terceiro excluído de sua própria observação: "ao observar (ele) não pode ver a si mesmo" (Luhmann & De Georgi, 1993). Esta concepção de observação como determinada pelos processos internos dos sistemas serve para ilustrar a dinâmica dos sistemas sociais e seus respectivos entornos. Podemos extrair dessas concepções anteriores os conceitos de que Luhmann faz uso para desenvolver sua descrição sobre um tipo especial de sistema social: a sociedade. Luhmann usa uma metáfora bastante razoável para introduzir sua teoria da sociedade. Ele recorre às proposições introdutórias da Política de Aristóteles, onde este argumentava ser a vida citadina a mais importante comunidade, onde se encerravam todas as demais (ibid.). De modo semelhante será entendida a sociedade de Luhmann: como um sistema social que encerra em si todos os demais, por isso chamado de "oniabarcador ". Antes de nos aprofundarmos nisso, vejamos como Luhmann define os três níveis de análise da sociedade: 1- Teoria dos sistemas (autopoiéticos, especificamente) 2- Teoria dos sistemas sociais 3- Teoria da sociedade Os sistemas sociais, lembrando, são entendidos como autopoiéticos. A sociedade, para Luhmann, se apresenta como um dentre outros sistemas sociais, permitindo a confrontação com outros sistemas, tais como as organizações e as interações. Ela se especifica, ganha identidade própria, no terceiro nível de 6 análise, ou seja, como um sistema abarcador dos outros, isto deve ser entendido segundo a definição de Spencer Brown acerca da forma. Maturana e Varela são críticos em relação às teorias sociais que utilizavam o conceito de autopoiésis (Maturana & Varela, 1997). De acordo com a definição de ambos, seria necessário estabelecer um limite ou uma fronteira que separa o dentro e o fora - algo que, para eles, não ocorre nas teorias dos sistemas sociais. Esta crítica é dirigida também à indeterminação das operações dos sistemas, já que, não havendo um limite preciso nem mesmo o sistema poderia ser distinguido. Luhmann supera tais exigências incluindo em suas definições o conceito de comunicação. Tal conceito é definido como uma operação genuinamente social que necessita de várias unidades de "sistemas de consciência"3 (Luhmann & De Georgi, 1993). A comunicação é uma operação autopoiética provida da capacidade de auto-observação. Dito de outro modo: a comunicação diz que é uma comunicação, quem comunica e o que; tais são as exigências para que esta possa prosseguir com sua autopoiésis. Além do ato de comunicação ser elaboração de um observador, ele também o é da própria comunicação: esta é, assim, um sistema que se observa a si mesmo. A comunicação, então, pode observar-se, o que nos leva a afirmar, mais uma vez, que os sistemas sociais formados, por sua vez, por comunicações - podem construir-se observando somente a si mesmos. O que o sistema faz, dada esta impossibilidade de observação para além de si mesmo - ou sobre si mesmo - é eleger soluções acerca das distinções já feitas cegamente. Agora a discussão pairará sobre o terceiro nível da análises de Luhmann - o sistema sociedade. Trata-se de um sistema caracterizado pela multiplicidade de possíveis auto-observações, dada sua peculiaridade abarcadora de outros sistemas sociais. A sociedade não os conhece para além de suas fronteiras, o que impossibilita observações externas por parte da própria sociedade, mas permite a 3 Luhmann distingue três tipos de sistemas autopoiéticos: os sistemas vivos (formados por sistemas biológicos), os sistemas psíquicos (das quais a consciência é um atributo) e os sistemas sociais (que se compõem de uma sucessão de comunicações). 7 observação por parte dos sistemas sociais. Neste caso, porém, a observação é do sistema social, não do sistema sociedade. Não existe então nenhuma descrição externa à sociedade. Todas as descrições da sociedade a que estamos sujeitos são contingentes com as operações do sistema social que a gerou - "por mais que literatos e sociólogos sustentem o contrário" (Luhmann & De Georgi, 1993). Todavia as auto-descrições não são infinitas: elas se apresentam como representações em condições estruturais determinadas e delimitadas por condições históricas específicas. A sociedade, então, opera de forma fechada - tal como os outros sistema sociais - não havendo operacionalmente nenhum contato com o entorno. A clausura operacional exige, assim, a auto-organização do sistema; articulações proporcionam ao sistema uma posição compatível com o entorno desordenado, caótico e complexo (decorrente da fragmentação dos sistemas sociais que não formam uma unidade). Como a sociedade convive a todo momento com perspectivas diferentes de seus vários sub-sistemas, ela tem que desenvolver a clausura - reduzir a complexidade - para tornar suportável sua relação com os mesmos e possível sua própria existência ante a ameaça de colapso. Com isso, a relação sistema/entorno opera simultaneamente; as operações se concatenam de forma que uma seja a condição de outra, o que levará os sistemas à diferenciação-complexificação e evolução. O resultado deste processo, uma vez mais, é à clausura operacional. Nesse sentido a sociedade, operando enclausurada em seus próprios processos, só produz comunicação através da própria comunicação. Esta característica nos permite dizer, mais uma vez, que a sociedade funciona circularmente, tal como um sistema autopoiético. Estas condições implicam que a constituição e a manutenção dos limites do sistema dependerão daquilo que I. Prigogine chamou de "estruturas dissipativas"( Prigogine, 1996): um contínuo de materialidade entre os sistemas e seus respectivos entornos que ultrapassa estas mesmas fronteiras. Em vista disto, torna-se pertinente a pergunta: como a sociedade se configura, já que depende do entorno ao mesmo tempo que não o pode contactar? Aqui Maturana é resgatado 8 por nós novamente com um novo conceito: o "acoplamento estrutural" (Maturana, 1983). O acoplamento estrutural possibilita a adaptação sistema/entorno. Todos os sistemas existentes se apresentam de forma acoplada ao seu entorno. Isto se deve principalmente a algumas características, como a auto-organização, que lhe garantirão plasticidade frente às demandas caóticas do meio. Porém, não se trata de uma relação em que as demandas determinem o que se passará no sistema; ao contrário: as demandas são neutralizadas, internamente, pelos próprios processos (redução de complexidade). Todas as comunicações estão estruturalmente acopladas ao seu meio, isto é, à consciência. A consciência é o que possibilita a comunicação, embora não seja o substrato daquela. A comunicação tampouco é uma transferência de conteúdos semânticos entre sistemas psíquicos. Eliminando o indivíduo de suas análises, Luhmann sustenta que, da mesma forma que os sistemas de comunicação, os sistemas de consciência são sistemas que operam fechados, não podendo ter contato entre eles e nem com a sociedade. A consciência pode pensar, mas não pode comunicar. Somente a sociedade pode comunicar - são distintos funcionalmente. Abaixo entenderemos melhor tais processos. Faremos uso do já citado "acoplamento estrutural" para compreender esta conexão entre comunicação e consciência. O acoplamento estrutural está sempre funcionando, ininterrupta e imperceptivelmente, quer se pense nele ou não. Um passeio na praia não necessita que entendamos as leis da física, ou a relação entre peso e gravidade, mesmo que para caminhar qualquer alteração na gravidade nos impossibilitasse de fazê-lo; caminhamos porque há um acoplamento entre o peso e a gravidade vigente, apenas. Assim também ocorre com a comunicação e a consciência: convergem um para o outro, e isto impede justamente que a distinção inicial seja notada. Mas, tal qual a relação entre as leis da física e o caminhar, a relação comunicação/consciência se realiza somente dentro de um amplo espectro de possibilidades. O acoplamento estrutural possibilita que um sistema junte-se aos sistemas altamente complexos do entorno, sem que para isto tenha que alcançar a 9 complexidade dos mesmos. Nos sistemas de comunicação, nomes ou conceitos como homem, pessoa ou consciência servem para referirem-se à complexidade do meio, ordenando-a ou classificando-a no sentido de tornar possível operá-la de acordo com as condições estruturais do sistema. Neste sentido, o acoplamento entre sistema de comunicação e consciência procede através da linguagem. A linguagem é um tipo de ruído altamente improvável (Luhmann & De Georgi, 1993) que possui, no entanto, possibilidades extremamente complexas de especificação. Falamos a outras consciências sem darmos conta dos ruídos que incidem caoticamente sobre a fala; conseguimos especificar com grande desenvoltura o ruído da linguagem sem nos confundir. Mas os sistemas apresentam conceitos contraditórios no que diz respeito à linguagem: ao lado de sua imensa capacidade de especificação, a linguagem permite complexas estruturas de comunicação. De fato, este acoplamento consciência/comunicação tem conseqüências de grande profundidade para a construção das estruturas destes sistemas (morfogênese), bem como para a evolução dos mesmos. Digamos que a consciência só pode ser modificada (de acordo com suas estruturas que operam fechadamente) via percepção sensorial; a comunicação, por sua vez, é modificada em decorrência da consciência. Assim, tudo o que chega à sociedade passa por dois filtros: a consciência e a possibilidade da comunicação. Aqui se faz necessário expor uma outra característica dos sistemas sociais: seu poder de seletividade. Evolutivamente, as interferências físicas, químicas e biológicas são sempre entendidas como ruídos destrutivos em relação ao sistema de comunicação. Os sistemas de consciência, ao contrário, têm um papel altamente criativo e seletor no interior do processo autopoiético da comunicação: a consciência escreve livros, não os queima, apresenta-se como ruído informacional, não negativo. Controla também o acesso ao mundo externo, complexo e caótico ao mundo ordenado da comunicação, mas não como sujeito da comunicação e sim como entidade selecionadora e auto-organizada. A ligação perceptiva da consciência do mundo externo com o processo de comunicação dependerá de processos fisiológicos e 10 neuronais dos cérebros os quais seguem, como assinala Maturana (1983), uma lógica autopoiética. Resumindo, podemos dizer que os sistemas de comunicação estão acoplados estruturalmente com os sistemas de consciência e, neste sentido, aproveitam a característica seletiva destes para diminuir a complexidade da realidade. Nenhum sistema é suficientemente complexo para suportar toda esta realidade, nem mesmo os sistemas autopoiéticos. É graças a esta "couraça" (Luhmann e De Georgi, 1993) que se tem podido desenvolver um sistema de comunicação cuja realidade consiste em processar simples signos4. Os sistemas de consciência chegam hoje à casa dos seis bilhões de unidades no mundo. Convivem sem que, no entanto, suas expectativas confluam para um consenso. O sistema de comunicação necessita, pois, de consciências que sustentem tal sistema sobre si mesmo, sob o risco do colapso decorrente de expectativas tão distintas. Isto nos reconduz aos problemas sistêmicos, mas lembremos: tais problemas não são exteriores aos sistemas, são especificados como tais em decorrência de seus processos autopoiéticos internos. Problemas, por assim dizer, são informações ainda estranhas aos processos internos, o que possibilita que o sistema as trate contingentemente com seus processos internos: imputando-as, aprendendo com elas ou buscando suas origens no entorno. O entorno está a todo momento "irritando" os sistemas. Mudanças das condições climáticas, por exemplo, cumprem este papel e guiam o desenvolvimento das estruturas internas. Mas não somente as mudanças de ordem ambientais. Há "irritação" quando a informação, seja qual for, ainda não é especificada pelo sistema. Isto significa que o sistema ainda não está acoplado totalmente. A sociedade moderna ilustra bem tais considerações. Devido às transformações ambientais por que passamos hoje, junta-se a isto o individualismo dos sistemas psíquicos aumentando o dissenso e a complexidade sistêmica, Luhmann (1993) sustenta que o acoplamento estrutural entre sistema da sociedade e entorno se encontra sob pressão. Isto, 4 Por exemplo o sistema jurídico que funciona de acordo com o código legal/ilegal (Domingues, 2001) 11 diferentemente dos períodos históricos precedentes, ocorre com uma velocidade jamais vista. Tais constatações agravam-se quando verificamos que a sociedade deve responder a tais pressões de modo igualmente rápido, para o qual ainda não está todavia adaptada. Diante de tamanha importância dada aos processos sistêmicos por parte de Luhmann, o indivíduo se reduz a mero meio por onde se acoplam as comunicações. Os sistemas assim seriam a célula de análise da sociedade moderna, principalmente esta, cuja lógica de funcionamento superou às intenções, quaisquer que sejam elas, dos indivíduos5. Luhmann supera, finalmente, de um lado o "individualismo metodológico" e do outro a "intencionalidade", afirmando estrutura e função, bem como contingência. Se alguns autores da sociologia (Domingues, Op. Cit.) criticam Luhmann por apresentar somente uma epistemologia e não um teoria sociológica 6, uma ontologia, não convém aqui discutir, o fato é que seu método pode está trazendo novos caminhos às análises sociológicas. Principalmente pelo fato de que seu cerne é a interdisciplinaridade e a possibilidade de refazer todo aquele percurso contrário à especialização: a comunhão de diferentes áreas do conhecimento científico. BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, Cicero. & WAIZBORT, Leopoldo. Sistema e evolução na teoria de Luhmann. Lua nova, n. 47, 1999, págs. 179-200. ATLAN, Henri. Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. 5 Perspectiva radical da reificação do mundo. Discutirei de forma mais aprofundada em minha dissertação, que consiste em estudar a relação entre ciência e entorno através de uma perspectiva sistêmica. 6 12 DOMINGUES, José Maurício. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. HABERMAS, Jürgen. La logica de las ciencias sociales. Madrid: Editorial tecnos, 2000. LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford CA: Stanford University Press, 1995. LUHMANN, Niklas & DE GEORGI, Raffaele. Teoria de la sociedad. 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