FEBRE REUMÁTICA SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................... 2 2. ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS ......................................................................... 2 3. QUADRO CLÍNICO ............................................................................................... 4 3.1 4. Manifestações clínicas: critérios maiores ........................................................ 6 QUADRO LABORATORIAL ................................................................................. 11 4.1 Comprovação da infecção estreptocócica prévia .......................................... 11 4.2 Comprovação de um processo inflamatório: reagentes de fase aguda ......... 12 4.3 Quantificação das repercussões cardíacas................................................... 13 5. TRATAMENTO: FASE AGUDA ........................................................................... 14 6. PROFILAXIAS PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA ........................................................ 17 7. REFERÊNCIAS ................................................................................................... 19 1 1. INTRODUÇÃO Quatro séculos após sua descrição por Guillaume de Baillou como uma entidade nosológica separada dos “reumatismos”, a febre reumática (FR) continua, no nosso meio, como um grave problema de saúde pública e um desafio para todos os envolvidos com a assistência à criança e ao adolescente. A (FR) é uma doença sistêmica e não supurativa que se manifesta entre uma e cinco semanas após uma infecção de orofaringe, causada por estreptococo beta-hemolítico do grupo A de Lancefield. A doença ocorre em indivíduos geneticamente predispostos e é desencadeada por respostas imunológicas inadequadas, tanto humorais quanto celulares. A duração da fase aguda varia de seis a 12 semanas. A atividade inflamatória pode estender-se até seis meses ou mais nos casos de cardite grave. Na sua evolução, a doença é caracterizada por quatro fases: infecção estreptocócica aparente ou não, período de latência, fase aguda e a fase crônica ― cardiopatia reumática crônica (CRC).1 A CRC é a mais grave consequência da febre reumática e é responsável por um grande número de hospitalizações e óbitos. As recidivas concorrem de modo significativo para o agravamento das lesões valvares. No entanto, devido ao processo cicatricial, a piora da disfunção valvar pode ocorrer mesmo na ausência de episódios agudos subsequentes. 2. ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS A elevada prevalência da FR é resultado das más condições de vida, principalmente em decorrência das aglomerações domiciliares e dificuldades de acesso ao diagnóstico e tratamento. Entretanto, o retorno da FR nos EUA e em alguns países da Europa nas décadas de 1980 e 1990 com aumento da prevalência em até dez vezes, comprova que mesmo após o controle da doença, há necessidade de prevenção primária eficaz. A necessidade de 2 vigilância constante está expressa nas palavras de Taranta e Markowitz2 “A febre reumática está ainda ali, viva e em movimento”. Nos países em desenvolvimento, a CRC constitui a cardiopatia adquirida mais comum na criança, adolescente e no adulto jovem. Considerando-se que esses países apresentam os mais elevados índices de incidência da FR e de prevalência da CRC, além da mais alta concentração populacional, a lesão valvar reumática representa no mundo, a mais freqüente causa de doença cardíaca na faixa etária pediátrica.3 Entretanto, por se tratar de uma doença de longa duração, determina repercussões em todas as faixas etárias. As crianças e adolescentes que contribuem para os índices de internação hospitalar devido aos episódios agudos da doença, após os 40 anos de idade irão integrar o grupo de pacientes, que inverte a faixa etária de morbidade, quando a análise envolve cirurgia cardíaca e óbito.4 Há, ainda, os impactos adicionais, sociais e econômicos, quando são incluídos na análise os custos indiretos, como a repetência escolar e a perda de dias de trabalho pelos pacientes e seus familiares. Portanto, o registro do primeiro surto agudo em crianças e adolescentes, coloca o pediatra em posição de destaque na abordagem das profilaxias primária e secundária. Estima-se em todo o mundo, prevalência de 15,6 a 19,6 milhões de indivíduos afetados pela doença e que resulta no total de 492.042 mortes anualmente.5 Mais recentemente, a utilização da Dopplerecocardiografia no rastreamento da FR e da CRC em escolares e adultos jovens tem demonstrado prevalência cerca de dez vezes maior, quando comparada com a investigação clínica.6,7 No Brasil, segundo modelo epidemiológico da Organização Mundial de Saúde - (OMS), estima-se freqüência anual de seis milhões de faringoamigdalites estreptocócicas, das quais, em condições não-epidêmicas, 0,3% resultam em episódios de FR aguda. Esse percentual equivale a uma incidência de 15.000 a 18.000 novos casos anuais, dos quais um terço evolui para CRC. Em Belo Horizonte-MG, na investigação de 550 escolares da rede pública de ensino, registrou-se prevalência de 3,6: 1.000 estudantes.8 3 Na análise da morbidade, o cálculo do índice DALY — disability-adjusted life years (anos potenciais de vida perdidos ajustados para incapacidade) — demonstrou taxas de 27,4 a 173,4 DALY’s por 100 000 habitantes, com o total de 6,6 milhões de anos perdidos por ano no mundo em decorrência da FR.9 3. QUADRO CLÍNICO O padrão de apresentação clínico-laboratorial da FR não é exclusivo da doença, ocorrendo desde formas subclínicas, como é o caso da cardite, até casos graves, de evolução fulminante. Apesar de sua uniformidade como uma síndrome, a FR caracteriza-se pela diversidade do acometimento multissistêmico, podendo ocorrer grande variação nos tipos de associação das manifestações clínicas.1 O diagnóstico da fase aguda da febre reumática é fundamentado no perfil de apresentação clínica, não existindo sinal ou sintoma patognomônico. Os exames laboratoriais são inespecíficos, entretanto tem grande utilidade, pois evidenciam a infecção estreptocócica prévia e sustentam o diagnóstico do processo inflamatório, além do tipo e grau do acometimento cardíaco. Os critérios de Jones, estabelecidos em 1944,10 e várias vezes revisados e modificados pela American Heart Association, continuam como guia para o diagnóstico do primeiro surto da doença (Tabela 1). A divisão dos critérios em maiores e menores é baseada na especificidade das manifestações e não na frequência. No contexto de comprovação de uma infecção estreptocócica prévia e recente, a presença de dois sinais maiores ou o conjunto de um sinal maior acrescido de dois menores, torna elevada a probabilidade de FR. Em três situações é dispensável a adesão rigorosa aos critérios de Jones, constituindo, portanto, exceções para o diagnóstico de surto agudo da FR: coréia de Sydenhan como única manifestação da doença, cardite insidiosa e recorrências.11,12 4 TABELA 1 - Critérios de Jones modificados (1992)11 para o diagnóstico do primeiro surto agudo de febre reumática Manifestações maiores Manifestações menores Cardite Clínicas: Artrite Febre Coréia Artralgia Eritema marginado Laboratoriais: Nódulo subcutâneo Elevação dos níveis da proteína C reativa Aumento da velocidade de hemossedimentação Prolongamento no intervalo PR do eletrocardiograma Evidência de infecção pelo estreptococo beta hemolítico do grupo A (EBHGA): cultura de swab de orofaringe, teste rápido (látex) para EBHGA e elevação dos títulos de anticorpos A febre é frequente no início do surto agudo e não apresenta um padrão característico. Outros sinais e sintomas, ainda mais inespecíficos e não incluídos entre as manifestações maiores e menores, podem estar presentes durante a fase aguda: dor abdominal, anorexia, epistaxe, etc. Várias doenças preenchem falsamente esses critérios, da mesma forma que quadros clínicos atípicos de FR não podem ser caracterizados. Por isso, há necessidade de bom senso no discernimento e, em muitas vezes, somente o acompanhamento e a análise da evolução podem confirmar ou excluir o diagnóstico de FR. Devido às essas dificuldades de abordagem, principalmente nos pacientes com quadros leves e/ou atípicos, frequentemente a doença é diagnosticada somente na fase crônica por meio de suas sequelas valvares, admitindo-se que para cada paciente com CRC e primeiro surto bem estabelecido, existe outro sem relato das manifestações de fase aguda. O diagnóstico das recidivas é um desafio a parte e existe a tendência de a recorrência mimetizar a manifestação do surto agudo anterior. Em 2004, a Organização Mundial de Saúde com base nos critérios de Jones modificados, publicou os critérios para o diagnóstico das recorrências, da CRC e para o diagnóstico da CRC (Tabela 2). Segundo as recomendações, a presença de dois sinais menores mais a evidência de infecção estreptocócica anterior 5 recente são suficientes para estabelecer o diagnóstico de novo surto agudo nos pacientes com diagnóstico estabelecido CRC. Esta orientação foi adotada nas Diretrizes Brasileiras para o Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre Reumática(2009).13,14 TABELA 2 - Critérios da Organização Mundial da Saúde (2004)* 13 para o diagnóstico do primeiro surto e recorrência.* Categorias diagnósticas Critérios Primeiro episódio de FR Dois critérios maiores ou um maior e dois menores mais a evidência de infecção estreptocócica anterior. Recorrência de FR sem doença cardíaca reumática estabelecida.† Dois critérios maiores ou um maior e dois menores mais a evidência de infecção estreptocócica anterior. Recorrência de FR com doença cardíaca reumática estabelecida. Dois critérios menores estreptocócica anterior. Coréia de Sydenham. Não é exigida a presença de outra manifestação maior ou evidência de infecção estreptocócica anterior. mais a evidência de infecção Cardite reumática de início insidioso. Cardiopatia reumática crônica ** Não há necessidade de critérios adicionais para o diagnóstico * Adaptado de WHO Technical Report Geneva, 2004. Series 923, Rheumatic Fever and Rheumatic Heart Disease, ** Com mitral pura ou dupla lesão de valva mitral e/ou doença na valva aórtica, com características de envolvimento reumático 3.1 Manifestações clínicas: critérios maiores Na apresentação clássica, a poliartrite tem caráter migratório, não-simétrico, sem orientação definida e sem sequelas. O acometimento predomina nas grandes articulações – tornozelos, joelhos, punhos, cotovelos –, principalmente de membros inferiores, sendo raro o acometimento de quadris, coluna cervical 6 e pequenas articulações das mãos e pés. As características da dor incluem sua grande intensidade à manipulação, ativa e passiva, além da resposta imediata ao uso de antiinflamatórios, geralmente em 24 a 48 horas. O processo é autolimitado, apresentando duração de um a cinco dias em cada articulação nos casos sem tratamento e com resolução espontânea em duas a quatro semanas. Apresentações atípicas do envolvimento articular, como artrite aditiva, monoartrite, e quadro inflamatório com duração superior a seis semanas ocorrem em cerca de 30% dos casos. Artralgia significa apenas dor articular; artrite envolve a presença de edema na articulação ou, na falta deste, associação da dor com a limitação de movimentos. Quando a artralgia ocorre em associação à artrite de outras articulações, a artralgia não deve ser considerada como sinal menor no contexto dos critérios de Jones, devendo ser considerado apenas o sinal maiorartrite.14 A cardite reumática, que ocorre em torno da metade dos casos de FR aguda, é a manifestação mais grave da doença, por ser a única que resulta em sequela e óbito. A gravidade e extensão do dano cardíaco são fatores determinantes do prognóstico e da morbimortalidade da doença. O processo inflamatório caracteriza-se por acometimento de todos os segmentos do coração ― pancardite ― envolvendo o pericárdio, o miocárdio e o endocárdio. As principais manifestações da cardite reumática aguda são: taquicardia desproporcional ao quadro febril, dor precordial, manifestações clínicas de insuficiência cardíaca ― palidez, taquidispneia, ortopneia, taquicardia, hepatomegalia e edema, abafamento de primeira bulha, atrito pericárdico, aparecimento ou modificação aguda de um sopro resultante de disfunção valvar. A insuficiência mitral é a lesão mais frequente, seguida pela insuficiência aórtica, isolada ou associada à lesão da valva mitral. O acometimento valvar do lado direito do coração é mais raro: a valva tricúspide geralmente tem lesões secundárias à hipertensão pulmonar nos casos de CRC com graves lesões mitral e/ou aórtica; a ocorrência de lesão valvar pulmonar reumática é 7 excepcional. No surto agudo inicial, o quadro inflamatório no endocárdio resulta em lesões de insuficiência valvar com graus variados de regurgitação. As lesões valvares obstrutivas (estenoses) não ocorrem no primeiro surto e falam a favor de recidiva em doença crônica e de duração prolongada. As estenoses resultam do processo de cicatrização, responsável pela retração e deformidade da valva. Os sopros mais característicos da fase aguda são: sopro sistólico de insuficiência mitral, geralmente holossistólico, de intensidade geralmente proporcional à disfunção valvar, mais audível na área mitral, que se irradia até a axila esquerda e pode regredir com a resolução da fase aguda da doença; sopro mesodiastólico (Carey Coombs), discreto, de baixa freqüência, percebido logo após a terceira bulha e presente apenas durante o período de atividade da doença; sopro protodiastólico de insuficiência aórtica, de alta freqüência, aspirativo, mais audível no terceiro e no quarto espaços intercostais esquerdos, junto à borda esternal. A cardite pode ser classificada de acordo com a magnitude das manifestações clínicas resultantes do acometimento cardíaco e das repercussões observadas nos exames radiológico, eletrocardiográfico e Doppler ecocardiográfico.1 Cardite subclínica: exame clínico cardiovascular, exame radiológico do tórax e eletrocardiograma normais, com exceção dos intervalos PR e/ou QT; ao exame Doppler ecocardiográfico regurgitação patológica mitral e/ou aórtica leve ou leve/moderada, com características diferenciadas das regurgitações fisiológicas. Cardite leve: taquicardia, abafamento da primeira bulha, sopros discretos em área mitral e área cardíaca normal; exames radiológico e eletrocardiográfico normais, com exceção do prolongamento dos intervalos PR e/ou QT; ventrículo esquerdo 8 de dimensões normais e regurgitação mitral e/ou aórtica leve ou leve/moderada ao Doppler ecocardiograma. Cardite moderada: sinais de cardite leve acrescidos de sopro mais intenso de insuficiência mitral, mas sem frêmito, com ou sem associação a sopro de insuficiência aórtica; sopro de Carey Coombs e insuficiência cardíaca incipiente podem estar presentes; cardiomegalia leve e /ou congestão pulmonar discreta ao exame radiológico; ao eletrocardiograma, r alterações de STT, baixa voltagem, prolongamento dos intervalos do PR e QTc e extrassístoles; ao exame Doppler ecocardiográfico a regurgitação mitral é leve a moderada, isolada ou associada à regurgitação aórtica de grau leve a moderado e com aumento das câmaras esquerdas em grau leve a moderado; pericardite leve pode estar presente. Cardite grave: sinais de cardite moderada acrescidos de comprometimento do estado geral, quadro clínico de insuficiência cardíaca, cardiomegalia evidente e sopros resultantes de grave acometimento valvar aórtico e/ou mitral, sopro de Carey Coombs; sinais de pericardite e/ou arritmias; ao exame radiológico, identificam-se congestão pulmonar e cardiomegalia evidentes; o eletrocardiograma, além dos sinais relatados para cardite moderada, apresenta sobrecarga de câmaras esquerdas, e, às vezes, direita, além de alterações da repolarização ventricular; ao Doppler ecocardiograma, registram-se regurgitação mitral e/ou aórtica de grau moderado/importante, e as câmaras esquerdas exibem, no mínimo, aumento moderado, associado ou não aos sinais de pericardite. A coréia de Sydenham pode ocorrer como manifestação isolada da doença, mas, frequentemente, associa-se à cardite clínica ou subclínica; é mais comum no gênero feminino e rara após os 20 anos de idade. Embora os sintomas possam ser concomitantes a outras manifestações da fase aguda, geralmente 9 têm início mais tardio, cerca de seis meses após a infecção estreptocócica. A manifestação tem início insidioso e progressivo com quadro de instabilidade emocional, desatenção, distúrbios de conduta, da fala ou da escrita, associados à hipotonia e hipercinesia: movimentos clônicos incoordenados e involuntários, mas conscientes. Ao exame físico, alguns sinais podem ser observados: sinal da ordenha: quando a mão do examinador é apertada pela mão do paciente, observam-se movimentos rápidos de compressão e descompressão; fasciculação da língua, que se torna mais evidente quando é estendida; sinal da pronação: quando os braços são levantados em linha reta, acima da cabeça ocorre giro involuntário de uma ou ambas as mãos para frente, para baixo e para fora; sinal da colher: quando o paciente estende as mãos para frente, há flexão do pulso com hiperextensão das articulações metacarpofalangianas e interfalangianas. A duração do surto de coréia é de dois a três meses em média e tem sido relatada a associação da doença com distúrbios psiquiátricos como déficit de atenção, “tiques" e hiperatividade. Outras manifestações maiores incluem os nódulos subcutâneos e o eritema marginatum, que apesar de raros, apresentam elevada especificidade. O eritema ocorre nas fases iniciais da doença e está frequentemente associado à cardite. As lesões, que às vezes tem caráter recidivante, são múltiplas, indolores, não pruriginosas e fugazes, com duração de minutos a horas; localizam-se, preferencialmente, no tronco e parte proximal dos membros, respeitando a face; são exacerbadas com o calor e de difícil detecção nas pessoas de pele escura; tem cor acobreada, forma elíptica ou arredondada, bordas bem delimitadas e ligeiramente elevadas, centro mais claro, dimensões de 1 a 3cm, podendo ser confluentes. Os nódulos subcutâneos são mais facilmente percebidos pela palpação do que pela inspeção e tem aparecimento mais tardio ― uma a duas semanas após as outras manifestações da fase aguda ―, raramente persistem por mais de um mês e estão fortemente associados à presença de cardite, geralmente grave; apresentam-se agrupados, com preferência de localização nas proeminências ósseas como na região frontal e região paravertebral e nos tendões extensores como no dorso das mãos. 10 4. QUADRO LABORATORIAL Na fase aguda, a investigação laboratorial inclui três categorias de exames: comprovação da estreptococcia anterior, provas inflamatórias da fase aguda, caracterização e quantificação das repercussões cardíacas. 4.1 Comprovação da infecção estreptocócica prévia A infecção estreptocócica pode ser comprovada por cultura de “swab” de orofaringe (padrão ouro) e/ou testes rápidos para detecção de antígeno estreptocócico. No entanto, mais frequentemente o diagnóstico é realizado por meio da detecção dos anticorpos antiestreptocócicos como a antiestreptolisina O (ASO) e, mais raramente, a anti-desoxirribonuclease B e anti-hialuronidase. Recomenda-se a comprovação laboratorial da infecção pelo estreptococo betahemolítico do grupo A.14 A cultura de orofaringe e os testes rápidos têm sensibilidade entre 90%-95% e 80% respectivamente e especificidade de 95%. Recomenda-se a realização de cultura de orofaringe, quando o quadro clínico é sugestivo de faringoamigdalite estreptocócica e teste rápido negativo. 15.16 É importante ressaltar, que o isolamento do estreptococo do grupo A na orofaringe, por cultura ou teste rápido, não comprova a ocorrência de infecção prévia, pois o exame não diferencia infecção ativa da condição de colonização assintomática ou portador sadio. De outro lado, por ocasião do episódio agudo de FR, que ocorre entre uma e cinco semanas após a faringoamigdalite, um exame negativo, que traduz a ausência local da bactéria, pode também significar que o processo infeccioso já foi resolvido. Por isso o paciente deve receber tratamento e erradicação do estreptococo, mesmo diante de uma cultura negativa. O diagnóstico de faringoamigdalite estreptocócica pode ser suspeitado pela presença dos critérios clínicos validados pela OMS: febre elevada, vômitos, 11 mal-estar geral, hiperemia e edema de orofaringe, presença de petéquias e exsudato purulento e gânglios cervicais palpáveis e dolorosos, embora 30% das infecções estreptocócicas das vias aérea superiores tem manifestação subclínica.17 .Deve ser ressaltado que sinais como tosse, coriza, rouquidão e conjuntivite sugerem infecção viral.13 A ASO está elevada em cerca de 75-85% dos pacientes a partir do sétimo dia após a infecção estreptocócica, o que significa 20% dos pacientes com FR evoluem sem elevação da ASO.18 Títulos elevados apenas comprovam infecção anterior e não infecção ativa. A titulação máxima ocorre em torno de três a seis semanas após a infecção. Os títulos podem manter-se elevados durante vários meses, mas o mais comum é ocorrer redução progressiva até o sexto mês. Diante do registro de concentrações baixas, recomenda-se a repetição do exame com o intervalo de duas semanas para evidenciar possível aumento14 Diante de manifestações tardias como a coréia de Sydenham, a titulação da ASO pode já estar normalizada. 4.2 Comprovação de um processo inflamatório: reagentes de fase aguda A velocidade de hemossedimentação (VHS), em geral, tem aumento nas primeiras semanas, com titulação proporcional à gravidade do processo inflamatório. Os resultados sofrem influências de diversas medicações e condições: a utilização de anti-inflamatórios esteróides ou não e a insuficiência cardíaca induzem à queda da VHS e o uso de penicilina benzatina e a presença de anemia induzem à elevação. A proteína C reativa (PCR) eleva-se no início da fase aguda e seus valores diminuem no final da segunda semana, geralmente persistindo anormais até o fim da terceira semana. Por isso, apresenta elevado valor preditivo negativo, ou seja, um resultado normal torna pouco provável o diagnóstico de FR. A alfa-1-glicoproteína ácida é considerada um bom indicador de processo inflamatório. Na fase aguda, apresenta títulos elevados, que são mantidos por tempo mais prolongado 12 e, por isso, deve ser utilizada para monitorar a presença e involução do quadro inflamatório da FR. Entre as alterações encontradas na eletroforese de proteínas, a elevação da fração alfa-2-globulina é a que apresenta maior estabilidade, mantendo-se elevada durante toda a fase aguda da doença, constituindo-se, como indicador confiável de atividade inflamatória.14,18 4.3 Quantificação das repercussões cardíacas A presença de cardiomegalia e de congestão venosa pulmonar na radiografia de tórax auxiliam no diagnóstico e na classificação da gravidade da cardite. O aumento progressivo da área cardíaca na análise radiológica sequencial fala a favor de atividade reumática, além de possibilitar a análise evolutiva do paciente na fase crônica da doença. O eletrocardiograma (ECG) mostra alterações inespecíficas, mas de grande valor no acompanhamento dos pacientes, além da possibilidade de caracterizar um dos critérios menores de Jones, que é o prolongamento do intervalo PR. No ECG, predominam as alterações da repolarização ventricular – achatamento e negatividade de ondas T e alterações de segmento ST – e aumento dos intervalos PR e QTc, além dos achados decorrentes das lesões valvares, sobressaindo a sobrecarga de câmaras esquerdas e arritmias, que na criança, geralmente são autolimitadas e benignas. O Doppler ecocardiograma é um exame de grande utilidade para detecção e quantificação da gravidade das lesões cardíacas na FR, permitindo o diagnóstico das lesões valvares, acometimento pericárdico e das repercussões funcionais e hemodinâmicas, tanto na fase aguda como na crônica. Destaca-se a grande contribuição do método no diagnóstico da cardite subclínica e da valvopatia crônica subclínica, além do auxílio no diagnóstico diferencial com outras doenças valvares e no acompanhamento das lesões resultantes do processo reumático e suas conseqüências hemodinâmicas. Considerando-se os aspectos morfológicos característicos, embora não patognomônicos, das valvas cardíacas afetadas, foram publicados recentemente os critérios ecocardiográficos da Federação Mundial de Cardiologia para auxílio no diagnóstico da CRC .19 13 5. TRATAMENTO: FASE AGUDA O tratamento da fase aguda inclui a erradicação bacteriana e intervenções terapêuticas para suas complicações, principalmente cardíacas (insuficiência cardíaca e arritmias). O uso de antiinflamatórios na cardite e artrite e de dopaminérgicos na coréia de Sydenhan objetiva reduzir as repercussões clínicas e, apesar de não ter propriedades curativas ou atuar na involução das sequelas cardíacas, influencia de modo significativo na morbidade da doença. A Tabela 3 apresenta os esquemas de erradicação do estreptococo ― profilaxia primária ― preconizados nas Diretrizes Brasileiras para Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre Reumática da Sociedade Brasileira de Cardiologia, da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Nesse contexto, devem-se utilizar drogas bactericidas com manutenção de níveis séricos por dez dias, pois, além de tratar a infecção, é também objetivo do tratamento, a erradicação do estreptococo e, portanto, evitar a exposição antigênica do paciente à bactéria e impedir a transmissão de cepas reumatogênicas à comunidade. Tetraciclina, sulfas e cloranfenicol não devem ser utilizados, devido à alta prevalência de resistência a essas drogas e por não erradicarem a bactéria da orofaringe.14 No tratamento da artrite, o ácido acetilsalicílico (AAS) é a droga de primeira linha. O naproxeno, na dose de 10-20 mg/kg/dia, em duas tomadas diárias e por tempo de uso semelhante à do AAS, tem sido considerado uma alternativa terapêutica (Tabela 4). O uso de anti-inflamatórios na cardite visa a melhora dos sintomas decorrentes do processo inflamatório com redução do tempo das manifestações clínicas, uma vez que não existem evidências de modificação do prognóstico da lesão cardíaca, que tem evolução independente da ação da medicação. Dessa forma, nos pacientes com cardite leve, não existe consenso sobre o uso e tipo de anti-inflamatórios (Tabela 5). A pulsoterapia com altas doses de corticosteróides, por via intravenosa, está indicada para os casos graves com insuficiência cardíaca de difícil controle ou refratários à terapêutica convencional ou para pacientes que demandam intervenção cirúrgica em caráter de emergência. Na coréia, o uso do haloperidol ou acido valpróico está indicado nos casos com manifestações mais significativas e com interferência 14 nas atividades habituais do paciente (TABELA 6). O fenobarbital e os benzodiazepínicos podem ser utilizados como terapêutica complementar. TABELA 3 – Tratamento da faringoamigdalite aguda: profilaxia primária14 Antibiótico Doses Penicilina G Benzatina 120000 UI, IM, peso ≥20 Kg 600 000 UI, IM, peso < 20Kg (Dose de erradicação e primeira dose da profilática secundária) Penicilina V 25 -50 mg/Kg/dia VO, de 8/8h ou 12/12h, durante 10 dias Amoxicilina 30 a 50 mg/Kg/dia, VO, de 8/8h ou 12/12h, durante 10 dias Ampicilina 100mh/Kg/dia , VO, de 8/8h, durante 10 dias Em caso de alergia à penicilina: Estearato de Eritromicina 40 mg/Kg/dia (dose máxima 1g/dia), VO, 8/8hou 12/12h, durante 10 dias Clindamicina 115-25 mg/Kg/dia (dose máxima 1800mg/dia), VO,de 8/8h, durante 10 dias Azitromicina 20mg/Kg/dia (dose máxima 50mg/dia), VO, durante 3 dias TABELA 4 - Tratamento do acometimento articular sem cardite14 Manifestação articular Tratamento Artralgia Analgésico sem efeito antiinflamatório Artrite AAS na dose de 80 a 100 mg/Kg/dia (máximo de 4g), em quatro tomadas diárias, durante duas semanas. Redução da dose para 60 mg/Kg/dia e manutenção por mais duas semanas. 15 TABELA 5 – Tratamento da cardite14 Graus de acometimento Tratamento cardíaco Cardite leve Prednisona: 1-2mg/Kg/dia (dose máx. 60mg/dia), VO, durante 10 dias redução de 20% da dose em uso a cada semana; ou AAS ( esquema do tratamento da artrite); ou não utilizar antiinflamatório. Cardite moderada Prednisona: 1 a 2mg/Kg/dia, VO,durante 14 dias redução de 20% da dose em uso a cada semana. Cardite grave Prednisona: 2mg/Kg/dia, VO,durante 21 dias de 20% da dose em uso a cada semana. redução Pulsoterapia: metilprednisolona, I.V, 30 mg/Kg/dia (máx. de 1g/dia), em séries de três doses semanais pela manhã, no total de duas a quatro séries. Para cardite grave e refratária ao tratamento inicial TABELA 6 – Tratamento da coréia de Sydenhan14 Graus de coréia Tratamento Coréia leve - Repouso e ambiente tranquilo - Ácido valpróico: 10 mg/Kg/dia, VO, com aumento de 10 mg/Kg/dia cada semana até a dose máxima de 30 mg/Kg/dia. Após três semanas sem sintomas, iniciar a redução do medicamento. Ou - Haloperidol: iniciar com 1mg/dia, VO em duas tomadas; aumentar 0,5mg a cada três dias até melhora dos sintomas, podendo atingir a dose máxima de 5mg/dia. 16 6. PROFILAXIAS PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA Considerando os aspectos genéticos e imunológicos envolvidos na patogênese da FR, sobre os quais não se pode atuar preventivamente, as profilaxias primárias e secundárias constituem as únicas opções de controle da doença. No nosso meio, lamentavelmente, ocorre inversão na seqüência dos níveis de profilaxia, devido ao ciclo vicioso que se estabelece: o indivíduo tem FR porque não realiza o tratamento da faringoamigdalite estreptocócica ― profilaxia primária ― e a maioria chega à cirurgia ―profilaxia terciária―, porque não previne as recorrências ―profilaxia secundária.1 A prevenção do primeiro surto da doença ― profilaxia primária ― implica na redução do contato com o estreptococo e no tratamento adequado da faringoamigdalite estreptocócica com droga bactericida (Tabela 3). É importante a manutenção de níveis terapêuticos por 10 dias, pois, além do tratamento da infecção, a medida terapêutica visa também à erradicação do estreptococo impedindo assim a exposição do paciente aos antígenos estreptocócicos. Outro aspecto a ser considerado é o risco de propagação do estreptococo beta-hemolítico do grupo A, que apresenta elevada taxa de transmissão, em torno de 35%.20 Nesse contexto, como resultado do tratamento adequado, o risco de contágio 24 horas após o início da medicação é mínimo. O estreptococo é sensível à penicilina, que ainda é a droga de escolha para o tratamento. A profilaxia de novos episódios agudos ou recorrências da doença ― profilaxia secundária― tem o objetivo de impedir o aparecimento de novas lesões ou agravamento de lesões valvares já estabelecidas. A droga de escolha, devido ao nível de proteção e eficácia, é a penicilina benzatina e, nos casos de alergia ao medicamento, a segunda opção é a sulfadiazina. Nos raros casos de alergia a ambas, a opção terapêutica é a clindamicina (TABELA 7). 17 TABELA 7 – Recomendações para profilaxia secundária da febre reumática14 Medicamento Dose Penicilna G benzatina 1200000 UI, IM para peso ≥20 Kg, aplicada a cada 21 dias 600 000 UI, IM para peso < 20Kg, aplicada a cada 21 dias Penicilina V 250 mg, VO, de 12/12 horas Em caso de alergia Sulfadiazina à penicilina 500 mg para peso < 30Kg, VO, 1 vez ao dia 1,0g para peso ≥ 30kg, VO, 1 vez ao dia Eritromicina 250 mg, VO, de 12/12 horas TABELA 8 – Duração da profilaxia secundária de acordo com o quadro clínico e ecocardiográfico na fase crônica* Categoria Duração FR sem cardite prévia Até 21 anos ou 5 anos após o último surto, considerando o período que for mais longo FR com cardite prévia, insuficiência mitral leve residual ou sem sequela Até 25 anos ou 10 anos após o último surto, considerando o período que for mais longo FR com cardite prévia, sequela valvar moderada ou grave. Até os 40 anos ou por toda a vida Após cirurgia valvar Por toda a vida A duração da profilaxia secundária depende da idade do paciente, tipo de manifestação da doença, presença de sequela valvar e seu grau de repercussão hemodinâmica, além do contexto epidemiológico. Profilaxia por períodos mais prolongados, às vezes por toda a vida, é recomendada para pacientes submetidos a troca valvares e também para aqueles com maior risco de novos episódios de estreptococcia, como os pacientes que exercem atividades na área pediátrica, como profissionais da área da saúde , educação 18 e cuidadores (TABELA 8). Apesar do grande avanço no conhecimento da doença e da experiência clínica acumulada, a patogênese da FR não está totalmente elucidada. Como conseqüência, não existe tratamento curativo para a febre reumática. Os avanços na pesquisa abrem novas perspectivas para a identificação de um marcador de susceptibilidade e para a confecção de uma vacina antiestreptocócica. 7. REFERÊNCIAS 1. 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