III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Mulheres com transtorno mental: reflexões sobre o exercício da maternidade. Cibele da silva Henriques1 Resumo: O presente trabalho é fruto da minha inserção como residente em Serviço Social no Programa de Saúde Mental realizado na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto e busca apontar reflexões sobre o exercício da maternidade das mulheres com transtorno mental. Através de uma breve apresentação da construção social da maternidade e da sistematização das reflexões suscitadas no cotidiano profissional sobre o processo da maternagem, buscaremos aproximações com o universo das mulheres-mães adoecidas psiquicamente. Palavras-chave: Mulheres com transtorno mental; Maternidade; Serviço social. Abstract: This work is the result of my inclusion as a resident in Social Work in Mental Health Program was carried out at Academic Lecturer of Psychiatry, University Hospital Pedro Ernesto and seeks to identify the reflections on the exercise of motherhood for women with mental disorders. Through a brief presentation of the social construction of motherhood and systematization of ideas raised in the daily work on the process of mothering, seek approximations to the universe of women-mother mentally diseased. Keywords: Women with mental illness, motherhood, social service. Introdução Em minha experiência como residente de Serviço Social da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria observei que há um número expressivo de mulheres em acompanhamento psiquiátrico com dificuldades de exercerem a maternagem. Isso ocorre por muitas razões, sobretudo, por causa do transtorno mental que provoca mudanças comportamentais que refletem no exercício da maternidade, mas que não impossibilitam a construção do vínculo afetivo e maternal. 1 Assistente Social graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em Serviço Social e Saúde pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), ex- residente de Serviço Social do Programa de Saúde Mental do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ). Atualmente na Fundação Saúde do Estado do Rio de Janeiro. 1 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Na pesquisa realizada com as a mulheres-mães usuárias dos serviços psiquiátricos da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria, se consubstanciou alguns apontamentos que convergem para a reflexão que o transtorno mental pode dificultar o cuidado materno permanente e contínuo, mas não torna impraticável a maternagem. No entanto, o estudo revelou algumas especificidades das mulheres portadoras de transtorno mental, como por exemplo, precisam lutar pelo direito da livre escolha da maternidade e se desejarem pelo direito do exercício da maternidade. Pois assim como as demais mulheres precisam ter o direito de escolha sobre seu corpo, sua sexualidade, seu aparelho reprodutivo e caso queiram de exercerem papéis historicamente atribuídos ao sexo feminino ou de não desempenharem esses papéis femininos. Partimos do pressuposto que a reflexão sobre esse tema não é fácil, pois todos nós estamos imbuídos numa ideologia de maternidade, o que não nos torna neutro diante da realidade abordada, por isso é de suma importância repensar o exercício da maternidade das mulheres com transtorno mental para que tais reflexões a luz do pressuposto da reforma psiquiátrica possa reorientar nosso processo de trabalho no campo da saúde mental. A construção social da maternidade A Maternidade consiste num sistema social que foi construído por participantes da sociedade capitalista que conceberam historicamente determinadas normas e modos de agir para as mulheres, tais condutas são produto das relações de poder e de dominação do sexo masculino sobre o sexo feminino. A valorização da infância e o nucleamento da família sob os moldes burgueses consubstanciaram a construção social da maternidade. Na Europa da Idade Média a infância não era um período valorizado, ou seja, as crianças não tinham valor. Eram vistas como demoníacas, animalescas, malformadas e fisicamente frágeis quando não estavam sendo alimentadas, drogadas, açoitadas ou atiradas para o alto, eram deixadas de lado o maior tempo possível e, inclusive os bebês eram enrolados em cueiros bem apertados para que enrijecessem rápido e não se machucassem. Esse conceito muda a partir dos séculos XVII e XVIII, momento em que, a infância passou a ter valor e ser compreendida como um período importante, valioso, 2 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA impregnado de inocência, ou seja, especial. Por conseguinte, o tratamento destinado às crianças foi reformulado, tanto que, foram criadas roupas específicas, brinquedos, livros, escolas especiais e, inclusive o açoite foi desprezado, os cueiros abandonados e as palavras “papai” e “mamãe” passaram a ser valorizadas e usadas. Entre o final do século XVIII e início do século XIX, a ideologia da maternidade intensificada introduziu na relação mãe e filho a necessidade do contrato direto, o sentimento do amor, do afeto e instilou condutas maternas voltadas para o desenvolvimento saudável da criança. Foram publicados manuais que ensinavam as mães como educarem seus filhos, neles continham a idéia de “lar, doce lar”, de mulheres dóceis, frágeis que tinham a responsabilidade de protegerem seus filhos “angelicais, bondosos e inocentes”. No século XX, surgiu a ideologia da permissividade que embasou o os manuais contemporâneos sobre a Maternidade. Tal concepção estava centrada na criança e na verificação de suas necessidades. Tais precisões passaram a ser interpretadas pelos pais com o auxílio dos profissionais que foram recrutados para assistiram os pais no processo de racionalização da educação infanto-juvenil. Tais ideologias imprimiram na sociedade modelos maternais que foram basilares para a constituição do modelo burguês de família, pois o cuidado da criança possibilitou a constituição social da família assim como do processo de maternagem baseado no afeto e no cuidado direto quer seja de modo intensificado ou permissivo. A função nutritícia e maternante não é natural nem espontânea, a maternidade como sinônimo de amor, abnegação e felicidade foi construída socialmente pela sociedade nos idos do século XVIII. E ainda que à medida que a sociedade estima ou desestima a maternidade, são projetados ou reprojetados no imaginário social a imagem das mulheres-mães, como “mães boas” ou como “mães más”³. É importante ressaltar que a imagem das mulheres mães sempre foi contraditória, até o século XVII, era vistas como pecadoras, assim como Eva, figura bíblica que teve relações sexuais com Adão no paraíso, ato considerado imoral. A partir do século XVIII, passam a serem visualizadas como místicas, ou seja, como, Maria, mãe de Jesus, figura bíblica que se sacrificou por causa do filho e tinha idoneidade moral. Se num primeiro momento foi necessário consolidar a figura materna, intensificando o cuidado com as crianças, instilando amor na relação entre mães e 3 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA filhos, atribuindo às mulheres papéis, deveres e responsabilidades que iam desde cuidar da saúde, higiene, educação moral e religiosa das crianças como prestarem conta desses cuidados aos profissionais especializados. Num segundo momento, requisitou-se das mulheres-mães a responsabilidade de formarem cidadãos psiquicamente saudáveis, ou seja, não desviantes. Sua principal tarefa e dever era para com o desenvolvimento psíquico e emocional da criança, o que incutiu no processo de maternagem o sentimento de culpa. A compreensão da maternidade como um constructo social, possibilitou o entendimento que a função reprodutiva não é o destino único das mulheres e que o ato de reproduzir é uma escolha e não uma condição. Contemporaneamente, o surgimento da pílula anticoncepcional, nos idos de 70, possibilitou a dissociação do exercício da sexualidade dos eventos da reprodução, da maternidade, do matrimônio e da monogamia. Tal avanço científico fortaleceu os ideais feministas que lutavam pela liberação sexual da mulher e pela livre escolha da maternidade. O protagonismo político do movimento feminista foi de suma importância para a reconstrução do papel social da mulher na sociedade, para seu reconhecimento como sujeito histórico, portadora de direitos civis, políticos e sociais e publicizou as sujeições sofridas pelas mulheres advindas das assimetrias de gênero que subsumia as mulheres ao biológico e a ao aspecto reprodutivo. A reconfiguração da condição do que é ser mulher, ser mãe, na sociedade somente foi possível por causa da insurgência do movimento feminista que desde a revolução francesa semeou uma nova construção social do feminino. A célebre frase do movimento feminista “ter um bebe quando quiser, se eu quiser” promoveu mudanças no perfil da prática social da maternidade. No Brasil, a ideologia da maternidade intensificada ganha evidencia com a obra do Médico Ricardo de Lamare “A Vida do Bebê”, publicado em 1963, que orientou as mulheres-mães como educarem seus filhos, como lhes imprimir bons hábitos, bons comportamentos, essenciais para uma infância saudável. Entretanto essa literatura não alicerçou as praticas maternas das mulheres das classes mais empobrecidas, para estas coube a correção pedagógica e moral de condutas maternas via aparato estatal, foram requisitados pelo Estado profissionais especializados que passaram a educar moralmente essas mulheres para o exercício da boa maternidade, pois elas tinham 4 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA dificuldades em atender os apelos maternalistas devido a condição de trabalhadoras e provedoras do lar. Logo, os filhos deixam de ser bem único dos pais e passam a ser também propriedade do Estado. As primeiras legislações brasileiras referentes à infância incorporaram a visão higienista (proteção do meio e do indivíduo) e a visão jurídica (repressiva e moralista). Tal entendimento fez com que a resolução dos problemas infantis fosse realizada por meio dos mecanismos de “tutela”, “guarda”, “vigilância”, “educação”, “preservação” e “reforma”. A regulamentação da infância prescreveu deveres para as mulheres-mães, como por exemplo, a obrigação da proteção e do cuidado direto, o provimento dos cuidados de saúde e de puericultura. Já para os Pais coube o dever da subsistência infanto-juvenil, a obtenção de recursos financeiros para o provimento das necessidades familiares. A inobservância das leis, regras e normas, gerou penalidades. Os serviços de assistência infanto-juvenil passaram a qualificar os comportamentos das mães e seu desempenho a partir da concepção do bem e do mal. A boas mães eram as disciplinadas, as zelosas e as obedientes e as más mães eram as nervosas, indisciplinadas, desobedientes, questionadoras que não aceitavam as normas convencionadas pela sociedade e pelos profissionais. Contudo, a politica social brasileira ao matriciar a família como “fonte privilegiada de proteção social” não considerou os diferentes arranjos familiares e as mudanças na sua organização, estrutura e gestão, que se prenunciavam desde meados dos anos 80. O processo de urbanização e industrialização nas sociedades em desenvolvimento promoveu um desmonte da estrutura familiar produtiva (pequena agricultura camponesa, indústria caseira), e, por conseguinte, o declínio do patriarcado e dos princípios religiosos e comunitários mais conservadores. Tais modificações provocaram alterações na estrutura familiar clássica, dentre as quais: a diminuição do tamanho das famílias, a ampliação da proporção de casais maduros sem filhos, o aumento do número de separações e divórcios, o afrouxamento dos laços afetivos, o livre exercício sexual sem fins reprodutivos, o acréscimo do número de domicílios compostos por pessoas sozinhas (viúvos, adultos jovens, idosos), alterações nas relações de gênero, ou seja, nos papéis socialmente determinados do homem (provedor) e da mulher (responsável pelo espaço doméstico) e o crescimento das famílias monoparentais que são aquelas chefiadas por um único mantenedor (masculino ou 5 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA feminino), prevalência da chefia feminina. Essas transformações na estrutura familiar promoveram reconfigurações no processo de maternagem. Um exemplo disso são as mães modernas que não se dedicam integralmente a gestão da vida privada, ao evento da maternidade, em geral, transferem o cuidado materno para terceiros, amigos ou familiares para que possam adentrar no espaço público, no mundo do trabalho. O processo de transferência da maternidade, ao longo dos tempos, cobriu as deficiências das estruturas urbanas que oferecem poucos serviços assistenciais e que essa prática protecionista, desqualificada pelo setor público, se configura uma prática assistencial histórica que perpassa várias gerações. Compartilhamos do entendimento que na atualidade há modelos diferenciados de maternagem que precisam ser publicizados. É preciso instituir uma discussão mais plural acerca da maternidade e menos impositiva, hierarquizada e normativa em relação às mulheres-mães. A nova condição de mulher na sociedade participe da esfera produtiva, política e privada se contrapõem aos apelos maternalistas impostos pelo sistema de ideias que intensifica o cuidado materno. Há na atualidade a coexistência de diferentes modelos maternais que não são reconhecidos pelo aparato estatal, jurídico-assistencial e pela sociedade. Cabe destacar que a maternidade é uma construção social, que deve ser vivenciada, construída pelos sujeitos envolvidos, pais e mães, logo, é possível haver formas diferentes de cuidar, que são maternais, mas que fogem aos modelos e padrões pré-estabelecidos, idealizados. Ademais as mulheres que não desejam exercer a maternidade tem que ter o direito de expressá-la. E aquelas que a desejam, o de exercê-la de modo diferenciado. Em ambas as situações a não filiação a uma ideologia não pode caracterizá-las como desumanas ou negligentes. Mulheres com transtorno mental: reflexões sobre o exercício da maternidade. Refletir sobre o exercício da maternidade das mulheres com transtorno mental possibilita conhecer o seu processo de saúde-doença e as estratégias construídas no cotidiano social que podem revelar obviedades, que possibilitem ao assistente social uma intervenção mais compromissada com demandas dos usuários, os pressupostos da reforma psiquiátrica, da reforma sanitária e do projeto ético-político profissional. 6 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A inserção como residente de Serviço Social do Programa de Saúde Mental me possibilitou a realização de atendimentos quer seja no ambulatório quer seja na enfermaria da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria, sob a preceptoria do staff de serviço social da saúde mental que gerou alguns desdobramentos em decorrência do adoecimento psíquico feminino e exercício da maternidade. Esse cotidiano profissional me fez pesquisar sobre a realidade das mulheres-mães adoecidas psiquicamente que eram usuárias dos serviços técnico-assistenciais da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria. A metodologia de pesquisa utilizada foi à realização de entrevistas semiestruturadas com perguntas abertas, a fim de, investigar como foi a gestação, a história do nascimento, o exercício da maternidade, o cotidiano familiar, o cuidado com os filhos e se possui ou não uma rede de suporte assistencial (formal ou informal) para ambos os sujeitos (mãe e filhos). Tivemos dificuldades de realizar as entrevistas, pois nem todas as usuárias concordaram em realizá-la. A apreciação de prontuários, das fichas sociais do serviço social. De acordo com as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982 e 1993) realizamos a confecção do termo de Termo de Consentimento Informado que foi ofertado e esclarecido as usuárias que aceitaram a participação na pesquisa. Nos casos estudados foram perceptíveis às dificuldades que as mulheres portadoras de transtorno mental enfrentam para exercerem a maternagem quer seja no âmbito institucional quer seja no âmbito familiar. Pois, basta terem o diagnóstico de portadoras de transtorno mental para que seus direitos sejam diminuídos ou até mesmo extraviados. Durante a pesquisa, observei que as mulheres-mães adoecidas psiquicamente buscavam auxílio médico, psicológico e social para seu sofrimento e principalmente o resgaste do vinculo materno com seus filhos que foram subtraídos precocemente de sua trajetória de vida. Como por exemplo, na situação de E., 39 anos, sexo feminino, parda, esquizofrênica, residente do município de São Pedro de Aldeia, que ficou 14 anos institucionalizada na Colônia de Rio Bonito-RJ, fechada por determinação judicial, e que estava em acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial de São Pedro de Aldeia, mas que recorrentemente viajava para o município do Rio de Janeiro sem recursos financeiros, se colocando em condição vulnerável por causa de sua filha que por determinação judicial foi trazida para o município do Rio de Janeiro para morar com o pai que detém sua guarda definitiva. Tal fato, importantíssimo, se misturava aos 7 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA seus delírios e ressonava para alguns profissionais como a busca a um “elo perdido”, algo impossível, pois a sua desvinculação a essa filha era concreta, pois ambas não mantinham contato. Apesar da distância e do tempo decorrido, a figura da filha estava presente na ideação da mãe, tanto que ela tinha plena consciência do período da gestação, do nascimento e manteve preservado, apesar do adoecimento psíquico, o desejo de cuidar de sua filha. Era visível sua angústia e desespero em busca daquilo que era por direito seu e lhe tomaram sem sua permissão: o direito a maternagem. O apego maternal se desenvolve através da transferência que se estabelece entre a criança e mãe nos primeiros momentos de sua vida, pois a primeira pessoa com quem o bebê realiza um processo de transferência é a mãe, seja pela sucção do alimento ou pelo cuidado em si. E que nos casos de perda e separação, os estados de angústia, desespero e desapego podem facilmente se manifestar sempre que a criança ou a mãe se separam por longos períodos. E ainda que, inicialmente ocorre a sequência das seguintes reações: protesto, desespero e desapego. No estudo realizado, verificamos algumas mulheres portadoras de transtorno mentais mesmo distanciadas de seus filhos não se desapegam do vínculo já instituído, e, portanto buscam incessantemente o direito de exercerem a maternidade, o reconhecimento dos filhos e o amor filial. É importante ressaltar que E. percorreu as diferentes institucionalidades: saúde, assistência social e justiça, e mesmo assim não houve espaço, escuta e acolhimento para a narrativa da usuária que desejava, sobretudo, estar próxima de sua filha nem que fosse em alguns momentos, nem sequer foi lhe dado a opção de uma reinserção familiar que possibilitasse o restabelecimento do contato com a filha. Isso nos mostra que também há dificuldades das instituições se adequarem às necessidades e condições dos usuários que são singulares. Sobretudo, é preciso que haja um processo de ressignificação nas instituições para que elas se adequem as legislações infraconstitucionais e assim darem respostas plausíveis as demandas exponenciadas pelos usuários. A pesquisa nos revelou que o adoecimento psíquico feminino, tem suas especificidades, pois ser mulher e sofrer psiquicamente é visto de forma diversa pelos profissionais de saúde, pelos familiares, pelas próprias mulheres. Sem dúvida, o transtorno mental provoca mudanças comportamentais que refletem no exercício da feminilidade, no vinculo conjugal, na atividade laboral e estudantil e no processo de 8 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA maternagem, mas não impossibilita a construção do feminino, do vínculo afetivo, da produtividade laboral e intelectual nem a realização do cuidado materno. Embora haja a presunção da garantia de direitos para essas pessoas, sua cidadania é questionada, principalmente em relação ao exercício da maternidade/paternidade, pois a sociedade burguesa vincula o transtorno mental à periculosidade e, portanto, indagam quaisquer possibilidades de cuidado em relação aos filhos, ou seja, não acreditam que eles são capazes de educar uma criança e, até mesmo, não entendem como eles vão cuidar do outro se necessitam de cuidados. A representação social da loucura, centrada na alteridade, ainda presente no imaginário social também dificulta a insurgência de novas posturas, práticas e consciências que possibilitem a reinserção dos portadores de transtorno mental no cotidiano social assim como a representação de papéis tão idealizados pela sociedade burguesa como ser mãe ou pai. O fato é como assegurar a tais sujeitos a tão estimada reinserção social e a manutenção dos vínculos familiares preconizadas pela Lei 10.216 de 06 de abril de 2001, pilar legal da reforma psiquiátrica, se o que verificamos é que a sociedade estigmatiza homens e mulheres por possuírem transtorno mental, privando-lhes do exercício da sexualidade e impossibilitando-lhes de exercer papéis historicamente atribuídos. Enfim, são destituídos duplamente da condição de sujeito quer seja pelo adoecimento psíquico quer seja pela diferença. Esse interdito cultural, social, societário dificulta as mulheres adoecidas psiquicamente de exercerem o cuidado dos seus filhos diferentemente do que ocorre com as mulheres que não possuem transtorno mental que lutaram a luz do movimento feminista pelo direito de escolha da maternidade, como? quando? quantos filhos quer ter? como vai criar? simplesmente não ter filhos. Na medida em que o processo de maternagem é considerado uma condição necessária para a vida saudável do bebê, as mulheres que não são consideradas saudáveis são alijadas desse processo, pois a maternidade não deve ser uma saída para as faltas dessa mulher que não dispõe de habilidades necessárias. No presente estudo tornou perceptível que as necessidades da criança são colocadas em primeiro lugar, à frente das necessidades da mãe, busca-se proteger as crianças, em contraponto, afastam delas as mães que não se enquadram aos padrões maternais socialmente aceitos. Concomitantemente se retira o direito da mãe ter um 9 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA filho e do filho ter uma mãe em prol de uma ideologia materna intensificada que está enraizada nos espaços assistenciais, no aparato jurídico-assistencial, na família e na sociedade. A Ideologia da boa maternidade, ainda presente no imaginário social, mitifica o processo de maternagem, o que, impede a pactuação de novas formas de “ser mãe” na sociedade. Justamente é essa idealização que dificulta o exercício da maternidade pelas mulheres portadoras de transtorno mental. Noutro caso estudado M., 52 anos, sexo feminino, negra, residente em um bairro do município de Duque de Caxias, mãe de quatro filhos e avó de quatro netos também teve dificuldades de vivenciar a experiência da maternidade, pois tanto a família quanto as instituições de tratamento psiquiátrico pelas quais passou não construíram um projeto terapêutico que contemplasse novas possibilidades de cuidado, o que, fez com que seus filhos circulassem entre os familiares e fossem criados por eles. Portanto o acompanhamento de saúde e escolar, as festas do colégio, enfim, as atividades referentes à maternidade não foram exercidas por ela, foram transferidas para sua mãe e suas irmãs, fora para seu pai e seu esposo. A circulação de crianças no interior das famílias faz parte da cultura popular e se constitui em uma prática comum nas famílias pobres, o que, reforça a solidariedade do grupo familiar como um todo. Parte da hipótese de que no caso brasileiro as formações de redes sociais voltadas para as crianças se dão por dois motivos: por causa da sobrevivência das crianças e para consolidar certas redes já existentes. Durante a entrevista M. sinalizou que está tentando desconstruir a imagem que seus familiares têm dela de “louca”, “maluca”, como habitualmente lhe chamam e, por conseguinte, seus filhos também, o que contribui para o interdito do exercício da maternidade. Mas isso é difícil por conta das crises contínuas e internações sucessivas que reformam esse imaginário da família. A idealização da maternidade e da loucura pelos familiares e profissionais e pelas próprias mulheres que vão criar tabus. As mulheres portadoras de transtorno mental possuem dificuldades reais de desempenharem o cuidado dos seus filhos, entretanto, tais entraves não impedem que essas mulheres exerçam a maternagem. 10 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Conclusão A análise demonstrou que as relações interpessoais, maternais e afetivas das mulheres com transtorno mental são ressignicadas pelo adoecimento, em geral, chegam aos espaços assistenciais psiquiátricos sozinhas, sem a presença de familiares, filhos ou companheiros, pois os laços familiares, maternais e afetivos que constroem são desconstruídos pelo adoecimento psiquiátrico ou sequer constroem tais vínculos. Partindo do pressuposto da reforma psiquiátrica que objetiva a instituição de novos padrões assistenciais que possam acolher o sujeito em sofrimento e promover a sua reinserção social e a manutenção dos vínculos familiares e comunitários é de suma importância que as mulheres com transtorno mental possam ser sujeitos de direitos civis, políticos e sociais, e, sobretudo, caso queiram possam exercer a maternidade. O novo padrão assistencial proposto pela recente reforma psiquiátrica brasileira recolocou os doentes mentais sob o cuidado das suas famílias e, inclusive propiciou a eles a liberdade e a possibilidade de vivenciarem as práticas sociais antes não vivenciadas, como a maternidade. Entretanto, a sociedade resiste em aceitar a mistura de sujeitos “ditos normais” com sujeitos “ditos anormais”. O desconhecimento da sociedade acerca da loucura causada pela atenção biomédica dispensada ao louco durante anos demarcou na sociedade o medo, a indiferença, o desprezo que impedem a integração do sujeito adoecido psiquicamente na comunidade, e, inclusive apesar da conquista legal da Lei 10.210 de 6 de abril de 2001, ocorrem dificuldades da sociedade, dos profissionais, dos familiares reconhecerem os seus direitos. No geral, as pessoas ainda usam artifícios diversos que afastam os sujeitos com transtorno mental das reuniões locais, dos passeios, das festividades comemorativas. Antes o interdito, o isolamento do louco tinha a intenção real de impedir a impregnação da loucura, por meio do contato, da troca de fluidos (suor, saliva, esperma) e do sangue, atualmente, sabe-se que a loucura não é contagiosa, mas sim condicionada pelos determinantes sociais, culturais e genéticos. Então, é vital romper com as barreiras simbólicas, os mitos, os tabus, os falsos juízos de valor que ainda circulam no imaginário social da coletividade. A relação da sociedade com os sujeitos com transtorno mental não deve ser uma relação de dominantes e dominados. Os dominantes por possuírem características 11 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA semelhantes aos dominados reduzem essas semelhanças, tornando-as inferiores e atribuindo-lhes menor qualidade para que se possam estabelecer uma delimitação indentitária e, por conseguinte, uma demarcação territorial que permita a separação dos corpos e de práticas sociais comuns, como a maternidade. É notório que as representações sociais que forjaram a construção dos asilos sobreviveram às lutas antimaniconiais, ao movimento de reforma psiquiátrica que se espraiou em alguns países do Ocidente, às reflexões teóricas sobre o caráter e à natureza da loucura. Tais desencadeamentos históricos não foram capazes de derrubar práticas sociais excludentes e estigmatizantes, o que faz com que cotidianamente sejam criados muros invisíveis em torno dos sujeitos que possuem transtorno mental. Portanto, a abertura das portas do hospício não garantiu a eles a liberdade, o direito de escolha, a realização dos seus desejos e sonhos. Compartilho do entendimento que o processo de maternagem deve ser vivenciado, construído pelas mulheres, de modo que possibilite a coexistência de diferentes concepções, de diferentes práticas sociais, que possam incorporar as diferenças e os diferentes ao lado dos pretensamente iguais. A pesquisa revelou que as mulheres com transtorno mental em decorrência do sofrimento psíquico possuem dificuldades de realizar o cuidado materno diferentemente das demais mulheres que não possuem transtorno mental, mas isso não as destitui do direito de ter filhos, de cuidar deles, ter quantos filhos quiserem, como quiserem dentro ou fora do núcleo familiar, e se não quiserem não tê-los. É fato que podem cuidar de seus filhos, desde que tenham assistência ou suporte familiar, comunitário e estatal, e, sobretudo, necessitam ter acesso aos serviços de saúde mental para que possam receber a assistência psiquiátrica, psicológica, terapêutica e social consentânea as suas necessidades, buscando a manutenção dos vínculos afetivos e familiares, a reinserção social, comunitária e laboral como preconiza a legislação vigente. É necessária a reconstrução da história, a reconfiguração do conceito de maternidade, para que este possa abarcar a pluralidade de maternidades existentes, produto dos diversos arranjos familiares e das várias feminilidades existentes e não somente os interesses da sociedade, da família e dos homens. 12 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Referências Alencar, Mônica Maria Torres de. Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos 1990 e seu impacto no âmbito da família. Termo In: SALES, Mione. CASTRO, Maurílio. LEAL, Cristina (Orgs). Política Social, Família e Juventude: Uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2004,p.62-77. Arantes, Esther Maria de Magalhães. Rostos de crianças no Brasil. Termo In: Rizzini, Irene & Pilotti, Francisco (Org). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 2º edição revisada. 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