1 PARAÍSO FISCAL, INFERNO SOCIAL Maria Cristina Batista Soares1 Mariana Jacob de Faria Martini2 RESUMO Este ensaio pretende discutir como a não concretização da seguridade social conforme prevista na Constituição Federal está interferindo na execução de políticas universais no Brasil. Os recursos que deveriam ser utilizados para tais políticas são desviados, principalmente por meio da DRU-Desvinculação de Receitas da União e utilizados a favor do capital. O ensaio irá discutir como ocorre a garantia do paraíso fiscal de uma minoria abastada em detrimento do inferno social enfrentado pela população de menor poder aquisitivo. Irá apontar no final propostas de reversão do quadro instaurado. Palavras-chave: Seguridade Social, Neoliberalismo, Proteção Social 1 Assistente Social, especializada em Sistemas de Proteção Social no Brasil- IEC/PUCMINAS. Atua no CAPS AD ( Betim) e Hospital Municipal de Contagem 2 Assistente Social, especializada em Gestão Hospitalar- FUMEC e Sistemas de Proteção Social no BrasilIEC/PUCMINAS. Atua no SAMU-BH 2 INTRODUÇÃO A promulgação da Constituição Federal de 1988 foi considerada um avanço no campo dos direitos sociais, sendo o conceito da seguridade social inovador. Entretanto, a concretização da seguridade social encontrou fortes entraves com a predominância dos ideais neoliberais na década de 1990. O neoliberalismo traz consigo o discurso da prática da restrição no financiamento das políticas sociais e trouxe também o desemprego estrutural e a informalidade do mercado de trabalho. Temos neste período conseqüências sociais graves. Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta o empobrecimento da classe média brasileira em 2005. Tavares (2003) ilustra neste período o surgimento dos “novos pobres”. Este contingente não é tão miserável a ponto de merecer a proteção social focalizada do Estado, mas por sua vez, apresenta dificuldades sociais importantes. Neste contexto, instaura-se o que denominamos de inferno social. Por outro lado, o neoliberalismo traz no seu bojo a financeirização da riqueza onde tem-se o empoderamento do fundo público pelos detentores do capital portador de juros e dos rentistas para a composição do superávit primário e transferência de juros para um total de 20 mil famílias, conforme Pochmann (2004). Neste contexto, instaura-se, o que chamamos de paraíso fiscal. Breve histórico da proteção social Com o advento da Revolução Russa de 1917, várias tentativas de implantar a ditadura do proletariado foram substituídas pela ditadura do partido, pois não tinham experienciado a revolução sangrenta rumo ao socialismo. Nesse sentido, grande parte das nações trilharam o caminho das reformas da social democracia construindo o Estado Bem de Estar Social. 3 O Welfare State está intimamente relacionado com as igualdades dos direitos sociais. Constitui-se em uma opção política para garantir a continuidade do regime capitalista, seu auge ocorre em um momento de crise deste sistema. O Estado intervém na sociedade através de políticas de proteção social, regula o mercado, porém mantém a integridade da produção capitalista. Márcio Pochann (2004), explica que as motivações de cunho pós liberal, incentivaram a criação de Estado de Bem Estar Social para proteger os mais pobres considerados incapazes de sobreviverem. Baseado na análise de Pochmann (2004), podemos dizer que apesar do Brasil ter conseguido avançar no processo de industrialização, não construiu um sistema de proteção social nos marcos do Welfare State. Esta proteção se baseava na meritocracia particularista, quem tinha carteira assinada teria direito a proteção. Os trabalhadores do campo eram a maioria e não possuíam carteira assinada, portanto estavam fora da proteção social, aprofundando as desigualdades sociais impostas pelo capitalismo. O corporativismo de algumas categorias pela conquista de alguns privilégios e manutenção do status quo contribuíram para que o poder fosse distribuído de forma desigual no interior da sociedade. A visão da Social Democracia motivou a redistribuição de renda, através da montagem de uma estrutura secundária com cobrança de impostos progressivos sobre os mais ricos para transferir através dos fundos públicos para os mais pobres, no sentido de ter o controle da força de trabalho. Iremos verificar que, no Brasil, o financiamento do fundo público é por meio de impostos regressivos. A teoria Keynesiana vai afirmar que é necessário a presença do Estado para regular e para garantir a demanda agregada (conjunto de gastos dos consumidores investidores e poder público), através de medidas macroeconômicas. Contudo, estas medidas não podiam ser financiadas por impostos adicionais e sim através de gastos deficitários (contratação de empréstimos e emissão de moeda). 4 Dessa forma os trabalhadores brasileiros que buscaram conquistar direitos desde a época da escravidão, passaram pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas com algumas conquistas, apesar de serem com objetivo de controlar a iminente revolução da classe trabalhista. Getúlio sancionou a legislação trabalhista, mas combateu veementemente o comunismo. A ditadura militar agiu com crueldade, perseguindo, reprimindo, assassinando sindicalistas, personalidades, estudantes e colocando na clandestinidade o Partido Comunista Brasileiro. Além disso, abriu as portas para o capital internacional, enfatizando e dando continuidade a política de privatização, com cortes de direitos sociais, elevou a inflação a preços exorbitantes. O ministro Delfim Neto, então ministro da área econômica, utilizou o forte argumento do milagre econômico, tentando convencer a todos que primeiro tinha que crescer a renda econômica para garantir o crescimento social, empobrecendo com isto vergonhosamente a população, pois não repartiu o bolo tão prometido. Em contrapartida é no período getulista e da ditadura militar que tem-se, na história brasileira, o momento de maior crescimento do sistema de proteção social. Apesar destes direitos serem concessões para manter o regime de repressão à democracia, não podemos negar o avanço no campo dos direitos sociais. Assim, após tantas lutas e marcas deixadas pelo confronto entre capital e trabalho resulta-se, finalmente pela primeira vez na história do movimento dos trabalhadores do país, a possibilidade de participar da elaboração de construir uma constituição soberana que estava discutindo direitos com princípios universais, igualitários e equânimes. Mas na instituição dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, as forças conservadoras de direita, representando a elite oligárquica brasileira, se uniram contra as propostas dos progressistas para impedir os trabalhadores de ter direito de igualdade e acesso universal às políticas sociais. Tentaram que fossem obstruídas as conquistas por diversas manobras, no entanto, a adesão popular, as articulações de vários representantes dos diferentes segmentos da sociedade, dessa vez, obtiveram êxito. Entretanto, estas forças não foram suficientes para garantir um percentual fixo no financiamento da Seguridade Social com o intuito de garantir a aplicação dessa política 5 pública. E assim, desde a promulgação até os dias atuais a Constituição vem sendo ferida nos seus princípios fundamentais bem como os princípios tributários. É desta forma que comungamos com Fagnani (2007) quando analisa os paradigmas antagônicos: o Estado mínimo versus o embrionário Estado de Bem Estar Social; a seguridade social versus o seguro social; a universalidade versus a focalização; a prestação estatal dos serviços públicos versus a privatização; os direitos trabalhistas versus a desregulamentação e flexibilização. Tomamos a liberdade para acrescentar às idéias do autor, o concurso público versus a terceirização; a participação social versus autoritarismo; a autonomia versus a tutela. É necessário reconhecer que a Constituição de 1988 representou o avanço mais justiceiro que o Brasil ousou experimentar, entretanto a falta de unidade e continuidade dos movimentos, principalmente sindical, na luta para assegurar e ampliar direitos deu brecha para que novamente os detentores do poder ampliassem as manobras a favor dos capitalistas. Seguridade social O processo de redemocratização brasileiro, após o período de ditadura, culminou na promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988. Esta é considerada inovadora. Conforme Fagnani (2007), a CF representa um “sistema de proteção social conquistado na contramão do pensamento neoliberal hegemônico em escala mundial”. O auge da inovação da Carta Magna é a Seguridade Social onde selou-se um pacto social de garantia de direitos sociais integrando saúde, previdência, assistência social e seguro desemprego que deveriam ser financiados pelo Estado e toda a sociedade mediante impostos progressistas num sistema de equidade e justiça social. Fagnani (2007) irá afirmar que a CF significou o embrião do Estado de Bem –EstarSocial brasileiro. Não obstante este momento de redemocratização e conquista de direitos, 6 inicia-se no Brasil um movimento contrário: o de tentar impedir a concretização do pacto social onde as elites procuram reaver a “batalha” perdida com a seguridade social, através da intensificação das práticas neoliberais. Percebe-se assim que desde o final dos anos 1980 até os dias atuais temos, no Brasil, a convivência de dois pilares incompatíveis que é o neoliberalismo e seu Estado Mínimo e a proteção social com o Estado democrático de direitos universais. É a universalização versus a focalização das políticas sociais. O grande dilema é o de conciliar a agenda social e a neoliberal. Neoliberalismo e inferno social O neoliberalismo propaga a teoria de que a crise dos anos 1990 foi resultado de gastos excessivos do Estado. Assim, o Brasil estaria gastando em excesso, sendo urgente reordenar os gastos sociais. A universalidade representa, neste contexto, gastos desnecessários que irão interferir negativamente na livre concorrência do mercado de trabalho. Assim, em um país desigual como o Brasil a melhor forma de “erradicar” a pobreza é através de ações focalizadas de transferência de renda. Entretanto, os ajustes propostos pelos neoliberais não só não resolveram a questão social brasileira como trouxeram outros problemas sociais graves. Podemos citar a reestruturação do mercado de trabalho com a precarização e desemprego crescente criando uma massa de excluídos sociais. É o que Tavares (2008) denomina do surgimento dos “novos pobres” que irão agregar ao contingente dos “antigos pobres”, os miseráveis sociais. A reestruturação produtiva elevou a taxa de desemprego, precarizou a relação de trabalho, reduziu o assalariamento regulamentado, aumentou os vínculos menos protegidos (terceirização e quarteirização) e novas formas de contratação flexível sem vínculo e sem proteção social, além da queda dos rendimentos ocupados. 7 Ante a este quadro, dados do IBGE revelam o crescimento do número de milionários no Brasil sendo que aumentou em 10% no ano de 2006 quando comparado a 2005. Isto demonstra a intensificação da desigualdade social com o crescimento da camada mais abastada. Porém, os mesmos dados revelam o crescimento da camada mais pobre da população. A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD/IBGE) de 2006 indica queda na proporção de pobres na população brasileira, porém demonstra o aumento da proporção de pobres nas regiões metropolitanas de 35,5 % para 36,3 % entre 2005 e 2006. Percebe-se que a reestruturação produtiva afetou com maior intensidade as áreas metropolitanas quando comparadas às áreas urbanas não metropolitanas e as rurais. A tabela a seguir aponta as famílias que ultrapassaram a linha da pobreza com o recebimento do benefício do Programa Bolsa Família. Brasil e regiões Famílias beneficiárias do programa bolsa família em 2005, cuja renda mensal per capta no momento do cadastramento era igual ou inferior a R$ 50,00 Total Que ultrapassam a linha da pobreza com o recebimento R$ do benefício Total % Brasil 5.171.019 1.891.937 36,6 Norte 441.331 151.302 34,3 Nordeste 2.974.985 957.879 32,2 Sudeste 1.158.703 495.040 42,7 Sul 435.209 204.451 47,0 Centro-Oeste 160.811 83.265 51,8 Notas: Linha de extrema pobreza: renda familiar per capta de até R$ 50,00 mensais Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Catálogo de Indicadores, 2007. Elaboração própria Verifica-se que do total de famílias que estavam abaixo da linha da pobreza em 2005 (5.171.019) o Nordeste foi a região cujas famílias mais receberam o benefício (957.879), o que reflete a focalização das políticas governamentais. Entretanto, esta prioridade não se transformou em um número maior de pessoas que saíram da linha da pobreza. Percebe-se que no Nordeste, 32,2 % das famílias superaram esta linha através do benefício contra 51,8 8 % no Centro –Oeste e 42,7 % no Sudeste. Estas duas regiões possuem menores valores de beneficiários e maiores melhorias no padrão da renda. Percebe-se assim que a transferência de renda por si só não é capaz de superar as condições sociais precárias das famílias miseráveis brasileiras. Conforme Fagnani (2007), a escolha pela focalização ocorre porque as políticas de transferência de renda são mais baratas que as políticas universais. O gasto anual do Programa Bolsa Família é de 10 bilhões enquanto que os gastos previdenciários alcançam mais de 160 bilhões. Gastos menores na área social permitem maior liberdade de execução no orçamento, assim o governo consegue produzir maior folga no caixa para atender ao capital. É inegável o impacto positivo dos programas de transferência de renda no Brasil, dados da PNAD de 2004 e 2006 revelam a redução da proporção de domicílios com renda zero. Entretanto, o resultado destes programas no índice de desigualdade social e concentração de renda é alvo de contestação. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL, em seu último Panorama Social aponta que a distribuição de renda não alterou significativamente seu grau de concentração. A focalização do gasto social se revelou muito mais excludente pois não só excluiu boa parte dos “antigos pobres” como exclui os “novos pobres”. Este quadro social de desemprego, informalidade no mercado de trabalho, perda de direitos conquistados, empobrecimento da população, focalização excludente das políticas sociais, onde a pessoa precisa se colocar na situação de não-cidadão, isto é de miserabilidade, para ter acesso a um mínimo de sobrevivência, reflete o que chamamos de inferno social. Tal quadro não tem projeções futuras “animadoras” pois teremos mais tarde um enorme contingente de pessoas que não terão acesso a nenhum tipo de proteção social do governo, seja via previdência ou via assistência social. É preciso mudanças urgentes no sentido de estabelecer um padrão básico de inclusão social baseado ao conceito de dignidade e de cidadania, conforme previsto na Carta Magna. Conforme Sposati (1997), há uma dupla interpretação de mínimos sociais, uma que é restrita, que se funda na pobreza e no limiar da sobrevivência e outra que é ampla é cidadã 9 que se funda em um padrão básico de inclusão. Trata-se de estabelecer um padrão básico de proteção e inclusão para os segmentos mais vulneráveis e de baixo rendimento de nossa sociedade, que atualmente são submetidos as provas vexatórias excludentes com a focalização. Neste sentido, o estabelecimento do mínimo social amplo a todos os cidadãos, é incompatível com a seletividade e o focalismo. O mais alarmante nesta situação é que são os “novos pobres” que mais financiam o fundo público. O caráter regressista do sistema tributário brasileiro é fruto de impostos indiretos que penalizam a classe com menor poder aquisitivo. Conforme Salvador (2007), o Estado brasileiro é financiado por trabalhadores assalariados e pelas classes pobres, juntos são responsáveis por 61 % das receitas arrecadadas pela União. A partir de 1994 o governo iniciou uma política tributária de aumento na taxação sobre a renda do trabalhador e ao mesmo tempo de diminuição da taxação da renda do capital. Este processo ocorreu mediante leis infraconstitucionais que alteraram as alíquotas e congelaram as tabelas do Imposto de Renda. Aumentaram as taxas da Cofins e concederam privilégios à renda do capital. As alterações no Imposto de Renda e as leis infraconstitucionais que permitem isenções e menores taxas aos bancos, investidores nacionais e estrangeiros e empresários, fazem com que os trabalhadores paguem o dobro de impostos que os empresários e mais do que os bancos. Dados da POF/IBGE demonstram que trabalhadores que têm renda mensal superior a R$ 957,96 pagam 16% de imposto de renda, já os empresários, donos de empresas pagam apenas 8%. No período de 1999 a 2005, os bancos recolheram R$ 55,4 bilhões a título de IR, contra R$ 261,5 bilhões dos trabalhadores. Além disso, os impostos pagos pelos empresários são revertidos para os preços dos bens e serviços e assim serão pagos pelos consumidores. A arrecadação dos impostos sobre a propriedade são praticamente inexistentes, o único imposto sobre a responsabilidade da União é o Imposto Territorial Rural (ITR) que 10 arrecadou o montante de 324 milhões em 2005, representando 0,03% dos tributos federais arrecadados em 2005 (Salvador, 2007). Neste sentido, verifica-se que o fundo público brasileiro é financiado pela classe trabalhadora e pelas camadas mais pobres da população. Os donos do capital portador de juros e os rentistas não contribuem como deveriam para financiar as políticas e utilizam o fundo público para aumentar seu enriquecimento. Neste sentido, o Estado Brasileiro funciona como um “Robin Hood às avessas” retirando da camada pobre para privilegiar os ricos (Oliveira apud Salvador, 2007, pág. 83.) O governo brasileiro, através de medidas constitucionais promoveu um desmonte ao orçamento da seguridade social como estratégia para financiar a riqueza financeira. Orçamento da seguridade e paraíso fiscal Diversos especialistas, embutidos de ideais neoliberais, irão instaurar um movimento de combate às conquistas sociais. Será difundida na mídia, nos anos 1990, a ideologia de que a Seguridade Social representa a ingovernabilidade do país. Nesse sentido, a previdência seria a “vilã” das contas públicas sendo responsável pelo déficit público brasileiro. Foram propagadas teorias de que os novos direitos iriam “afundar” o Brasil e caso o governo não adotasse medidas urgentes de ampliar o financiamento ou cortar os privilégios concedidos, não seria possível arcar com pagamento das aposentadorias futuras, seria o fim da previdência. Com isso, o governo reuniu forças para justificar suas atitudes de desconstrução da seguridade social. Já no ano de 1989, pouco tempo depois da CF, tivemos a primeira de uma série de manobras políticas com vistas a impedir a efetivação da Seguridade Social conforme descrita na Carta Magna. O Instituto de Administração da Previdência Social - IAPAS foi submetido ao Ministério da Fazenda e assim o orçamento da Seguridade Social transferido para o Tesouro Nacional. Por meio desta manobra, o então senador Almir Gabriel (PMDB- 11 PA), relator do projeto da Seguridade Social na CF, previu por meio de declarações à imprensa os desvios que aconteceriam no orçamento da Seguridade Social. Outras ações seguiram este caminho: a lei de regulamentação da seguridade não foi elaborada, ao contrário, promulgaram leis específicas para a saúde, assistência social e previdência, fragmentando a totalidade da seguridade. O orçamento da seguridade social chegou a ser elaborado após as Leis de Custeio e Benefício da Previdência Social (junho de 1991). Nos anos de 1993 e 1994 o orçamento surgiu como uma proposta do Conselho Nacional de Seguridade Social. Porém, esta orientação não teve continuidade e o próprio Conselho Nacional de Seguridade Social que tinha como uma de suas funções garantir o cumprimento do orçamento foi extinto em 1999 por uma medida provisória. Conforme Salvador (2007), o orçamento da seguridade permanece fracionado com os recursos advindos das contribuições dos trabalhadores e empregadores para financiar a previdência, recursos do lucro e da movimentação financeira para a saúde e a assistência social. Esta dificuldade em estruturar o orçamento da seguridade é resultado de um campo de disputas políticas pela prioridade de utilização de recursos do fundo público. No caso brasileiro, a seguridade é a parte mais fraca nesta disputa cujas prioridades são dominadas pelos bancos, empresários e outros portadores do capital de juros. Em 1998 tivemos a reforma da previdência que representou perdas de direitos conquistados com a alteração das regras e idade para concessão de benefícios dificultando o acesso aos direitos previdenciários. Neste período, além da tese da inviabilidade financeira da previdência, divulgou-se que os aposentados eram “marajás” vivendo à custa do governo. O próprio presidente em exercício, Fernando Henrique Cardoso, chamou os aposentados de “vagabundos”. Nos anos 2000, continuaram os ataques à Seguridade com o desmonte do orçamento. Cria-se a DRU (Desvinculação de Receitas da União) que garante a desvinculação de 20% do orçamento para composição do superávit primário. 12 Conforme Delgado (2002), é preciso recuperar o orçamento da seguridade social. Tomando como base a execução do orçamento público de 2001 verifica-se que o gasto com o pagamento de benefícios previdenciários aos inativos da União (R$ 29,2 bilhões) é maior que o gasto com direitos sociais previstos na CF (R$ 20,3 bilhões) e com ações de combate a pobreza (R$ 2,9 bilhões). Delgado (2002) afirma que os gastos com inativos são legítimos pelo governo, porém deveriam ser retirados os recursos do orçamento fiscal e não da seguridade. Os gastos previdenciários da seguridade são financiados mediante contribuições dos trabalhadores e complementados por contribuições sociais. O gasto com inativos não integra campo de ações da seguridade, é um gasto específico do governo federal. Ao repassar esta responsabilidade para o orçamento da seguridade sobra mais recursos no orçamento fiscal. Assim o gasto com inativos significa, ao lado da DRU, um mecanismo de desvio de recursos da seguridade. Em 2001, a DRU desvinculou R$ 16,6 bilhões e o gasto com inativos foi de R$ 29,2 bilhões, perfazendo um total de R$ 45,8 bilhões de recursos que foram subtraídos do orçamento e desviados do seu destino que seriam as políticas sociais da seguridade (Delgado, 2002.) Conforme Salvador e Boschetti (2006) há uma perversa alquimia que retém os recursos da seguridade social no orçamento fiscal da União que são canalizados para compor o superávit primário. A partir de 1999, mediante acordos com o FMI, o Brasil comprometeu-se a garantir superávits primários anuais elevados. Para alcançar tal meta, o governo, além da DRU, aumentou a arrecadação de impostos indiretos e cumulativos. Ao analisar o orçamento da seguridade, constata-se que é superavitário, ao contrário do que especialistas do governo e a mídia divulgam. É a DRU que torna o orçamento deficitário. Assim, se foram incluídas as despesas desviadas, o saldo da seguridade social seria de 17,6 bilhões em 2005 e de R$ 4,4 bilhões em 2006, conforme dados da Secretaria do Tesouro Nacional. O orçamento da seguridade é superavitário não só para cobrir as suas despesas específicas como para ampliar sua ações. (Salvador e Boschetti, 2006) 13 A DRU, além de desvincular 20% dos recursos, fere os princípios orçamentários da discriminação e clareza (Salvador, 2007). Os recursos desvinculados não são alocados em fundo ou conta específica e com isso estão imunes ao controle social. É importante ressaltar que a DRU não retira recursos da previdência pois estes são exclusivos, além de ter um orçamento exclusivo a previdência pode receber “ajuda” dos recursos das contribuições sociais utilizadas para financiar a saúde e a assistência social. Isto compromete a totalidade da seguridade (Salvador, 2007). O Brasil pagou mais de R$ 157 bilhões em juros da dívida no ano de 2005, este valor corresponde a 10 vezes o valor gasto no mesmo ano com saúde, por exemplo. A DRU foi prorrogada até 2011 e caso a direção política continue a caminhar por esta trilha não será extinta em breve. O quadro a seguir demonstra a participação da DRU na composição do superávit primário: Participação da DRU no superávit primário, valor em R$ bilhões, deflacionados pelo IGP-DI Ano DRU Superávit primário Participação da DRU 2000 32,2 44,31 72,66 % 2002 32,48 55,13 58,92 % 2004 34,90 64,92 53,76 % 2006 35,83 54,89 65,27 % Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional Elaboração: Prof. Dr. Evilásio Salvador, adaptada pelos autores. Outro mecanismo utilizado pelo governo é a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº. 101, de 4 de maio de 2000), cujo maior objetivo é deixar claro que a prioridade do orçamento é o pagamento da dívida. Estas medidas governamentais procuram atender às recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, de garantia do superávit primário e concretização do Estado Mínimo. Em outras palavras, é a utilização do fundo público como meio de financeirização da riqueza. 14 A participação como saída do inferno social A análise da estratégia adotada pelos donos do capital portador de juros e os rentistas reflete o que chamamos de paraíso fiscal onde intensifica-se a financeirização da riqueza através do fundo público. A esfera financeira (bancos, empresários, investidores nacionais e estrangeiros, fundos mútuos e de pensão) passaram a ditar as regras de repartição e destinação dos recursos sociais. Neste sentido, os recursos que deveriam ser utilizados para concretizar a universalização das políticas sociais, rompendo com o ciclo da pobreza instaurado, são desviados para aumentar a riqueza de 20 mil famílias (Pochmann, 2004). Este quadro reflete a luta de classes que envolve o fundo público, onde a seguridade precisa disputar seu orçamento com os bancos, empresários, políticos e outros. Entretanto, a seguridade não precisa disputar este “cabo de guerra”. A seguridade deveria ter seu orçamento próprio conforme previsto na constituição. Basta seguir o que está na Carta Magna e poder-se-ia efetivar a seguridade social. A focalização das políticas sociais provou ser insuficiente para melhorar as condições de vida de toda a população que realmente necessitam da seguridade social. A focalização através de políticas de transferência de renda tem se mostrado ineficaz. As políticas que utilizam teste de meios para acesso aos benefícios são excludentes. O valor dos benefícios também é insuficiente no sentido de criar condições de romper com ciclo da pobreza. O valor deste benefício, na prática, é utilizado para a sobrevivência. Como melhorar o padrão de vida e romper com a desigualdade social se temos um quadro de desemprego e informalidade crescentes? Se quase metade da renda das famílias mais pobres é comprometida com o pagamento de impostos? Se o que é retirado destas famílias é transferido para as camadas abastadas da sociedade? É preciso romper o pacto do governo com o mercado. Não é possível conciliar a agenda social com a do capital. O paraíso fiscal instaurado gera e é antagônico ao inferno 15 social. A sociedade tem que empurrar o governo para romper com a prioridade do pagamento de juros em detrimento do social. A DRU deve ser extinta. Os impostos devem ser progressivos, é preciso aumentar os impostos sobre a renda, o lucro e o patrimônio. A seguridade social precisa ter a totalidade de seus recursos e porque não utilizar dos impostos sobre a renda, o lucro e patrimônio no seu financiamento. Assim teremos garantido o princípio da equidade e da capacidade contributiva. A sociedade deve ter garantido mediante as políticas sociais o estabelecimento de um mínimo social, este só é viável com a universalização. Universalizar implica em recursos maciços. Um fundo público que trabalha a serviço do capital não consegue atingir tal meta. Evilásio Salvador (2007) em seu artigo avalia que o Brasil deve buscar um modelo tributário que assegure a sustentação do Estado e que priorize Direitos, Econômicos, Culturais e Ambientais (DHESCAS). A reforma tributária deveria reafirmar os diversos princípios tributários já estabelecidos na constituição brasileira e que nos últimos anos não vem sendo observados. Ele continua discorrendo, afirmando que o pilar do sistema tributário deve ser o imposto de renda, pois é o mais importante dos impostos diretos capaz de garantir o caráter pessoal e a graduação de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, além da expansão da tributação sobre o patrimônio. Mas acreditamos que a efetivação dos princípios tributários dependem do fortalecimento da participação popular representativa e da varredura dos partidos e políticos que não se afinam com estes princípios. Acreditamos ainda, que em se tratando de direitos fundamentais à vida, não se pode mais aceitar a distribuição desigual de direitos sociais, econômicos e políticos, sem que haja um rompimento radical, da sociedade com a política de reformas e contra reformas que está em curso neste país, onde os trabalhadores só vem perdendo direitos. Vale lembrar as duas reformas previdenciárias ocorridas em 1998 e 2002, pelos respectivos presidentes da república Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Vale refrescar ainda mais a memória que estes senhores também tiveram a trajetória de luta por uma sociedade melhor, no entanto sucumbiram aos encantos da social democracia, neoliberalismo e a 16 prática populista rendida aos ideais burgueses, que optou pelo caminho da não introdução dos trabalhadores nos rumos de seu governo e de fácil cooptação pelos interesses da burguesia, respectivamente nessa ordem. A respeito da participação popular os trabalhadores devem perceber que a batalha é desigual e que a conquistas de suas lutas só virá se os sujeitos e organizações conseguirem elevarem o nível de consciência. Pois temos a convicção que não podemos titubear ou seremos sucumbidos pelas forças que já demonstraram que só se preocupam com os seus interesses e que sem dúvida nenhuma vão continuar manobrando para manter-se no poder do paraíso fiscal em detrimento dos que não tem acesso a informação e de quem já não acredita em melhorias devido à corrupção instaurada no país. Não aceitar o inferno como saída dos problemas sociais é tarefa primordial dos que tem compromisso com os rumos deste país, pois apesar dos trabalhadores terem obtido conquistas expressivas, não se pode esquecer que a política de financiamento da seguridade social mexe com o centro nevrálgico do capital. Mishra (1989) sustenta que, quanto mais sindicalizada for uma sociedade, maiores serão as suas possibilidades de possuir um Estado de Bem-Estar digno dessa denominação. Neste sentido recorremos ao XXIX Encontro Nacional do CFESS/CRESS, na cidade de Maceió (AL) entre os dias 03 e 06/2000, que entre outros debates, apontou para uma alocação mais democrática dos recursos públicos, a partir do orçamento da seguridade social na perspectiva de uma ampliação da cobertura, tendo em vista a idéia da universalidade do acesso aos direitos sociais legalmente definido. A seguridade social é um espaço de disputa de recursos, uma disputa política que expressa projetos societários, onde se movem os interesses das maiorias, mas estão presentes as marcas históricas da cultura política autoritária no Brasil que se expressa pela pouca distinção entre o publico e o privado pelo clientelismo e pelo patrimonialismo. O resultado desse embate tem forte impacto sobre uma parcela enorme da população que conta com as políticas de seguridade para sobrevivência. É de vidas humanas que estamos 17 falando, e cada tesourada do setor econômico no fundo do bolso do trabalhador e das políticas sociais deixa seqüelas graves. Portanto a seguridade social é, sobretudo, um campo de luta e de formação que requer competência teórica política e técnica para se preparar contra aqueles que deixam os direitos do trabalhador e a seguridade social agonizarem. Lançamos mão de algumas propostas do encontro citado, pois acreditamos que irão contribuir para a reflexão deste ensaio à saber: - Denunciar o desvio de recursos da seguridade social para a sustentação da política macroeconômica regressiva do governo federal a exemplo do PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional) do FEF (Fundo de Estabilização Fiscal), substituído pela DRU. - Denunciar o pagamento das dividas interna e externa que cresceram exponencialmente com vistas a subsidiar os especuladores, os grandes beneficiários desse Estado Maximo para o capital e mínimo para os trabalhadores enunciado pelo neoliberalismo; - Interferir na definição dos orçamentos junto aos demais atores da sociedade civil com compromissos democráticos no sentido de assegurar recursos para a seguridade e que tais recursos sejam de uso exclusivo da mesma; - Manter uma posição firme contra a perspectiva de focalização denunciando publicamente propostas restritivas do acesso aos direitos constitutivos. - E por último consideramos que as forças políticas no Brasil favoráveis a distribuição de renda mais igualitária subestimam as forças que usurpam a renda do trabalhador, quando fazem muitas concessões. Desta forma propomos austeridade no trato da coisa pública e indicamos como forma de publicizar e ampliar a participação popular, o funcionamento do Conselho Nacional de Seguridade Social, como caminho possível de saída do inferno social. 18 “Banditismo por pura maldade, banditismo por uma questão de classe, banditismo por necessidade.” (Science, Chico, 1994) “(...) o de cima sobe e o debaixo desce”. (Science, Chico, 1994) 19 REFERÊNCIAS BOSCHETTI, Ivanete SALVADOR, Evilásio Orçamento da Seguridade Social e Política Econômica: Perversa Alquimia, Serviço Social e Sociedade nº. 87, São Paulo, Cortez, 2006, pág. 25 -57. DELGADO, Guilherme. O orçamento da seguridade social precisa ser recuperado. Políticas sociais, Brasília, IPEA, nº05, agosto de 2002, p.111-114. FAGNANI, Eduardo. HENRIQUE, Wilnês. LUCIO, Clemente. Previdência Social: como incluir os excluídos?, São Paulo, LTR, 2008, p.204-220 MISHRA, Ramesh. O Estado Providência na sociedade capitalista. Portugal,Celta, Obras,1995. 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