Pecados da Comissão

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Krugman, Paul. “Pecados da Comissão”. São Paulo: Valor Econômico, 26 de julho de 2001. Jel: I
Pecados da Comissão
Paul Krugman
Você começou a poupar para sua aposentadoria 18 anos atrás. Você poderia ter comprado ações e bônus
de empresas, mas seu sobrinho o persuadiu a fazer a coisa em família. Assim, daí em diante, você vem
emprestando dinheiro a ele. Suas contribuições o ajudaram em alguns momentos difíceis, e recentemente
ele usou o dinheiro emprestado de você para quitar a hipoteca dele.
Mas, agora, ele diz que seria melhor você começar a investir para sua aposentadoria. Afinal de contas, diz
ele, você não possui nenhum ativo real. "E o dinheiro que me deve?" você pergunta. "Isso não é um ativo
real", retruca ele. "É apenas uma promessa. A única maneira pela qual eu poderei honrar essa promessa é
ganhando mais ou gastando menos dinheiro. E você não pode esperar que eu faça isso". Nesse ínterim,
você fica sabendo que ele decidiu comprar um iate - e que as prestações desse iate seriam suficientes para
cobrir a dívida que ele tem para com você.
O sistema de Seguridade Social vem registrando superávits desde 1983, quando foi aumentado o imposto
sobre a folha de pagamento com a finalidade de criar um fundo de onde, no futuro, sairia o dinheiro para
pagar os benefícios da Seguridade Social. Esses superávits poderiam ter sido investidos em ações e bônus
de empresas, mas pareceu mais seguro e menos problemático comprar papéis da dívida do governo. O
sistema hoje tem US$ 1,2 trilhões no fundo que vem crescendo rapidamente. Mas a comissão diz que os
títulos do governo nesse fundo não são ativos reais.
Isso equivale a dizer que quando você pagou a hipoteca de seu sobrinho, nada fez que melhorasse o fluxo
de caixa dele.
Cada dólar que o sistema de Seguridade Social aplica em títulos do governo - em vez de investir em
outros ativos, em bônus de empresas, por exemplo - é um dólar que o governo federal não precisa tomar
emprestado de outras fontes. Se o fundo não tivesse usado seus superávits acumulados para comprar US$
1,2 trilhão em títulos federais, o governo teria sido obrigado a levantar esses recursos em outra fonte. E
em vez de pagar US$ 65 bilhões em juros ao fundo neste ano, o governo teria precisado pagar pelo menos
esse montante a mais, em juros, na forma de desembolsos reais de dinheiro, aos detentores de bônus no
setor privado. Assim, o fundo dá uma contribuição efetiva para o orçamento federal. Isso não o torna um
ativo real?
Uma vez que o fundo vem sendo usado para saldar dívidas, ele reduz o montante que o governo gasta
com o serviço da dívida, e facilita o pagamento dos benefícios aos aposentados. Ainda assim, é verdade
que quando o sistema de Seguridade Social começar a resgatar suas "promissórias", o governo federal terá
de cobrar impostos mais altos e/ou reduzir seus gastos em maior medida do que se simplesmente deixasse
de honrar suas promessas. Mas será que, como afirma a comissão, isso constitui um ônus insuportável?
A aritmética é a seguinte: se tivéssemos hoje o perfil demográfico que teremos em 2040 (48 aposentados
para cada 100 trabalhadores, em vez dos atuais 30), o pagamento dos benefícios da Seguridade Social
neste ano excederia o recolhimento de impostos em cerca de US$ 180 bilhões. Isso soa como um bocado
de dinheiro. Mas acontece que se o corte de impostos que Bush conseguiu aprovar há dois meses
(equivalente ao novo iate de seu sobrinho) entrasse plenamente em vigor hoje, ele reduziria as receitas
deste ano em aproximadamente US$ 170 bilhões.
Anteontem, Alan Greenspan - cada vez mais alinhado com os Republicanos - e que, 18 anos atrás,
comandou a comissão que decidiu aumentar os impostos sobre as folhas de pagamento, assim criando o
superávit na Seguridade Social - disse em uma audiência no Senado que o corte de impostos de Bush é
"relativamente pequeno". Bem, se esse é um corte modesto nos impostos, então os montantes de que a
Seguridade Social necessitará para cobrir seu déficit de caixa são também modestos. Do contrário, estarão
sendo usados dois pesos e duas medidas.
E o que o relatório da comissão faz é justamente isso - usar algo que George Orwell denominou
"duplipensar". Querem que acreditemos que os superávits da Seguridade Social nada significam, porque
se trata de um só orçamento, mas esses déficits da Seguridade Social são algo terrível, porque o programa
tem de exibir uma coerência interna. Querem que acreditemos que US$ 170 bilhões por ano é uma soma
modesta caso se trate um corte de impostos para os ricos, mas que é uma carga insuportável no
orçamento, se for um compromisso com os aposentados.
E esperam que ouçamos com seriedade as recomendações de uma comissão que acabou de publicar um
relatório tendencioso, desprovido de coerência interna e intelectualmente desonesto.
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