1 fundamentos do direito penal: princípios correlatos à

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INTRODUÇÃO
Em seu artigo 5º, II nossa Carta Magna de 1988 aponta que “ninguém será
obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Este
dispositivo consagra o Princípio da Legalidade, fundamental por ser o ponto de partida
para o entendimento do Direito Penal.
Quando se pensa em Direito Penal, não apenas a Legalidade interessa. Esta é
o ponto de partida, mas deve ser vista de forma valorada. Legalidade, assim, veste as
roupas da Reserva Legal. Tal vestimenta aduz para o fato de que apenas as normas
erigidas do Poder Legislativo podem cominar ou majorar penas.
A Reserva Legal evita o arbítrio de outros poderes, como o Executivo e sua
sanha de legislar via Medida Provisória, possibilidade absolutamente rechaçada pela
doutrina. Além disto, não basta uma Lei em sentido estrito. Esta lei deve estar em
consonância com o aspirado pela sociedade – logo adequada socialmente – e ter uma
utilidade pública, como aliás já propugnava a Carta Magna de 1824 em seu artigo 179,
inciso II.
Traçados os contornos básicos nos quais será desenvolvido o trabalho, e
estando este em sede de introdução, mostra-se necessário que o apresentemos ao
leitor. Assim, apontamos que tem este caráter predominantemente bibliográfico e
jurisprudencial.
A finalidade deste trabalho final de curso é propiciar maior aprofundamento no
conhecimento do Princípio da Insignificância, verdadeiro norteador da atividade estatal
quando se pensa em matéria penal nos dias de hoje. Para tanto, dividiu-se a presente
monografia em dois capítulos, organizados de forma que pareceu didática.
No
primeiro
capítulo
falar-se-á
dos
Fundamentos
do
Direito
Penal.
Primeiramente acerca da Legalidade e da Reserva Legal. Em seguida será objeto de
estudo o preceito da Intervenção Mínima, com o qual resta assente o caráter subsidiário
do Direito Penal. Ainda no primeiro capitulo, será preocupação as questões afetas à
Adequação Social as Causas de Justificação.
O segundo capítulo abordará especificamente o Princípio da Insignificância.
Abrindo o capítulo, o tema será abordado como sendo um vetor necessário para a
atuação do aplicador do direito, no sentido de que sua atividade não mais pode ser
vista sem a valoração trazida pela aplicação prática do princípio sob exame. Na
seqüência serão trazidos registros históricos do conceito, assim como o conceito que a
doutrina concede a este. Finalizando o capítulo, serão objeto de análise as proposições
jurisprudenciais sobre o tema.
Para o desenvolvimento do trabalho algumas noções foram buscadas na
sociologia. Esta busca se fez peremptória, uma vez que o Princípio da Bagatela é um
sucedâneo quase lógico das discrepâncias sociais. Nesta medida um entendimento
global do tema se faz necessário. É preciso se compreender a realidade para além do
direito posto, e que o direito é muito maior que a Lei.
A compreensão da realidade compromete o homem a tomar parte no
interminável diálogo de sua própria essência. Necessário se faz, portanto, que nos
orientemos, sob pena de alienação da realidade. É preciso se trazer os institutos dos
textos positivados para a vida social. O direito merecerá o nome de direito enquanto
estiver alinhado com o aspirado pela sociedade.
Tradicionalmente a compreensão do fenômeno penal se faz a partir da
referência formal: texto escrito. Esta foi uma visão preponderante e que ainda tem
seguidores. Nada obstaste, como se verá no corpo do texto, é uma idéia que carece de
valoração. Tipicidade formal, definitivamente, não mais pode ser o suposto para a
privação de liberdade. O texto, ponto de partida, deve ser seguido de uma análise de
pretexto e contexto. O texto deve estar adequado socialmente e justificado por uma
causa que caiba no espírito da cidadã Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988. Direito Penal, desta forma, deve ser visto como um catalizador de cidadania, e
não apenas elemento de segregação.
1 FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL
A sistemática em que se insere o Direito Penal aponta para uma questão
evidente: sua intervenção na sociedade deve atender ao Princípio da Legalidade. Mais
especificamente, deve observar a Reserva Legal. Por isto, somente através da lei,
entendida em sentido estrito, é que pode o Estado, com seu Poder de Império, tomar
por típicas certas condutas.
1
O Princípio da Legalidade é meio pelo qual se evita o exercício arbitrário do
poder punitivo. Assim sendo, para que o comando cominado seja legítimo, as
especificidades do processo legislativo precisam ser observadas. Não se pode perder
de vista que o Direito Penal é fragmentário, ou seja, que só é chamado como meio de
coerção quando mecanismos como religião, ética, moral e outros campos do direito não
se mostram efetivos para garantir a paz social. Que o Direito Penal, “por sua natureza
fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico” 1. Que,
por isto mesmo, “não deve ocupar-se de bagatelas”2.
Legalidade possui importância estrutural para o Direito Penal. O Estado tem o
poder de punir, premissa que se mostra assente. Nada obstante, esta prerrogativa tem
de estar contida nos contornos legais. Garante-se, desta forma, os direitos individuais
mínimos, a que se convencionou chamar direitos de defesa:
“enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de
liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público,
provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário. Se o
Estado viola esse princípio, então dispõe o indivíduo da correspondente
pretensão que pode consistir, fundamentalmente, em uma: (1) pretensão de
abstenção
(Unterlassungsanspruch);
(2)
pretensão
de
revogação
(Aufhebungsanspruch); (3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch).” 3
(destacou-se)
Os direitos de defesa, refúgio contra punições exacerbadas e desmedidas,
configuram os Direitos Humanos de Primeira Dimensão4, a partir dos quais o Estado
possui dever precípuo de abstenção. Protegem os indivíduos contra o arbítrio estatal.
1 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 133.
2 Ibidem.
3 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São
Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 33.
4 Enquanto os Direitos Humanos de primeira dimensão impõem um dever de abstenção do
Estado, os de segunda determinam uma prestação positiva deste, contexto em que surgem
os Direitos Sociais. Neste sentido aponta Carlos Leite que: “inovando substancialmente em
relação ao regime anterior, a Constituição Federal de 1988 preocupou-se não apenas com a
proteção dos direitos humanos de primeira dimensão (direitos civis e direitos políticos) e os
de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais), mas, concomitantemente,
com a tutela dos direitos humanos de terceira dimensão, também denominados novos
direitos, direitos híbridos, direitos ou interesse metaindividuais.” LEITE, Carlos Henrique
Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 2. ed. São Paulo:
Ltr, 2002, p. 145.
2
No sentido das proposições colacionadas são os apontamentos do professor
Damásio, conforme se percebe na citação que segue:
“O princípio da legalidade (ou de reserva legal) tem significado político, no
sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. Constitui
a garantia fundamental da liberdade civil, que não consiste em fazer tudo o que
se quer, mas somente aquilo que a lei permite. À lei, e somente a ela,
compete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da
atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. (...)
Assim, não há crime sem que, antes de sua prática, haja uma lei descrevendo-o
como fato punível. É lícita, pois, qualquer conduta que não se encontre definida
em lei penal incriminadora. Com o advento da teoria da tipicidade, o princípio da
reserva legal ganhou muito de técnica. Típico é o fato que se amolda à
conduta criminosa descrita pelo legislador. É necessário que o tipo
(conjunto de elementos descritivos do crime contido na lei penal) tenha sido
definido antes da prática delituosa. Daí falar-se em anterioridade da lei penal
incriminadora. Assim, o art. 1º, do Código Penal, contém dois princípios: 1)
Princípio da legalidade (ou de reserva legal) – não há crime sem lei que o
defina; não há pena sem cominação legal. 2) Princípio da anterioridade – não
há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia imposição legal.
Para que haja crime é preciso que o fato que o constitui seja cometido
após a entrada em vigor da lei incriminadora que o define.”5 (destacou-se)
Os preceitos referentes à legalidade encontram-se inscritos em sede
constitucional, precisamente no artigo 5º da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, possuindo, portanto, caráter pétreo6.
O caráter conferido ao artigo em exame pelas disposições do artigo 60 da Carta
Constitucional é salutar, pois resguarda segurança jurídica singular à matéria penal,
impedindo modificações pelo poder constituído. Uma impossibilidade que deve ser
mantida em um Estado Democrático de Direito e só pode ser revista através de nova
constituinte ou de consulta popular (plebiscito ou referendo), caminho apontado por
nossa doutrina, precisamente pelo professor Ives Gandra da Silva Martins7.
5 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. 17. ed. 1. v. São Paulo: Saraiva,
1993, p. 51.
6 Este caráter se deve ao disposto no artigo 60, § 4º, IV da Carta Política, onde se lê que “não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir, os direitos e garantias
individuais”. Legalidade é, assim, uma garantia individual, com a qual se retira do poder
constituinte (constituído) derivado a prerrogativa de imiscuir em matéria afetas aos direitos
individuais.
7 Perguntado sobre a alteração da maioridade penal, apôs o jurista Ives Gandra que a consulta
popular é a única saída para a alteração da maioridade penal sem a necessidade de uma
nova constituinte. Apontou, ainda, que uma mudança sem este rito seria inconstitucional.
Neste sentido: “uma cláusula é pétrea até deixar de ser. Qual é a forma de vencer uma
cláusula pétrea? O plebiscito ou referendo. Seria a única hipótese, ao meu ver, e não seria
3
1.1 LEGALIDADE E RESERVA LEGAL
O sistema que se liga ao Princípio da Legalidade se encontra refletido no
Código Penal. Esta reflexidade é uma necessidade que decorre do inscrito no texto
constitucional. No caso brasileiro, em todos textos, pois legalidade é garantia em nosso
país desde a Constituição de 1824. In verbis:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a
propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte.
I. Nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma
cousa, senão em virtude da Lei.
II. Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade pública8. (destacou-se)
Legalidade, consoante Júlio Fabbrini Mirabete em citação de Luiz Carlos de
Oliveira, é a “mais importante conquista de índole política, norma básica do Direito
Penal Moderno, inscrito como garantia constitucional.”9 Logo, tornar o fato típico, só se
afigura legítimo quando há previsão em Lei, entendida no sentido estrito.
No contexto descrito, parece-nos sustentável se dizer que a lei deve se
justificar. Deve trazer em si a noção de “utilidade pública” como requisito de
legitimidade. Já era assim no século XIX, marcado por uma índole liberal. Por isto, deve
ser assim nos dias atuais, onde a pessoa é colocada no núcleo do direito. A idéia de
utilidade valora a lei, impedindo que o Estado, obedecendo à reserva legal, crie penas
imperfeitas e cruéis10. Nada obstante, este ideal ainda não é a referência para a criação
de leis, tendo em vista a realidade dos lobbies11.
pacífico entre os constitucionalistas”. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Relator de projeto
da maioridade penal defende consulta popular. Paranavaí: Diário do Noroeste. Disponível
em: <www.diariodonoroeste.com.br/nacional.htm> Acesso: 29 abril 2007.
8 Constituição do Império de 1824. Brasília: Casa Civil. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm> Acesso: 04 maio 2007.
9 OLIVEIRA, Luiz Carlos de. À luz do princípio da legalidade e seus corolários, há possibilidade
de medida provisória versar sobre crime e pena? Teresina: Jus Navigandi. Disponível em:
<www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1044> Acesso: 01 março 2007.
10 BITENCOURT, Cézar. Novas Penas Alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 34.
11 Vivenciando o primado da lei (expressão da vontade coletiva) cessariam as prerrogativas
caprichosas de quem detêm o poder. Ainda assim, podem-se identificar leis que nascem
com um propósito definido, recebendo, inclusive, apelidos, caso da “Lei Fleury”, nome com
4
O princípio da legalidade, conforme Francisco de Assis Toledo, apresenta
alguns desdobramentos. Em seu “Princípios Básicos de Direito Penal”
12
defende
fórmula consagrada na doutrina estrangeira, propondo quatro desdobramentos: nullum
crimen, nulla poena sine lege praevia13; nullum crimen, nulla poena sine lege scripta14;
nullum crimen, nulla poena sine lege stricta15; e, nullum crimen, nulla poena sine lege
certa16.
Tais especializações seriam corolárias da legalidade, sendo os veículos pelos
quais
se
assegura
a
inviolabilidade
dos
direitos
e
garantias
individuais.
Especificamente, apontam para o fato de que a lei que comina uma pena deve ser
anterior, escrita, estrita e certa. Fatos anteriores à Lei Penal não interessam 17 a este
ramo especializado do direito.
Palotti Junior, citado por Fernando Carlomagno, consigna que “a lei que institui
o crime e a pena deve ser anterior ao fato”18. Esta ponderação vem ao encontro da não-
que ficou conhecida a Lei n. 5.941/73, que alterou dispositivos do Código de Processo
Penal.
12 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 22 e ss.
13 Seguindo a moderna doutrina penalista nosso legislador originário adotou tal preceito. Lê-se
no art. 5º, XXXIX, da CF que: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena
sem prévia cominação legal.”
14 A proposição Lei Escrita tem o condão de resguardar o cidadão de tentativas afoitas de o se
o incriminar. Assim, a menos que sua conduta tenha sido expressamente escrita dentro das
figuras típicas, essa será lícita. Pode-se resumir tal postulado com a afirmativa de que, em
regra, toda conduta é lícita, salvo previsão no taxativo rol do Direito Penal.
15 A Lei Estrita restringe a criação de tipos penais e a cominação de sanções apenas à Lei,
esta considerada em sentido estrito. Com isso veda-se o uso da analogia para estender
para se incriminar uma conduta não prevista em lei como contrária à ordem. Nesse
diapasão cumpre informar que há discussões sobre a possibilidade da utilização das MPs
como instrumentos de criação de tipos penais.
16 A Lei não deve deixar margem a dúvidas. Por isso não deve fazer uso de normas muito
abrangentes nem se valer de tipos incriminadores genéricos. A lei penal deve ser clara e de
fácil entendimento. Acessível a todos, portanto!
17 Uma discussão muito interessante diz pertinência ao caso Daniela Perez. O homicídio
qualificado de que foi vítima, ao tempo do ocorrido, não se encontrava referido na Lei dos
Crimes Hediondos. Assim os autores do delito tiveram o benefício da progressão de
regimes. Com a alteração da lei os homicídios qualificados foram tomados por hediondos, e,
portanto, não mais sujeitos ao regime da progressividade de regimes.
18 CARLOMAGNO, Fernando. Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal. São Paulo:
Damásio
de
Jesus.
Disponível
em:
<www.advogado.adv.br/estudantesdireito/damasiodejesus/
fernandocarlomagno/legalidadereservalegal.htm#_msoanchor_1> Acesso: 02 março 2007.
5
retroatividade da lei penal. Anterioridade em matéria penal é, desta forma, correlata da
legalidade.
No Direito Penal deve a Lei ser anterior ao fato que se tem por punível: “só a lei
em seu sentido estrito pode criar crimes e penas criminais.”19 Apenas a Lei pode
tipificar ou tornar mais grave determinado ato, e esta não pode retroagir. Não basta
qualquer norma. É preciso ser Lei (Ordinária ou Complementar) ou Emenda à
Constituição para trazer norma incriminadora. Tal posicionamento resta pacificado na
doutrina, pelo que dizemos ser inconstitucional se tratar de matéria penal através de
medida provisória20.
Do que se colacionou resta claro que não é qualquer norma que pode instituir
figuras típicas ou majorar as penas cominadas para determinada conduta. Este
sentimento é manifesto, entre outros, por Luiz Flávio Gomes, que, já em 1990, assim se
pronunciou eu seu “Lei formal como fonte única do direito penal”:
“A medida provisória surgiu na Constituição brasileira como sucedâneo do
decreto-lei. Pode-se dizer que é o antigo decreto-lei com roupagem um pouco
diferente. Competente para emiti-la é o presidente da República, em caso de
relevância e urgência (CF,art. 62). A moderna doutrina européia tem procurado
demonstrar a total incompatibilidade do decreto-lei para a criação de crimes e
penas...Quanto à doutrina italiana, vale lembrar a opinião de Fiandaca e
Musco: ‘As garantias inerentes ao princípio da reserva de lei se eliminam ou se
atenuam no caso de expedição de normas penais mediante decreto-lei: não só
o direito de controle das minorias é desconsiderado, mas as mesmas razões de
necessidade e urgência que justificam o recurso ao decreto-lei contrariam
aquelas exigências de ponderação que não podem ser eliminadas em sede de
criminalização das condutas humanas.’ Para a criação de crimes e penas ou
medidas de segurança ou para restrição de qualquer dos direitos fundamentais
nunca estará presente o requisito urgência assinalado no art. 62 da CF. Não
que não haja, às vezes, urgência na criminalização de uma determinada
conduta humana, não; o fundamental é que toda norma com caráter penal tem
que seguir rigorosamente o procedimento legislativo previsto na Constituição
para as leis ordinárias (CF, arts. 61 e ss), isto é, projeto tem que ser
apresentado, discutido, votado, aprovado, promulgado, sancionado e publicado,
ensejando-se a possibilidade de ampla discussão, inclusive pelas minorias.
Para restrição de direitos fundamentais, estabelecidos democraticamente pelo
legislador constituinte, só esta via é possível. Como se sabe, historicamente,
esses direitos foram reconhecidos e passaram a integrar as Cartas Magnas der
todos os países civilizados, para evitar o abuso do Estado absoluto, de todo-
19 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 23.
20 Neste sentido: TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros,
2001; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição Brasileira de
1988. São Paulo, Saraiva, 2000; e, PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
6
poderoso chefe da Nação. Devemos falar em monopólio da lei, mas não
qualquer lei, pois só é válida a lei formal do Legislativo.”21
Ao cuidar dos direitos e garantias individuais nosso legislador asseverou no
artigo 5º da Constituição da República que “não haverá crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Esta garantia sedimenta a estrutura
Democrática de Direito vivenciada. Uma ordem que fundamenta as relações sociais e
regulamenta as disposições de ordem penal: suas regras punitivas, sanções e bens
jurídicos tutelados.
Na direção debatida, mostra-se importante o entendimento da professora Alice
Bianchini, doutora em Direito Penal pela PUC de São Paulo e professora da Faculdade
de Direito da USP, elucidando que “a criminalização da conduta deve pautar-se, neste
quadro, por processo meticuloso e que jamais pode deixar de contemplar direitos e
garantias inscritos na Constituição”22.
O artigo 5º, II da Constituição da República consagra o princípio em exame:
“ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei”. Disto se assevera que apenas a Lei pode impor atuação ou abstenção do
particular23.
O que se entende por Reserva Legal representa marco avançado do Estado de
Direito, porque, consigo, amoldam-se comportamentos às normas legais. É de
21 GOMES, Luiz Flávio. Lei formal como fonte única do direito penal (incriminador). Revista dos
Tribunais. São Paulo, ano 79, n. 656, p. 257-68, jun.1990, p. 265.
22 BIANCHINI, Alice. Considerações críticas ao modelo de política criminal paleorepressiva.
Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 772, p. 455-62, fev. 2000, p. 458.
23 A legalidade em tela diz pertinência aos cidadãos. Em outra medida, quando se está a
analisar o administrador público, a legalidade que interessa aponta na direção de que legal
é apenas o que a lei determina, salvo as hipóteses de discricionariedade. Legalidade na
administração pública significa, portanto, agir determinado pela lei. Neste sentido é a lição
de Bandeira de Melo: “o princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração
nada pode fazer senão o que a lei determina. Ao contrário dos particulares, os quais podem
fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei
antecipadamente autorize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos, assim
caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos
ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa
consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do
Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contem abstratamente nas leis.”
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 95.
7
importância vital, já que estabelece a distinção elementar entre o Estado Constitucional
e o Absolutista. Vivenciando o primado da lei24, expressão da vontade coletiva, cessam
as prerrogativas caprichosas de quem detém o poder e suas tendências personalistas.
Pelo princípio da reserva legal, de um modo geral, nenhum ato pode ser
considerado crime sem que lei assim determine. Nenhuma pena pode ser aplicada sem
que haja previsão de punição para a conduta. Constitui, assim, real e imanente
limitação ao poder estatal de fazer ingerências na esfera das liberdades individuais.
O princípio da reserva legal se justifica por uma questão que se apresenta
clara: o caráter subsidiário25 do Direito Penal. As normas penais são excepcionais. São
aplicáveis quando não existe outro meio de conservação da segurança, da paz e da
ordem social por mecanismos como religião, moral e outros ramos do Direito. Disto se
assenta que o Direito Penal só deve ser avocado para a proteção de bens jurídicos de
relevo, onde a proteção conferida por outras disciplinas se mostra insuficiente.
O fundamento básico da atuação do Direito Penal deve se limitar aos bens
jurídicos fundamentais. A concepção de figuras penais típicas deve ser informada e
corresponder à tutela de um bem consagrado na Constituição. Há de ser lembrando
que, em nenhuma hipótese, tal elaboração pode ir de encontro aos direitos e garantias
fundamentais.
24 Primado da Lei é a essência do Estado de Direito. Surge com a experiência constitucional do
final do século XVIII, corporificada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
14 de julho de 1789. Esta declaração vem para superar o absolutismo então imperante.
“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a
ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das
desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em declaração solene
os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração,
constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os
seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder legislativo e do Poder
executivo, a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as
reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se
dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Por conseqüência, a
Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser
Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão.” BIBLIOTECA Virtual de Direito
Humanos. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. São Paulo: Direitos Humanos.
Disponível
em:
<www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html>
Acesso: 06 abril 2007.
25 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p.17.
8
1.2 INTERVENÇÃO MÍNIMA: POR UM DIREITO PENAL SUBSIDIÁRIO
O princípio da intervenção mínima aponta para o caráter subsidiário do Direito
Penal. Quer dizer que este ramo do direito será chamado para manter a ordem social
quando os demais não forem suficientes. Logo, sua proteção somente será conferida
quando a que se depreende de outras esferas sejam ineficazes. Nesta esteira, mais
uma vez se mostram esclarecedoras as proposições do mestre Toledo:
“Se a intervenção do Direito Penal só se faz diante da ofensa de um bem
jurídico, nem todos os bens jurídicos se colocam a tutela específica do
Direito Penal. Do ângulo penalístico, bem jurídico é aquele que esteja a exigir
uma proteção especial, no âmbito da norma penal, por se revelarem
insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento
jurídico em outras áreas extrapenais”.26 (destacou-se)
O princípio em exame tem por objetivo limitar o processo legislativo. A Lei deve
ter uma razão de justificação que caiba no espírito constitucional, eis que no atual
estágio do direito não faz qualquer sentido se conceber o processo legislativo como
mero reflexo do Poder de Império. Esta noção é basilar para impedir que, observada a
reserva legal, se crie penas imperfeitas e cruéis27.
É evidente que a criação de leis traz reflexos do Poder de Império (logo
soberania), mas, de há muito, deixou de ser um fim em si própria. Leis podem ser
criadas, mas a criação deve ter uma razão de justificação que se mostre compatível
com valores como Dignidade28, Solidariedade29, Razoabilidade e Eticidade, dentre
outros. Valores principiológicos que, positivados ou não, precisam ser levados em conta
por ocasião da criação das leis ou da subsunção das mesmas. A fundamentalidade
desta proposição, uma vez compreendida, implica que o Direito Penal só deve ser
acionado nos casos de ataques a bens jurídicos relevantes que recebam a tutela
estatal.
26 Ibidem.
27 BITENCOURT, Cézar. Op. cit., p. 34.
28 Art. 1º, CRFB: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana. (destacou-se)
29 Art. 3º, CRFB: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I –
construir uma sociedade livre, justa e solidária. (destacou-se)
9
Intervenção mínima se corporifica com a “Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão”, possível em razão da experiência Iluminista. Nesta declaração restam
assentes idéias no sentido de que a criminalização só se faz legítima quando constituía
única via para a efetiva tutela de um determinado bem jurídico, consoante o artigo 8º da
Declaração sob exame: “a Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente
necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e
promulgada antes do delito e legalmente aplicada”30.
Com o Princípio da Intervenção Mínima objetiva-se restringir a incidência de
normas incriminadoras às hipóteses de ofensas a bens jurídicos fundamentais. Desta
forma, ficam reservados aos demais ramos do ordenamento jurídico as ilicitudes que
não ofendem bens fundamentais.
O princípio em exame não se encontra explícito nas legislações penais e
constitucionais contemporâneas. Devido a sua vinculação com outros postulados
explícitos e com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, todavia, tem de ser
observado pelo legislador e pelo aplicador do direito, conforme assinala Maurício
Antônio Ribeiro Lopes no seu “Princípio da Insignificância no Direito Penal”31.
Do Princípio da Intervenção Mínima surge um corolário necessário: o Princípio
da Insignificância. Neste sentido, pertinente se mostra a lição de Vico Mañas, onde
lemos que:
“O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa
espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal,
com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra
constitucional do nullum crimen sine lege, nada mais faz do que revelar a
natureza subsidiária e fragmentária do direito penal”. 32
30 BIBLIOTECA Virtual de Direito Humanos. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão.
São
Paulo:
Direitos
Humanos.
Disponível
em:
<www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html>
Acesso: 06 abril 2007.
31 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. Análise à Luz
da Lei n. 9.099/95 - Juizados Especiais Criminais e da Jurisprudência Atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 75.
32 MAÑAS, Carlos Vico. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Cuiabá: Justiça
Federal. Disponível em: <www.mt.trf1.gov.br/judice/jud4/insign.htm> Acesso: 15 fevereiro
2007.
10
Tendo por certo que o Direito Penal possui caráter subsidiário, resta claro que
este deve se ocupar somente das hipóteses em que há grave ameaça aos bens
jurídicos fundamentais tutelados pelo Estado. As bagatelas não devem ser
preocupação do Direito Penal. Conquanto seja um ramo extremamente importante, seu
caráter fragmentário deixa claro que sua aplicação deve ser subsidiária.
Subsidiariedade no Direito Penal decorre da consideração de que este é
remédio sancionador extremo, ministrado quando os demais ramos não são eficazes.
Disto se apõe que a intervenção deste ramo do direito só se legitima quando os demais
ramos não são eficientes para o controle social.
1.3 ADEQUAÇÃO SOCIAL E CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
Formulada por Welzel, de acordo com Odone Sanguiné 33, a Teoria da
Adequação Social surge como princípio geral de interpretação dos tipos penais. Um
princípio útil em sistemas jurídicos carentes de atualização legislativa, como o brasileiro.
É útil em sistemas onde a realidade social está em compasso adiantado em relação à
positivação jurídica.
Em nosso país, nas questões acerca da Sedução e do Adultério, ficou patente a
adequação social. Tais comportamentos, conquanto formalmente típicos até a Lei n.
11.106/05, que revogou as disposições dos artigos 217 e 240 do Código Penal, de há
muito vinham sendo admitidos pela realidade social. Exatamente por isto, a
comunidade jurídica já não os recriminava como se fossem materialmente típicos.
Quando se pensa em adequação social, resta assente que o direito é um
organismo sistêmico. Daí a importância de se comunicar com os outros campos do
conhecimento. Sendo assim, pertinente se mostram as idéias depreendidas da Teoria
Sistêmica34, onde o direito se apresenta como um subsistema: um sistema autônomo,
mas que reconhece as demandas apresentas pela sociedade.
33 SANGUINÉ, Odone. Observações sobre o Princípio da Insignificância. Fascículos de
Ciências Penais. Sergio Antonio Fabris. Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 36-50, jan./mar. 1990.
34 Esta concepção de sistemas auto-referenciados é de que se valem Luhmann e Teubner para
explicar o sistema legal. Luhmann, partindo da estrutura geral da teoria da sociedade,
aponta que o sistema legal deve ser entendido como um subsistema funcional. Tal sistema
se constitui a partir de suas funções, determinadas no nível do sistema societário. Os
11
Os reclamos sociais não podem ser negados pelo direito. Por outro lado, tais
reclamos não podem comprometer a autonomia da disciplina. Nesta medida, as
contribuições de Luhmann e Teubner são essenciais à compreensão do direito. A partir
destes autores é possível se ver um direito que é, a um só tempo, fechado e aberto:
dogmaticamente autônomo (desta forma fechado), mas aberto do ponto de vista
cognitivo, eis que interacional.
O direito (na porção Lei) é fechado, porque apenas uma norma de hierarquia
igual ou superior pode promover sua revogação. É preciso uma Lei Ordinária para
revogar outra Lei Ordinária. É preciso ao menos uma Lei Ordinária, já que a
Complementar ou a Emenda à Constituição também poderia.
Em outra medida o direito é aberto. Esta abertura se dá no nível da aplicação
da norma e no momento de sua criação. Quando o juiz faz o trabalho de subsunção da
norma não pode fazer com os olhos fechamos para a realidade social. Na mesma
medida, quando se submete determinada matéria ao processo legislativo, resta claro
que a atuação deste deve ter por arcabouço a dinâmica social. É preciso ter
referibilidade como suposto de legitimação.
Do que se expôs, aponta Flávio Siqueira que quando Hans Welzel mencionou o
caráter social da lei penal, o fez no sentido de que garantir que a norma deve visar ao
controle social. Que a norma penal deve ser adequada ao que aspira a sociedade:
“Ao mencionar a necessidade não só de uma adequação aos elementos
normativos, subjetivos e objetivos do tipo penal, devendo ainda encartar a
‘adequação social’ da figura penal, ou seja, a sociedade admitir tal conduta
como afrontosa aos valores sagrados a manutenção da paz e equilíbrio a esfera
jurídica, então, demandando a aplicação de pena visando o controle social, que
é máxime da norma penal.”35 (destacou-se)
O penalista alemão foi percussor de idéias que hoje são comuns no Direito
Penal. São idéias que apontam para o percebido por Assis Toledo: “podem as condutas
arranjos requerem autonomia funcional, porque nenhum outro sistema desempenhará suas
funções, pelo que a autonomia é uma necessidade fática. Cf.: LUHMANN, Niklas. Sociologia
do direito. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1983; TEUBNER, Gunther. O direito
como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
35 SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. A Insignificância no Direito Penal Moderno. Belo
Horizonte:
Praetorium.
Disponível
em:
<www.praetorium.com.br/index.php?section=artigos&id=9> Acesso: 04 maio 2007.
12
socialmente adequadas não ser modelares, de um ponto de vista ético. Delas se exige
apenas que se situem dentro da moldura do comportamento socialmente permitido ou,
na expressão textual de Welzel, dentro do quadro da liberdade da ação social.” 36 Esta
percepção, conquanto não a ideal, é mais razoável que mandar para cadeia praticantes
de bagatelas.
O direito conhece outras disciplinas e depende delas para se recriar. Sendo
assim, o Princípio da Adequação Social aponta para uma recriação autopoiética 37.
Desta forma se exclui a incidência da norma incriminadora sobre o ato que a sociedade
já aceita. O Poder Legislativo tem sua legitimidade quando cria normas que
representam a aspiração social. O Poder Judiciário tem legitimidade derivada, e esta
resta assegurada quando o procedimento adotado implementa os valores que a
sociedade almeja. Sendo assim, como o povo é o titular do poder, não pode quem o
exerce ir de encontro a este mesmo povo. Dito isto, a hermenêutica jurídica não pode
ser feita sem levar em conta uma interpretação social da norma. Especificamente, a
compatibilidade do juridicamente ordenado com o conteúdo social.
A norma, para ser eficaz, precisa estar em consonância com o mundo real. Não
surte efeito, portanto, quando superada socialmente, como bem aponta a professora
Ana Paula de Barcellos38. Desta forma, quando o comando contido na norma já foi
socialmente superado, este deve deixar de ser aplicado, uma vez que nosso sistema é
eminentemente representativo e sua representação pressupõe consonância entre o
aspirado pela sociedade, o consagrado pelo processo Legislativo e o praticado pelo
Judiciário.
Quando se pensa em “Adequação Social” é preciso se cuidar para não se
equivocar com “Causa de Justificação”. Esta preocupação é ressaltada por Francisco
36 TOLEDO, Francisco de Assis. Apud SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. Ibidem.
37 Uma máquina autopoiética é uma máquina organizada como um sistema de processos de
produção de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes que: I)
geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas contínuas
interações e transformações; e, II) constituem à máquina como uma unidade no espaço
físico. MATURANA, Humberto Romesín; VARELA G., Francisco. De Máquinas e Seres
Vivos: Autopoiese – a organização do vivo. 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 71.
38 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Principio
da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 76.
13
de Assis Toledo39. Assim, a ação socialmente adequada está desde o início excluída do
tipo porque se realiza dentro da normalidade social. Quando se pensa em causa de
justificação, contudo, a conduta, apesar de socialmente inadequada, recebe
autorização especial para a realização típica.
O exemplo que o mestre Toledo nos apresenta para elucidar as divergências
entre os dois institutos é contundente. Traz à baila a hipótese da lesão corporal
cometida em legítima defesa. Explicando o exemplo aponta que, embora esteja o fato
justificado, o autor do delito poderá ser submetido aos trâmites de um processo
criminal, para, ao final se reconhecer a exclusão do ilícito. Por outro lado, caso a lesão
corporal fosse oriunda da prática de um desporto, como em um acidente do jogo, desde
o início não haveria que se falar em conduta típica.
Reconhecer as particularidades da adequação social e das causas de
justificação é fundamental quando se fala em insignificância. Nesta medida resta claro
que furtar uma maçã não é uma conduta socialmente adequada, mas pode restar
justificada. Conquanto seja um fato tipicamente formal, portanto capaz de autorizar uma
demanda penal, não atende aos supostos da tipicidade material. Nesta medida,
ausência de tipicidade material e insignificância autorizam a não-condenação penal.
Do que se expôs, resta claro que o Direito Penal moderno não pode ser
pensado sem os ditames principiológicos. Não mais se pode entender o injusto penal
meramente como fato típico e ilícito. Avançar esta discussão é fundamental para se
superar a cultura da prisão em nome da cultura da inclusão.
2 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
A questão da insignificância é salutar para o Direito Penal. Tal assertiva decorre
do caráter subsidiário deste ramo do direito. O Direito Penal existe para manter a ordem
e só atua em casos excepcionais. Em regra, a tutela concedida pelos demais ramos é
suficiente para garantir a paz social.
Liberdade é bem jurídico fundamental. Por ser garantia fundamental, qualquer
medida que a contrarie deve ser entendida como excepcional, uma vez que a privação
39 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 131-32.
14
da liberdade só se justifica quando for essencial para o resguardo de outro bem jurídico
de inquestionável valia, como a vida.
Quando se pensa na insignificância, resta assente que não apenas a tipicidade
formal interessa ao Direito Penal. Furtar uma maçã é, sim, conduta típica. Diz-se isto
porque a apropriação de coisa alheia se consubstancia. Nada obstante, não se afigura
razoável uma ação penal pública incondicionada visando à aplicação de uma pena que
varia de 1 a 4 anos, como dispõe o artigo 155 do Código Penal. Exatamente por isto
resta pacificado que questões como esta precisam sem entendidas à luz do princípio da
insignificância.
Quando se pensa na insignificância como princípio informador da ordem penal,
coíbem-se situações como a configurada na seguinte notícia: “justiça demora 2 anos
para decidir sobre furtos de R$ 1”40. Não é razoável se punir com a privação de
liberdade quem tenha cometido delito de potencial ofensivo acanhado e cuja
repercussão social seja mínima. Não nos parece plausível que o Estado gaste mais de
R$ 1.000,0041 por mês para coibir condutas que representam, do ponto de vista
objetivo, ofensa a centésimos deste valor. Não é razoável se jogar na conta da
coletividade uma punição desta ordem, onde a persecução é muito mais onerosa que o
bem jurídico ofendido. Como aponta Marina Hamud de Andrade, defensora pública em
São Paulo, “só de papel e tinta já vai esse valor”42.
A hipótese das maçãs foi trazida para o corpo do texto. Do ponto de vista real,
contudo, tem-se na decisão do juiz da 3ª Vara Criminal de Palmas, no Tocantins, Rafael
Gonçalves de Paula, um exemplo concreto da aplicabilidade da insignificância. Sua
decisão foi tão relevante que a Escola Nacional de Magistratura a incluiu em seu banco
de sentenças.
A decisão interlocutória do juiz em referência foi pouco comum. Não é de se
duvidar que nulidades sejam aventadas, afinal sua motivação não passa pelo lugar
comum. Na verdade relatou, cogitou vários argumentos e mandou soltar Saul Rodrigues
Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, detidos sob acusação de furtarem duas
40 PENTEADO, Gilmar. Justiça demora 2 anos para decidir sobre furtos de R$ 1. Vitória:
Tribunal
de
Justiça
do
Espírito
Santo.
Disponível
em:
<ww2.tj.es.gov.br/Novo/conteudo.cfm?conteudo=4184> Acesso: 02 abril 2007.
41 Ibidem.
42 Ibidem.
15
melancias. Não expôs especificamente o argumento de que estava se valendo. Ainda
assim, bom senso é percebido em cada linha da decisão. In verbis:
“Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon
Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de 2 (duas)
melancias.
Instado a se manifestar, o Senhor Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos
indiciados na prisão.
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos:
os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da
insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do
chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de
um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados, que
sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na
Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)... Poderia sustentar que
duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para
fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da
população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra
os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a
utopia do socialismo, a colonização européia... Poderia dizer que George Bush joga
bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres
humanos passam fome pela Terra – e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia
mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha
obviedade.
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas:
não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.
Simplesmente mandarei soltar os indiciados.
Quem quiser que escolha o motivo.
Expeçam-se os alvarás.
Intimem-se.” 43 (destacou-se)
Parece-nos que o magistrado agiu dentro do espírito da razoabilidade e seus
sucedâneos lógicos: necessidade, utilidade e adequação. Entendeu a alma da
proporcionalidade. Um entendimento que afasta a análise do tipo da mera forma para
avançar por seu conteúdo.
Partindo do que se depreende da decisão colacionada, resta claro que para
uma conduta ser considerada criminosa deve ser feito também o juízo de tipicidade
material, ou seja, a verificação da ocorrência do pressuposto básico para a incidência
da lei penal, qual seja, lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade.
Caso a conduta (formalmente típica) lese de modo desprezível o bem jurídico protegido,
não há que se falar em tipicidade material. Assim, como uma condenação à privação de
43 HERDY, Ronaldo. Crime sem preço: Juiz manda soltar acusados de furtar duas melancias.
São
Paulo:
Consultório
Jurídico.
Disponível
em:
<http://conjur.estadao.com.br/static/text/45918,1> Acesso: 26 abril 2007.
16
liberdade é improvável, inclusive por razões de política criminal, não se apresenta como
razoável todas as circunstâncias da persecução penal.
O Direito Penal deve cuidar das condutas que a privação de liberdade seja o
mais provável. Caso não seja, como em um crime de dano, necessário se mostra a
ampliação dos espaços de diálogo, como na delegacia e na conciliação nos Juizados
Especiais Criminais. Diz-se isto porque quem tem um bem danificado tem muito mais
interesse na composição civil do que na condenação criminal. Nada obstante, a figura
do dano se mantém típica.
As ponderações do parágrafo anterior partem do pressuposto de que o Direito
Penal moderno tem por fundamento basilar a intervenção mínima. De que a área penal
deve ser vista como última ratio, ou seja, última solução para o problema jurídico
apresentado. No sentido do que aponta o mestre Toledo um ramo fragmentário. Por ser
assim, sua aplicação subsidiária é caminho. Outras vias devem ser tentadas. Uma vez
insuficientes, parte-se para a utilização do Direito Penal:
“Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal
não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar
prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art.
334, parágrafo 1º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto
estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor
indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não
pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no
qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no
desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia
dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente
possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui
ofensas tartamudeadas e sem conseqüências palpáveis; e assim por diante.”44
(destacou-se)
A insignificância ganha notoriedade em matéria penal em razão do insucesso
das penas como meio de socialização do réu. Na verdade, em muitos casos, adentrar
no sistema carcerário corrompe mais, pelo que a sanção penal perde seu objetivo: punir
o delito e evitar a reincidência.
Neste contexto, nas condutas que lesem bens jurídicos de pequena relevância
e o impacto social é leve, a tendência é a de atestar a atipicidade da conduta pela
44 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 133.
17
insignificância do bem lesado. Em alguns casos por medida de adequação social. Em
outros por haver uma causa justificante.
A doutrina penal moderna se inclina para este princípio a fim de que se excluam
delitos onde não haja o alcance da resposta demandada pela sociedade, como o que
ocorre com o crime de dano, ainda previsto no artigo 163 do Código Penal, como
salientou Francisco Toledo. Na verdade, trata-se de um ilícito civil, que, antes de
qualquer coisa, atinge a esfera patrimonial do ofendido, e não sua integridade. Dito isto,
resta claro que a composição civil é o caminho, e não a esfera penal. A relevância
material da conduta é pequena sob o enfoque penal, por isto as conseqüências desta
devem ser vistas pela ótica do Direito Civil.
Os postulados acerca da insignificância, que impõe a chamada tipicidade
material, acabam por refletir na teoria da Tipicidade Conglobante, sustentada por
Zaffaroni e Pierangeli. Veja-se:
“Pois bem: pode parecer que o fenômeno da fórmula legal aparente abarcar
hipóteses que não são alcançadas pela norma proibitiva, considerada
isoladamente, mas que, de modo algum, podem incluir-se na sua proibição,
quando considerada conglobadamente, isto é, fazendo parte de um universo
ordenado de normas. Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade
legal (isto é, á adequação à norma legal), e sim que deva evidenciar uma
verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário, que esteja
proibida à luz da consideração conglobada da norma. Isto significa que a
tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade
conglobante, que pode reduzir o âmbito da proibição aparente, que surge da
consideração isolada da tipicidade legal45”. (destacou-se)
Insignificância não implica em laurear condutas típicas. Ao contrário, implica em
que a punição seja razoável. Implica na utilização via penal dentro da conglobação da
norma. Toda ordem normativa persegue a uma finalidade e tem um sentido: garantir
juridicamente a convivência. Qualquer norma que vá de encontro à sua finalidade
acaba por ser desmedida. Sendo assim, a justificativa social da medita deve ser
atestada. A norma deve atender ao suposto da adequação social e restar
fundamentada em uma causa de justificação.
45 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 550.
18
A ação penal deve ser instaurada sempre que for a via mais efetiva para
garantir a paz social. Por outro lado, havendo outros meios, o Direito Penal se mostra
inadequado. Assim como não se deve propor uma ação de conhecimento quando se
tem um título executivo (por ser a execução o caminho e a ação de conhecimento
caracterizar via imprópria por falta de condição da ação46 interesse de agir na
subespécie adequação), não se deve abarrotar as varas criminais questionando danos,
se a questão é, antes de tudo, de natureza civil. Aponta-se, com isto, que a
insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem
normativa. Por esta razão, o que é insignificante para o Direito Penal, pode possuir
significância em outros ramos do direito. É uma questão de adequação.
2.1 ANTECEDENTES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
As idéias sobre insignificância são significativas em um mundo marcado pelo ter
e pelos descompassos sociais. Ainda assim, há quem sustente haver registros sobre a
insignificância na História Antiga.
A maior relevância da insignificância é fato da contemporaneidade, mas a
existência já pode ser notada no Direito Romano, conforme magistério de Diomar Ackel
Filho: “no tocante à origem, não se pode negar que o princípio já vigorava no direito
romano, onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de
bagatela, consoante a máxima contida no brocardo de minimis non curat praetor”47.
(destacou-se)
Seguindo o registro histórico colacionado, podemos apontar que o pretor não
cuidava de delitos de bagatela como regra. O pretor não se atinha às coisas mínimas. É
verdade que o Direito Romano nos trouxe muito mais referências sob a perspectiva
civil. Ainda assim, não se pode negar a contundência da lição colacionada. Tanto é
verdade que no ano de 2004, no julgamento do Habbeas Corpus 84.412, proveniente
de São Paulo, o Supremo Tribunal Federal recobrou o preceito. Ao tratar do postulado
46 As condições da ação são: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade para a causa e
interesse de agir, que se desdobra em utilidade e adequação.
47 Cf.: ACKEL FILHO, Diomar. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Revista
Jurisprudencial do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo, n. 94, p. 72-79,
abr-jun 1988, p. 73.
19
da insignificância e da função do Direito Penal, asseverou o de minimis non curat
praetor. Nesta linha trouxe para a realidade da jurisdição constitucional a máxima de
que, para a privação de liberdade, o sistema jurídico há de considerar a real
necessidade da medida. Que o pretor, Direito Penal, não cuida de coisas mínimas.
Não-obstante o reconhecimento do próprio Supremo Tribunal Federal em
relação à máxima romana, parece sim ter havido uma discrepância significativa entre o
desenvolvimento do Direito Civil e o Penal em Roma. Partindo disto, Maurício Lopes48
critica o registro feito por Ackel Filho. Nesta linha, aponta que os romanos tinham bem
desenvolvido o Direito Civil, mas que não tinham a mínima noção do princípio da
legalidade penal. Disto, aponta que naquele brocardo romano residiria uma máxima,
mas não um estudo mais calculado. Com esse argumento conclui que é precipitado se
creditar ao Direito Romano a origem histórica da insignificância.
A discussão enriquece qualquer trabalho. Nesta medida foi colacionada.
Todavia, resta claro que Insignificância, nos moldes conhecidos, é criação do século XX
e que, desde o lançamento da obra Kriminalpolitik und Strafrechtsystem por Roxin em
1970 – versada para o espanhol em 1972 por Muñuz Conde, consoante anuncia Luiz
Flávio Gomes49 –, a interpretação do injusto penal não mais se faz pela literalidade.
A partir de Roxin resta assente que o delito deve ser entendido de forma
multidimensional, impondo para sua análise variáveis como conduta, tipicidade
ofensiva, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade. Princípios políticos-criminais
como intervenção mínima e proporcionalidade devem ser levados em conta por ocasião
da incidência do Direito Penal.
As idéias acerca do princípio da insignificância surgem de forma significativa na
Europa do século XX. Por que? Porque o século XX foi um século de antíteses. Uma
fase de mutação, logo propícia para o borbulhar de idéias50.
48 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. Op. cit., p.
37-38
49 GOMES, Luiz Flávio. Delito de bagatela, princípio da insignificância e princípio da
irrelevância penal do fato. São Paulo: Instituto Luiz Flávio Gomes. Disponível em:
<www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20041008145549539> Acesso: 02 abril
2007.
50 “No início, pela teoria do delito não havia diferença entre furtar uma galinha ou a granja
inteira. Era crime tanto uma conduta como outra. Embora, pela sabedoria popular, um seria
20
O século XX foi um período de intensa modificação social: duas grandes
guerras, uma guerra fria marcada pela corrida armamentista, liberação dos costumes,
intensas modificações nos meios de produção, fartura demasiadas, escassez em
excesso etc. Um século de antinomias. Um período em que o estar em sociedade
passou por uma mudança paradigmática. Uma fase que refletiu em mudanças sociais
notórias, sobretudo no alargamento das diferenças sociais.
Em um mundo de antinomias51, marcado por uma contraposição social sem
precedentes, onde nunca se teve tanto bilionário, mas também tantos miseráveis, a
razoabilidade é medida de extrema necessidade para garantir a convivência. Disto se
pode dizer que a origem fática da insignificância é a patrimonialidade: o reconhecimento
de que o dano patrimonial, para trazer reflexos ao Direito Penal, deve ser relevante.
2.2 CONCEITO DE INSIGNIFICÂNCIA
O conceito de insignificância não se encontra definido em nossa legislação. A
interpretação doutrinária e jurisprudencial, contudo, tem permitido delimitar as condutas
tomadas por insignificantes, o que se faz a partir do suposto de um Direito Penal
mínimo e subsidiário.
O princípio em exame pode ser conceituado como sendo o preceito que permite
aferir a não-tipicidade de fatos por serem inexpressivos. São fatos que constituem
bagatelas, e cuja reprovabilidade geral não atinge o grau que justifique a coerção penal
da conduta. Nesta medida, são irrelevantes para o Direito Penal.
Na linha tracejada, Alberto Silva Franco52 associa o Princípio da Insignificância
à Antijuridicidade Material. Aldo Montoro53, também citado por Ackel Filho, acrescenta
que além deste limite quantitativo-qualitativo, não há racional consistência de crime,
ladrão e o outro barão.” SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Crime de Bagatela. Justilex.
Brasília, ano IV, n. 49, p. 48-49, jan. 2006, p. 48. (destacou-se)
51 “Freqüentemente, a imprensa noticia prisão por crime de bagatela sugerindo injustiça
praticada pelo Estado que só prende pobre, "ladrão de galinha". Por exemplo, Fulano foi
preso em flagrante quando tentava furtar um xampu; enquanto o deputado dos R$ 4 milhões
continua livre e solto.” Ibidem.
52 FRANCO, Alberto Silva. Apud ACKEL FILHO, Diomar. Op. cit., p. 79.
53 MONTORO, Aldo. Apud ACKEL FILHO, Diomar. Op. cit., p. 79.
21
nem justificação de pena, sendo irrelevante os fatos que se encontrem abaixo deste
limite.
O princípio da insignificância, como instrumento de interpretação restritiva
baseado na concepção de tipicidade material, permite a que se alcance a proposição
político-criminal da atipicidade de condutas que, formalmente típicas, não atingem de
forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.
Nos chamados crimes de bagatela as condutas são delitos. São fatos que, em
um primeiro momento, moldam-se ao fato típico. Posteriormente, contudo, têm sua
tipicidade desconsiderada por se tratar de ofensas a bens jurídicos que não causam
reprovabilidade social considerável, de maneira que não se faz necessária a atuação do
Direito Penal.
Dentro do exposto, retoma-se a necessidade da discussão nas fases préjudiciais para se evitar prejuízos. Os delegados de polícia devem possuir preparo para
orientar as pessoas envolvidas em delitos de bagatela, alertando, por exemplo, para o
fato da maior importância da composição civil em um crime de dano. O mesmo se diz
do promotor de justiça. É preciso se superar a frieza do texto legal para se fazer uma
leitura inclusiva. Ter uma perspectiva de que a privação de liberdade é o último estágio
na tentativa da composição da ordem social.
Ao se analisar a importância do princípio em exame, resta assente que a função
jurisdicional, como atividade privativa do Estado, deve ser exercida sempre com os
olhos voltados para uma eficácia vinculativa plena. Por isto mesmo, em razão de tal
magnitude, verdadeiro ato de soberania, não deve se deter à consideração de
bagatelas irrelevantes.
Na linha percorrida, temos que medidas como a “admoestação verbal” devem
ser ampliadas. Conquanto vista de forma tímida por nossos governantes, como na
Mensagem de Veto n. 1.447/98, anexada a este trabalho, resta-nos claro que esta
medida pode ser muito mais efetiva do que a privação de liberdade, no sentido em que
evolui o Direito Penal:
“O Direito Penal evoluiu no sentido de que novos métodos de repressão ao
crime deveriam ser instituídos, mediante a previsão de sanções de natureza
alternativa, que ao juiz seriam facultadas impor ao condenado, em caráter
substitutivo às penas de detenção e de reclusão, desde que atendidos alguns
22
requisitos relacionados com a pessoa do delinqüente e com o ilícito por ele
perpetrado.”54
Pois bem, constatada a não-adequação das penas privativas de liberdade para
atender aos fins a que se destinam, deve ser mudado o próprio entendimento acerca do
Direito Penal. Se o fim último deste é a privação de liberdade com o fim de
(re)socialização, mas a privação é remédio extremo e pouco eficaz, resta claro que as
fases pré-penais precisam ser melhor entendidas. O diálogo deve ser ampliado e o
formalismo superado.
2.3 INSIGNIFICÂNCIA NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
Não obstante ter se sedimentado proposições acerca da insignificância em
nossa doutrina, mostra-se forçoso concluir que este princípio ainda tem sido aplicado
de forma tímida por nossos tribunais. Salvo casos excepcionais, como o do juiz Rafael
Gonçalves de Paula, colacionado na abertura deste capítulo, a regra é a cultura do
formalismo. Mesmo neste caso, que mereceu atenção da Escola Nacional de
Magistratura, a posição do Ministério Público foi no sentido da manutenção da prisão.
Não-obstante a pouco reprovabilidade, o membro do parquet
“o opinou pela
manutenção dos indiciados na prisão”, conforme já colacionado. Nossa prática
consagra uma infeliz repulsa aos princípios de cunho político-criminal.
Dito isto, parece-nos estar havendo um preconceito ideológico em relação à
Insignificância. É verdade que a percepção negativa da Insignificância já foi maior, mas,
ainda assim, esta é percebida de forma pejorativa. Muitos temem que esta possa virar
porto seguro da impunidade, por isto não lhe concedem efetividade, que fica latente.
Pensar na aplicação do princípio em exame por nossa jurisprudência levaria a
uma só conseqüência: a descaracterização da tipicidade penal. Bem aplicada seria uma
medida muito coerente com a ordem social. Repisa-se que não se está levantando a
bandeira da impunidade, mas apenas reconhecendo que o Direito Penal deve ser
54 MENSAGEM 1.447, de 25 de novembro de 1998. Brasília: Casa Civil. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/Mensagem_Veto/1998/Mv1447-98.htm> Acesso: 05 maio
2007.
23
aplicado de forma subsidiaria. Reconhecendo que socialização se faz no convívio, e
não no sectarismo.
A consideração do parágrafo anterior no sentido da desconsideração de
tipicidade representa marco jurisprudencial avançado, no exato sentir do que decidiu o
Supremo Tribunal Federal, em voto relatado pelo ministro Celso de Mello, no Habbeas
Corpus 84.412, oriundo de São Paulo. Poucas vezes se viu uma aplicação tão
contundente do preceito da Insignificância. Por isto mesmo a colação do julgado se
mostra uma exigência acadêmica. In verbis:
“PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA
PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE
POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA
TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19
ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE
A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO
DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO
FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.
O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os
postulados da subsidiariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria
penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal,
examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado –
que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a
presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do
agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau
de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica
provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no
reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe,
em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do
Poder Público.
O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL:
‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a
privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se
justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da
sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente
naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano,
efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.
O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado,
cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos
relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao
titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” 55.
(destacou-se)
55 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habbeas Corpus 84.412/SP. Relator: Ministro Celso de
Mello. DJ, 19 nov. 2004, p. 37.
24
Não-obstante o entendimento no sentido de se afastar a tipicidade da conduta,
que é que predomina na jurisprudência, há casos em que à insignificância nossos
julgadores somam outros supostos. No julgado a seguir, por exemplo, noções acerca
da restituição foram trazidas à colação. O desembargador Sylvio Baptista Neto pugnou
pela mantença da absolvição não apenas em razão da pequena monta do valor furtado,
mas também em razão da postura tomada pelos acusados. In verbis:
“FURTO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Como destacou o Magistrado, absolvendo
os recorridos, embora constatada a existência e a autoria do delito, tenho que é
despiciendo aprofundar o mérito. Isso porque tenho que é de se aplicar, na
hipótese, os princípios da insignificância e da subsidiariedade. Verifica-se
que o furto, praticado em concurso de agentes, redundou em dano de R$
132,00 (cento e trinta e dois reais). Entrementes, é forçoso reconhecer que
houve restituição, pelos acusados Márcio e Andrevis – comprovantes das fls.
68/72 -, da quantia total de R$ 100,00 (cem reais). Ainda, foi devolvido pelo coréu Celi 40 (quarenta) latas de cerveja - depoimento da testemunha Cezisnando
à fl. 92. DECISÃO: Apelo ministerial desprovido. Unânime”56. (destacou-se).
A questão da atipicidade da conduta é a mais relevante no que concerne às
conseqüências da insignificância. É evidente que outros argumentos podem ser
trazidos, e isto é válido. Ainda assim, a maior forca da aplicação da atipicidade reside
em tomar por atípica uma conduta que, do ponto de vista forma, é típica. Formalmente
típica, mas atípica do ponto de vista material.
Tais assentamentos são muito relevantes, e se mostram assim porque
reconhecer a atipicidade da conduta implica em conceder ao Direito Penal um caráter
que lhe é próprio: a subsidiariedade. Neste sentido, por exemplo, decidiu o Tribunal
Regional Federal da 5ª Região no processo n. 9905370943/CE, relatado pelo
desembargador Geraldo Apoliano. As proposições contidas na ementa do julgado são
esclarecedoras, motivo pelo qual a colacionaremos. Vejamos:
“PENAL. DESCAMINHO. COTA DE IMPORTAÇÃO. PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA E DA SUBSIDIARIEDADE. INEXIGIBILIDADE DE
CONDUTA DIVERSA. APLICAÇÃO.
1) Laudo merceológico de avaliação direta a apontar que o valor dos bens
constritos não ultrapassou o limite da quota de importação. 2) O Direito Penal
não se deve ocupar de ninharias. Aplicação, à espécie, do princípio da
56 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Processo n. 70013220009. Relator:
Desembargador Sylvio Baptista Neto. Julgado em 01 dez. 2005. Unânime. Disponível em:
<www.tj.rs.gov.br> Acesso: 02 maio 2007.
25
insignificância e da inexigibilidade da conduta diversa. 3) O Direito Penal não
protege todos os bens jurídicos feridos, mas tão-somente aqueles mais
importantes. Pode-se dizer, assim, que um dos princípios do direito penal é o
da subsidiariedade. 4) Atipicidade penal da conduta. Improvimento da
apelação”57. (destacou-se)
O caráter subsidiário do Direito Penal restou pacífico. Por esta razão fica claro
que este deve se ater às questões onde se apresente como único meio de resolução do
litígio apresentado. Não deve ser preocupar com ninharias como suposto de
legitimidade, afinal nem todos os bens jurídicos se enquadram como objetos de sua
alçada, mas apenas aqueles cuja tutela da ética, da moral, da religião ou de ramos
como o Direito Civil e Administrativo não é suficiente.
O caminho da consideração da Insignificância parece ser o mais sólido pelo
qual caminha nossa jurisprudência. Ainda assim, nosso direito ainda é muito
patrimonial. Por isto questões financeiras voltadas para a proteção do Ter ainda
permeiam o imaginário de muitos julgadores, como se não houvesse diferença em se
furtar uma galinha ou uma granja.
Diz-se isto com base na observação da jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, notadamente no Habbeas Corpus 49.423, no qual a sexta turma sustentou,
sobre frágeis argumentos, parece-nos, que o valor do bem furtado não é determinante
para a aplicação, ou não, da Insignificância. Em seu voto, sustentou o ministro Hamilton
Carvalhido que: “Em que pese o valor do bem subtraído ter sido avaliado em R$ 80,
não se pode concluir pela ínfima afetação do bem jurídico tutelado, notadamente pela
presença da periculosidade social da ação do agente”. A questão da insignificância, que
pensamos dever ser o ponto de partida para a aplicação da lei penal, foi relegada a
figurante, mantendo-se a periculosidade como principal variável.
Conquanto a Insignificância tenha o condão de afastar a tipicidade material, o
que se diz com forte arcabouço doutrinário, nosso Superior Tribunal pareceu no caso
colacionado muito mais preocupado com a questão patrimonial. Nada obstante, desta
mesma decisão, vale ser retirado o voto do ministro Nilson Naves, que assim se
57 PERNAMBUCO. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo n. 9905370943/CE.
Relator: Desembargador Federal Geraldo Apoliano. DJ, 19 dez. 1999, p. 1038.
26
pronunciou: “a melhor das compreensões penais recomenda não seja mesmo o
ordenamento jurídico penal destinado a questões pequenas – coisas quase sem
préstimo ou valor.”58
Questões patrimoniais são, eminentemente, civis. Nesta medida, mecanismos
civilistas devem ser chamados à resolução do conflito como regra. É claro que quando
se está diante de violência, o argumento fica frágil. Por outro lado, nos crimes
patrimoniais, praticados sem violência contra a pessoa, se mostra um contra-senso a
aplicação puramente formal da lei penal. Nestes casos, mais racional é se fazer uma
interpretação conglobante e buscar auxílio em mecanismos de Direito Civil, como a
repetição de indébito.
CONCLUSÃO
A partir da Revolução Francesa e sua Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão vivemos em um Estado de Direito. Um estado de permanente império da Lei,
que deve ser abstrata, genérica e se voltar para a promoção do convívio social.
Quando se pensa em Estado de Direito, a autoridade decorre da Lei, e não de
quem exerce o poder. Nesta medida o respeito à lei se mostra como o traço elementar
de distinção com o absolutismo. Assim é a Lei, e somente ela, que determina que o
particular seja chamado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. O particular tem sua
liberdade assegurada, e esta só é mitigada quando um valor superior, como a vida, foi
violado.
Durante muito tempo legalidade foi vista em sua porção meramente formal, e
não material. Por isto a tipicidade formal era o fundamento para a privação de
liberdade. Hoje em dia, vivida a noção de legalidade material, passa a fazer todo o
sentido de que a liberdade é inerente à condição humana, e só pode ser negada nas
hipóteses em que a norma penal seja materialmente atingida. Neste contexto surge a
idéia de tipicidade material.
Vivemos em um Estado de Direito. Mais. Vivemos em um Estado (Social)
Democrático de Direito. Esta definição valora a vivência em sociedade, já que ter um
58 BRASIL. Superior Tribuna de Justiça. Habbeas Corpus 49.423.
27
Estado Social implica em que os Direitos Sociais sejam implementados. Ter um Estado
Democrático aduz para a prerrogativa de participação. Participar é legítimo.
A noção de Estado Social é muito importante e absolutamente alinhada com os
propósitos do Direito Penal e sua função de ressocializar. A correlação proposta se
mostra relevante ao se considerar que o Direito Penal pretende ressocializar. Por outro
lado, quando se implementa os Direitos Sociais, socializa-se. Previne-se a exclusão
pela inclusão propiciada pelos Direitos Sociais.
A noção de (re)socialização deve ser repensada. Mais importante que
ressocializar é socializar. O ideal das escolas clássicas do Direito Penal, afeta à idéia
de privação de liberdade, mostra-se pouco produtiva, devendo, por isto, o Estado se
voltar para a inclusão social. Trata-se de reconhecer que a privação de liberdade
daquele que não foi nem socializado (por ser alijado do acesso aos Direitos Sociais)
nada soma ao espírito constitucional. Em verdade, mostra-se uma antinomia pretender
ressocializar quem não foi nem socializado.
A discussão sociológica é fundamental, pois, como se viu no corpo do texto, a
noção contemporânea de bagatela se molda em uma sociedade de grande diferença
social. Portanto, como o Brasil é um país de múltiplas realidades e contrastes sociais, o
suposto da Insignificância tem muito a somar com a ordem penal.
O que se expôs implica em que o Estado invista mais em políticas públicas que
tendam à inclusão. Investir para evitar o assoberbamento do Poder Judiciário, já que
este poder, sobretudo em matéria penal, se mostra subsidiário, pelo que só deve ser
chamado em casos excepcionais. Quando se pensa em Direito Penal, o Poder
Judiciário é chamado para segregar, quando o espírito constitucional pretende agregar.
Sendo assim, mais uma vez se mostra relevante tratar deste ramo do direito como
sendo fragmentário.
A noção de Estado de Direito deve, portanto, ser valorada. Ainda assim, a
proposição primária de legalidade – fazer ou deixar de fazer em razão da lei – se
apresenta absolutamente válida. Em matéria penal implica que não é qualquer norma
que vai poder determinar o agir ou o omitir do particular. É preciso se ter lei, e lei em
sentido estrito.
28
Ter a Lei para tratar de matéria penal é suposto do Estado de Direito. Mas,
como temos um Estado Social Democrático, só a legalidade não é bastante. Neste
contexto a Lei será legítima (e isto é assente entre nós desde a Carta Magna de 1824)
quando trouxer consigo a noção de utilidade pública. A noção de utilidade pública de
outrora é chamada nos dias de hoje de razão de justificação. Um argumento salutar, já
que qualquer norma deve ter uma razão de justificação que caiba no espírito
constitucional.
A efetivação da aplicação das normas penais nos dias de hoje passa por duas
idéias elementares: não se pode punir um comportamento que a sociedade não
considera digno de receber punição; e, o Direito Penal não se deve ocupar de
bagatelas. A norma tem que se justificar, e esta justificativa é encontrada na adequação
social. Além disto, quando a norma se justifica, mas a realidade fática apresenta outra
demanda, pode ser que a conduta típica seja conglobável, por exemplo nos casos de
inexigibilidade de conduta diversa.
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ANEXO
31
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
MENSAGEM Nº 1.447, DE 25 DE NOVEMBRO DE 1998.
Senhor Presidente do Senado Federal,
Como é do conhecimento de Vossa Excelência, o Projeto de Lei n o 2.684, de 1996 (no 32/97 no Senado
Federal), de iniciativa do Poder Executivo, teve sua concepção normativa inspirada na vertente filosófica
defendida pelas modernas escolas de Direito Penal, cuja tônica doutrinária centra-se, nuclearmente, no
amadurecimento e na sustentação da tese de que as penas privativas de liberdade, instituídas com a
finalidade preponderante de promover a ressocialização da pessoa do delinqüente, estudada a sua
aplicação prática ao lume de métodos científicos de política criminal, revelaram-se inadequadas e inábeis
a propiciar a reintegração do detento ao convívio social, sobretudo porque, no ambiente prisional em que
são ministrados, perdem eficácia os diversos programas de orientação e de desenvolvimento social do
preso.
Constatada, cientificamente, a inadequação das penas privativas de liberdade para atender aos fins a
que se destinam, o Direito Penal evoluiu no sentido de que novos métodos de repressão ao crime
deveriam ser instituídos, mediante a previsão de sanções de natureza alternativa, que ao juiz seriam
facultadas impor ao condenado, em caráter substitutivo às penas de detenção e de reclusão, desde que
atendidos alguns requisitos relacionados com a pessoa do delinqüente e com o ilícito por ele perpetrado.
Perfilhando essas diretrizes, o projeto de lei em questão, ao propor a instituição de novas penas
alternativas ao elenco já existente no ordenamento, não se descurou em preservar o caráter substitutivo
que lhes é conatural, assim como estabeleceu requisitos objetivos e subjetivos, concernentes ao delito
praticado e à pessoa do criminoso, a serem necessariamente considerados pelo juiz, segundo seu
prudente arbítrio, para a imposição de pena restritiva de direitos, em substituição à pena privativa de
liberdade objeto da condenação criminal.
Nesta perspectiva, embora o projeto se apresente perfeito em rigor e apuro técnico, e nesta ótica
pudesse merecer sanção integral, cumpre observar, entretanto, que as inovações por ele propostas,
consideradas a sua magnitude e a repercussão social que projetam, reclamam implementação paulatina
e gradativa, conforme o exige a dinâmica de alteração de regime normativo.
Ante tais razões, comunico a Vossa Excelência que, nos termos do § 1 o do art. 66 da Constituição, resolvi
vetar parcialmente, por contrariar o interesse público, o Projeto de Lei n o 2.684, de 1996 (no 32/97 no
Senado Federal), que "Altera dispositivos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal", incidindo o veto sobre os dispositivos a seguir indicados.
"Art. 43. ..............................................................................................
............................................................................................................
III - recolhimento domiciliar;
..........................................................................................................."
Razões do veto
A figura do "recolhimento domiciliar", conforme a concebe o Projeto, não contém, na essência, o mínimo
necessário de força punitiva, afigurando-se totalmente desprovida da capacidade de prevenir nova
32
prática delituosa. Por isto, carente do indispensável substrato coercitivo, reputou-se contrária ao interesse
público a norma do Projeto que a institui como pena alternativa.
"Art. 44. ........................................................................................
......................................................................................................
§ 1o Quando a condenação for inferior a seis meses, o juiz, entendendo suficiente, pode substituir a pena
privativa de liberdade por advertência - que consistirá em admoestação verbal ao condenado - ou por
compromisso de freqüência a curso ou submissão a tratamento, durante o tempo da pena aplicada.
.........................................................................................................."
Razões do veto
Em paralelismo com o recolhimento domiciliar, e pelas mesmas razões, o § 1o do art. 44, que permite a
substituição de condenação a pena privativa de liberdade inferior a seis meses por advertência, também
institui norma contrária ao interesse público, porque a admoestação verbal, por sua singeleza, igualmente
carece do indispensável substrato coercitivo, necessário para operar, no grau mínimo exigido pela
jurisdição penal, como sanção alternativa à pena objeto da condenação.
"Art. 45. ................................................................................................
..............................................................................................................
§ 4o O recolhimento domiciliar baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado. O
condenado deverá, sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer atividade autorizada,
permanecendo recolhido nos dias ou horários de folga em residência ou qualquer local destinado à sua
moradia habitual, conforme estabelecido na sentença."
Razões do veto
O § 4o do art. 45 é vetado, em decorrência do veto ao inciso III do art. 43 do Projeto.
Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar em parte o projeto em causa, as quais ora
submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.
Brasília, 25 de novembro de 1998.
Disponível em: <www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/Mensagem_Veto/1998/Mv1447-98.htm>
Acesso: 05 maio 2007.
Justiça Estadual de Tocantins
Processo n. 124/03
33
3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, Tocantins.
DECISÃO
Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e
Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas
(2) melancias.
Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos
indiciados na prisão.
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros
fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o
princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios
do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e
de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que
sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na
Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional). Poderia sustentar que duas
melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer
um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população
sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do
socialismo, a colonização européia. Poderia dizer que George Bush joga bilhões de
dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos
passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir
minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas
técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.
Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo.
Expeçam-se os alvarás. INTIMEM-SE
Palmas, Tocantins, 05 de setembro de 2003.
RAFAEL GONÇALVES DE PAULA
Juiz de Direito
Disponível em: <http://www.trt15.gov.br/boletim/boletim200403.pdf>
34
Acesso: 05 junho 2007.
35
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