1 A MEDIDA DA PENA PROVISÓRIA: O CRITÉRIO TRIFÁSICO DE NELSON HUNGRIA E A DOUTRINA EM DIREITO PENAL NO BRASIL João Emanoel Lima de Oliveira1 Resumo O presente artigo compreende as primeiras análises de pesquisa em andamento, empreendida para uma compreensão ampla da temática da aplicação das penas no Direito brasileiro. Tem como escopo tecer algumas considerações sobre como a doutrina tem tratado o tema da aplicação das penas, matéria substancial do Direito Penal, precisamente quando debate sobre a pena provisória, a qual constitui a segunda fase do critério trifásico de aplicação das penas adotado pelo Código Penal brasileiro. De conteúdo extremamente importante para o convívio social, a aplicação de sanções penais, como medida retributiva e preventiva, tem sofrido alterações no campo teórico e, principalmente, no campo prático, face a disseminação dos ideais que não visualizam na privação de liberdade uma medida adequada para os fins sociais que tal pena se propõe a alcançar. Desta forma, o limite de aplicação das penas, ou seja, a quantidade de pena aplicada, incide diretamente na “qualidade” da sanção penal, elemento este que irá definir se tal sanção a ser enfrentada pelo condenado será de caráter privativo da liberdade, restritivo de direitos ou de perdimento de bens. No que tange aos limites previstos, mínimo ou máximo de pena, a doutrina brasileira tem se debatido e divergido sobre os mais profícuos propósitos de aplicação de sanção penal, no sentido de descobrir qual a mais justa medida de punição. Neste embate, discordantes vozes tem se levantado, umas para alertar sobre a rigidez exacerbada da aplicação da pena provisória, outras para sustentar o caráter legal da punição, o qual não deve ser negligenciado. Palavras-chave: Aplicação das penas. Limites de pena. Caráter preventivo e retributivo. 1 Aluno do curso de Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. 2 Introdução A ciência do Direito Penal encontra-se arraigada na ideia estrutural de uma sanção penal aplicada ao fato típico e culpável (MIRABETE; FABRINI, 2010, p. 83; CAPEZ, 2011, p. 134). A aplicação da pena, portanto, consiste em tema de fulcral relevância para os pensadores deste ramo do Direito. A história nos explicita a evolução das penas, dos preceitos da Lei de Talião e do Pentateuco, passando por penas extremamente severas e cruéis na Idade Média, chegando à era moderna com a eleição da pena privativa de liberdade como a principal das penas. De certa forma, os variados tipos de pena apresentam uma progressão, ou mesmo um aprendizado rumo ao descobrimento da dignidade da pessoa humana. Como já lecionou Miguel Reale (apud NEVES, 2010, p. 30): “a história do Direito Penal é a história de um longo processo de humanização da repressão”. O nosso Código Penal Brasileiro preceitua em seus artigos 59 e 68 as diretrizes de aplicação das penas. Segundo o artigo 68, três fases compõem o procedimento de imposição de sanções penais, segundo o critério trifásico, preconizado por Nelson Hungria (BARROS, 2001, p. 511): primeiro, a aplicação da pena-base, segundo os critérios do art. 59 do Código Penal; segundo, cálculo da pena provisória por meio da análise das atenuantes e agravantes genéricas, constantes dos arts. 61 a 67 do mesmo Código; e por último, aplicação da pena definitiva, mediante consideração das causas de diminuição e de aumento de pena. Na doutrina, destaca-se a notória divergência entre os pensadores do Direito quanto à aplicação da pena provisória, na segunda fase de aplicação da pena. O caminho tomado pela jurisprudência tem apontado para a adoção de uma pena intermediária dentro dos limites legais previstos, semelhantemente ao que se faz na fixação da pena-base. Contudo, na doutrina, o entendimento não é pacífico, já que parte dos autores aponta uma interpretação contra legem desta medida, entendendo que a pena provisória não pode estar adstrita aos mesmos limites legais impostos à pena-base. 3 A relevância do tema se dá por sua implicação prática na seara penal. Definir ou não sobre se a pena provisória deve ser aplicada abaixo do limite mínimo resulta em importante impacto sobre a realidade carcerária no Brasil. Teria direta relação com penas que, por sua pequena quantidade, beneficiariam condenados que, pelo pequeno grau do dano que causaram, não merecem a privação da liberdade, podendo tal pena ser substituída por outra espécie de sanção penal, desafogando ainda mais o convalescente e infrutífero sistema carcerário brasileiro. Entendendo a pena segundo o conceito eclético, proposto por Merkel, e defendido por Santiago Mir Puig (apud GRECO, 2011, p. 475), onde a sanção punitiva apresenta o caráter retributivo e preventivo, noção adotada pelo nosso Código Penal em seu artigo 59 (segundo a redação determinada pela Lei n. 7.209/84), procedemos a uma pesquisa de natureza descritivo-qualitativa a respeito de sua aplicação, através de: levantamento de bibliografia teórica da doutrina jurídica; consulta aos textos normativos, como o Código de Direito Penal (DecretoLei n. 2.848/1940 e respectivas alterações, especialmente a Reforma do Código Penal, Lei n. 7.209/84) e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Propomos, portanto, analisar a doutrina que trata do tema da segunda fase de aplicação da pena, dialogando especificamente com as vozes discordantes a respeito dos limites de aplicação da pena provisória. Buscaremos extrair das divergências e convergências teóricas um entendimento aproximado daquele que norteia a jurisprudência brasileira na seara penal, investindo principalmente na relação do pensamento predominante sobre a aplicação de pena provisória com as vozes discordantes e proponentes de outros caminhos para o tratamento da matéria. Primordialmente, procederemos ao levantamento das vertentes doutrinárias que se debruçam sobre o tema “aplicação da Lei penal”, com o intuito de alcançarmos uma visão geral sobre a teoria da matéria em questão. Em seguida, analisaremos, com o apoio dos textos normativos, o problema que gira em torno da segunda fase de aplicação da pena, a pena provisória. Há de se considerar os limites dos argumentos que acusam o contra legem e os que defendem a posição majoritária adotada pela jurisprudência. Merece atenção também a relação que tais 4 posicionamentos mantêm com outros ramos do Direito, principalmente com o Direito Constitucional e os Princípios Gerais do Direito. A aplicação da pena: o critério trifásico de Nelson Hungria O Direito Penal possui como seu pilar principal o conceito de pena. Até onde a história nos conduz a visão, lá encontraremos medidas sancionadoras e punitivas com vistas a regular a vida em sociedade. No curso da história humana em sociedade, diversas foram as modalidades punitivas com as quais os homens tiveram de lidar, e mais recentemente, o próprio conceito de punição tem sofrido mudanças substanciais. Especialmente após o despontar da era moderna, iniciada com o pensamento iluminista europeu do século XVIII, o conceito de pena como sanção aflitiva, aquela que causava dano físico ao condenado, expondo-o à ignomínia pública e à crueldade dos carrascos, foi sendo substituída pela exclusão do convívio social, de caráter retributivo ao dano causado pelo agente, sempre sob o olhar vigilante (panóptico) do Estado (FOUCAULT, 2003). Em pleno fervilhar do iluminismo, questionava-se Beccaria (2003, p. 86-87) a respeito dos delitos e das penas: Se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário buscar e estabelecer uma progressão de penas que corresponda à progressão dos delitos. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade, ou da maldade de cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penalidades proporcionadas aos crimes, especialmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos. e, 5 Como é possível perceber da posição de Cesare Beccaria, há pouco mais de duzentos anos, a problemática do cálculo de aplicação da pena já se afigurava como um problema prático, ao qual o legislador e o jurista deveriam dedicar-se, com o fim de “retribuir” devidamente o mal que determinado indivíduo causasse à sociedade. Tal discussão ainda se encontra presente, sendo tema de intenso debate em torno da aplicação das penas definida no Código Penal Brasileiro. No título V do Código Penal, encontramos o capítulo III que trata das regras sobre a aplicação e individualização das penas (Arts. 59 a 76). O Princípio da individualização das penas encontra assento na Norma Suprema de nosso ordenamento. No art. 5º, inciso XLV, parte a, da Constituição Federal temos o seguinte texto: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]”. Já no inciso XLVI, parte a: “a lei regulará a individualização da pena [...]”. Desta forma, a Carta Magna atribui à lei ordinária a disposição de regras que tratem da individualização da pena, de forma que a sanção alcance apenas o descumpridor da lei. Tratando, portanto, da individualização da pena, preceitua o art. 68 do Código Penal, segundo a redação determinada pela Lei n. 7.209 de 11 de julho de 1984: “A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e aumento”. Nitidamente se vê, pela redação deste artigo, o requisito trifásico da aplicação da pena proposto por Nelson Hungria, um dos autores do anteprojeto de Lei que reformou a parte geral do Código Penal de 1940. Para Hungria, a aplicação da pena deve possuir três fases distintas: na primeira, a aplicação da pena-base; na segunda, serão consideradas as atenuantes e agravantes genéricas; e na terceira e última fase, a consideração das causas especiais de aumento e diminuição de pena. Para Barros (2011, p. 511), o critério trifásico de Nelson Hungria é o que “mais satisfaz às exigências sociais de individualização da pena, pois enaltece, com maior clareza, cada passo da operação de sua fixação”. 6 A primeira fase é da fixação da pena-base. Trata-se de pena-base, a escolha inicial do tipo de pena a ser aplicado e o cálculo primeiro a ser estabelecido. Segundo Barros (2011, p. 523-514), a aplicação da pena-base apresenta um primeiro momento, no qual o magistrado deverá mencionar o tipo de pena a ser aplicado, em acordo com o preceito secundário do tipo legal. Ainda segundo Barros (2011, p. 523-514), definido o tipo de pena, o juiz partirá para o segundo momento da aplicação da pena-base, que consiste na apreciação do preceito do artigo 59 do Código Penal. No caput deste artigo estão descritas as chamadas circunstâncias judiciais (culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do condenado, motivos, circunstâncias, conseqüências e comportamento da vítima), que servem como parâmetro para a medida adequada de pena-base a ser aplicada pelo magistrado, dentro dos limites previstos no tipo legal. Alguns autores definem a pena-base como sendo uma pena “abstratamente” cominada (MIRABETE; FABRINI, 2007, p. 299), ou ainda, uma pena in abstracto (JESUS, 2010. p. 632) Não há previsão legal no que tange à quantidade de pena que cada circunstância judicial poderá elevar ou diminuir. A valoração das circunstâncias judiciais “é conferida ao poder discricionário do juiz” (BARROS, 2011, p. 514). Além disso, deve o magistrado fundamentar as circunstâncias levadas em conta na penabase, de forma a comentar das razões que o levaram a considerá-las na aplicação da pena. Fixada a pena-base, o juiz procede à segunda fase da aplicação da pena, onde, para fixar a pena provisória, procederá a análise das chamadas circunstâncias legais, que são aquelas descritas nos artigos 61, 62, 65 e 66 do Código Penal, ou seja, as circunstâncias agravantes e atenuantes. Semelhantemente às circunstâncias judiciais, as circunstâncias legais não apresentam quantum definido de pena a ser aplicado na ocorrência de cada uma delas (GRECO, 2011, p. 559). Fica sob a discricionariedade do juiz a quantidade de pena a ser aumentada (no 7 caso das agravantes) e que será diminuída (no caso das atenuantes). A questão levantada por parte da doutrina é se o aumento ou diminuição devem estar adstritos aos limites do tipo penal. A análise de tal questão é o objetivo do presente trabalho e será discutida adiante. Já a terceira fase da aplicação da pena, chamada de pena definitiva, constituise no cálculo do quantum punitivo em função da análise das chamadas causas especiais de aumento e diminuição da pena, as quais se encontram acompanhas a alguns tipos penais, como por exemplo, no crime de homicídio descrito no artigo 121 do Código Penal, onde no seu parágrafo primeiro temos uma causa especial de diminuição de pena: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Diferentemente das agravantes e atenuantes, a quantidade de pena aumentada ou diminuída já está descrita no Código, dependendo diretamente da pena aplicada anteriormente, ou seja, depende da quantidade de pena provisória aplicada (BARROS, 2011, p. 511). Descrito está o requisito trifásico de aplicação da pena. Entretanto, o objeto ao qual nos detemos é a aplicação da pena provisória, tendo em vista ser esta a fase onde se tem encontrado um debate acalorado na doutrina e na jurisprudência, em função das posições discordantes quanto à medida de aplicação da pena, especificamente no que diz respeito à possibilidade de aplicação abaixo do mínimo legal previsto no tipo penal na segunda fase de aplicação. Os limites da pena provisória: corrente majoritária Enquanto repositório de jurisprudência e também norteador dos tribunais inferiores quanto aos consensos das sentenças e julgados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou no dia 15 de outubro de 2009, a Súmula n o 231, que orienta: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Tal súmula ecoa uma disseminada posição entre os 8 tribunais de que, na aplicação da pena provisória, tal não deve ser diminuída abaixo do mínimo previsto no tipo legal de crimes descritos no Código Penal. As reiteradas decisões, que por fim levaram o STJ a eleger tal postura como orientação para as sentenças futuras, têm encontrado aceitação em parte majoritária da doutrina brasileira. Na lição de Barros (2011, p. 511) vemos: “Desde já cumpre fixar algumas regras básicas: [...] b) a presença de atenuantes não pode diminuir a pena abaixo do mínimo legal; c) a presença de agravantes não pode elevar a pena acima do máximo legal;”. Lembra este mesmo autor que a incidência de causas de diminuição ou aumento de pena, na aplicação da pena definitiva, diferentemente do que acontece na aplicação da pena provisória, não estão restritas aos limites legais, podendo ser inferiores ou superiores às quantidades mínima e máxima definidas nos tipos de cada crime. Tal postura também é defendida por Capez (2011, p. 477, 492). Este autor baseia sua opinião na adoção reiterada de tal posicionamento pela jurisprudência, fato tornado notório pela publicação da Súmula do STJ. Geralmente, os intérpretes do Código Penal têm se apoiado, primariamente, no fato de a jurisprudência ter adotado tal postura quanto aos limites da pena provisória. Vemos isto em Mirabete e Fabrini (2007, p. 300-301), que, fazendo menção da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, afirmam como “característica fundamental” da análise das circunstâncias judiciais atenuantes e agravantes é a “de não poder servir para a transposição dos limites mínimo e máximo da pena abstratamente cominada”. Semelhantemente, procede Damásio de Jesus (2010, p. 633), lembrando que, se na aplicação da pena-base, o magistrado a fixa no seu patamar mínimo, e seguindo na consideração de circunstâncias legais genéricas atenuantes, não pode ele aplicar pena inferior ao mínimo legal. A mesma regra também é adotada quando a pena-base atinge o máximo legal, não podendo elevar-se no advento de circunstância agravante. 9 As considerações que justificam-se pela adoção jurisprudencial da postura preconizada na Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça são a linha majoritária da corrente majoritária. Os autores, especialmente nos tratados de Direito Penal e nos Códigos penais comentados, adotam esta justificativa simples. Todavia, outros autores buscaram elementos teóricos diversos para reforçar o posicionamento majoritário. Nucci (2009, p. 427) leciona que uma das diferenças fundamentais entre as circunstâncias legais e as causas de diminuição e aumento o fato de que estas estão descritas no tipo penal, compondo elemento integrante da definição, e aquelas não participam da tipificação. Lembra este mesmo autor que: [...] parece-nos incorreta, pois as atenuantes não fazem parte do tipo penal, de modo que não têm o condão de promover a redução da pena abaixo do mínimo legal. Quando o legislador fixou, em abstrato, o mínimo e o máximo para o crime, obrigou o juiz a movimentar-se dentro desses parâmetros, sem possibilidade de ultrapassá-los, salvo quando a própria lei estabelecer causas de aumento ou de diminuição. Estas, por sua vez, fazem parte da estrutura típica do delito, de modo que o juiz nada mais faz do que seguir orientação do próprio legislador. (NUCCI, 2009, p. 427) O autor denomina então as causas de diminuição e aumento de “tipicidade por extensão” (Nucci, 2009, p. 427). Entendidas desta forma, as circunstâncias legais não teriam o condão de extrapolar os limites legais, sendo que não estão devidamente “autorizadas” por lei para assim o fazer. Percebidos os limites mínimo e máximo da pena, o magistrado deve, de acordo com a tipificação de cada crime (seja sua definição, seja a quantidade de pena prevista), não extrapolar qualquer limite, até que chegue à terceira fase da aplicação da pena, que é a aplicação da pena definitiva. Segundo o entendimento majoritário, podemos tomar como exemplo o art. 121 do Código Penal: Homicídio simples. Em caso de homicídio simples, o próprio 10 tipo legal define a pena nos limites de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, no regime de reclusão. No parágrafo primeiro do mesmo artigo 121, temos uma causa de diminuição de pena: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Os limites, portanto, poderão ser rompidos, visto a previsão legal para tanto. Estaria esta posição em devida consonância com princípio constitucional da legalidade, onde “não há crime sem lei anterior que o define, nem pena sem prévia cominação legal” (Art. 5º, XXXIX, CF, grifo nosso). Reforçando o discurso da restrição da pena provisória aos limites legais, Lycurgo de Castro Santos (apud NUCCI, 2009, p. 428) postula: Com efeito, dois são os motivos pelos quais não se pode admitir tal individualização da pena abaixo do mínimo legal: em primeiro lugar contraria o princípio da legalidade, já que a pena mínima estabelecida pelo legislador é o limite mínimo a partir do qual a pena pelo injusto culpável cumpre seus pressupostos de prevenção especial e geral. Em segundo lugar, a adoção do critério de rebaixar a pena aquém do marco mínimo traz consigo um perigo, desde o ponto de vista político criminal, à segurança jurídica. A não adoção de um mínimo legal quando da aplicação da pena provisória poderia acarretar uma ausência total de pena na transposição da segunda para a terceira fase da aplicação. Se um mínimo de tempo punitivo não emergir para que sobre ele incida os cálculos previstos nas causas de diminuição e aumento previstas na parte geral do Código Penal, a pena em si seria descabida e sem sentido, e o crime praticado ficaria impune. 11 As teorias finalistas da pena Antes de expormos as ideias de doutrinadores da corrente minoritária, necessário será expormos algumas das raízes pelas quais a corrente contrária tem buscado subsídios para compor sua teoria. Trata-se das teorias finalistas da pena. Para Neves (2010, p. 58-87) existem duas correntes principais que discutem a finalidade da penas: as teorias legitimadoras e as deslegitimadoras. Estas últimas têm procurado provar que as sanções punitivas, em especial aquelas que restringem e privam a liberdade, não têm se mostrado adequadas para o refreio da criminalidade, e, portanto, não têm atendido aos fins do Direito Penal que é a tutela dos valores máximo de uma sociedade. Como é notório, a deslegitimação enquanto prática não é uma realidade no Direito Penal brasileiro. Contudo, seu discurso tem fomentado uma análise mais crítica em relação à aplicação das penas. Daí, as correntes distintas que buscam legitimar as sanções penais. De forma geral os autores concordam sobre as teorias legitimadoras que versam sobre as finalidades das penas, que se dividem em duas principais correntes: a teoria absoluta ou retributiva e a teoria relativa ou de prevenção (GRECO, 2011, p. 473). Fala-se também, todavia, de uma terceira, chamada de eclética, que contêm os elementos das teorias absoluta e relativa. A teoria absoluta, que apresenta várias vertentes em si, “advoga a tese da retribuição” (GRECO, 2011, p. 473). Nesse entendimento, predomina a noção de que a pena é um mal que necessariamente e proporcionalmente deve ser devolvido a quem infringiu uma norma penal. As teorias de cunho absoluto, afirma Neves (2010, p. 58), “possuem origem no idealismo alemão, merecendo relevo a teoria da retribuição ética ou moral de Kant, pois a pena deriva de um imperativo categórico, a saber, de um imperativo moral incondicional”. Como pudemos auferir anteriormente por meio das palavras de Cesare Beccaria, o funcionamento normal da sociedade quando colocado em risco pela prática anormal de um de seus membros, segundo a lógica kantiana, sugeria uma retribuição à altura. Segundo um princípio que remetia 12 à Lei de Talião (olho por olho, dente por dente), Kant invocava uma imanência da justiça como parâmetro de retribuição. Já em Hegel, a pena atende a “uma exigência da razão, o qual se justifica através de um processo dialético inerente ao próprio conceito de direito” (Neves, 2010, p. 59). Enquanto violação, o crime carecia de antagônico dialético: a pena. Para que uma síntese adequada proporcionasse a necessária regularidade social, crime e pena deviam possuir a mesma proporção. Em Kant e Hegel estão as bases das teorias retributivas. Ambas possuem “a ideia essencial de retribuição e o reconhecimento de que entre o delito praticado e a sua punição deve haver uma relação de igualdade” (Neves, 2010, p. 59). Já as teorias relativas entendem a pena como um meio para determinados fins, com destinação utilitária e finalista. Para BRUNO (1967, p. 34-35), nas teorias relativas “o crime é apenas um pressuposto: a razão de ser da pena está no fim que se lhe atribua – prevenção geral, pela intimidação; prevenção especial, pela emenda ou segregação do condenado”. Na mesma linha, lembra Greco (2011, p. 473) das duas espécies de prevenção: a geral, que se destina ao todo social, de forma que todos os indivíduos sejam desencorajados a prática delitivas, face à punição de um seus iguais; e a especial, que visa especialmente a pessoa do condenado, que ele não torne a delinquir novamente. Em virtude da ineficácia das teorias anteriores, as teorias ecléticas ou mistas, também chamadas de unificadoras, surgiram com a proposta agregar os elementos de suas predecessoras, afirmando o caráter dual da pena. Tais teorias são as que predominam nas legislações ocidentais (NEVES, 2010, p. 76), inclusive no Código Penal brasileiro (GRECO, 2011, p. 474), quando o artigo 59 determina que o juiz aplicará a pena “conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”. Apesar de sua natureza unificadora em relação às teorias anteriores, as teorias ecléticas também sofreram críticas por parte de alguns juristas. Discorrendo 13 sobre as inquietações do jurista alemão Claus Roxin, Neves (2010, p. 82) levanta a problemática: Ao pretender que os esforços de ressocialização em favor do sujeito somente podem começar com a execução da sanção, a primeira coisa que a condenação em si mesma torna efetiva é uma dura restrição de liberdade do delinquente, restrição esta que não se faz no seu interesse, mas no da comunidade e que, portanto, serve aos outros e não, a ele. Então questiona: justifica-se aplicar uma pena a um indivíduo para conseguir esse objetivo? E poderá considerar-se o sacrifício de um particular, apenas no interesse da coletividade, conforme o direito? A autora, que defende medidas substitutivas às penas privativas de liberdade, ainda expõe que, para Roxin, as ideias contidas nas teorias absolutas e relativas entram em choque e controvérsia quando empregadas conjuntamente. A ideia de retribuição e prevenção não conseguem em conjunto alcançar suas respectivas finalidades: Quando, como naturalmente sucede com a maioria dos presos, a primeira coisa que se deve fazer é conduzir a personalidade do sujeito ao caminho recto, o modo de o fazer não é moralizarem tom magistral, mas sim, formar espiritual e intelectualmente, despertar a consciência da responsabilidade e activar e desenvolver todas as forças do delinqüente, e muito em particular as suas especiais aptidões pessoais. A personalidade do delinqüente não deve, pois, ser humilhada, nem ofendida, mas desenvolvida. [...] Para o ajudar, e assim nos ajudarmos, é necessária a cooperação entre juristas, médicos, psicólogos e pedagogos. Não é possível agora precisar os pormenores de tal programa de ressocialização, mas toda a gente sabe que a realidade do nosso sistema penitenciário não corresponde, em múltiplos aspectos, nem sequer às mais modestas exigências deste tipo. Todos os peritos estão de acordo que a execução da pena constitui o ponto mais débil da nossa práxis do direito penal e que necessita de uma reforma muito mais urgente que o direito material. (ROXIN apud NEVES, 2010, p. 86). 14 Desta forma, ainda que a aplicação de penas seja o expediente necessário do direito penal, deve-se ter a consciência de suas limitações. No mesmo sentido, Cervini (apud GRECO, 2011, p. 475) também postula: Atualmente, nenhum especialista entende que as instituições de custódia estejam desenvolvendo as atividades de reabilitação e correção que a sociedade lhes atribui. O fenômeno da prisionização ou aculturação do detento, a potencialidade criminalizante do meio carcerário que condiciona futuras carreiras criminais (fenômeno de contágio), os efeitos da estigmatização, a transferência da pena e outras características próprias de toda instituição total inibem qualquer possibilidade de tratamento eficaz e as próprias cifras de reincidência são por si só eloquentes. Ademais, a carência de meios, instalações e pessoal capacitado agravam esse terrível panorama. Na esteira do pensamento de Cervini, Greco (2011, p. 477) complementa, afirmando sobre o provável principal problema, especialmente no Brasil, da ineficácia do sistema de aplicação de penas: “Devemos entender que, mais que um simples problema de Direito Penal, a ressocialização, antes de tudo, é um problema político-social do Estado. Enquanto não houver vontade política, o problema da ressocialização será insolúvel”. De forma geral, os autores que partilham das inquietações com relação às restrições segundo as quais as penas não alcançam suas finalidades, são os mesmos que defendem que a redução da pena provisória para aquém do mínimo legal. A seguir, destacaremos as posições de GRECO (2011) e BITENCOURT (2006). Os limites da pena provisória: corrente minoritária Como já afirmado anteriormente, a adoção dos limites mínimo e máximo na segunda fase da aplicação da pena não é uma unanimidade da doutrina brasileira. 15 Uma corrente contrária de autores que se opõem à corrente majoritária tem encontrado espaço na literatura jurídica de Direito Penal. Bitencourt (2006, p. 711) também sustenta a respeito da previsão constitucional dos limites para aplicação da pena: [...] a individualização da pena, [...] encontra seus limites na lei ordinária. Por isso, é inconstitucional extrapolar os limites legais, por violar os princípios da pena determinada e da sua individualização”. O autor ainda corrobora com a ideia majoritária, respeitando a interpretação que aplicação de pena abaixo do mínimo legal pode violar o primeiro momento de individualização da pena, o qual sendo privativo do poder legislativo, implicaria na invasão de função de um poder sobre o outro. Além disso, a corrente majoritária também lembrava da possibilidade de infração aos princípios da reserva lega e da pena determina, tornando então, tal aplicação inconstitucional. Contudo, o autor afirma: Desejamos registrar, no entanto, que, a despeito de continuarmos respeitando essa orientação, acompanhamos o entendimento que sustenta a possibilidade de as circunstâncias atenuantes poderem trazer a pena aplicada para aquém do mínimo legal, especialmente quando, in concreto, existam causas de aumento. Na verdade, o grande fundamento para se admitir que as atenuantes possam trazer a pena para aquém do mínimo legal é principalmente a sua posição topográfica: são valoradas antes das causas de aumento e de diminuição; em outros termos, após o exame das atenuantes / agravantes, resta a operação valorativa das causas de aumento que pode elevar consideravelmente a pena-base ou provisória. Ademais, o texto atual do Código Penal (Lei n. 7.902/84) não apresenta qualquer empecilho que impossibilite o reconhecimento de qualquer atenuante, ainda que isso possa significar uma pena (base, provisória ou definitiva) inferior ao mínimo cominado no tipo penal. (BITENCOURT, 2006, p. 713) O critério topográfico é o adotado pelo autor para justificar seu posicionamento. Sendo assim, considerando a medida que mais pode beneficiar o 16 réu, assegura que não conflito normativo na aplicação da pena provisória abaixo do mínimo legal. Tal medida defendida encontra lastro em outra obra de Bitencourt (1993), na qual o autor tece críticas ao instituto da pena privativa de liberdade. Para ele, penas alternativas, como a restritiva de direitos, são medidas que, em substituição à prisão, podem oferecer melhores resultados para as finalidades a que a pena se destina. Tal posição também é defendida por Neves (2010). Greco (2011) contribui para tornar a voz da corrente minoritária mais audível. Lembra ele que a possibilidade de redução da pena-base para aquém do mínimo legal na segunda fase da aplicação da pena ainda é motivo de intenso debate, e, tecendo críticas à Súmula n. 231 do STJ, afirma: Essa, infelizmente, tem sido a posição da maioria dos nossos autores, que, numa interpretação contra legem, não permitem a redução da penabase, em virtude da existência de uma circunstância atenuante, se aquela tiver sido fixada em seu patamar mínimo. (GRECO, 2011, p. 551) Nota-se que este autor impõe sua posição de forma mais contundente, imputando à interpretação contrária o contra legem. Não seria, portanto, uma ofensa ao princípio da legalidade o fato de reduzir a pena abaixo do mínimo legal, mas impedir isso é que é realmente contra a lei. A assertiva tem sua explicação dada pelo autor: Dissemos que tal interpretação é contrária à lei porque o art. 65 não excepciona sua aplicação aos casos em que a pena-base tenha sido fixada acima do mínimo legal. Pelo contrário. O mencionado artigo afirma, categoricamente, que são circunstâncias que sempre atenuam a pena. Por que razão utilizaria o legislador o advérbio sempre se fosse sua intenção deixar de aplicar a redução, em virtude da existência de uma circunstância atenuante, quando a pena-base fosse fixada em seu grau mínimo? (GRECO, 2011, p. 551) 17 O ponto fulcral da crítica de Rogério Greco é o uso do advérbio “sempre” (Art. 65, caput, CP). Dada esta possibilidade aberta pelo legislador, o autor propõe que sua negligência tem implicações não apenas acadêmicas, mas importante repercussão prática. Sendo um indivíduo condenado, e segundo as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal o mesmo recebe o mínimo legal na pena-base, caso fosse novamente beneficiado quando das circunstâncias atenuantes (fosse menor de 21 anos, por exemplo, segundo o art. 65, inciso I), não poderia ele ter sua pena reduzida, por já estar restrita ao mínimo legal. Neste caso, a circunstância legal “nem sempre” atenuaria a pena, em desobediência direta ao caput do art. 65 do Código Penal. Em determinados casos, cuja pena fosse inferior a um ano, por exemplo, nas circunstâncias apontadas aqui, traria reais benefícios para o condenado, tanto em relação a possibilidade de substituição da privação de liberdade por outro tipo de pena, como também pela possibilidade de redução no prazo prescricional. Além disso, o autor ainda assevera: Além de inviabilizar um direito do sentenciado, essa interpretação faz com que, na prática, alguns juízes tentem observar a sua aplicação aumentando um pouco a pena-base para que, no momento posterior, possam vir a reduzi-la em consideração à existência de uma circunstância atenuante, o que fere, ainda mais, a mens legis. Essa “boa vontade” em aplicar a circunstância atenuante nada mais é do que uma forma de burlar a lei” (GRECO, 2011, p. 552). Apesar da contundência com que os autores da posição minoritária colocam suas opiniões, a tese da redução da pena abaixo do mínimo legal na segunda fase de aplicação da pena continua relegada à posição pouco expressiva na doutrina. Possivelmente, em virtude de seu caráter progressista, que ambiciona reformular o próprio caráter inerente à ideia de pena, constituído-a de uma natureza menos privativa e retributiva e mais ressocializadora e preventiva. Hodiernamente, nosso direito, de forma geral, é profundamente influenciado pelo dogmatismo, que se reflete na supremacia da lei escrita como sua principal 18 fonte. Em virtude disto, a previsão legal, de forma expressa e bem definida, ainda é o “carro chefe” no momento de aplicar a sanção penal. Visto serem os Princípios da legalidade e reserva legal fundamentos do nosso Direito Penal, a previsão legal dos limites da pena ainda são levados em muita consideração no momento da aplicação da pena. Considerações finais No presente artigo, tratamos de como a aplicação da pena em nosso Direito Penal brasileiro apresenta correntes doutrinárias diversas, em especial no caso apresentado, que trata da cominação da pena na segunda fase de aplicação proposta no critério trifásico de Nelson Hungria: a pena provisória. A corrente que afirma que a pena provisória deve restringir-se aos limites legais propostos em cada tipo penal é a posição majoritária. Funda-se ela nos Princípios da legalidade e da reserva legal, onde “não há pena sem prévia cominação legal” (Art. 5º, XXXIX, CF; Art. 1º, CP). A predominância de tal vertente doutrinária funda-se, essencialmente, no caráter dogmático que ainda predomina no nosso direito, baseado, principalmente, na lei escrita. Em sentido contrário, encontramos a corrente que prega sobre as limitações do instituto da pena, e reforça o coro a respeito de medidas alternativas de pena. Tal corrente apóia a ideia da redução da pena provisória para aquém do mínimo legal, usando do “próprio veneno” apregoado pela corrente majoritária, no sentido de afirmar o contra legem, ou seja, que a restrição da pena aos limites previstos na letra da lei descumpre a própria lei, ferindo também o princípio da legalidade. A controvérsia não encontra terreno na jurisprudência, já que esta já se decidiu pela corrente majoritária, quando da publicação da Súmula n. 231 do Superior Tribunal de Justiça: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Vê-se, portanto, que a corrente minoritária restringe-se a uma pequena parcela de doutrinadores, não encontrando repercussão entre os magistrados. 19 Referências BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal: Parte Geral. vol.I. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Texto na íntegra. Trad. Deocleciano Torrieri Guimarães. São Paulo: Rideel, 2003. 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