HIPOTIREOIDISMO CONGÊNITO Mariana de Melo Gadelha, Maristela Estevão Barbosa, Paulo R. Margotto A deficiência na produção ou na atuação dos hormônios tireoidianos (HT) leva ao quadro de hipotireoidismo, que é uma das doenças hormonais mais freqüentes em pediatria. Os quadros clínicos resultantes da deficiência dos HT dependerão do grau e do tempo desta deficiência, afetando praticamente todos os tecidos em maior ou menor intensidade. Entretanto, é importante ressaltar que já na vida intra-uterina, a falta de produção de HT determina conseqüências danosas no desenvolvimento cerebral normal do feto. O Hipotireoidismo Congênito (HC) é uma das causas mais comuns de retardo mental preveníveis, e, portanto, seu diagnóstico precoce é essencial. Para uma produção adequada do HT, é importante que o eixo hipotálamohipófise-tireóide esteja íntegro, garantindo a seqüência das atuações do hormônio liberador hipotalâmico (TRH) sobre a hipófise, produzindo hormônio tireotrófico hipofisário (TSH), o qual, por sua vez atua na tireóide, produzindo os HT, que atuarão no hipotálamo fechando a alça de feedback. Deficiências nessas etapas levam respectivamente a um hipotireoidismo terciário ou hipotalâmico, secundário ou hipofisário e primário ou tireoidiano (Figura 1). Fig. 1 O hipotireoidismo primário ou tireoidiano é sem dúvida o mais comum. Na maioria dos casos, a desordem é permanente e resulta tanto de uma anormalidade no desenvolvimento da glândula (cerca de 80% dos casos - agenesia, hipoplasia ou disgenesia), como de um defeito direto na hormonogênese do tireócito (disormonogênese). A disormonogênese (cerca de 15% do total de casos) ocorre por herança autossômica recessiva, sendo assim, mais freqüente em filhos de pais consangüíneos. Menos comumente, a função tireoidiana neonatal pode estar alterada transitoriamente (3%), devido à passagem transplacentária de anticorpos maternos, medicações em uso pela gestante ou excesso ou deficiência de iodo. Em casos mais raros, o HC resultará de anormalidades centrais (2%), hipotalâmicas ou hipofisárias. A tabela 1 mostra a classificação e prevalência do HC. DISGENESIA Agenesia Hipoplasia Ectopia DISORMONOGÊNESE Ausência de resposta ao TSH Defeito no transporte ou captação do iodeto Defeito de organificação Defeito de síntese da tireoglobulina Defeito na iodotirosinase deiodinase HIPOTALÂMICO-HIPOFISÁRIO Anomalia hipotálamo-hipofisária Pan-hipopituitarismo Deficiência isolada de TSH Resistência ao HT HIPOTIREOIDISMO TRANSITÓRIO Induzido por drogas Induzido por anticorpos maternos Gestantes tratadas com drogas antitireoidianas ou irradiação Idiopático 1:4000 1:30 000 1:100 000 1: 40 000 Tabela 1 CLASSIFICAÇÃO CID10: E03.0 Hipotireoidismo Congênito com Bócio Difuso E03.1 Hipotireoidismo Congênito sem Bócio SITUAÇÕES ESPECIAIS: 1. Função tireoidiana em crianças prematuras: As concentrações dos hormônios tireoidianos no cordão são proporcionais ao peso do RN e à idade gestacional. Após o nascimento, em comparação aos RN de termo, os prematuros exibem alterações qualitativamente similares, mas quantitativamente menores nas concentrações de TSH, T4 e T3. Assim, as concentrações de TSH elevam-se próximo de 40 mcUI;ml e os picos de T4, T4 livre e T3 são 20 a 30% inferiores. Isso decorre provavelmente da imaturidade do eixo hipotálamo-hipófise-tireóide. Após a primeira semana de nascimento, os níveis de T4 e T3 elevam-se gradualmente. Embora os valores médios sejam discretamente inferiores aos normais, usualmente entre a terceira e a sexta semanas de vida sobrepõem-se aos encontrados nos RN a termo. Hipotiroxinemia transitória: Essa alteração pode estar presente em RN pré-termos pequenos (25 a 29 semanas de idade gestacional) submetidas ao estresse da transição extra- uterina e tireóide imatura. A produção e a secreção do TRH hipotalâmico são reduzidas, assim como a resposta da tireóide ao TSH, além da baixa incapacidade de converter a Tiroxina (T4) em Triiodotironina (T3). Os níveis de tiroxina ligado a TBG estão baixos. Assim, estes pré-termos são relativamente hipotiroxinêmicos com níveis séricos normais a baixos de TSH e T3, apresentando baixos níveis de tiroxina livre. Tem sido descrito uma incidência de 85% nos RN de muito baixo peso (a incidência varia de acordo com o nível de T4 usado para o diagnóstico- menor que 3 mcg/dl a 6.5 % mcg/dl). Nos RN de 27-28 semanas, importante hipotiroxinemia pode refletir um hipotireoidismo transitório hipotalâmico - hipofisário, não requerendo tratamento, a menos que o TSH esteja elevado (20 mui/l). Tem sido relatado aumento do risco de hemorragia intraventricular (OR: 1.2 95% IC : 1.05-1.4) nestes RN de muito baixo peso, provavelmente devido a um maior grau de não resposta hipotalâmica à injúria cerebral neonatal adquirida. Não há dados consistentes na literatura que nos autorize administrar T4 aos RN com hipotiroxinemia transitória com TSH normal, apesar de relatos de que severa hipotiroxinemia transitória nos RN possa estar associada com paralisia cerebral e retardo mental e distúrbios visuais aos 3 meses de idade. Pesquisa recente relata que aproximadamente 1/3 dos neonatologistas americanos usam hormônio tireoidiano no tratamento de RN com HTTP e 20% destes parece fazê-lo com um certa regularidade. A variação na prática neonatal, no entanto, sugere a necessidade de um ensaio controlado e randomizado de suplementação de hormônio tireoidiano aos RN com HTTP, ensaio este com poder suficiente para analisar se o tratamento pode reduzir o risco de desabilidades neurocomportamentais tardias. 2. Filhos de mães com doenças tireoidianas: Doenças tireoidianas maternas podem comprometer transitoriamente a função tireoidiana do neonato. Por esta razão todos estes RNs, filhos de mãe com doenças tireoidianas, necessitam coleta de sangue de cordão para dosagem de TSH e T4 livre na sala de parto. Particular atenção deve ser dada a RNs de mães com hipertireoidismo, que podem permanecer assintomáticos até 7—10 dias de vida e posteriormente desenvolver tireotoxicose neonatal transitória, por passagem transplacentária de anticorpos tireoestimulantes ou, por outro lado, também podem desenvolver hipotireoidismo induzido pelas drogas antitireoidianas usadas pela mãe (propiltiouracil e metimazol). Portanto estas crianças devem ser acompanhadas rigorosamenre para sinais de tireotoxicose ou hipotireoidismo, no mínimo durante a primeira semana de vida. Crianças cujas mães foram tratadas com drogas anti-tireoidianas ou iodetos na gestação devem ser monitorizadas até que os níveis de T4 total e TSH tenham normalizado. Desta forma a alta hospitalar deve estar condicionada a uma consulta na endocrinopediatria previamente agendada. QUADRO CLÍNICO: As manifestações clínicas do HC mais comuns são: hipotonia muscular, dificuldades respiratórias, cianose, icterícia prolongada, constipação, bradicardia, anemia, sonolência excessiva, livedo reticularis, choro rouco, hérnia umbilical, alargamento de fontanelas, mixedema, sopro cardíaco, macroglossia, dificuldade na alimentação com deficiente crescimento pôndero-estatural, atraso na dentição, retardo na maturação óssea, pele seca e sem elasticidade, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e retardo mental. Na maioria das vezes, o HC não cursa com bócio. Quando este estiver presente, deve-se suspeitar de disormonogênese, passagem transplacentária de anticorpos antitireoidianos ou excesso ou falta de iodeto durante a gestação. As crianças com diagnóstico precoce, feito pela triagem neonatal, podem não apresentar qualquer sintomatologia clínica, desde que a terapia de reposição hormonal seja iniciada precocemente. Nestes casos, é importante ressaltar que as mães destas crianças devem ser bastante orientadas no sentido de não abandonarem o tratamento, uma vez que não percebendo anormalidades na sua criança, são mais susceptíveis à omissão da medicação. Alguns estudos têm evidenciado retardo mental com redução do quociente de inteligência de 6,3 (IC95% 4,7-7,8), mesmo em pacientes tratados. Este prognóstico pode depender, principalmente da intensidade do hipotireoidismo intra-uterino e ao nascimento. Assim, pacientes com agenesia de tireóide tendem a apresentar pior prognóstico. DIAGNÓSTICO LABORATORIAL O momento ideal para o diagnóstico do HC é o período neonatal, pois a partir de quatro semanas de vida, a deficiência de HT já pode causar lesão neurológica. Portanto, é fundamental que os recém-nascidos sejam submetidas à triagem neonatal. No Brasil, a triagem neonatal para HC é realizada conforme a portaria GMMS nO 822 de 06 de junho de 2001, por meio de: 1. Medida do hormônio estimulante da tireóide (TSH) em amostras de sangue colhidas em papel filtro (“teste do pezinho”), medida da tiroxina (T4) em amostra sérica quando o TSH é superior a 20mcUI|L em radioimunoensaio ou superior a 15 em ensaios imunométricos. 2. Alternativamente pode ser realizada medida de T4 em amostra de papel filtro (que deverá apresentar valor superior a 6UG|dl), seguida de medida de TSH quando o T4 é inferior ao percentil . A Figura 2 mostra o aumento fisiológico que sofre o TSH desde os 30 primeiros minutos de vida, variando de 70 a 100mcUi|ML. Desta forma, a coleta muito precoce do “teste do pezinho” poderá resultar em um grande número de falsos-positivos. Assim, idealmente, a coleta deve ser feita entre as pri-meiras 48hs de vida (se possível no alojamento conjunto). Se houver alta precoce do RN (em menos de 48h), é importante orientar a família a levá-lo a um posto de saúde ainda na primeira semana de vida para realização do teste. Fig. 2 A punção deve ser executada numa das laterais da região plantar do calcanhar, locais com pouca possibilidade de se atingir o osso, prevenindo assim a ocorrência de osteomielite (Figura 3). Deve-se evitar o uso de agulhas. Preferir lancetas. Figura 3 A gota de sangue que se forma deve ser encostada na região demarcada para a coleta no papel filtro (círculos), fazendo movimentos circulares com o papel até o preenchimento de TODO o círculo. Após os resultados positivos iniciais no Programa de Triagem Neonatal, deve ser sempre realizada a dosagem de T4 (total e livre) e TSH em amostra de sangue venoso para CONFIRMAÇÃO do HC. Com este protocolo, a média de detecção dos casos de HC é de 90%. Os 10% restantes são menos severamente afetados e não se tornam detectáveis por TSH até a idade de 2 a 6 semanas. Os níveis séricos normais de TSH, T4total e T4livre encontram-se dispostos na Tabela 2, conforme faixa etária. IDADE 1-3 dias 4-7dias Prematuros (23-33semanas) 1-4semanas 1 a 12 meses 1 a 5 anos Maiores 6 anos TSH (µUi;ml) 1--20 1--10 1--20 T4 (µg;ml) 11--21,5 8,1—20,1 1—13,4 T4livre (ng;ml) -------1,84—2,62 -------- 0,5—6,5 0,5—6,5 0,6—6,3 0,6—6,3 8,2—17,2 5,9—16,3 7,3—15 6,4—13,3 ----------------0,94—1,34 0,94—1,34 Tabela 2. Dados adaptados de Fisher, Fisher e Vanderschueren-Lodeweyckx, Walfish e Tseng, Delange et al. Para que seja determinada a etiologia do processo, que na maioria das vezes, tem origem na própria glândula tireóide, é indicada a realização de exames de ultrassonografia da tireóide e cintilografia com captação tireóidea de iodo radioativo. Quando a espera para a realização destes exames vier a retardar o início da terapia de reposição hormonal, os mesmos devem ser feitos somente após os dois anos de vida da criança, quando se pode suspender transitoriamente a medicação sem risco de dano neurológico. Nos casos mais raros de etiologia secundária ou terciária, indicam-se também testes laboratoriais com estímulo de TRH. TRATAMENTO O Tratamento do HC é baseado na terapia de reposição hormonal com levotiroxina sódica. Este fármaco só se encontra disponível na apresentação comprimidos (25, 50, 75, 88, 100, 112, 125, 150, 175 e 200 µg). A administração é feita em dose única diária pela manhã, necessitando respeitar um jejum de 30 minutos para a completa absorção da droga. Sua meia-vida sérica é de sete dias. Existe boa tolerabilidade gástrica e os efeitos colaterais em geral estão relacionados a superdosagem ou subdoses, caracterizando hiper ou hipotireoidismo iatrogênico, respectivamente. A Tabela 3 mostra as doses preconizadas para a reposição de levotiroxina conforme a faixa etária: IDADE 0-28 dias 1-6meses 7-11meses 1-5anos 6-10anos 11-20anos Adultos DOSE(µg;kg;dia) 10-15 8-10 6-8 5-6 3-4 2-3 1-2 Tabela 3 Obs.: Em prematuros extremos, quando houver necessidade de tratamento, é aconselhável iniciar com uma dose menor, equivalente e 8µg;kg;dia. TEMPO DE TRATAMENTO O tratamento preconizado deverá ser mantido por toda a vida, exceto para os casos de HC transitório. Para diferenciar as duas situações, deverá haver uma interrupção da terapêutica aos 24 meses de vida com reavaliação da função tireoidiana e cintilografia (quando não realizada ao nascimento). MONITORIZAÇÃO O tratamento é monitorizado laboratorialmente pelas dosagens de T4 livre ou total e TSH, os quais devem ser realizados conforme o cronograma: Segunda e quarta semanas após o início do tratamento; A cada 1-2 meses até o primeiro anos de vida; A cada 2-3 meses entre o primeiro e terceiro anos de vida; A cada 6 meses após esta idade. Duas semanas após cada ajuste de dose. O objetivo do tratamento no primeiro ano de vida é a manutenção do T4 total entre 10-16mg/dl e o TSH inferior a 5mcUi/l. ALGORITMO DE TRIAGEM NEONATAL PARA HC BASEADO NA DOSAGEM DE TSH DOSAGEM DE TSH EM PAPEL FILTRO Valores de TSH entre 2040mUI;ml Valores de TSH > 40mUI;ml Coleta de T4 e TSH (soro) Coleta de T4 e TSH (soro) USG de Tireóide T4 e TSH normais Alta T4 normal ou baixo e TSH alto USG de Tireóide Cintilografia de Tireóide Tratamento Cintilografia de Tireóide Tratamento BIBLIOGRAFIA 1-Setian N. Hypothyroidism in children: diagnosis and treatment. 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