PROCESSO Nº 70005722822 – TRIBUNAL PLENO CLASSE: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE REQUERENTE: SR. PREFEITO MUNICIPAL DE JAGUARI REQUERIDO: CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES PARECER PROCESSO LEGISLATIVO. LEI ORGÂNICA MUNICIPAL E REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA DE VEREADORES. EXIGÊNCIA DE ‘QUORUM’ QUALIFICADO NÃO PREVISTO NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAL E ESTADUAL. Por força do princípio sistêmico que funda a estrutura do regime federativo, nos termos da Constituição Federal, com recepção pela Carta Constitucional Estadual, é de obrigação dos municípios, em seu processo legislativo, observar os princípios e regras estabelecidas pelo regramento constitucional, em suas duas esferas distintas, resultando incompatível com a ordem jurídica toda regra que destoe de tais paradigmas. Ação procedente. 1. O SR. PREFEITO MUNICIPAL DE JAGUARI ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, objetivando retirar do mundo jurídico o art. 15, § 3º, da Lei Orgânica do Município de Jaguari e dos arts. 71 e 78, parágrafo único, do Regimento Interno da Câmara de Vereadores, os quais dispõem que o funcionamento da Câmara de Vereadores somente se dará com a presença de, no mínimo, dois terços de seus membros, por ofensa ao art. 51 da Constituição Estadual. As normas municipais atacadas dispõem: “Art. 15 – A Câmara Municipal reunir-se-á em sessão legislativa ordinária, de 1º de março a 31 de dezembro, independente de convocação, ficando em recesso nos demais meses. (...) § 3º - Durante a sessão legislativa ordinária anual, a Câmara funcionará ordinariamente nos dias e horários estabelecidos no Regimento Interno, com a presença de, no mínimo, dois terços (2/3) de seus membros. (...).” (fl. 09) “Art. 71 – Na hora da abertura da Reunião, o Presidente determinará que se proceda a chamada e só dará inicio aos Trabalhos se estiver 2/3 (dois terços) dos Vereadores, conforme artigo 15, § 3º da Lei Orgânica Municipal. Parágrafo Único – Não havendo número para abrir a Reunião o Presidente comunicará o fato aos presentes e determinará a lavratura da Ata Declaratória, perdendo os ausentes o direito ao ‘jeton’.” (fl. 15) “Art. 78 – Findo o Expediente por se ter o tempo esgotado ou falta de oradores e decorrido o intervalo regimental de 05 (cinco) minutos entre o Expediente e a Ordem do Dia, tratar-se-á a matéria, determinada a esta última, que terá a duração de 01h (uma hora) e 25 (vinte e cinco) minutos, prorrogável a requerimento de qualquer Vereador, antes de findar-se prazo regimental e aprovado pelo Plenário. 2 Parágrafo Único – Será realizada a verificação de presença e, a discussão e votação somente prosseguirá, se estiver presente 2/3 (dois terços) dos Vereadores.” (fl. 17) Indeferiu-se a medida liminar pleiteada. Interposto agravo regimental da decisão, foi ele desacolhido. Notificada, a Câmara Municipal de Vereadores não se manifestou. Citada, a Sra. Procuradora-Geral do Estado promoveu a defesa das normas impugnadas. Sustenta, em síntese, que a atual Constituição Federal, ao mesmo tempo em que conferiu maior autonomia aos Estados e Municípios, não lhes impôs a obrigação de observância de estrita simetria com o modelo federal, à exceção da matéria principiológica, na qual não se insere o processo legislativo. Por isso, nenhuma inconstitucionalidade haveria nas normas atacadas, as quais se limitam a estabelecer quorum diverso para o funcionamento do Poder Legislativo local, sem malferimento a princípios da Lei Fundamental. É o relato. 2. Por primeiro, há de ter-se em conta que os órgãos do Poder Legislativo estão, permanentemente, subordinados à normatividade superior emanada da Constituição Federal, a qual, entre outros lineamentos, baliza, de modo inafastável, o processo legislativo. 3 Tais limites e extensão delimitados pela Constituição Federal são recepcionados pela Constituição Estadual (art. 8º da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul), a qual estende tais diretrizes à Lei Orgânica Municipal e às leis que o município vier a adotar. De tal modo, o processo legislativo municipal resulta delimitado em sua formulação aos ditames da Constituição Estadual, não podendo o Poder Legislativo Municipal inovar a ponto de dispor de forma diversa do que diz a Carta estadual. Tal observância está apoiada nas diretrizes estatuídas a partir dos paradigmas que constituem o regime federativo, enquanto mecanismo de ordenação sistêmica do processo legislativo como um todo, resultando afrontosa à ordem constitucional qualquer regra que se mostre incompatível com tal direcionamento superior. No caso vertente, o quorum de dois terços estabelecido pelas regras legais municipais combatidas afronta, em especial, o disposto pelo art. 51 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, como também não se mostra identificado com nenhuma das outras hipóteses formuladas pela Carta estadual, possibilitadoras de formação de quorum diverso daquele estabelecido como parâmetro genérico por parte da Constituição Estadual de 1989. De todo o analisado, percebe-se de imediato que o regramento atacado se mostra em afronta ao texto constitucional. Gera exigência, para o efeito de discussão e votação das matérias que enumera, da presença de um número de membros do Poder Legislativo Municipal em total descompasso com os limites fixados pela Constituição Estadual. Por tal circunstância, devem tais dispositivos ser retirados da ordem jurídica nacional, face à sua manifesta inconstitucionalidade. 4 Nesse sentido, decisão do órgão Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na qual se asseverou que: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. NORMA REGIMENTAL DA CÂMARA DE VEREADORES. EXIGÊNCIA DE ‘QUORUM’ QUALIFICADO. PROCEDÊNCIA. A exigência de ‘quorum’ qualificado para deliberações em hipóteses não elencadas nas Constituições Federal ou Estadual, como pedidos de informação sobre fato relacionado com a matéria legislativa em trâmite ou sobre fato sujeito a fiscalização da Câmara Municipal, e ofensiva ao texto constitucional, porque só a lei maior cabe excepcionar o princípio da suficiência da maioria. Preliminares de impossibilidade jurídica, acolhida em parte, e de carência de ação, desacolhida. Ação procedente para decretar a inconstitucionalidade do par. 1, do art. 155, do Regimento Interno da Câmara Municipal de Vereadores de Venâncio Aires, alterado pelo art. 1 da Resolução nº 5, de 31.12.1996. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 597050608. Tribunal Pleno. Relator Des. Celeste Vicente Rovani, julgado em 12/04/1999.” (grifos nossos). Na mesma senda: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ORGÂNICA DO MUNICÍPIO PROCESSO LEGISLATIVO. DE LEI CARLOS BARBOSA. ‘QUORUM’ QUALIFICADO. Inobstante a ausência de regra explícita na Constituição Federal de 1988 e na Constituição Estadual de 1989, os 5 Municípios estão obrigados a observância do processo legislativo nelas previsto, como princípio sistêmico do regime federativo adotado pela primeira. Ação julgada procedente. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 596047530. Tribunal Pleno. Relator Des. Salvador Horácio Vizzotto, julgado em 07/10/1996.” (grifos nossos). De tal sorte, resulta que a exigência de quorum qualificado para hipóteses inerentes ao processo legislativo municipal, em circunstâncias não enumeradas pelas Constituições Federal e Estadual, mostra-se ofensiva à ordem constitucional. Só a regra constitucional é que pode estabelecer eventuais exceções, não sendo admissível que a Casa Legislativa municipal excepcione com colidência a preceitos constitucionais. Intolerável toda e qualquer afronta ao princípio de simetria às Cartas constitucionais na matéria em exame. Também o Pretório Excelso adota esse entendimento. Ainda sob a égide da Carta Política revogada, o Pleno do STF assim decidiu: “Processo legislativo. Consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os Estados não se podem afastar das linhas mestras do processo legislativo, estabelecidas na Constituição. É inconstitucional, portanto, a Lei Orgânica dos Municípios do Estado do Paraná, no ponto em que exige ‘quorum’ de dois terços para a aprovação, pelas Câmaras Municipais, de matérias compreendidas na sua função legislativa ordinária, com exclusão daquela relativa à proposta 6 de transferência da sede do Município. Representação julgada procedente, em parte” (RP 1.010/PR, rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJU 26.10.79, p. 8.043). Com base no novo texto constitucional, a 2ª Turma do STF entendeu, relativamente à Constituição do Estado do Ceará, que o quorum para a apreciação de veto haveria de ser o da maioria absoluta, tal como prescrito no art. 66, § 4º, da Constituição Federal (RE 134.584/CE, rel. Min. Carlos Velloso, DJU 13.03.98, p. 13). E o Pleno do STF, mais recentemente, decidiu, ao tratar do processo legislativo, que o “modelo federal é de observância cogente pelos Estadosmembros desde a data da promulgação da Carta de 1988” (Rcl 1.206/CE, rel. Min. Maurício Correa, DJU 28.10.2002, p. 27). Desse modo, o norte que orienta o Supremo Tribunal Federal é o da reprodução, pelos demais entes federados, do regramento constitucional acerca do processo legislativo. É claro, porém, que algumas particularidades dos Estados-membros e dos Municípios impedem uma uniformização completa, o que não dispensa a tentativa de harmonização daquilo que for possível – como é o caso das regras impugnadas. Veja-se que o art. 99 do Regimento Interno da Assembléia Legislativa Gaúcha, o qual exige a presença de, no mínimo, um quarto dos membros para a abertura da sessão, em nada agride a Constituição Federal, já que, para as deliberações, a exigência é da presença da maioria (art. 51 da CE). Ora, enquanto não alcançado este quorum, nada pode ser decidido. Diferentemente, as normas municipais 7 impugnadas na presente ADIn exigem quorum de dois terços para o funcionamento da Câmara de Vereadores, o que é manifestamente inconstitucional, porquanto, para as deliberações, a exigência é menor – maioria dos membros. 3. Pelo exposto, o parecer é pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade. Porto Alegre, 22 de maio de 2003. ROBERTO BANDEIRA PEREIRA, Procurador-Geral de Justiça. BHJ/IDA/ARG SUBJUR 7554/03 8