4 A PSICOLOGIA GENÉTICA Falei no capítulo anterior que o objetivo de Piaget foi construir uma epistemologia. Mas ele queria uma epistemologia científica, isto é, não oriunda de especulações filosóficas, mas de experimentação científica. Sendo epistemologia "genética", também já coloquei no segundo capítulo, ele queria encontrar a origem do conhecimento e o único meio de chegár a isso era pesquisando como se dá o conhecimento nas crianças. Isso se traduz, em termos de ciência, na psicologia. Por isso, para construir suaepistemologia. Piaget fez todo um trabalho de psicologia. Ele trilhou. um caminho bastante original, partindo da biologia (sua preocupação com a evolução e a adaptação dos seres vivos ao seu ambiente). passando pela psicologia (o estudo da inteligência ou da cognição como forma do ser humano se adaptar ao meio em que vive). chegando finalmente à epistemolo gia e à compreensão dos processos de criação do conhecimento humano (especialmente o científico). Esta é a razão de muitos colocarem Piaget como psicólogo o que, afinal de contas ele não deixou de ser. Aliás. ele próprio se diz psicólogo em algumas obras. No entanto, mesmo quando nos referimos ao Piaget psicólogo, não podemos perder de vista que seu trabalho como um todo transcende esta ciência. Editora Mediação 30 O construtivismo e a educação Piaget teve que buscar nas crianças o conhecimento da origem do ato de conhecer. Inicialmente esta procura foi feita meio desordenadamente, indo jogar bolinha de gude com as crianças em escolas. Mais tarde é que ele construiu um método próprio de investigação - o método clínico - e começou a busca sistemática da compreensão do que poderíamos chamar a genética da epistemologia. Em que consiste este tal método clínieo? Trata-se de um método de intervenção não diretivo. Ou seja, o experimentador vai interagir com o sujeito (normalmente uma criança) tendo bem claro o que quer procurar.Além disso, o que ele traz são alguns materiais, que podem ser adaptados às diversas situações e um roteiro geral de investigação. Note-se que um roteiro geral não é um questionário preestabelecido, com perguntas fixas e algo como uma tabela de respostas possíveis, normalmente classificadas e quantificadas por alguma pontuação. Isto seria um teste psicológico tradicional. O que interessa ao pesquisador piagetiano é saber o que se passa na cabeça da criança. Por isto não há roteiro fixo. Serão exatamente as respostas não esperadas da criança que vão lhe interessar. E mais ainda, a forma da resposta será o mais importante. Piaget concebeu este método porque, ao colaborar com o instituto Binet, classificando crianças que se submetiam aos testes de inteligência, ele se perguntava por que em determinadas faixas etárias as crianças não conseguiam responder acertadamente determinado tipo de questão. Que raciocínio as conduzia ao erro? Por exemplo, por que as crianças com menos de II anos não conseguiam resolver o seguinte problema: "Suzana é mais Sérgio Franco 3 I loira que Lili e mais morena que Edith. Qual das três tem os cabelos mais escuros?" Era, pois, importante continuar investigando o pensamento da criança. Tentar descobrir a sua lógica. Para alcançar este objetivo, uma característica a mais se torna importante neste método. É que a resposta do sujeito determina a próxima pergunta do experimentador.Assim, conforme a resposta que a criança dá a uma determinada pergunta, outra lhe é feita. Se tivesse sido diferente a resposta, certamente a pergunta seguinte também seria diferente. Este método, ou, mais ainda, esta postura possibilitou que Piaget penetrasse no mundo lógico da criança desde o seu nascimento. . Nesta busca Piaget foi construindo um modelo explicativo para os processos de conhecimento. O Mestre de Genebra chegou assim, à conclusão de que processos biológicos básicos eram encontrados também nos processos cognitivos. Isso porque estes seriam, na verdade, um prolongamento daqueles. Piaget diz que todo organismo tem invariantes funcionais. Isto significa que há algo no funcionamento de todo organismo vivo que não varia, que sempre acontece. Tais invariantes seriam a organização e a adaptação. Todo organismo vivo tem uma organização estrutural, que lhe dá uma característica de totalidade integrando dinamicamente as várias partes (sistemas,aparelhos) que o formam. Assim também o pensamento seria constituído por elementos que seriam integrados em uma estrutura maior. Portanto os processos cognitivos, assim como os biológicos, têm uma organização, uma estrutura que Ihes dá um caráter integrativo, pois, como já disse, aqueles são um prolongamento destes. 32 O construtivismo e a educação A outra invariante funcional é a adaptação. Trata-se de um processo pelo qual o ser vivo consegue garantir sua vida no meio em que se encontra. a processo de adaptação é constituído de dois momentos não necessariamente sucessivos. Um deles é o processo de assimilação. a organismo assimila algum aspecto do meio e o transforma como parte de si. Assim por exemplo, quando um animal qualquer ingere uma substância alimentícia, tal substância é transformada por ele em algo que passa a ser constitutivo de seu próprio corpo. Afinal, nós não somos feitos de pães, mas todos os pães que comemos são transformados em glicose, substância fundamental para o funcionamento do nosso organismo. Como é, então, a assimilação nos processos cognitivos? Também significa tomar algo do meio e transformá-lo em algo constitutivo do pensamento. Costumo usar a definição seguinte para assimilação: é quando o sujeito modifica o objeto para poder conhecê-lo. Isto significa que quando uma pessoa (sujeito) conhece algo (objeto), que pode ser, por exemplo, um livro que lê, transforma as palavras deste livro em idéias que se encaixam com aquelas que já tinha em mente, passando assim a ter no seu pensamento não o livro, nem as palavras dele, mas idéias que foram construídas a partir da leitura do livro. Tais idéias podem ser fiéis ou não às idéias do autor. a próprio Piaget diz que toda assimilação implica em uma interpretação. a outro momento (não necessariamente o segundo) do processo de adaptação seria a acomodação. Note o leitor que acomodação é o ato de acomodar-se e não ficar acomodado. Portanto acomodação é quando o sujeito se modifica para poder conhecer.Assim, quando alguém lê um livro, não somen Sérgio Franco 33 te assimila as idéias contidas no livro mas também modifica suas idéias, muitas vezes abandonando as anteriores, ou melhor, modificando-as e construindo novas idéias. Um exemplo simples de acomodação biológica seria a produção de um calo. Por exemplo, as pontas dos dedos de um violonista costumam ter uma pele mais grossa (calosidade).Trata-se de uma modificação que o corpo produziu a partir de uma interação específica com o meio - no caso apertar e dedilhar as cordas do violão. Temos assim o processo completo de adaptação.Assimilação e acomodação acontecendo juntas. Por isso que se diz que quando se lê um bom livro mais de uma vez, sempre se tira algo de novo. ° que ocorre é que ao ler o livro inicialmente, o sujeito assimilou suas idéias e as transformou em idéias próprias. Assim, este sujeito n~o só assimilou o livro como também acomodou-se, no sentido de modificar-se a partir das idéias asssimiladas. Quando esta mesma pessoa voltar a _ler o mesmo livro, já não o lerá da mesma maneira, porque já não é a mesma pessoa. Como assim? Estará se perguntando o leitor. Se ele se modificou, acomodou-se, já não é o mesmo. É aquele primeiro sujeito transformado. Sendo assim já lerá o livro com outros olhos assimilando-o de maneira diversa da primeira. Esquematicamente isso poderia ser expresso assim: S --+ -+-° ,, S'~ -+--0' ,, 1>-' $" --+ -+-- O" 34 o construtivismo e a educação o sujeito S interagiu com o objeto O (no caso do exemplo, um livro). Esta interação provocou uma assimilação e uma acomodação em S, de forma que após este contato S já está modificado, portanto não é mais exatamente o mesmo S, mas agora é S'. Quando S' (e não mais S) for novamente interagir com o mesmo objeto (ou livro) não mais o encarará de maneira igual como na primeira vez. Portanto não será mais o O e sim O'. E assim por diante S", O", S"', etc. Este processo é interminável, e mais ainda gerador de desenvolvimento. Esta explicação parece satisfatória para que se possa compreender como se dá o desenvolvimento cognitivo. E ela realmente o é para explicar os pequenos passos que damos no nosso desenvolvimento cognitivo ou na nossa construção do conhecimento, como ficou demonstrado no exemplo acima. Mas Piaget foi questionado por muitos de seus pares, pois a teoria da adaptação não parecia ser suficiente para explicar o incrível avanço que acontece no pensamento do ser humano. Se tomarmos o pensamento de uma criança de um ano de idade e compararmos com o pensamento do adulto, notaremos que há uma diferença tão significativa, que muitas vezes até esquecemos que este tem íntima relação com aquele.Talvez isso fique ainda mais c/aro após a leitura do próximo capítulo que trata exatamente das etapas de desenvolvimento pelas quais todos nós passamos. Como pode, um mesmo indivíduo, que em determinada etapa de sua vida tem um pensamento totalmente preso à ação prática com objetos reais, poder, poucos anos mais tarde, desenvolver todo um raciocínio lógico prescindindo totalmente do real (como seria o caso de um cálculo estrutural em enge Sérgio Franco 35 nharia)? O engenheiro não precisa ter o material consigo, nem mesmo o terreno onde quer fazer a construção.Apenas precisa de um lápis e de um papel (ou de uma calculadora). Muitas das descobertas da física moderna se deram somente por dedução matemática, e somente depois tiveram sua confirmação na prática. É o caso, por exemplo, da descoberta do planeta Plutão. Mas todos esses homens de ciência estiveram, poucos anos antes, utilizando canetas ou lápis apenas para ter o prazer de chupar ou mesmo coçar a gengiva inchada antes do nascimento de um dente. Ou seja, eles foram crianças e sua maneira de lidar com o universo enquanto crianças era completamente diversa da postura deles no laboratório ou no observatório astronômico. Como explicar toda essa criação de novidades que ocorre no decorrer do desenvolvimento do ser humano? Piaget, então, formulou a teoria da abstração. Abstrair significa retirar. O conhecimento é, de fato abstraído, isto é retirado do real e transformado em algo humano. Idéia, por exemplo. Piaget coloca que há dois tipos de abstração: a abstração empírica e a abstração reflexionante.Vejamos por partes. A abstração empírica seria quando o sujeito retira o conhecimento diretamente dos objetos ou da ação que exerce sobre estes objetos. Portanto, é um conhecimento extraído diretamente dos observáveis. Este conhecimento limita-se em abstrair os aspectos básicos dos objetos: forma, cor, peso, textura, etc. Este tipo de abstração nós fazemos durante toda a vida, desde o nascimento até a morte, e não produz desenvolvimento, porque não nos revela nada além do que já está no objeto.Assim, este tipo de abstração não pode explicar a criação de novidades no pensamento. 36 O outro tipo de abstração, a abstração reflexionante (ou reflexiva), consiste em retirar o conhecimento não dos objetos, mas da coordenação das ações sobre os objetos. Assim, por exemplo, o conhecimento da operação matemática da soma é retirado da coordenação de várias ações. Como o ato de pegar dois objetos e de juntá-los formando um conjunto binário.Veja se que a soma não está nos objetos nem na ação de juntar, mas na coordenação de pegar, juntar e formar um conjunto. É claro, ainda, que não será de uma única execução dessas ações que ocorrerá a coordenação e muito menos a abstração. - Um tipo especial de abstração reflexionante é a abstração pseudoempírica. Esta se dá quando o sujeito utiliza objetos, mas mesmo assim retira suas informações das coordenações de suas ações e não dos objetos próprios. Um exemplo seria o caso de um físico trabalhando em seu laboratório. Ele utiliza materiais, mas não está interessado nos observáveis diretamente, e sim nas relações deduzíveis de suas experiências. A utilização de material concreto nas classes das séries iniciais na escola, teria, então, como objetivo, não fazer a criança tocar, sentir, os objetos, como se fala normalmente, o que seria aliás um objetivo muito pobre. Seria, sim, para possibilitar à criança fazer abstrações pseudoempíricas, isto é, possibilitar que ela construa conhecimentos novos, e não só a partir dos objetos, mas a partir das ações que ela exerce sobre os objetos, enriquecidas pela participação de outras crianças nesse processo de interação.Acontecendo isso não teremos uma escola que ensina, mas uma escola que dá condições aos alunos de desenvolverem e recriarem o conhecimento. E isso me faz lembrar uma frase de Piaget: "Tudo o Sérgio Franco 37 que a gente ensina a uma criança, a criança não pode mais, ela mesma, descobrir ou inventar". Mas o leitor pode estar se perguntando, ainda, se seria possível uma abstração reflexionante sem ser pseudoempírica. Um exemplo simples deste caso seria a construção de equações matemáticas, que normalmente é feita sem o uso de objetos. A abstração reflexionante (pseudoempírica ou não) pode ainda ser uma abstração refletida, isto quando houver uma tomada de consciência do processo que levou o sujeito a construir o conhecimento. Mas em que consiste o processo de abstração reflexionante? O processo refletido r, como é chamado, consiste em dois momentos. Reflexionamento reflexão. A palavra "reflexionamento" tem o sentido de refletir, ou melhor, projetar, da mesma forma que um projetor de "slides" projeta uma imagem na tela. O "reflexionamento" seria a projeção de um conhecimento em um patamar superior. Assim, por exemplo, o conhecimento que uma criança pequena (menos de um ano e meio) tem de uma bola é um conhecimento prático. Ela conhece a bola enquanto brinca com a mesma, ou seja, no aqui e agora de sua interação. Por volta dos 18 meses ela irá projetar este conhecimento no patamar do conhecimento simbólico. Isso possibilitará que ela brinque de bola mesmo sem bola (faz de conta), ou que ela possa mais tarde dar um nome à bola - mesmo que seja um nome que só ela chame. Mas para isso acontecer de fato é importante que oco rraoutro processo complementar: a reflexão. A reflexão é o processo de reconstrução mental do conhecimento já projetado no patamar superior. Ora, não basta pro- 38 O construtivismo e a educação jetar a bola para o patamar da simbolização, é preciso "construir uma bola simbólica", para poder "jogar" com ela. É através deste processo de reflexionamento-reflexão que o indivíduo vai criando novidades cognitivas e vai poder passar da compreensão de um objeto que lhe dá prazer ao rolar à compreensão da esfera como sólido geométrico, "gerado pela rotação completa de um semicírculo em torno de seu diâmetro". Assim um conhecimento prático é projetado para o patamar do conhecimento simbólico. Ou seja, esta projeção não é mais mesma que o conhecimento original. Pelo contrário, o que era prático agora é simbólico. Frente a esta oposição, se faz necessário que o sujeito reconstrua tal conhecimento. Esta reconstrução não será o conhecimento prático, nem a sua projeção para o simbólico. Aproveitará os dois, mas será muito mais abrangente, por isso será novidade.Assim se constroem os conhecimentos realmente novos, e assim se passa de um estágio a outro do desenvolvimento cognitivo. Bom,já se viu que o conhecimento se dá por um processo de abstração e que este possibilita a criação de novidades. E, mais ainda, que este processo acontece graças à interação do indivíduo com o meio que o cerca, meio físico e social. Mas se o desenvolvimento se dá a partir da interação das pessoas com seus meios, será que conforme o meio e conforme a pessoa, o desenvolvimento não se dará de forma diferente? E mais do que isso, cada pessoa desenvolverá uma inteligência diferenciada, exclusiva? A resposta a estes questionamentos é negativa. Não podemos esquecer que nós somos seres -biológicos, pertencentes a uma mesma espécie. Sendo assim, nós temos uma maneira comum de interagir com o meio. É isso que possibi Sérgio Franco 39 lita que se fale de, por exemplo uma anatomia humana, ou uma fisiologia humana, ou ainda uma psicologia humana. É isso que possibilitou a Piaget procurar conhecer o sujeito epistêmico universal. Então. mesmo que haja diferenças nas vivências das pessoas, Piaget descobriu que o caminho do desenvolvimento percorrido é sempre o mesmo. Assim como para ser adulto épreciso antes ser criança e adolescente, também no desenvolvimento cognitivo existe uma seqüência necessária. Deste modo, para a pessoa chegar ao pensamento operatório formal (estágio máximo do desenvolvimento intelectual, ao que se saiba) é necessário que a mesma já tenha desenvolvido as operações concretas (estágio imediatamente anterior). Por causa deste fato Piaget pôde chegar a descrever esse caminho e organizá-Io em termos de estágios de desenvolvimento. Um erro comum ao se interpretar Piaget é considerar a teoria dos estágios como ponto central de sua obra. Ora, a teoria piagetiana é toda a epistemologia genética, da qual a teoria dos estágios é somente uma parte. Aqui já vai ficando claro ao leitor porque neste livro só agora começa a falar dos estágios e porque não ocuparei muitas páginas falando nisso. Também é comum se ouvir críticas à teoria piagetiana, quanto à questão dos estágios, com relação aos limites etários dos mesmos.Alguns comentam que não podemos nos guiar pelas descobertas de Piaget porque ele estudou crianças suíças, que seriam muito diferentes das brasileiras ou terceiro-mundistas. Tal crítica perde sua validade ao nos depararmos com afirmações claras do próprio Piaget de que o importante é a 40 O construtivismo e a educação sucessão das aquisições e não as idades em que elas ocorrem. Vejamos as palavras dele: para que haja estágios é necessário, primeiramente, que a ordem de sucessão das aquisições seja constante. Não a cronologia, mas a ordem de sucessão. Podemos caracterizar os estágios numa população dada por uma cronologia, mas essa cronologia é extremamente variável; ela depende da experiência anterior dos indivíduos e não somente de sua maturação e depende principalmente do meio social que pode alterar ou retardar o aparecimento de um estágio, ou impedir sua manifestação (Piaget, 1978, p. 235). Psicologicamente falando é importante o conhecimento da teoria dos estágios, para se saber como uma criança está no seu desenvolvimento cognitivo, mas não custa repetir que não basta conhecer a sucessão dos estágios. É fundamental entender-se como se dá essa sucessão, para sabermos também intervir de modo a colaborar com este desenvolvimen to. Como vimos acima, quando o meio social dá poucas e más possibilidades de interação pode retardar ou mesmo impedir o aparecimento de um estágio, mas também ao contrário, uma boa qualidade das interações pode até mesmo acelerá-/o. Vejamos, pois, algumas linhas sobre os estágios do desen volvimento cognitivo, no próximo capítulo. 5 o DESENVOLVIMENTO COGNITIVO: O HOMEM EM BUSCA DE SUPERAÇÃO OS estágios do desenvolvimento cognitivo não são mera invenção da mente de um homem. Obedecem a critérios rigorosos e são oriundos de exaustivas pesquisas. É importante ainda frisar que os primeiros estudos de Piaget, dos quais se originou a teoria dos estágios, foram confrontados com pesquisas transculturais realizadas nos cinco continentes e todas elas vieram confirmar as postulações iniciais do epistemólogo suíço. É claro que, como foi colocado no capítulo anterior, tais pesquisas encontraram diferenças na cronologia dos estágios, mas jamais na ordem de sucessão. Vejamos, então, por quais estágios o ser humano passa no decorrer do desenvolvimento. Piaget distinguiu quatro estágios no caminho necessário do desenvolvimento cognitivo, desde o nascimento até o pensamento adulto. O primeiro estágio chama-se sensório-motor. Ele compreende as primeiras atividades da criança desde o seu nascimento até o segundo ano de vida. Como o. próprio nome diz, aqui o pensamento da criílnç~ é constituído de sensações (sensório) e movimentos (motor). Portanto ele é a própria ação prática da criança. Ora, inicialmente estas ações são somente os reflexos que a crian 42 O conscrutivismo e a educação ça trouxe no nascimento. Será a partir da aplicação desses reflexos sobre os objetos de seu meio que a criança irá se diferenciar do mundo, pois ao nascer vive uma indiferenciação como se ela e o mundo fossem a mesma coisa. Um passo importante rumo a essa diferenciação dá-se ali pelos 8 meses (pelo menos nas culturas ocidentais), quando a criança constrói a noção do "objeto permanente". Acontece que até aqui o objeto existia para a criança somente enquanto estivesse ao alcance dos seus órgãos dos sentidos. Se um objeto com o qual a criança estivesse brincando caísse de suas mãos e ficasse fora do alcance de seus olhos, para esta criança seria como se tal objeto nunca houvesse existido. Simplesmente ela pegaria outro objeto e iniciaria outra brincadeira. Será após os oito meses, aproximadamente. que esta atitude mudará. Se cobrirmos o objeto (que pode ser um chocalho) com um pano, por exemplo, ela vai procurá-Io sob este pano. Já se cobrirmos este mesmo objeto com o pano e, diante de seus olhos, transferirmos este objeto a um outro local (que pode ser uma caixa), ela continuará procurando-o sob o pano que escondeu o objeto inicialmente. Um pouco mais tarde, se fizermos o mesmo procedimento, a criança irá procurar o objeto sob o pano e depois na caixa (embora tenha visto a transferência do pano para a caixa). E finalmente a criança coordenará os diversos movimentos e, ao se executar o mesmo procedimento, ele vai diretamente para o local final, isto é, a caixa. Portanto, a partir deste momento, o objeto passa a existir para a criança independentemente dela percebê-Io ou não. É aqui que se dá, de fato, o nascimento da inteligência. Somente com o objeto permanente será possível à criança Editora Mediação Sérgio Franco 43 deparar-se com problemas, surgindo assim a necessidade de utilizar uma capacidade sua de resolver problemas, isto é, sua inteligência. Pode-se dizer que esta é a primeira batalha que a criança vence no seu processo de diferenciação em relação ao meio. Na verdade, este processo é o próprio processo do desenvolvimento cognitivo. Este estágio sensório-motor tem úma importância particular na teoria piagetiana. Não simplesmente por ser o primeiro, mas porque através dele Piaget conseguiu demonstrar uma coisa que até o momento praticamente ninguém acreditava: que é possível haver pensamento sem que haja linguagem. Antigamente se falava na "idade da razão", que seria a idade em que a criança começaria a pensar racionalmente, o que, se pensava, acontecia a partir dos quatro anos de idadeAliás, muita gente, na prática, ainda considera a criança pequena simplesmente um animalzinho um pouquinho mais aperfeiço:\do. Mas as descobertas de Piaget não fazem, por outro lado, com que se encare a criança como um adulto em miniatura. Se ela pensa assim como também o adulto - ela o faz de maneira diferenciada deste.Afinal, a criança não é nem adulto, nem bicho. Criança é criança. Talvez esta simples afirmativa seja uma das mais valiosas contribuições de Piaget à educação. O segundo estágio do desenvolvimento cognitivo é o préoperatório. O nome deste estágio já indica que ele é anterior a algo (pré-operatório). Ou seja, ele acontece antes do aparecimento das operações, que explicarei mais adiante. Mas éimportante destacar que se ele é anterior, isso se deve ao fato de ser necessário, para preparar as operações, pois se há um caminho necessário, uma ordem de sucessão determi Editora Mediação 44 o construtivismo e a educação nada, esta não é por acaso. Cada estágio é, de fato, a prepara ção do estágio seguinte. Bom, o estágio pré-operatório inicia quando surge a chamada função simbólica. A função simbólica não consiste simplesmente na capacidade de simbolizar, mas na capacidade de diferenciar o significado do significante. O que quer dizer isso? Rapidamente poderia explicar da seguinte forma: o significado é a coisa e o significante é aquilo que representa a coisa. Assim, a criança que constrói sua função simbólica vai poder; graças a essa diferenciação,lidar com a representação da coisa, podendo prescindir da coisa. Por exemplo, um menino poderá continuar a jogar bola mesmo após ter terminado o jogo. Isto é, em casa ele vai fazer de conta que está jogando bola. O pensamento da criança antes dos 18 meses (aproximadamente), isto é, antes da construção da função simbólica, estava totalmente preso ao real. Não era um pensamento simbólico, pois só podia acontecer enquanto a criança estava agindo. Lembre-se o leitor; que era um pensamento sensório-motor. É na passagem do primeiro para o segundo estágio do desenvolvimento cognitivo que a criança consegue dar este passo tão significativo rumo à diferenciação completa do sujeito e do objeto. Há três manifestações básicas da função simbólica: a imitação diferida, o brinquedo simbólico e a fala. A imitação diferida é quando a criança imita algum objeto ou pessoa em uma situação diferente da original e na ausência do modelo. Imitação esta, feita com o próprio corpo da criança. Por exemplo, quando uma criança imita -um balanço estando em casa e balançando seu corpo para frente e para trás. Editóra Mediação Sérgio Franco' 45 O brinquedo simbólico, que normalmente aparece depois da imitação diferi da, é mais fácil de ser percebido. Trata-se do faz-de-conta. É quando a criança imagina uma determinada situação e passa a agir como se estivesse vivenciando a mesma. Neste caso, normalmente há uso de objetos. A fala é a manifestação mais clara da função simbólica, embora seja mais tardia.Aqui, novamente, é importante destacar o fato de que a linguagem é posterior ao pensamento, e, portanto, os dois são realidades diferentes. Mais tarde irão se encontrar e fazer uma aliança tal que sua distinção será quase imperceptível. Veja-se que o surgimento da função simbólica é um outro passo muito importante na caminhada em direção à diferenciação do sujeito e do objeto, assim como o foi a construção do objeto permanente. Mas não é só isso que ocórre no estágio pré-operatório. Durante este estágio a criança fará uma série de acomodações na busca de compreender melhor o mundo que a cerca; Ela tem a tarefa muito grande de aprender a se comunicar com a fala e se nota que ela vive uma realidade nova, alimentada pela capaci dade de criar um mundo diferente do real: o mundo da fantasia. É o caso, por exemplo, da criança de dois ou três anos que quer passear, mas a mãe diz que no momento não pode, pois está chovendo.Alguns minutos depois, a criança vem contente dizer que "agora já pode passear! Parou de chover!" (Embora não tenha havido nenhuma mudança meteorológica). Éque a criança imagina que não está chovendo e por isso (por confundir o real com sua fantasia) pensa que já é possível sair de casa e passear.Atenção! Ela não está mentindo! Pois pensa realmente que já parou de chover. Afinal, foi o que ela viu na sua imaginação. Editora Mediação 46 O construtivismo e a educação Daí toda a graça e magia das brincadeiras infantis, permea das por uma lógica ainda diferente daquela utilizada pelo adulto. Alguns aspectos importantes desta lógica pré-operatória serão avaliados a seguir. Ausência de transitividade. A criança não se dá conta de que se A é igual a B e B igual a C, então A é igual a C. Isso tem muito a ver com ausência de conservação. Se pegarmos uma bolinha de barro e a transformarmos numa bolacha ou em uma cobrinha, ela vai achar que não somente a forma se modificou, mas junto com ela a quantidade de barro, o peso e o volume da bolinha. Portanto sua compreensão dos fenômenos encontra-se presa ao que ela percebe (resquício ainda do estágio sensório-motor). Veja o leitor que a criança não conserva a informação prévia. o que faz com que os dados perceptíveis (no caso, a forma) sejam mais convincentes do que se possa concluir por pensamentoA não conservação está intimamente ligada à irreversibilidade do pensamento, ou seja, a críança pré-operatória não compreende que se um fenômeno ocorrer, pode-se retornar à situação anterior: Isto é, o pensamento da criança pré-operatória só acontece em um sentido: se houver uma transformação, ela não pode ser desfeita por um simples processo de voltar atrás. Uma outra característica do pensamento pré-operatório, que, aliás, é decorrente das colocadas acima, é o pensamento transdutivo. Trata-se da incapacidade da criança para fazer generalizaçôes (indução). Em verdade as aparentes generalizações são de fato conclusões particulares a partir de informações particulares. Uma última característica do pensamento pré-operatório que gostaria de destacar é o egocentrismo. Trata-se de um egocentrismo cognitivo, e não moral. Significa que a criança Editora Mediação Sérgio Franco 47 não consegue coordenar diferentes pontos de vista. Em outras palavras, ela acha que os outros pensam e vêem as coisas como pensa e vê. Isso gera uma situação interessante quan ela do vemos um grupo de crianças pequenas brincando juntas. Todas brincando e falando, mas cada uma fazendo a sua estão brincadeira. É o que Piaget chamou de monólogo coletivo. Também se observa o egocentrismo nas relações espaci ais. Assim, se uma criança pré-operatória está colocada em uma posição que a faz ver sobre uma mesa um lápis atrás de um caderno e perguntamos a ela em que posição estaria o lápis se ela se colocasse ao lado da mesa (de modo que o lápis não ficasse mais atrás do caderno, mas ao lado deste), ela responderia que o lápis continuaria atrás do caderno. Ou seja, ela não consegue coordenar a diferença de posição do observador e as relações entre os objetos observados. A passagem para o terceiro estágio, o operatório concreto, dá-se quando a criança começa a trocar o centro. de seu pensamento.Aos poucos o raciocínio lógico passa a se sobre por à percepção e à intuição, que eram tão importantes para a criança no estágio pré-operatório. No estágio operatório concreto, a criança começa a supe rar todas aquelas limitações que marcavam o estágio anterior. É importante destacar a superação da irreversibilidade. O fato de o pensamento tornar-se reversível, isto é, poder acon tecer tanto num sentido como no outro, é uma das principais características da capacidade operatória, isto é, das operações. Pensar operatoriamente é ser capaz de organizar as informações em sistemas, conservando essas informações, e conseguindo lidar com as várias relações possíveis nesse sis tema, reversivelmente (indo ou vindo). Editora Mediação 48 O construtivismo e a educação Mas a superação das limitações do pensamento pré-operatório não é total. A criança continua ainda bastante presa ao concreto, ou seja à representação do real. Se, por um lado, a criança operatória concreta não precisa mais perceber os objetos para poder compreender os fenômenos, ela ainda precisa, pelo menos, imaginá-Ios: Desta afirmação já se pode concluir uma coisa: não se utiliza material concreto (real, na terminologia piagetiana) nas séries iniciais porque as crianças são operatórias concretas, mas sim porque elas estão construindo operações concretas, e portanto ainda precisam apoiar-se no real. A partir das operações concretas a criança torna-se capaz de construir a noção de número, abrindo o horizonte para as operações matemáticas; passa a entender os fenômenos da física, pelo menos da mecânica e da cinemática.lsso tudo porque o raciocínio se sobrepõe à fantasia e à percepção. A limitação deste terceiro estágio está exatamente no fato de que o pensamento lógico encontra-se preso ao concreto: sendo assim, é impossível à criança executar um pensamento sistemático a respeito de idéias filosóficas, ou mes mo entender o que são equações matemáticas de Ensino Fundamental e Médio. Este estágio compreende, normalmente a faixa dos sete aos II anos, portanto as quatro primeiras séries do primeiro grau. Daí a necessidade de um ensino diferenciado nessas primeiras séries de escolarização. * Dentro da terminologia piagetiana o termo "concreto" não se refere às coisas propriamente ditas, mas à representação mental das coisas. A coisa em si é o que Piaget chama de "real". Editora Mediação Sérgio Franco 49 Exatamente as limitações do pensamento operatório assinaladas acima é que vão ser o "trampolim" para a construção do pensamento operatório formal, quarto estágio do desenvolvimento cognitivo. Este estágio seria a celebração da diferenciação máxima do sujeito e do objeto. A partir dele o sujeito pode pensar sem necessidade de recorrer ao real ou a sua representação. Este é o pensamento do cientista, que não fica só observando a realidade, mas levanta hipóteses e ainda por cima faz previsões a partir de cálculos matemáticos, que não são nada reais. (Ninguém jamais viu um teorema passeando por aí...) As pesquisas de Piaget levaram-no a concluir que a pessoa desenvolve as operações formais dos 12 aos I 5 anos de idade.lsto quer dizer que é aproximadamente nesta faixa etária que ocorre a construção das operações formais.A partir dos quinze anos, nós utilizaríamos aquelas operações formais construídas durante a adolescência (até mesmo de uma maneira cada vez melhor). Portanto este seria o último estágio do desenvolvimento cognitivo. Digo "seria" porque não se sabe se há outro.Afinal, quem sabe os grandes gênios da humanidade não desenvol vem uma lógica ainda superior às operações formais? Ou ainda, quem sabe a humanidade, na sua evolução natural, como espécie, não virá a desenvolver um tipo de pensamento mais avançado do que o atual? Ao se estudar os estágios do desenvolvimento cognitivo levantam-se muitas outras questões. Da mesma forma, pode-se concluir que, se o desenvolvimento dá-se graças à interação do sujeito com o meio, pessoas criadas em meios "desfavoráveis" teriam seu desenvolvimento comprometido. Na minha opinião, o fato de o desenvolvimento Editora Mediação 50 O conscrutivismo e a educação depender das condições de interação com o meio deve, na minha opinião. alimentar uma luta pela transformação das condições de vida e para a recuperação dos que tiveram problemas no desenvolvimento devido à baixa qualidade das interações. Jamais deve servir para alimentar preconceitos e justificar a exploração de pessoas, ou, por exemplo, para afirmar que a criança favelada está condenada (irreversivelmente) a ser deficiente mental, ou afirmar que os índios da Amazônia não possuem pensamento formal. É por essa polêmica que passa a contribuição da epistemologia genética para as outras áreas. Editora Mediação