Construtivismo na Educação Arquivo

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A PSICOLOGIA GENÉTICA
Falei no capítulo anterior que o objetivo de Piaget foi construir uma epistemologia. Mas ele queria uma epistemologia
científica, isto é, não oriunda de especulações filosóficas, mas de
experimentação científica.
Sendo epistemologia "genética", também já coloquei no
segundo capítulo, ele queria encontrar a origem do conhecimento
e o único meio de chegár a isso era pesquisando como se dá o
conhecimento nas crianças. Isso se traduz, em termos de ciência,
na psicologia. Por isso, para construir suaepistemologia. Piaget
fez todo um trabalho de psicologia. Ele trilhou. um caminho
bastante original, partindo da biologia (sua preocupação com a
evolução e a adaptação dos seres vivos ao seu ambiente).
passando pela psicologia (o estudo da inteligência ou da cognição
como forma do ser humano se adaptar ao meio em que vive).
chegando finalmente à epistemolo
gia e à compreensão dos processos de criação do conhecimento
humano (especialmente o científico).
Esta é a razão de muitos colocarem Piaget como psicólogo o
que, afinal de contas ele não deixou de ser. Aliás. ele
próprio se diz psicólogo em algumas obras. No entanto, mesmo
quando nos referimos ao Piaget psicólogo, não podemos perder
de vista que seu trabalho como um todo transcende esta ciência.
Editora Mediação
30 O construtivismo e a educação
Piaget teve que buscar nas crianças o conhecimento da
origem do ato de conhecer. Inicialmente esta procura foi feita
meio desordenadamente, indo jogar bolinha de gude com as
crianças em escolas. Mais tarde é que ele construiu um método
próprio de investigação - o método clínico - e começou a busca
sistemática da compreensão do que poderíamos chamar a
genética da epistemologia.
Em que consiste este tal método clínieo?
Trata-se de um método de intervenção não diretivo. Ou seja, o
experimentador vai interagir com o sujeito (normalmente uma
criança) tendo bem claro o que quer procurar.Além disso, o que ele
traz são alguns materiais, que podem ser adaptados às diversas
situações e um roteiro geral de investigação. Note-se que um
roteiro geral não é um questionário preestabelecido, com perguntas
fixas e algo como uma tabela de respostas possíveis, normalmente
classificadas e quantificadas por alguma pontuação. Isto seria um
teste psicológico tradicional.
O que interessa ao pesquisador piagetiano é saber o que se
passa na cabeça da criança. Por isto não há roteiro fixo. Serão
exatamente as respostas não esperadas da criança que vão lhe
interessar. E mais ainda, a forma da resposta será o mais
importante.
Piaget concebeu este método porque, ao colaborar com o
instituto Binet, classificando crianças que se submetiam aos
testes de inteligência, ele se perguntava por que em determinadas
faixas etárias as crianças não conseguiam responder
acertadamente determinado tipo de questão. Que raciocínio as
conduzia ao erro?
Por exemplo, por que as crianças com menos de II anos não
conseguiam resolver o seguinte problema: "Suzana é mais
Sérgio Franco 3 I
loira que Lili e mais morena que Edith. Qual das três tem os
cabelos mais escuros?" Era, pois, importante continuar investigando o pensamento da criança. Tentar descobrir a sua lógica.
Para alcançar este objetivo, uma característica a mais se torna
importante neste método. É que a resposta do sujeito determina a
próxima pergunta do experimentador.Assim, conforme a resposta
que a criança dá a uma determinada pergunta, outra lhe é feita. Se
tivesse sido diferente a resposta, certamente a pergunta seguinte
também seria diferente.
Este método, ou, mais ainda, esta postura possibilitou que
Piaget penetrasse no mundo lógico da criança desde o seu
nascimento. .
Nesta busca Piaget foi construindo um modelo explicativo
para os processos de conhecimento. O Mestre de Genebra chegou
assim, à conclusão de que processos biológicos básicos eram
encontrados também nos processos cognitivos. Isso porque estes
seriam, na verdade, um prolongamento daqueles.
Piaget diz que todo organismo tem invariantes funcionais. Isto
significa que há algo no funcionamento de todo organismo vivo
que não varia, que sempre acontece. Tais invariantes seriam a
organização e a adaptação.
Todo organismo vivo tem uma organização estrutural, que lhe
dá uma característica de totalidade integrando dinamicamente as
várias partes (sistemas,aparelhos) que o formam.
Assim também o pensamento seria constituído por elementos que
seriam integrados em uma estrutura maior. Portanto os processos
cognitivos, assim como os biológicos, têm uma organização, uma
estrutura que Ihes dá um caráter integrativo, pois, como já disse,
aqueles são um prolongamento destes.
32 O construtivismo e a educação
A outra invariante funcional é a adaptação. Trata-se de um
processo pelo qual o ser vivo consegue garantir sua vida no meio
em que se encontra. a processo de adaptação é constituído de dois
momentos não necessariamente sucessivos. Um deles é o
processo de assimilação. a organismo assimila algum aspecto do
meio e o transforma como parte de si. Assim por exemplo,
quando um animal qualquer ingere uma substância alimentícia,
tal substância é transformada por ele em algo que passa a ser
constitutivo de seu próprio corpo. Afinal, nós não somos feitos de
pães, mas todos os pães que comemos são transformados em
glicose, substância fundamental para o funcionamento do nosso
organismo.
Como é, então, a assimilação nos processos cognitivos?
Também significa tomar algo do meio e transformá-lo em algo
constitutivo do pensamento. Costumo usar a definição seguinte
para assimilação: é quando o sujeito modifica o objeto para poder
conhecê-lo. Isto significa que quando uma pessoa (sujeito)
conhece algo (objeto), que pode ser, por exemplo, um livro que lê,
transforma as palavras deste livro em idéias que se encaixam com
aquelas que já tinha em mente, passando assim a ter no seu
pensamento não o livro, nem as palavras dele, mas idéias que
foram construídas a partir da leitura
do livro. Tais idéias podem ser fiéis ou não às idéias do autor. a
próprio Piaget diz que toda assimilação implica em uma
interpretação.
a outro momento (não necessariamente o segundo) do
processo de adaptação seria a acomodação. Note o leitor que
acomodação é o ato de acomodar-se e não ficar acomodado.
Portanto acomodação é quando o sujeito se modifica para
poder conhecer.Assim, quando alguém lê um livro, não somen
Sérgio Franco 33
te assimila as idéias contidas no livro mas também modifica suas
idéias, muitas vezes abandonando as anteriores, ou melhor, modificando-as e construindo novas idéias. Um exemplo simples de
acomodação biológica seria a produção de um calo. Por exemplo,
as pontas dos dedos de um violonista costumam ter uma pele mais
grossa (calosidade).Trata-se de uma modificação que o corpo
produziu a partir de uma interação específica com o meio - no caso
apertar e dedilhar as cordas do violão.
Temos assim o processo completo de adaptação.Assimilação e
acomodação acontecendo juntas. Por isso que se diz que quando se
lê um bom livro mais de uma vez, sempre se tira algo de novo. °
que ocorre é que ao ler o livro inicialmente, o sujeito assimilou
suas idéias e as transformou em idéias próprias. Assim, este sujeito
n~o só assimilou o livro como também acomodou-se, no sentido
de modificar-se a partir das idéias asssimiladas. Quando esta
mesma pessoa voltar a _ler o mesmo livro, já não o lerá da mesma
maneira, porque já não é a mesma pessoa. Como assim? Estará se
perguntando o leitor. Se ele se modificou, acomodou-se, já não é o
mesmo. É aquele primeiro sujeito transformado. Sendo assim já
lerá o livro com outros olhos assimilando-o de maneira diversa da
primeira. Esquematicamente isso poderia ser expresso assim:
S --+ -+-°
,,
S'~ -+--0'
,,
1>-'
$" --+ -+-- O"
34 o construtivismo e a educação
o sujeito S interagiu com o objeto O (no caso do exemplo,
um livro). Esta interação provocou uma assimilação e uma
acomodação em S, de forma que após este contato S já está
modificado, portanto não é mais exatamente o mesmo S, mas
agora é S'. Quando S' (e não mais S) for novamente interagir com
o mesmo objeto (ou livro) não mais o encarará de maneira igual
como na primeira vez. Portanto não será mais o O e sim O'. E
assim por diante S", O", S"', etc.
Este processo é interminável, e mais ainda gerador de
desenvolvimento.
Esta explicação parece satisfatória para que se possa compreender como se dá o desenvolvimento cognitivo. E ela realmente o é para explicar os pequenos passos que damos no nosso
desenvolvimento cognitivo ou na nossa construção do
conhecimento, como ficou demonstrado no exemplo acima.
Mas Piaget foi questionado por muitos de seus pares, pois a
teoria da adaptação não parecia ser suficiente para explicar o
incrível avanço que acontece no pensamento do ser humano. Se
tomarmos o pensamento de uma criança de um ano de idade e
compararmos com o pensamento do adulto, notaremos que há
uma diferença tão significativa, que muitas vezes até
esquecemos que este tem íntima relação com aquele.Talvez isso
fique ainda mais c/aro após a leitura do próximo capítulo que
trata exatamente das etapas de desenvolvimento pelas quais
todos nós passamos.
Como pode, um mesmo indivíduo, que em determinada etapa
de sua vida tem um pensamento totalmente preso à ação prática
com objetos reais, poder, poucos anos mais tarde, desenvolver
todo um raciocínio lógico prescindindo totalmente do real (como
seria o caso de um cálculo estrutural em enge
Sérgio Franco 35
nharia)? O engenheiro não precisa ter o material consigo, nem
mesmo o terreno onde quer fazer a construção.Apenas precisa de
um lápis e de um papel (ou de uma calculadora). Muitas das
descobertas da física moderna se deram somente por dedução
matemática, e somente depois tiveram sua confirmação na prática.
É o caso, por exemplo, da descoberta do planeta Plutão. Mas todos
esses homens de ciência estiveram, poucos anos antes, utilizando
canetas ou lápis apenas para ter o prazer de chupar ou mesmo
coçar a gengiva inchada antes do nascimento de um dente. Ou
seja, eles foram crianças e sua maneira de lidar com o universo
enquanto crianças era completamente diversa da postura deles no
laboratório ou no observatório astronômico. Como explicar toda
essa criação de novidades que ocorre no decorrer do
desenvolvimento do ser humano?
Piaget, então, formulou a teoria da abstração.
Abstrair significa retirar. O conhecimento é, de fato abstraído,
isto é retirado do real e transformado em algo humano. Idéia, por
exemplo.
Piaget coloca que há dois tipos de abstração: a abstração
empírica e a abstração reflexionante.Vejamos por partes.
A abstração empírica seria quando o sujeito retira o conhecimento diretamente dos objetos ou da ação que exerce sobre
estes objetos. Portanto, é um conhecimento extraído diretamente
dos observáveis. Este conhecimento limita-se em abstrair os
aspectos básicos dos objetos: forma, cor, peso, textura, etc.
Este tipo de abstração nós fazemos durante toda a vida, desde
o nascimento até a morte, e não produz desenvolvimento, porque
não nos revela nada além do que já está no objeto.Assim, este tipo
de abstração não pode explicar a criação de novidades no
pensamento.
36
O outro tipo de abstração, a abstração reflexionante (ou
reflexiva), consiste em retirar o conhecimento não dos objetos,
mas da coordenação das ações sobre os objetos. Assim, por
exemplo, o conhecimento da operação matemática da soma
é retirado da coordenação de várias ações. Como o ato de pegar
dois objetos e de juntá-los formando um conjunto
binário.Veja se que a soma não está nos objetos nem na ação de
juntar, mas na coordenação de pegar, juntar e formar um
conjunto. É claro, ainda, que não será de uma única execução
dessas ações que ocorrerá a coordenação e muito menos a
abstração.
- Um tipo especial de abstração reflexionante é a abstração
pseudoempírica. Esta se dá quando o sujeito utiliza objetos, mas
mesmo assim retira suas informações das coordenações de suas
ações e não dos objetos próprios.
Um exemplo seria o caso de um físico trabalhando em seu
laboratório. Ele utiliza materiais, mas não está interessado nos
observáveis diretamente, e sim nas relações deduzíveis de suas
experiências.
A utilização de material concreto nas classes das séries
iniciais na escola, teria, então, como objetivo, não fazer a criança
tocar, sentir, os objetos, como se fala normalmente, o que seria
aliás um objetivo muito pobre. Seria, sim, para possibilitar à
criança fazer abstrações pseudoempíricas, isto é, possibilitar que
ela construa conhecimentos novos, e não só a partir dos objetos,
mas a partir das ações que ela exerce sobre os objetos,
enriquecidas pela participação de outras crianças nesse processo
de interação.Acontecendo isso não teremos uma escola que
ensina, mas uma escola que dá condições aos alunos de
desenvolverem e recriarem o conhecimento. E isso me faz
lembrar
uma
frase
de
Piaget:
"Tudo
o
Sérgio Franco 37
que a gente ensina a uma criança, a criança não pode mais, ela
mesma, descobrir ou inventar".
Mas o leitor pode estar se perguntando, ainda, se seria
possível uma abstração reflexionante sem ser pseudoempírica.
Um exemplo simples deste caso seria a construção de equações
matemáticas, que normalmente é feita sem o uso de objetos.
A abstração reflexionante (pseudoempírica ou não) pode
ainda ser uma abstração refletida, isto quando houver uma
tomada de consciência do processo que levou o sujeito a construir
o conhecimento.
Mas em que consiste o processo de abstração reflexionante? O
processo refletido r, como é chamado, consiste em dois
momentos. Reflexionamento reflexão.
A palavra "reflexionamento" tem o sentido de refletir, ou
melhor, projetar, da mesma forma que um projetor de "slides"
projeta uma imagem na tela. O "reflexionamento" seria a projeção de um conhecimento em um patamar superior. Assim, por
exemplo, o conhecimento que uma criança pequena (menos de
um ano e meio) tem de uma bola é um conhecimento prático. Ela
conhece a bola enquanto brinca com a mesma, ou seja, no aqui e
agora de sua interação. Por volta dos 18 meses ela irá projetar este
conhecimento no patamar do conhecimento simbólico. Isso
possibilitará que ela brinque de bola mesmo sem bola (faz de
conta), ou que ela possa mais tarde dar um nome à bola - mesmo
que seja um nome que só ela chame. Mas para isso acontecer de
fato é importante que oco rraoutro processo complementar: a
reflexão.
A reflexão é o processo de reconstrução mental do conhecimento
já projetado no patamar superior. Ora, não basta pro-
38 O construtivismo e a educação
jetar a bola para o patamar da simbolização, é preciso "construir
uma bola simbólica", para poder "jogar" com ela. É através deste
processo de reflexionamento-reflexão que o indivíduo vai criando
novidades cognitivas e vai poder passar da compreensão de um
objeto que lhe dá prazer ao rolar à compreensão da esfera como
sólido geométrico, "gerado pela rotação completa de um
semicírculo em torno de seu diâmetro".
Assim um conhecimento prático é projetado para o patamar
do conhecimento simbólico. Ou seja, esta projeção não é mais
mesma que o conhecimento original. Pelo contrário, o que era
prático agora é simbólico. Frente a esta oposição, se faz
necessário que o sujeito reconstrua tal conhecimento. Esta
reconstrução não será o conhecimento prático, nem a sua projeção
para o simbólico. Aproveitará os dois, mas será muito mais
abrangente, por isso será novidade.Assim se constroem os
conhecimentos realmente novos, e assim se passa de um estágio a
outro do desenvolvimento cognitivo.
Bom,já se viu que o conhecimento se dá por um processo de
abstração e que este possibilita a criação de novidades. E, mais
ainda, que este processo acontece graças à interação do indivíduo
com o meio que o cerca, meio físico e social.
Mas se o desenvolvimento se dá a partir da interação das
pessoas com seus meios, será que conforme o meio e conforme a
pessoa, o desenvolvimento não se dará de forma diferente? E mais
do que isso, cada pessoa desenvolverá uma inteligência
diferenciada, exclusiva?
A resposta a estes questionamentos é negativa. Não podemos
esquecer que nós somos seres -biológicos, pertencentes a uma
mesma espécie. Sendo assim, nós temos uma maneira comum de
interagir com o meio. É isso que possibi
Sérgio Franco 39
lita que se fale de, por exemplo uma anatomia humana, ou
uma fisiologia humana, ou ainda uma psicologia humana. É isso
que possibilitou a Piaget procurar conhecer o sujeito epistêmico
universal.
Então. mesmo que haja diferenças nas vivências das pessoas,
Piaget descobriu que o caminho do desenvolvimento percorrido é
sempre o mesmo. Assim como para ser adulto épreciso antes ser
criança e adolescente, também no desenvolvimento cognitivo
existe uma seqüência necessária. Deste modo, para a pessoa
chegar ao pensamento operatório formal (estágio máximo do
desenvolvimento intelectual, ao que se saiba) é necessário que a
mesma já tenha desenvolvido as operações concretas (estágio
imediatamente anterior).
Por causa deste fato Piaget pôde chegar a descrever esse
caminho e organizá-Io em termos de estágios de desenvolvimento.
Um erro comum ao se interpretar Piaget é considerar a teoria
dos estágios como ponto central de sua obra. Ora, a teoria
piagetiana é toda a epistemologia genética, da qual a teoria dos
estágios é somente uma parte. Aqui já vai ficando claro ao leitor
porque neste livro só agora começa a falar dos estágios e porque
não ocuparei muitas páginas falando nisso.
Também é comum se ouvir críticas à teoria piagetiana, quanto
à questão dos estágios, com relação aos limites etários dos
mesmos.Alguns comentam que não podemos nos guiar pelas
descobertas de Piaget porque ele estudou crianças suíças, que
seriam muito diferentes das brasileiras ou terceiro-mundistas.
Tal crítica perde sua validade ao nos depararmos com afirmações claras do próprio Piaget de que o importante é a
40 O construtivismo e a educação
sucessão das aquisições e não as idades em que elas ocorrem.
Vejamos as palavras dele:
para que haja estágios é necessário, primeiramente, que a ordem de sucessão
das aquisições seja constante. Não a cronologia, mas a ordem de sucessão.
Podemos caracterizar os estágios numa população dada por uma cronologia,
mas essa cronologia é extremamente variável; ela depende da experiência
anterior dos indivíduos e não somente de sua maturação e depende
principalmente do meio social que pode alterar ou retardar o aparecimento de
um estágio, ou impedir sua manifestação (Piaget, 1978, p. 235).
Psicologicamente falando é importante o conhecimento
da teoria dos estágios, para se saber como uma criança está
no seu desenvolvimento cognitivo, mas não custa repetir que
não basta conhecer a sucessão dos estágios. É fundamental
entender-se como se dá essa sucessão, para sabermos também
intervir de modo a colaborar com este desenvolvimen
to. Como vimos acima, quando o meio social dá poucas e más
possibilidades de interação pode retardar ou mesmo impedir
o aparecimento de um estágio, mas também ao contrário, uma
boa qualidade das interações pode até mesmo acelerá-/o.
Vejamos, pois, algumas linhas sobre os estágios do desen
volvimento cognitivo, no próximo capítulo.
5
o DESENVOLVIMENTO
COGNITIVO: O HOMEM EM
BUSCA DE SUPERAÇÃO
OS estágios do desenvolvimento cognitivo não são mera
invenção da mente de um homem. Obedecem a critérios rigorosos
e são oriundos de exaustivas pesquisas.
É importante ainda frisar que os primeiros estudos de Piaget,
dos quais se originou a teoria dos estágios, foram confrontados
com pesquisas transculturais realizadas nos cinco continentes e
todas elas vieram confirmar as postulações iniciais do
epistemólogo suíço. É claro que, como foi colocado no capítulo
anterior, tais pesquisas encontraram diferenças na cronologia dos
estágios, mas jamais na ordem de sucessão.
Vejamos, então, por quais estágios o ser humano passa no
decorrer do desenvolvimento. Piaget distinguiu quatro estágios no
caminho necessário do desenvolvimento cognitivo, desde o
nascimento até o pensamento adulto. O primeiro estágio chama-se
sensório-motor. Ele compreende as primeiras atividades da
criança desde o seu nascimento até o segundo ano de vida. Como
o. próprio nome diz, aqui o pensamento da criílnç~ é constituído
de sensações (sensório) e movimentos (motor). Portanto ele é a
própria ação prática da criança. Ora, inicialmente estas ações são
somente os reflexos que a crian
42 O conscrutivismo e a educação
ça trouxe no nascimento. Será a partir da aplicação desses
reflexos sobre os objetos de seu meio que a criança irá se
diferenciar do mundo, pois ao nascer vive uma indiferenciação como se ela e o mundo fossem a mesma coisa.
Um passo importante rumo a essa diferenciação dá-se ali
pelos 8 meses (pelo menos nas culturas ocidentais), quando a
criança constrói a noção do "objeto permanente".
Acontece que até aqui o objeto existia para a criança somente
enquanto estivesse ao alcance dos seus órgãos dos sentidos. Se
um objeto com o qual a criança estivesse brincando caísse de suas
mãos e ficasse fora do alcance de seus olhos, para esta criança
seria como se tal objeto nunca houvesse existido. Simplesmente
ela pegaria outro objeto e iniciaria outra brincadeira.
Será após os oito meses, aproximadamente. que esta atitude
mudará. Se cobrirmos o objeto (que pode ser um chocalho) com
um pano, por exemplo, ela vai procurá-Io sob este pano. Já
se cobrirmos este mesmo objeto com o pano e, diante de seus
olhos, transferirmos este objeto a um outro local (que pode
ser uma caixa), ela continuará procurando-o sob o pano que
escondeu o objeto inicialmente. Um pouco mais tarde, se fizermos
o mesmo procedimento, a criança irá procurar o objeto
sob o pano e depois na caixa (embora tenha visto a transferência
do pano para a caixa). E finalmente a criança coordenará os
diversos movimentos e, ao se executar o mesmo procedimento,
ele vai diretamente para o local final, isto é, a caixa. Portanto, a
partir deste momento, o objeto passa a existir para a criança
independentemente dela percebê-Io ou não.
É aqui que se dá, de fato, o nascimento da inteligência.
Somente com o objeto permanente será possível à criança
Editora Mediação
Sérgio Franco 43
deparar-se com problemas, surgindo assim a necessidade de
utilizar uma capacidade sua de resolver problemas, isto é, sua
inteligência.
Pode-se dizer que esta é a primeira batalha que a criança vence
no seu processo de diferenciação em relação ao meio. Na verdade,
este processo é o próprio processo do desenvolvimento cognitivo.
Este estágio sensório-motor tem úma importância particular
na teoria piagetiana. Não simplesmente por ser o primeiro, mas
porque através dele Piaget conseguiu demonstrar uma coisa que
até o momento praticamente ninguém acreditava: que é possível
haver pensamento sem que haja linguagem.
Antigamente se falava na "idade da razão", que seria a idade
em que a criança começaria a pensar racionalmente, o que, se
pensava, acontecia a partir dos quatro anos de idadeAliás, muita
gente, na prática, ainda considera a criança pequena simplesmente
um animalzinho um pouquinho mais aperfeiço:\do. Mas as
descobertas de Piaget não fazem, por outro lado, com que se
encare a criança como um adulto em miniatura. Se ela pensa assim como também o adulto - ela o faz de maneira diferenciada
deste.Afinal, a criança não é nem adulto, nem bicho. Criança é
criança. Talvez esta simples afirmativa seja uma das mais valiosas
contribuições de Piaget à educação.
O segundo estágio do desenvolvimento cognitivo é o préoperatório. O nome deste estágio já indica que ele é anterior a algo
(pré-operatório). Ou seja, ele acontece antes do aparecimento das
operações, que explicarei mais adiante. Mas éimportante destacar
que se ele é anterior, isso se deve ao
fato de ser necessário, para preparar as operações, pois se há um
caminho necessário, uma ordem de sucessão determi
Editora Mediação
44 o construtivismo e a educação
nada, esta não é por acaso. Cada estágio é, de fato, a prepara
ção do estágio seguinte.
Bom, o estágio pré-operatório inicia quando surge a chamada
função simbólica.
A função simbólica não consiste simplesmente na capacidade
de simbolizar, mas na capacidade de diferenciar o significado do
significante. O que quer dizer isso? Rapidamente poderia explicar
da seguinte forma: o significado é a coisa e o significante é aquilo
que representa a coisa. Assim, a criança que constrói sua função
simbólica vai poder; graças a essa diferenciação,lidar com a
representação da coisa, podendo prescindir da coisa.
Por exemplo, um menino poderá continuar a jogar bola
mesmo após ter terminado o jogo. Isto é, em casa ele vai fazer de
conta que está jogando bola.
O pensamento da criança antes dos 18 meses (aproximadamente), isto é, antes da construção da função simbólica, estava
totalmente preso ao real. Não era um pensamento simbólico, pois
só podia acontecer enquanto a criança estava agindo. Lembre-se o
leitor; que era um pensamento sensório-motor.
É na passagem do primeiro para o segundo estágio do
desenvolvimento cognitivo que a criança consegue dar este passo
tão significativo rumo à diferenciação completa do sujeito e do
objeto.
Há três manifestações básicas da função simbólica: a imitação
diferida, o brinquedo simbólico e a fala.
A imitação diferida é quando a criança imita algum objeto ou
pessoa em uma situação diferente da original e na ausência do
modelo. Imitação esta, feita com o próprio corpo da criança. Por
exemplo, quando uma criança imita -um balanço estando
em casa e balançando seu corpo para frente e para trás.
Editóra Mediação
Sérgio Franco' 45
O brinquedo simbólico, que normalmente aparece depois da
imitação diferi da, é mais fácil de ser percebido. Trata-se do
faz-de-conta. É quando a criança imagina uma determinada
situação e passa a agir como se estivesse vivenciando a mesma.
Neste caso, normalmente há uso de objetos.
A fala é a manifestação mais clara da função simbólica, embora seja mais tardia.Aqui, novamente, é importante destacar o
fato de que a linguagem é posterior ao pensamento, e, portanto, os
dois são realidades diferentes. Mais tarde irão se encontrar e fazer
uma aliança tal que sua distinção será quase imperceptível.
Veja-se que o surgimento da função simbólica é um outro
passo muito importante na caminhada em direção à diferenciação
do sujeito e do objeto, assim como o foi a construção do objeto
permanente.
Mas não é só isso que ocórre no estágio pré-operatório.
Durante este estágio a criança fará uma série de acomodações na
busca de compreender melhor o mundo que a cerca; Ela tem a
tarefa muito grande de aprender a se comunicar com a fala e se
nota que ela vive uma realidade nova, alimentada pela capaci
dade de criar um mundo diferente do real: o mundo da fantasia.
É o caso, por exemplo, da criança de dois ou três anos que
quer passear, mas a mãe diz que no momento não pode, pois
está chovendo.Alguns minutos depois, a criança vem contente
dizer que "agora já pode passear! Parou de chover!" (Embora não
tenha havido nenhuma mudança meteorológica). Éque a criança
imagina que não está chovendo e por isso (por confundir o real
com sua fantasia) pensa que já é possível sair de casa e
passear.Atenção! Ela não está mentindo! Pois pensa realmente
que já parou de chover. Afinal, foi o que ela viu na sua
imaginação.
Editora Mediação
46 O construtivismo e a educação
Daí toda a graça e magia das brincadeiras infantis, permea
das por uma lógica ainda diferente daquela utilizada pelo
adulto.
Alguns aspectos importantes desta lógica pré-operatória
serão avaliados a seguir. Ausência de transitividade. A criança
não se dá conta de que se A é igual a B e B igual a C, então A é
igual a C. Isso tem muito a ver com ausência de conservação.
Se pegarmos uma bolinha de barro e a transformarmos numa
bolacha ou em uma cobrinha, ela vai achar que não somente a
forma se modificou, mas junto com ela a quantidade de barro, o
peso e o volume da bolinha. Portanto sua compreensão dos
fenômenos encontra-se presa ao que ela percebe (resquício
ainda do estágio sensório-motor). Veja o leitor que a criança
não conserva a informação prévia. o que faz com que os dados
perceptíveis (no caso, a forma) sejam mais convincentes do que
se possa concluir por pensamentoA não conservação está
intimamente ligada à irreversibilidade do pensamento, ou seja,
a críança pré-operatória não compreende que se um fenômeno
ocorrer, pode-se retornar à situação anterior: Isto é, o pensamento da criança pré-operatória só acontece em um sentido:
se houver uma transformação, ela não pode ser desfeita por um
simples processo de voltar atrás.
Uma outra característica do pensamento pré-operatório,
que, aliás, é decorrente das colocadas acima, é o pensamento
transdutivo. Trata-se da incapacidade da criança para fazer
generalizaçôes (indução). Em verdade as aparentes generalizações são de fato conclusões particulares a partir de informações particulares.
Uma última característica do pensamento pré-operatório que
gostaria de destacar é o egocentrismo. Trata-se de um
egocentrismo cognitivo, e não moral. Significa que a criança
Editora Mediação
Sérgio Franco 47
não consegue
coordenar diferentes pontos de vista. Em outras palavras, ela
acha que os outros pensam e vêem as coisas
como
pensa e vê. Isso gera uma situação interessante quan
ela
do vemos um
grupo de crianças pequenas brincando juntas.
Todas
brincando e falando, mas cada uma fazendo a sua
estão
brincadeira. É
o que Piaget chamou de monólogo coletivo.
Também se observa o egocentrismo nas relações espaci
ais. Assim, se uma criança pré-operatória está colocada em
uma posição que a faz ver sobre uma mesa um lápis atrás de
um caderno e perguntamos a ela em que posição estaria o
lápis se ela se colocasse ao lado da mesa (de modo que o
lápis não ficasse mais atrás do caderno, mas ao lado deste),
ela responderia que o lápis continuaria atrás do caderno. Ou
seja, ela não consegue coordenar a diferença de posição do
observador e as relações entre os objetos observados.
A passagem para o terceiro estágio, o operatório concreto, dá-se
quando a criança começa a trocar o centro. de seu
pensamento.Aos poucos o raciocínio lógico passa a se sobre
por à percepção e à intuição, que eram tão importantes para
a criança no estágio pré-operatório.
No estágio operatório concreto, a criança começa a supe
rar todas aquelas limitações que marcavam o estágio
anterior.
É importante destacar a superação da irreversibilidade. O
fato de o pensamento tornar-se reversível, isto é, poder acon
tecer tanto num sentido como no outro, é uma das principais
características da capacidade operatória, isto é, das operações.
Pensar operatoriamente é ser capaz de organizar as
informações em sistemas, conservando essas informações,
e
conseguindo lidar com as várias relações possíveis nesse
sis
tema, reversivelmente (indo ou vindo).
Editora Mediação
48 O construtivismo e a educação
Mas a superação das limitações do pensamento pré-operatório não é total. A criança continua ainda bastante presa ao
concreto, ou seja à representação do real. Se, por um lado, a
criança operatória concreta não precisa mais perceber os objetos
para poder compreender os fenômenos, ela ainda precisa, pelo
menos, imaginá-Ios:
Desta afirmação já se pode concluir uma coisa: não se utiliza
material concreto (real, na terminologia piagetiana) nas séries
iniciais porque as crianças são operatórias concretas, mas sim
porque elas estão construindo operações concretas, e portanto
ainda precisam apoiar-se no real.
A partir das operações concretas a criança torna-se capaz de
construir a noção de número, abrindo o horizonte para as
operações matemáticas; passa a entender os fenômenos da física,
pelo menos da mecânica e da cinemática.lsso tudo porque o
raciocínio se sobrepõe à fantasia e à percepção.
A limitação deste terceiro estágio está exatamente no fato de
que o pensamento lógico encontra-se preso ao concreto: sendo
assim, é impossível à criança executar um pensamento sistemático
a respeito de idéias filosóficas, ou mes
mo entender o que são equações matemáticas de Ensino
Fundamental e Médio.
Este estágio compreende, normalmente a faixa dos sete aos II
anos, portanto as quatro primeiras séries do primeiro grau. Daí a
necessidade de um ensino diferenciado nessas primeiras séries de
escolarização.
* Dentro da terminologia piagetiana o termo "concreto" não se
refere
às coisas propriamente ditas, mas à representação mental das
coisas. A coisa em si é o que Piaget chama de "real".
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Sérgio Franco 49
Exatamente as limitações do pensamento operatório assinaladas acima é que vão ser o "trampolim" para a construção do
pensamento operatório formal, quarto estágio do desenvolvimento
cognitivo. Este estágio seria a celebração da diferenciação
máxima do sujeito e do objeto. A partir dele o sujeito pode pensar
sem necessidade de recorrer ao real ou a sua representação. Este é
o pensamento do cientista, que não fica só observando a realidade,
mas levanta hipóteses e ainda por cima faz previsões a partir de
cálculos matemáticos, que não são nada reais. (Ninguém
jamais viu um teorema passeando por aí...)
As pesquisas de Piaget levaram-no a concluir que a pessoa
desenvolve as operações formais dos 12 aos I 5 anos de idade.lsto
quer dizer que é aproximadamente nesta faixa etária que ocorre a
construção das operações formais.A partir dos quinze anos, nós
utilizaríamos aquelas operações formais construídas durante a
adolescência (até mesmo de uma maneira cada vez melhor).
Portanto este seria o último estágio do desenvolvimento
cognitivo. Digo "seria" porque não se sabe se há outro.Afinal,
quem sabe os grandes gênios da humanidade não desenvol
vem uma lógica ainda superior às operações formais? Ou ainda,
quem sabe a humanidade, na sua evolução natural, como espécie,
não virá a desenvolver um tipo de pensamento mais avançado do
que o atual? Ao se estudar os estágios do desenvolvimento
cognitivo levantam-se muitas outras questões. Da mesma forma,
pode-se concluir que, se o desenvolvimento dá-se graças à
interação do sujeito com o meio, pessoas criadas em meios
"desfavoráveis" teriam seu desenvolvimento comprometido. Na
minha opinião, o fato de o desenvolvimento
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50 O conscrutivismo e a educação
depender das condições de interação com o meio deve, na minha
opinião. alimentar uma luta pela transformação das condições de
vida e para a recuperação dos que tiveram problemas no
desenvolvimento devido à baixa qualidade das interações. Jamais
deve servir para alimentar preconceitos e justificar a exploração de
pessoas, ou, por exemplo, para afirmar que a criança favelada está
condenada (irreversivelmente) a ser deficiente mental, ou afirmar
que os índios da Amazônia não possuem pensamento formal.
É por essa polêmica que passa a contribuição da epistemologia
genética para as outras áreas.
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