VOTO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO
(RELATORA CONVOCADA):Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL (fls. 81/88), contra a r. decisão de fls. 69/78, que, em síntese, rejeitou a denúncia
oferecida contra a Sra GEOVANE DA SILVA NEVES
Asseverou o recorrente que “(...) O primeiro equívoco da decisão recorrida está em
considerar o crime de descaminho como crime contra a ordem tributária” (fl. 82).
Transcreveu, na oportunidade, parecer emitido pela Procuradora da República
Luciana Marcelino Martins, onde foi sustentado, em resumo, que:
Vê-se, por isso, que os crimes que envolvam direta ou indiretamente a
sonegação de tributos são aceitos socialmente não se lhes aplicando,
portanto o princípio da adequação social. Atente-se que não há
voluntariedade do cidadão em pagar tributos e por esta razão é que ele é
imposto. O Estado, no caso do imposto de importação, determina a
sobretaxa do produto importado a fim de proteger a indústria e o comércio
nacionais, mesmo que isso desagrade à população que preferiria comprar
tais produtos sem Imposto de importação (fl. 85).
Colacionou o recorrente, por fim, precedentes deste Tribunal Regional Federal que
rechaçam a possibilidade de aplicação do art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003 aos crimes de
descaminho.
Foram apresentadas contra-razões às fls. 96/99.
O MM. Juiz Federal a quo manteve a decisão recorrida à fl. 100.
Vieram os autos a esta Corte Regional Federal, ocasião em que o d. Ministério
Público Federal, no exercício da função de fiscal da lei, proferiu parecer opinando pelo provimento
do presente recurso em sentido estrito (fls. 103/106).
É o relatório.
ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO
Juíza Federal
(Relatora Convocada)
TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05
Criado por tr151104
D:\582807145.doc
Juíza Federal Rosimayre Gonçalves
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VOTO
A EXMA. SRA. JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO
(RELATORA CONVOCADA):Presentes os requisitos de admissibilidade deste recurso, dele conheço.
Inicialmente, registro que o MM. Juízo Federal a quo rejeitou a denúncia oferecida
em desfavor do ora recorrido, por aplicar extensivamente o disposto no art. 9º, da Lei nº
10.684/03, argumentando, em síntese que:
Observo a inaplicabilidade do princípio da insignificância em relação
ao crime de descaminho descrito na peça acusatória, uma vez que as
mercadorias apreendidas superam o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais),
quantia que poderia ensejar a abertura de execução fiscal em desfavor do
denunciado, nos termos do art. 20 da Lei nº 10.522/2002, com redação
dada pela Lei nº 11.033/2004.
Entretanto, quando há a comprovação de perdimento de bens como
ocorreu no presente caso - venho manifestando argumentos mais
relevantes e inibidores da deflagração de uma ação penal pelo crime de
descaminho.
Inicialmente, registro que hodiernamente o único objeto jurídico a ser
tutelado por ilícitos tributários é o interesse patrimonial do Estado pela falta
de pagamento de imposto devido, ou seja, o interesse fiscal do Poder
Público. Não concordo com o argumento de que no crime de descaminho
haveria outro objeto jurídico a ser tutelado, qual seja, o interesse moral do
Estado, a saúde pública ou mesmo a proteção da indústria nacional, já
esposado por membros do MPF que atuam nesta Vara.
Aliás, extraio julgado do STJ em que se afirma categoricamente que
o crime de descaminho é eminentemente tributário:
"o crime de descaminho é intrinsecamente tributário, ou seja,
tutela-se o direito que o Estado tem de instituir e cobrar
impostos e contribuições. Portanto, uma vez certificado que o
pagamento do tributo foi operado antes do oferecimento da denúncia,
de rigor é reconhecer-se a falta de utilidade e presteza do emprego
do processo penal" (HC n° 48805, Relatora Ministra Maria Thereza
de Assis Moura). (grifei)
Com efeito, o que define uma infração penal é o dolo do agente e
não o objeto jurídico atingido. Por exemplo, o delito de roubo é delito
contra o patrimônio, não obstante também atingir a liberdade individual.
Tanto é verdade esta assertiva que os delitos estão topograficamente
expostos em capítulos pelo Código Penal em razão do dolo definido pelo
agente que realizou a conduta, já que nosso Estatuto Penal adotou em seu
sistema a doutrina finalista da conduta. Até o latrocínio - que atinge a vida-,
é delito contra o patrimônio, porque o que orienta a classificação do delito
não é seu resultado e sim a vontade do agente.
Aliás, mesmo os outros bens jurídicos atingidos pelo crime de
descaminho não são observados pela União, que realça sempre o aspecto
financeiro de espécies delituosas que causam danos a seu patrimônio pela
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falta de pagamento de tributos. Neste sentido, basta verificar o
mencionado no artigo 9° da Lei nº 10.684/2003, que possibilita a extinção
da punibilidade na hipótese de ocorrer o pagamento integral do tributo, nos
delitos previstos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. Pela edição
desta lei, a União não se importou com o interesse moral do Estado, com a
normalidade do comércio exterior ou mesmo com a proteção da indústria
nacional, já que os sonegadores de tributos previdenciários também
atingem estes valores jurídicos.
Aliás, o próprio Código Penal já acena a identidade dos bens
jurídicos pelo menos entre o crime de descaminho e o de sonegação
previdenciária, porquanto os mesmos estão contidos no título XI do Código
Penal (dos crimes contra a administração pública). Não há justificativa,
assim, que a extinção da punibilidade apenas pelo comando do artigo 9°
da Lei 10.684/03 somente contemple o crime previsto no artigo 337-A do
Código Penal.
Em relação à proteção da indústria nacional - caso se tome como
verdadeira a lesão a este bem jurídico - entendo que este também seria
afetado pela prática dos crimes descritos no artigo 168-A e 337-A do
Código Penal, porquanto o empresário que paga regularmente sua
contribuição previdenciária concorre de forma desigual com o sonegador
do sistema previdenciário. Este último além de não realizar o pagamento
no tempo adequado, conta com o sistema de parcelamento de seu débito,
e nem por isso a Lei 10.684/03 deixou de contemplá-lo com a extinção da
punibilidade a qualquer tempo por meio da satisfação integral do débito.
Analisando a questão pelo aspecto da lesividade da conduta à
normalidade do comércio exterior, observo que este critério de discrímen
não conduz a uma situação de desigualamento de condutas ao ponto de
justificar a não aplicação do critério analógico da Lei 10.684/03 ao delito de
descaminho. Neste sentido, esclarecedora a lição de Celso Antônio B. de
Mello:
"esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que
é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa
racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o
específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade
afirmada." (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª edição,
5ª tiragem, ed. Malheiros, pág. 38).
Conclui, ainda, o referido autor que:
“Deveras, a lei não pode atribuir efeitos valorativos, ou depreciativos,
a critério especificador, em desconformidade ou contradição com os
valores transfundidos no sistema constitucional ou nos padrões éticosociais acolhidos neste ordenamento. (...) Por isso se observa que
não é qualquer distinção entre as situações que autoriza discriminar.
Sobre existir alguma diferença importa que esta seja relevante para o
discrímen que se quer introduzir legislativamente" (obra citada, fls.
42).
Assim, a normalidade do comércio exterior não é valor superior à
política social do Estado, que protege as pessoas hipossuficientes
(beneficiários do sistema da previdência social) nem ao potencial
competitivo de empresa que cumpre suas obrigações com a Seguridade
Social.
Isto porque todas estas ações criminosas em detrimento da
Seguridade Social violam de forma direta os direitos sociais, porquanto
atingem a aposentadoria dos trabalhadores, salário família, seguro
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desemprego, assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o
nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas (artigos 7°,
XXIV, XII, II, XXV da Constituição Federal), enumerando-se apenas alguns
exemplos de prestações da previdência social e da assistência social
insertos na Lei Suprema, e sem descer a outros benefícios previstos na
legislação infraconstitucional, bem como sem fazer alusão a direito
fundamental dos indivíduos no plano da Saúde, já que esta atividade
estatal também integra a Seguridade Social.
Aliás, a apropriação indébita previdenciária e a sonegação
desequilibram o sistema previdenciário, que sempre necessitará de ajustes
e reformas para cobrir o rombo causado por atitudes de empresários que
não cumprem suas obrigações regulares.Consigne-se, ainda, que o dano
ao erário resta muito mais latente nos crimes previdenciários, mesmo com
o pagamento posterior do débito tributário pelo agente. Isto porque o déficit
provocado pela sonegação ou pela apropriação previdenciária desequilibra
o orçamento público, sendo necessária a retirada de recursos de outros
setores ou de investimentos para alocá-los ao orçamento da previdência
social.
Quanto à tutela da saúde, verifico que o delito de descaminho nada
tem a ver com este bem jurídico. A mercadoria apreendida não é proibida
no país - situação que caracterizaria o contrabando -, apenas não se
pagou o tributo devido pela proveniência estrangeira do produto. Assim,
não há que se falar em proteção à saúde pública neste delito.
Ora, se mesmo diante de todas essas ofensas a bens jurídicos
resultantes da prática de crimes previdenciários - e de maior valor
constitucional do que a normalidade do comércio exterior, já que integram
o rol dos direitos e garantias fundamentais - o autor da apropriação
indébita previdenciária e da sonegação de contribuição previdenciária são
contemplados com a extinção da punibilidade a qualquer tempo, pelo
menos idêntica situação deve ser outorgada ao autor do descaminho.
Pelo disposto na Lei 10.684/03, o indivíduo que realiza a satisfação
de seu débito previdenciário, além de não responder criminalmente por sua
conduta, também não sofrerá qualquer ação tributária em seu desfavor.
Esta última conseqüência é resultado lógico de seu comportamento, uma
vez que realizou o pagamento integral do tributo ao Estado.
Entretanto, o indivíduo que não paga o imposto de importação,
realizando o crime previsto no artigo 334, segunda parte do Código Penal,
além de perder sua mercadoria - já que estará sujeito à pena de
perdimento do bem -, se sujeita, ainda, em grande parte das vezes, a uma
ação tributária para realizar o pagamento do tributo devido, qual seja o
imposto de importação. Aliás, este débito tributário constitui-se em
gravame para o autor do descaminho, já que ele não pode obter certidão
perante a Receita Federal de quitação de tributos, sendo, portanto, alijado
de certames licitatórios, além de outras conseqüências como sua inclusão
no CADIN. Neste sentido, basta verificar o que dispõe o artigo 2°, § 2°, da
Lei 10.522/02, bem como o disposto na Lei 10.833/03.
A apreensão da mercadoria pelo Estado já proporciona ao Poder
Público um retorno financeiro maior do que teria direito pela cobrança do
imposto de importação. Isto porque a venda do bem apreendido, na
maioria das vezes, e assim verificado no presente caso, supera em muito o
valor do tributo devido.
Ressalte-se que nem pelo prejuízo ao erário ocasionado pela falta de
pagamento de tributos previdenciários, o Estado deixa de contemplar a
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extinção da punibilidade pela satisfação da obrigação tributária, conforme
exposto pela Lei 10.683/03 em seu artigo 9°.
Dessa forma, a atuação estatal no crime de descaminho é muito
mais interventiva no patrimônio de seu agente do que nos delitos
previdenciários, em que, a qualquer tempo, o indivíduo pode quitar o débito
pelo pagamento integral do tributo.
O comando inserto no artigo 9° da Lei 10.684/03 privilegia, ainda, o
infrator que possui capacidade financeira e pode quitar seu débito
tributário, sendo que o indivíduo de diminuto poder aquisitivo sofre
processo criminal que sequer chegou a afetar o patrimônio da União, uma
vez que, conforme dito, o valor dos bens apreendidos supera o débito
tributário do autor do crime de descaminho.
Exsurge, pois, nítida a situação de desigualdade entre os indivíduos
que cometem o delito de descaminho dos que sonegam tributos da
previdência social. Estes últimos são agraciados com a extinção da
punibilidade pelo pagamento integral, sendo que os primeiros além de
perderem a mercadoria, podem responder pelo pagamento do tributo
devido, e, ainda, tem uma ação penal deflagrada contra si.
Diante disso, as situações acima evidenciadas, a meu sentir, causam
violação direta ao princípio da igualdade, porquanto não há justificativa
racional para que a pena de perdimento da mercadoria não atue como
causa extintiva da punibilidade, conforme lição já transcrita nesta peça do
jurista Celso Antônio B. de Mello.
Sob outro viés – mas chegando ao mesmo entendimento de Celso
Antônio B. de Mello -, o jusfilósofo Norberto Bobbio ensina que o
ordenamento jurídico deve guardar uma coerência entre normas jurídicas
(Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª edição, ed. UNB, pág.86).
O raciocínio dos ilustres juristas já foi utilizado para evitar situações
injustas e alargar a possibilidade de que o comando do artigo 9° da Lei
10.684/03 contemplasse a pessoa física, porquanto não há justificativa
racional para que esta medida se restrinja apenas à pessoa jurídica.
Outro argumento no sentido de que há clara violação ao princípio da
igualdade se verifica pelo exame comparativo entre as cominações
previstas pelos delitos descritos nos artigos 168-A e 337-A com a do artigo
334, todos do Código Penal. Isto porque a pena dos delitos contra a
Previdência Social é mais severa do que a do delito de descaminho, e, no
entanto, seus infratores são beneficiados pela extinção da punibilidade
quando ocorre o pagamento integral do tributo, enquanto o autor do delito
descrito pelo artigo 334 do Código Penal não pode se valer desta
circunstância benéfica, mesmo tendo realizado conduta que, pelo critério
da pena abstrata imposta pelo legislador, merece reprimenda menos
severa que a dos delitos contemplados pelo artigo 9° da Lei 10.684/03.
A meu sentir, a única solução para que se elimine a desigualdade
criada pela edição da Lei 10.684/03 em relação ao crime de descaminho, é
a adoção de entendimento no sentido de que a mercadoria apreendida
atue como causa de extinção da punibilidade. Isto porque, conforme dito, o
valor destes bens supera o valor dos tributos devidos, não havendo
qualquer prejuízo financeiro ao Estado.
Em sentido contrário, poder-se-ia argumentar que o pagamento
realizado pelos crimes descritos pelo artigo 9° da Lei 10.684/03 revela a
voluntariedade posterior dos agentes ao adimplemento da obrigação
tributária, enquanto aos autores do crime de descaminho não se admitiria
esta circunstância, até pela natureza de ambulatorial de seu comércio.
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Entretanto, caso assim fosse, ao agente do crime de descaminho
deveria ser outorgada a possibilidade de pagar a qualquer tempo o
imposto de importação, igualando sua situação aos sonegadores de outros
tributos federais, conforme consta da Lei 10.684/03. Assim, deveria o autor
do crime de descaminho ser notificado quando houvesse a verificação da
falta de pagamento do imposto devido à internação de mercadorias
estrangeiras, e, a partir disso, se desencadeasse uma ação fiscal contra o
mesmo - a exemplo do que ocorre com as execuções previdenciárias e de
outros tributos federais -, sem qualquer apreensão imediata da mercadoria
estrangeira. Somente a partir do não pagamento do tributo é que se
haveria a deflagração de uma ação penal pelo crime de descaminho,
havendo, assim, identidade de tratamento entre o delito de descaminho e
as outras infrações contempladas pela extinção da punibilidade inserta no
artigo 9º da Lei 10.684/03, lembrando-se sempre que o delito do artigo 334
do Código Penal (descaminho) possui cominação mais branda que a das
outras espécies delitivas tributárias.
Ressalte-se, ainda, que se o direito penal permite a utilização da
analogia, como critério de auto-integração da norma para que "ao
interpretarmos a lei penal não cheguemos a soluções absurdas", conforme
menciona o professor Rogério Greco1, com muito mais razão deve-se
admitir o critério de extensão do artigo 9º da Lei 10.684/03 aos crimes de
descaminho. Isto porque a resposta estatal experimentada pelos autores
do artigo 334 do Código Penal - apreensão imediata das mercadorias - já
se revela uma punição de maior gravame do que ação estatal nos outros
crimes tributários, já que, a qualquer tempo durante a ação penal, o
sonegador pode extinguir a punibilidade apenas pelo pagamento integral
do tributo devido. Ou seja, não se aplica a pena ao sonegador tributário
apenas porque ele cumpriu, a qualquer tempo, o que ele já deveria ter feito
anteriormente, enquanto ao sacoleiro do Paraguai é imposta a pena de
perdimento da mercadoria que carregava, cujo valor supera o valor do
tributo por ele devido.
Mencione-se, ainda, um importante registro histórico sobre o crime
de descaminho. Antes da Lei n. 6.910/81, o STF - através da súmula n.
560 - admitia a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo antes
de iniciada a ação penal nos crimes de descaminho. Agora, com a edição
da Lei 10.684/03, em seu artigo 9º, renovou-se esta possibilidade no
ordenamento jurídico pela aplicação do princípio da igualdade, já que a
venda da mercadoria apreendida - além de pagar a totalidade do débito
tributário - reverte em lucro para o ente Estatal.
Pelo prisma do Direito Constitucional, esta situação configura, ainda,
evidente desrespeito à cláusula do "devido processo legal substantivo", por
intermédio do qual se afere a razoabilidade e a racionalidade das normas
jurídicas e dos atos do poder público em geral. Conforme afirma André L.
Borges Netto, essa faceta substantiva do princípio do devido processo
legal atribui ao Poder Judiciário competência "no sentido de poder afastar
a aplicabilidade de leis ou de atos governamentais na hipótese de serem
arbitrários" (A razoabilidade constitucional - o princípio do devido processo
legal substantivo aplicado a casos concretos, Revista Jurídica Virtual do
Palácio do Planalto n° 12, maio/2000).
Aliás, o STF já reconheceu a implicação dos princípios da
razoabilidade, e proporcionalidade em face de condutas tidas como
1
em seu Curso de Direito Penal, Parte Geral, 3ª edição, ed. Impetus, pág. 46.
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criminosas (HC 77.003/PE, Relator Ministro Marco Aurélio, 16.06.1998,
Informativo do STF n° 115).
Esclareço, ainda, que não se trata de conferir licitude ao
comportamento do denunciado. Trata-se, sim, da falta de incidência do
direito penal no comportamento do autor do descaminho, uma vez que a
atuação administrativa já basta para a reprovação e prevenção do crime
em razão do alto prejuízo econômico experimentado pelo autor. Só haverá
a imposição de pena criminal quando não houver apreensão das
mercadorias. No presente caso, comprovadamente, houve a aplicação
da pena de perdimento às mercadorias apreendidas, conforme se vê
de fls. 27.
É a adoção do princípio da intervenção mínima do direito penal ou do
caráter fragmentário deste ramo do ordenamento jurídico, somente
legitimando sua incidência se outras formas de ação do Estado se
mostrarem ineficazes. Neste sentido é a lição de Rogério Greco em seu
Curso de Direito Penal, 3ª edição, ed. Impetus, pág. 64/65.
Por fim, importante colacionar que o julgado do STJ transcrito nesta
decisão (HC n. 48805, ReI. Min. Maria Thereza de Assis Moura) adotou a
tese da inutilidade do processo penal, quando há pagamento do tributo
antes do oferecimento da denúncia, aplicando a sistemática jurídica que se
tinha sobre a matéria antes da edição da Lei 10.684/03. Assim,
hodiernamente, deve-se aplicar a regra exposta pela Lei 10.684/03 aos
crimes de descaminho, porque já houve maior proveito econômico ao
Estado pela apreensão da mercadoria.
Posto isto, a fim de se materializar o princípio da igualdade inserto no
texto constitucional, e aplicando extensivamente o disposto no artigo 9º da
Lei 10.684/03, rejeito a denúncia, com fundamento no art. 43, I e lI, do
Código de Processo Penal (fls. 70/78).
No presente caso, verifica-se, em um exame superficial do contido nestes
autos, inerente a esta fase do processo, que a conduta supostamente praticada pela ora
denunciada, na forma em que narrada na denúncia, amolda-se perfeitamente ao art. 334, § 1º, ‘c’
e ‘d’, do Código Penal. Além disso, a materialidade delitiva ficou configurada e há indícios
veementes de autoria.
Todavia, vê-se, da análise da r. decisão recorrida, que o MM. Juízo Federal a quo
rejeitou a denúncia aplicando ao caso presente o princípio da igualdade, e por este fundamento,
aplicou analogicamente o disposto na Lei nº 10.684/03, art. 9º, § 2º, reconhecendo, assim, extinta
a punibilidade do acusado.
Apesar dos bens lançados argumentos apresentados na r. decisão recorrida para
sustentar a tese de aplicação analógica in bonam partem da Lei nº 10.684/03, art. 9º, ao crime de
descaminho, tenho que a mesma deve ser reformada.
Com efeito, as causas extintivas da punibilidade, por se constituírem exceções ao
direito de punir, são numerus clausus, não admitindo interpretação extensiva. Dessa forma, não
pode ser ampliada a causa de extinção da punibilidade prevista no § 2º do art. 9º da Lei nº
10.684/03, que limita a incidência do mencionado dispositivo legal aos infratores das normas
previstas nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal e arts. 1º e 2º, da Lei nº 8.137/90.
A esse respeito, confira-se os julgados cujas ementas seguem abaixo transcritas, e
que entendo aplicáveis à hipótese dos autos:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO CRIMINAL. DESCAMINHO.
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ARTIGO 18, § 1º, LEI N. 10.522/2002.
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PERDIMENTO DO BEM. PAGAMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
ANALOGIA. LEI N. 10.684/2003, ART. 9º.
1. É inaplicável o princípio da insignificância na hipótese de crime de
descaminho quando o valor do tributo incidente sobre as mercadorias
apreendidas for superior ao limite estabelecido para a extinção dos
créditos fiscais (artigo 18, § 1º da Lei n. 10.522/2002).
2. A pena administrativa de perdimento, e tampouco a mera
apreensão de mercadorias, não tem aptidão para ensejar a extinção
da punibilidade penal, ao fundamento de que equivale ao pagamento
do tributo.
3. Recurso criminal provido (grifou-se).
(RCCR 2006.34.00.024161-3/DF, Relator Desembargador Federal Mário
César Ribeiro, 4ª Turma, publicado no e-DJF1 de 10/07/2008, p. 173).
PENAL. DESCAMINHO. ART. 334 DO CP. AUTO DE INFRAÇÃO
LAVRADO PELA AUTORIDADE FAZENDÁRIA. PENA DE PERDIMENTO
DA MERCADORIA. PRESUNÇÃO DE LIQUIDAÇÃO DE DÉBITOS.
INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. EXTINÇÃO
DA PUNIBILIDADE. ART. 9º, § 2º, DA LEI 10.684/03. NÃO APLICAÇÃO.
1. Havendo a demonstração da introdução de mercadoria estrangeira no
território nacional, sem a cobertura do documento fiscal competente, temse por configurado o crime tipificado no art. 334 do Código Penal.
2. Não se presumem quitados os débitos tributários referentes ao
delito de descaminho, para que seja declarada a extinção da
punibilidade, quando houver decretação da perda da mercadoria no
âmbito administrativo, pois o fato gerador do Imposto de Importação,
qual seja, o desembaraço aduaneiro, inocorre em tais hipóteses.
3. Inaplicável a extinção da punibilidade ao delito de descaminho, nos
termos do art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/03, porquanto não há previsão
legal nesse sentido. O referido parágrafo é claro ao limitar a
incidência do benefício apenas aos infratores dos arts. 168-A e 337-a
do Decreto-Lei 2.848/40 (Código Penal), e arts. 1º e 2º, da Lei 8.137/90.
4. Recurso em sentido estrito provido (grifou-se).
(TRF – 1ª Região, RCCR 2001.38.03.004586-0/MG, Relator
Desembargador Federal Tourinho Neto, 3ª Turma, julgado por
unanimidade em 09/04/2007, publicado no DJ de 20/04/2007, p. 23).
Não bastasse, sob alegação de igualdade, açambarca situações jurídico-fáticas
distintas, pois não só amplia as hipóteses de extinção da punibilidade, mas vai além,
equiparando o perdimento ao pagamento do tributo, hipótese não contemplada no Código
Tributário Nacional, que prevê no seu art. 97, incisos I e VI:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;
...............................................................................................................
VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos
tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
Impende invocar, ainda, o art. 111 do CTN, que dispõe:
TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05
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Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha
sobre:
I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;
Portanto, não se admite interpretação extensiva quando se cuida de Lei excludente
do crédito tributário.
No mesmo sentido, o art. 141 do CTN: “O crédito tributário regularmente constituído
somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos
previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade
funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias”. Admite a dação em
pagamento apenas em bens imóveis, nas formas e condições legais, o que não é a hipótese dos
autos.
Portanto, certamente não guarda pertinência invocar o princípio da igualdade para
conferir o mesmo tratamento a situações distintas e, por isso, não equiparadas pelo legislador.
Por fim, nosso direito penal funda-se na proteção ao bem jurídico, que, como
sobredito, são distintos, pois a conduta de quem não paga um imposto, não se iguala à daquele
que pratica introdução de mercadoria estrangeira em nosso território, que, a depender da escala
(como parece ser a hipótese) pode gerar grave ameaça aos comerciantes e empresários locais,
com geração de desemprego e severo dano à indústria nacional em face das desigualdades na
oferta ao consumidor.
Assim, com base nos fundamentos acima expostos, tenho que a r. decisão
recorrida não merece ser mantida.
Diante disso, dou provimento ao presente recurso criminal para, recebendo a
denúncia, determinar o prosseguimento da ação penal proposta em desfavor da ora recorrida, no
âmbito do MM. Juízo Federal a quo.
É o voto.
ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO
Juíza Federal
(Relatora Convocada)
TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05
D:\582807145.doc
Juíza Federal Rosimayre Gonçalves
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