PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF RELATÓRIO A EXMA. SRA. JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO (RELATORA CONVOCADA):Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (fls. 81/88), contra a r. decisão de fls. 69/78, que, em síntese, rejeitou a denúncia oferecida contra a Sra GEOVANE DA SILVA NEVES Asseverou o recorrente que “(...) O primeiro equívoco da decisão recorrida está em considerar o crime de descaminho como crime contra a ordem tributária” (fl. 82). Transcreveu, na oportunidade, parecer emitido pela Procuradora da República Luciana Marcelino Martins, onde foi sustentado, em resumo, que: Vê-se, por isso, que os crimes que envolvam direta ou indiretamente a sonegação de tributos são aceitos socialmente não se lhes aplicando, portanto o princípio da adequação social. Atente-se que não há voluntariedade do cidadão em pagar tributos e por esta razão é que ele é imposto. O Estado, no caso do imposto de importação, determina a sobretaxa do produto importado a fim de proteger a indústria e o comércio nacionais, mesmo que isso desagrade à população que preferiria comprar tais produtos sem Imposto de importação (fl. 85). Colacionou o recorrente, por fim, precedentes deste Tribunal Regional Federal que rechaçam a possibilidade de aplicação do art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003 aos crimes de descaminho. Foram apresentadas contra-razões às fls. 96/99. O MM. Juiz Federal a quo manteve a decisão recorrida à fl. 100. Vieram os autos a esta Corte Regional Federal, ocasião em que o d. Ministério Público Federal, no exercício da função de fiscal da lei, proferiu parecer opinando pelo provimento do presente recurso em sentido estrito (fls. 103/106). É o relatório. ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO Juíza Federal (Relatora Convocada) TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 Criado por tr151104 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.2/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF VOTO A EXMA. SRA. JUÍZA FEDERAL ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO (RELATORA CONVOCADA):Presentes os requisitos de admissibilidade deste recurso, dele conheço. Inicialmente, registro que o MM. Juízo Federal a quo rejeitou a denúncia oferecida em desfavor do ora recorrido, por aplicar extensivamente o disposto no art. 9º, da Lei nº 10.684/03, argumentando, em síntese que: Observo a inaplicabilidade do princípio da insignificância em relação ao crime de descaminho descrito na peça acusatória, uma vez que as mercadorias apreendidas superam o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), quantia que poderia ensejar a abertura de execução fiscal em desfavor do denunciado, nos termos do art. 20 da Lei nº 10.522/2002, com redação dada pela Lei nº 11.033/2004. Entretanto, quando há a comprovação de perdimento de bens como ocorreu no presente caso - venho manifestando argumentos mais relevantes e inibidores da deflagração de uma ação penal pelo crime de descaminho. Inicialmente, registro que hodiernamente o único objeto jurídico a ser tutelado por ilícitos tributários é o interesse patrimonial do Estado pela falta de pagamento de imposto devido, ou seja, o interesse fiscal do Poder Público. Não concordo com o argumento de que no crime de descaminho haveria outro objeto jurídico a ser tutelado, qual seja, o interesse moral do Estado, a saúde pública ou mesmo a proteção da indústria nacional, já esposado por membros do MPF que atuam nesta Vara. Aliás, extraio julgado do STJ em que se afirma categoricamente que o crime de descaminho é eminentemente tributário: "o crime de descaminho é intrinsecamente tributário, ou seja, tutela-se o direito que o Estado tem de instituir e cobrar impostos e contribuições. Portanto, uma vez certificado que o pagamento do tributo foi operado antes do oferecimento da denúncia, de rigor é reconhecer-se a falta de utilidade e presteza do emprego do processo penal" (HC n° 48805, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura). (grifei) Com efeito, o que define uma infração penal é o dolo do agente e não o objeto jurídico atingido. Por exemplo, o delito de roubo é delito contra o patrimônio, não obstante também atingir a liberdade individual. Tanto é verdade esta assertiva que os delitos estão topograficamente expostos em capítulos pelo Código Penal em razão do dolo definido pelo agente que realizou a conduta, já que nosso Estatuto Penal adotou em seu sistema a doutrina finalista da conduta. Até o latrocínio - que atinge a vida-, é delito contra o patrimônio, porque o que orienta a classificação do delito não é seu resultado e sim a vontade do agente. Aliás, mesmo os outros bens jurídicos atingidos pelo crime de descaminho não são observados pela União, que realça sempre o aspecto financeiro de espécies delituosas que causam danos a seu patrimônio pela TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.3/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF falta de pagamento de tributos. Neste sentido, basta verificar o mencionado no artigo 9° da Lei nº 10.684/2003, que possibilita a extinção da punibilidade na hipótese de ocorrer o pagamento integral do tributo, nos delitos previstos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. Pela edição desta lei, a União não se importou com o interesse moral do Estado, com a normalidade do comércio exterior ou mesmo com a proteção da indústria nacional, já que os sonegadores de tributos previdenciários também atingem estes valores jurídicos. Aliás, o próprio Código Penal já acena a identidade dos bens jurídicos pelo menos entre o crime de descaminho e o de sonegação previdenciária, porquanto os mesmos estão contidos no título XI do Código Penal (dos crimes contra a administração pública). Não há justificativa, assim, que a extinção da punibilidade apenas pelo comando do artigo 9° da Lei 10.684/03 somente contemple o crime previsto no artigo 337-A do Código Penal. Em relação à proteção da indústria nacional - caso se tome como verdadeira a lesão a este bem jurídico - entendo que este também seria afetado pela prática dos crimes descritos no artigo 168-A e 337-A do Código Penal, porquanto o empresário que paga regularmente sua contribuição previdenciária concorre de forma desigual com o sonegador do sistema previdenciário. Este último além de não realizar o pagamento no tempo adequado, conta com o sistema de parcelamento de seu débito, e nem por isso a Lei 10.684/03 deixou de contemplá-lo com a extinção da punibilidade a qualquer tempo por meio da satisfação integral do débito. Analisando a questão pelo aspecto da lesividade da conduta à normalidade do comércio exterior, observo que este critério de discrímen não conduz a uma situação de desigualamento de condutas ao ponto de justificar a não aplicação do critério analógico da Lei 10.684/03 ao delito de descaminho. Neste sentido, esclarecedora a lição de Celso Antônio B. de Mello: "esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada." (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª edição, 5ª tiragem, ed. Malheiros, pág. 38). Conclui, ainda, o referido autor que: “Deveras, a lei não pode atribuir efeitos valorativos, ou depreciativos, a critério especificador, em desconformidade ou contradição com os valores transfundidos no sistema constitucional ou nos padrões éticosociais acolhidos neste ordenamento. (...) Por isso se observa que não é qualquer distinção entre as situações que autoriza discriminar. Sobre existir alguma diferença importa que esta seja relevante para o discrímen que se quer introduzir legislativamente" (obra citada, fls. 42). Assim, a normalidade do comércio exterior não é valor superior à política social do Estado, que protege as pessoas hipossuficientes (beneficiários do sistema da previdência social) nem ao potencial competitivo de empresa que cumpre suas obrigações com a Seguridade Social. Isto porque todas estas ações criminosas em detrimento da Seguridade Social violam de forma direta os direitos sociais, porquanto atingem a aposentadoria dos trabalhadores, salário família, seguro TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.4/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF desemprego, assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas (artigos 7°, XXIV, XII, II, XXV da Constituição Federal), enumerando-se apenas alguns exemplos de prestações da previdência social e da assistência social insertos na Lei Suprema, e sem descer a outros benefícios previstos na legislação infraconstitucional, bem como sem fazer alusão a direito fundamental dos indivíduos no plano da Saúde, já que esta atividade estatal também integra a Seguridade Social. Aliás, a apropriação indébita previdenciária e a sonegação desequilibram o sistema previdenciário, que sempre necessitará de ajustes e reformas para cobrir o rombo causado por atitudes de empresários que não cumprem suas obrigações regulares.Consigne-se, ainda, que o dano ao erário resta muito mais latente nos crimes previdenciários, mesmo com o pagamento posterior do débito tributário pelo agente. Isto porque o déficit provocado pela sonegação ou pela apropriação previdenciária desequilibra o orçamento público, sendo necessária a retirada de recursos de outros setores ou de investimentos para alocá-los ao orçamento da previdência social. Quanto à tutela da saúde, verifico que o delito de descaminho nada tem a ver com este bem jurídico. A mercadoria apreendida não é proibida no país - situação que caracterizaria o contrabando -, apenas não se pagou o tributo devido pela proveniência estrangeira do produto. Assim, não há que se falar em proteção à saúde pública neste delito. Ora, se mesmo diante de todas essas ofensas a bens jurídicos resultantes da prática de crimes previdenciários - e de maior valor constitucional do que a normalidade do comércio exterior, já que integram o rol dos direitos e garantias fundamentais - o autor da apropriação indébita previdenciária e da sonegação de contribuição previdenciária são contemplados com a extinção da punibilidade a qualquer tempo, pelo menos idêntica situação deve ser outorgada ao autor do descaminho. Pelo disposto na Lei 10.684/03, o indivíduo que realiza a satisfação de seu débito previdenciário, além de não responder criminalmente por sua conduta, também não sofrerá qualquer ação tributária em seu desfavor. Esta última conseqüência é resultado lógico de seu comportamento, uma vez que realizou o pagamento integral do tributo ao Estado. Entretanto, o indivíduo que não paga o imposto de importação, realizando o crime previsto no artigo 334, segunda parte do Código Penal, além de perder sua mercadoria - já que estará sujeito à pena de perdimento do bem -, se sujeita, ainda, em grande parte das vezes, a uma ação tributária para realizar o pagamento do tributo devido, qual seja o imposto de importação. Aliás, este débito tributário constitui-se em gravame para o autor do descaminho, já que ele não pode obter certidão perante a Receita Federal de quitação de tributos, sendo, portanto, alijado de certames licitatórios, além de outras conseqüências como sua inclusão no CADIN. Neste sentido, basta verificar o que dispõe o artigo 2°, § 2°, da Lei 10.522/02, bem como o disposto na Lei 10.833/03. A apreensão da mercadoria pelo Estado já proporciona ao Poder Público um retorno financeiro maior do que teria direito pela cobrança do imposto de importação. Isto porque a venda do bem apreendido, na maioria das vezes, e assim verificado no presente caso, supera em muito o valor do tributo devido. Ressalte-se que nem pelo prejuízo ao erário ocasionado pela falta de pagamento de tributos previdenciários, o Estado deixa de contemplar a TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.5/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF extinção da punibilidade pela satisfação da obrigação tributária, conforme exposto pela Lei 10.683/03 em seu artigo 9°. Dessa forma, a atuação estatal no crime de descaminho é muito mais interventiva no patrimônio de seu agente do que nos delitos previdenciários, em que, a qualquer tempo, o indivíduo pode quitar o débito pelo pagamento integral do tributo. O comando inserto no artigo 9° da Lei 10.684/03 privilegia, ainda, o infrator que possui capacidade financeira e pode quitar seu débito tributário, sendo que o indivíduo de diminuto poder aquisitivo sofre processo criminal que sequer chegou a afetar o patrimônio da União, uma vez que, conforme dito, o valor dos bens apreendidos supera o débito tributário do autor do crime de descaminho. Exsurge, pois, nítida a situação de desigualdade entre os indivíduos que cometem o delito de descaminho dos que sonegam tributos da previdência social. Estes últimos são agraciados com a extinção da punibilidade pelo pagamento integral, sendo que os primeiros além de perderem a mercadoria, podem responder pelo pagamento do tributo devido, e, ainda, tem uma ação penal deflagrada contra si. Diante disso, as situações acima evidenciadas, a meu sentir, causam violação direta ao princípio da igualdade, porquanto não há justificativa racional para que a pena de perdimento da mercadoria não atue como causa extintiva da punibilidade, conforme lição já transcrita nesta peça do jurista Celso Antônio B. de Mello. Sob outro viés – mas chegando ao mesmo entendimento de Celso Antônio B. de Mello -, o jusfilósofo Norberto Bobbio ensina que o ordenamento jurídico deve guardar uma coerência entre normas jurídicas (Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª edição, ed. UNB, pág.86). O raciocínio dos ilustres juristas já foi utilizado para evitar situações injustas e alargar a possibilidade de que o comando do artigo 9° da Lei 10.684/03 contemplasse a pessoa física, porquanto não há justificativa racional para que esta medida se restrinja apenas à pessoa jurídica. Outro argumento no sentido de que há clara violação ao princípio da igualdade se verifica pelo exame comparativo entre as cominações previstas pelos delitos descritos nos artigos 168-A e 337-A com a do artigo 334, todos do Código Penal. Isto porque a pena dos delitos contra a Previdência Social é mais severa do que a do delito de descaminho, e, no entanto, seus infratores são beneficiados pela extinção da punibilidade quando ocorre o pagamento integral do tributo, enquanto o autor do delito descrito pelo artigo 334 do Código Penal não pode se valer desta circunstância benéfica, mesmo tendo realizado conduta que, pelo critério da pena abstrata imposta pelo legislador, merece reprimenda menos severa que a dos delitos contemplados pelo artigo 9° da Lei 10.684/03. A meu sentir, a única solução para que se elimine a desigualdade criada pela edição da Lei 10.684/03 em relação ao crime de descaminho, é a adoção de entendimento no sentido de que a mercadoria apreendida atue como causa de extinção da punibilidade. Isto porque, conforme dito, o valor destes bens supera o valor dos tributos devidos, não havendo qualquer prejuízo financeiro ao Estado. Em sentido contrário, poder-se-ia argumentar que o pagamento realizado pelos crimes descritos pelo artigo 9° da Lei 10.684/03 revela a voluntariedade posterior dos agentes ao adimplemento da obrigação tributária, enquanto aos autores do crime de descaminho não se admitiria esta circunstância, até pela natureza de ambulatorial de seu comércio. TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.6/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF Entretanto, caso assim fosse, ao agente do crime de descaminho deveria ser outorgada a possibilidade de pagar a qualquer tempo o imposto de importação, igualando sua situação aos sonegadores de outros tributos federais, conforme consta da Lei 10.684/03. Assim, deveria o autor do crime de descaminho ser notificado quando houvesse a verificação da falta de pagamento do imposto devido à internação de mercadorias estrangeiras, e, a partir disso, se desencadeasse uma ação fiscal contra o mesmo - a exemplo do que ocorre com as execuções previdenciárias e de outros tributos federais -, sem qualquer apreensão imediata da mercadoria estrangeira. Somente a partir do não pagamento do tributo é que se haveria a deflagração de uma ação penal pelo crime de descaminho, havendo, assim, identidade de tratamento entre o delito de descaminho e as outras infrações contempladas pela extinção da punibilidade inserta no artigo 9º da Lei 10.684/03, lembrando-se sempre que o delito do artigo 334 do Código Penal (descaminho) possui cominação mais branda que a das outras espécies delitivas tributárias. Ressalte-se, ainda, que se o direito penal permite a utilização da analogia, como critério de auto-integração da norma para que "ao interpretarmos a lei penal não cheguemos a soluções absurdas", conforme menciona o professor Rogério Greco1, com muito mais razão deve-se admitir o critério de extensão do artigo 9º da Lei 10.684/03 aos crimes de descaminho. Isto porque a resposta estatal experimentada pelos autores do artigo 334 do Código Penal - apreensão imediata das mercadorias - já se revela uma punição de maior gravame do que ação estatal nos outros crimes tributários, já que, a qualquer tempo durante a ação penal, o sonegador pode extinguir a punibilidade apenas pelo pagamento integral do tributo devido. Ou seja, não se aplica a pena ao sonegador tributário apenas porque ele cumpriu, a qualquer tempo, o que ele já deveria ter feito anteriormente, enquanto ao sacoleiro do Paraguai é imposta a pena de perdimento da mercadoria que carregava, cujo valor supera o valor do tributo por ele devido. Mencione-se, ainda, um importante registro histórico sobre o crime de descaminho. Antes da Lei n. 6.910/81, o STF - através da súmula n. 560 - admitia a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo antes de iniciada a ação penal nos crimes de descaminho. Agora, com a edição da Lei 10.684/03, em seu artigo 9º, renovou-se esta possibilidade no ordenamento jurídico pela aplicação do princípio da igualdade, já que a venda da mercadoria apreendida - além de pagar a totalidade do débito tributário - reverte em lucro para o ente Estatal. Pelo prisma do Direito Constitucional, esta situação configura, ainda, evidente desrespeito à cláusula do "devido processo legal substantivo", por intermédio do qual se afere a razoabilidade e a racionalidade das normas jurídicas e dos atos do poder público em geral. Conforme afirma André L. Borges Netto, essa faceta substantiva do princípio do devido processo legal atribui ao Poder Judiciário competência "no sentido de poder afastar a aplicabilidade de leis ou de atos governamentais na hipótese de serem arbitrários" (A razoabilidade constitucional - o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos, Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto n° 12, maio/2000). Aliás, o STF já reconheceu a implicação dos princípios da razoabilidade, e proporcionalidade em face de condutas tidas como 1 em seu Curso de Direito Penal, Parte Geral, 3ª edição, ed. Impetus, pág. 46. TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.7/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF criminosas (HC 77.003/PE, Relator Ministro Marco Aurélio, 16.06.1998, Informativo do STF n° 115). Esclareço, ainda, que não se trata de conferir licitude ao comportamento do denunciado. Trata-se, sim, da falta de incidência do direito penal no comportamento do autor do descaminho, uma vez que a atuação administrativa já basta para a reprovação e prevenção do crime em razão do alto prejuízo econômico experimentado pelo autor. Só haverá a imposição de pena criminal quando não houver apreensão das mercadorias. No presente caso, comprovadamente, houve a aplicação da pena de perdimento às mercadorias apreendidas, conforme se vê de fls. 27. É a adoção do princípio da intervenção mínima do direito penal ou do caráter fragmentário deste ramo do ordenamento jurídico, somente legitimando sua incidência se outras formas de ação do Estado se mostrarem ineficazes. Neste sentido é a lição de Rogério Greco em seu Curso de Direito Penal, 3ª edição, ed. Impetus, pág. 64/65. Por fim, importante colacionar que o julgado do STJ transcrito nesta decisão (HC n. 48805, ReI. Min. Maria Thereza de Assis Moura) adotou a tese da inutilidade do processo penal, quando há pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia, aplicando a sistemática jurídica que se tinha sobre a matéria antes da edição da Lei 10.684/03. Assim, hodiernamente, deve-se aplicar a regra exposta pela Lei 10.684/03 aos crimes de descaminho, porque já houve maior proveito econômico ao Estado pela apreensão da mercadoria. Posto isto, a fim de se materializar o princípio da igualdade inserto no texto constitucional, e aplicando extensivamente o disposto no artigo 9º da Lei 10.684/03, rejeito a denúncia, com fundamento no art. 43, I e lI, do Código de Processo Penal (fls. 70/78). No presente caso, verifica-se, em um exame superficial do contido nestes autos, inerente a esta fase do processo, que a conduta supostamente praticada pela ora denunciada, na forma em que narrada na denúncia, amolda-se perfeitamente ao art. 334, § 1º, ‘c’ e ‘d’, do Código Penal. Além disso, a materialidade delitiva ficou configurada e há indícios veementes de autoria. Todavia, vê-se, da análise da r. decisão recorrida, que o MM. Juízo Federal a quo rejeitou a denúncia aplicando ao caso presente o princípio da igualdade, e por este fundamento, aplicou analogicamente o disposto na Lei nº 10.684/03, art. 9º, § 2º, reconhecendo, assim, extinta a punibilidade do acusado. Apesar dos bens lançados argumentos apresentados na r. decisão recorrida para sustentar a tese de aplicação analógica in bonam partem da Lei nº 10.684/03, art. 9º, ao crime de descaminho, tenho que a mesma deve ser reformada. Com efeito, as causas extintivas da punibilidade, por se constituírem exceções ao direito de punir, são numerus clausus, não admitindo interpretação extensiva. Dessa forma, não pode ser ampliada a causa de extinção da punibilidade prevista no § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03, que limita a incidência do mencionado dispositivo legal aos infratores das normas previstas nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal e arts. 1º e 2º, da Lei nº 8.137/90. A esse respeito, confira-se os julgados cujas ementas seguem abaixo transcritas, e que entendo aplicáveis à hipótese dos autos: PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO CRIMINAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ARTIGO 18, § 1º, LEI N. 10.522/2002. TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.8/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF PERDIMENTO DO BEM. PAGAMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE ANALOGIA. LEI N. 10.684/2003, ART. 9º. 1. É inaplicável o princípio da insignificância na hipótese de crime de descaminho quando o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas for superior ao limite estabelecido para a extinção dos créditos fiscais (artigo 18, § 1º da Lei n. 10.522/2002). 2. A pena administrativa de perdimento, e tampouco a mera apreensão de mercadorias, não tem aptidão para ensejar a extinção da punibilidade penal, ao fundamento de que equivale ao pagamento do tributo. 3. Recurso criminal provido (grifou-se). (RCCR 2006.34.00.024161-3/DF, Relator Desembargador Federal Mário César Ribeiro, 4ª Turma, publicado no e-DJF1 de 10/07/2008, p. 173). PENAL. DESCAMINHO. ART. 334 DO CP. AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO PELA AUTORIDADE FAZENDÁRIA. PENA DE PERDIMENTO DA MERCADORIA. PRESUNÇÃO DE LIQUIDAÇÃO DE DÉBITOS. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ART. 9º, § 2º, DA LEI 10.684/03. NÃO APLICAÇÃO. 1. Havendo a demonstração da introdução de mercadoria estrangeira no território nacional, sem a cobertura do documento fiscal competente, temse por configurado o crime tipificado no art. 334 do Código Penal. 2. Não se presumem quitados os débitos tributários referentes ao delito de descaminho, para que seja declarada a extinção da punibilidade, quando houver decretação da perda da mercadoria no âmbito administrativo, pois o fato gerador do Imposto de Importação, qual seja, o desembaraço aduaneiro, inocorre em tais hipóteses. 3. Inaplicável a extinção da punibilidade ao delito de descaminho, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/03, porquanto não há previsão legal nesse sentido. O referido parágrafo é claro ao limitar a incidência do benefício apenas aos infratores dos arts. 168-A e 337-a do Decreto-Lei 2.848/40 (Código Penal), e arts. 1º e 2º, da Lei 8.137/90. 4. Recurso em sentido estrito provido (grifou-se). (TRF – 1ª Região, RCCR 2001.38.03.004586-0/MG, Relator Desembargador Federal Tourinho Neto, 3ª Turma, julgado por unanimidade em 09/04/2007, publicado no DJ de 20/04/2007, p. 23). Não bastasse, sob alegação de igualdade, açambarca situações jurídico-fáticas distintas, pois não só amplia as hipóteses de extinção da punibilidade, mas vai além, equiparando o perdimento ao pagamento do tributo, hipótese não contemplada no Código Tributário Nacional, que prevê no seu art. 97, incisos I e VI: Art. 97. Somente a lei pode estabelecer: I – a instituição de tributos, ou a sua extinção; ............................................................................................................... VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. Impende invocar, ainda, o art. 111 do CTN, que dispõe: TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO fls.9/9 RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2008.34.00.011167-0/DF Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; Portanto, não se admite interpretação extensiva quando se cuida de Lei excludente do crédito tributário. No mesmo sentido, o art. 141 do CTN: “O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias”. Admite a dação em pagamento apenas em bens imóveis, nas formas e condições legais, o que não é a hipótese dos autos. Portanto, certamente não guarda pertinência invocar o princípio da igualdade para conferir o mesmo tratamento a situações distintas e, por isso, não equiparadas pelo legislador. Por fim, nosso direito penal funda-se na proteção ao bem jurídico, que, como sobredito, são distintos, pois a conduta de quem não paga um imposto, não se iguala à daquele que pratica introdução de mercadoria estrangeira em nosso território, que, a depender da escala (como parece ser a hipótese) pode gerar grave ameaça aos comerciantes e empresários locais, com geração de desemprego e severo dano à indústria nacional em face das desigualdades na oferta ao consumidor. Assim, com base nos fundamentos acima expostos, tenho que a r. decisão recorrida não merece ser mantida. Diante disso, dou provimento ao presente recurso criminal para, recebendo a denúncia, determinar o prosseguimento da ação penal proposta em desfavor da ora recorrida, no âmbito do MM. Juízo Federal a quo. É o voto. ROSIMAYRE GONÇALVES DE CARVALHO Juíza Federal (Relatora Convocada) TRF 1ª REGIÃO/IMP.15-02-05 D:\582807145.doc Juíza Federal Rosimayre Gonçalves