EDUCAÇÃO FEMININA NO SUL DE GOIÁS

Propaganda
EDUCAÇÃO FEMININA NO SUL DE GOIÁS (1939-1968)
Fabiana Aparecida de Andrade97
Resumo: A presente pesquisa tem como objeto de estudo a educação feminina no âmbito da
Escola Normal Dr. Hermenegildo Lopes de Morais, conhecida como “Colégios das Freiras”,
fundado na cidade de Morrinhos, sul de Goiás, pela Congregação das Agostinianas
Missionárias. Para pensar a educação feminina no âmbito dessa instituição adota-se como
recorte temporal o período de 1939 a 1968, que corresponde ao início e término da ação das
freiras Agostinianas Missionárias à frente dessa instituição educativa. Aos colégios femininos,
destinados a uma formação refinada, marcada por valores cristãos católicos, hábitos e práticas
com vistas à formação da esposa, mãe e professora se atribuía a responsabilidade quanto à
chamada “boa formação”. Em Goiás, assim como em outros estados, várias congregações
atuaram no campo educacional, dentre elas, as Agostinianas Missionárias. Congregação
fundada na Espanha em 1890, as Agostinianas Missionárias vieram para o Brasil,
especificamente Catalão-GO em 1921, com a finalidade de assumir a educação de crianças e
jovens, espalhando-se por outras regiões posteriormente. O artigo foi dividido em três partes:
a primeira trata da História da Educação em Morrinhos, pois considero necessário
compreender o contexto histórico no qual está inserido o objeto. Na segunda parte busca-se
entender um pouco do carisma e as ações educacionais da Congregação Agostiniana, e a
terceira parte trata-se de uma reflexão teórica sobre a educação feminina. A pesquisa
caracteriza-se como do tipo documental e se orienta sob a perspectiva da Nova História
Cultural.
Palavras-chave: Educação Feminina; Escola Confessional Católica; História da Educação
em Goiás; Escola Normal.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa busca compreender como se deu a educação feminina na Escola
Normal Dr. Hermenegildo Lopes de Morais, Colégio das Freiras, em Morrinhos, no período
de 1939-1968, sob a administração da ordem Agostiniana. Para pensar a educação feminina
no âmbito dessa instituição adota-se como recorte temporal o período de 1939 a 1968, que
corresponde ao início e término da ação das freiras Agostinianas Missionárias à frente dessa
97Graduada em História, mestranda em Educação- UFG, regional Catalão. Bolsista da
Capes/DS. E-mail: [email protected].
178
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
instituição educativa. Parte-se do pressuposto de que a Igreja Católica ocupou lugar destacado
no processo educacional no país, principalmente na educação escolar das mulheres.
A metodologia utilizada nessa pesquisa se caracteriza como uma pesquisa documental e se
orienta a partir das contribuições teóricas de Le Goff (1992), Mogarro (2005) e Cellard
(2008). Essa investigação se debruça sobre a documentação escolar da antiga Escola Normal
Senador Hermenegildo Lopes de Morais, de Morrinhos, com vistas a contribuir com a escrita
da história da educação feminina católica em Goiás.
Considerando o que nos ensina Le Goff (1992), que fatos e documentos não falam por si
mesmos, que se faz necessário que os pesquisadores os interpretem desvelando sua essência,
que eles são produzidos num dado contexto, que precisam ser interrogados em sua
concretude, destaco que, nos documentos de arquivos, busca-se compreender o que foi
silenciado, selecionado para ser dito, esquecido. Enfim, trabalho com o princípio de que os
arquivos são produtos da sociedade, conforme relações de força em cada situação
documentada.
Le Goff (1992) entende que a história, a memória coletiva e a sua forma científica,
caracteriza-se em dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. Segundo o autor,
o que sobrevive do passado é a escolha realizada pelas forças que atuam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade, dedicadas por aqueles que se empenham na ciência do
passado e do tempo que passa; os historiadores.
Nesses termos, defende que o historiador tem a habilidade de utilizar seu mel, na falta de
flores habituais. Desse modo, depreende-se que a palavra documento tem um sentido mais
amplo, pode ser documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, imagem ou de qualquer
outra maneira.
O artigo foi dividido em três partes: a primeira trata da História da Educação em Morrinhos,
pois considero necessário compreender o contexto histórico no qual está inserido o objeto. Na
segunda parte busca-se entender um pouco do carisma e as ações educacionais da
Congregação Agostiniana, e a terceira parte trata-se de uma reflexão teórica sobre a educação
feminina. Todos esses elementos, apontados nesse artigo, julgo necessário para análise do
objeto de pesquisa.
COMPREENDENDO A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DE MORRINHOS.
179
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
Situada no sul de Goiás, a cidade de Morrinhos é conhecida por sua forte influência política e
econômica ao longo da Primeira República. De acordo com Alves (2007), no âmbito
educacional, a primeira escola do município surgiu em 1846, uma escola de instrução
primária para meninos, que o governo da província criou na então Freguesia de Nossa
Senhora do Carmo de Morrinhos. Esta escola passou por várias dificuldades, não havia lugar
específico para as aulas acontecerem e o professor alugava um imóvel com o dinheiro que
recebia do governo provincial. Essa escola durante todo século XVIII destinou-se à formação
de indivíduos vinculados aos negócios e assuntos da cidade, e o restante da população ficou
sem instrução. Apenas no século no XIX, nessa escola se adotou a prática do acolhimento de
habitantes das várias camadas sociais, com intuito de proliferar novos hábitos e valores.
Alves (2007) afirma que nesse mesmo período o Cel. Hermenegildo Lopes de Moraes
ofereceu uma casa de sua propriedade para nela funcionar uma escola de ambos os sexos.
Para autora, essa ação do Cel. Hermenegildo foi bem vista pelos habitantes da cidade, que
inclusive o nomeou benemérito da cidade. Evidentemente, tinha intenções políticas por detrás
dessa ação.
Em 1883, a professora Roza Amélia, inaugurou uma escola de instrução primária para o sexo
feminino. Desta forma, a cidade passou a contar com duas escolas isoladas98. No decorrer do
século XX, Morrinhos demograficamente expandiu, tornando-se uma das maiores cidade do
estado. A explicação para o crescimento seria o desenvolvimento da agricultura e pecuária,
segundo dados estatísticos levantados por Alves (2007).
Nesse período, a instrução primária pública passava por intensas dificuldades. Como
esclarece Alves (2007), em 1900, o Intendente Municipal encaminhou ofício ao Presidente do
Estado descrevendo as dificuldades do município e solicitando que essa esfera do poder
assumisse as escolas. Contudo, essa reivindicação não foi de imediato atendida, somente em
1919 as escolas isoladas passaram para a responsabilidade do governo estadual.
Essa situação só veio a melhorar a partir de 1920, com a expansão da economia e a
consolidação de um grupo político forte. Nesse processo, a instrução primária também ganhou
destaque a ponto de ser um diferencial da cidade. O governo municipal teve condições de
98 De acordo com Veiga e Galvão (2012, p.480) as escolas isoladas, de maneira geral, foi um
sistema de instrução pública em vigor durante o século XIX e também durante parte do século
seguinte, composto por aulas avulsas, ministradas por mestre-escola em suas próprias
residências ou em salas alugadas. Posteriormente, passou a ser considerado um modelo
ineficaz e insatisfatório, na medida em que parecia não contribuir para promover a instrução e
noções de civilização ao povo, tão caras para consolidar o ideal de construção de uma unidade
nacional e para formar a população com o intuito de criar um conjunto de cidadãos.
180
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
manter as isoladas existentes, apesar do histórico conturbado, especialmente no diz respeito
aos problemas enfrentados no cotidiano.
Alves (2007, p. 151) detalha o funcionamento das escolas isoladas de Morrinhos, situando a
frequência nos seguintes termos:
Em 1888, funcionavam no município duas escolas públicas: uma do sexo masculino,
com trinta alunos matriculados com idade entre sete e vinte anos; outra do sexo
feminino com 65 alunos matriculados, sendo 56 alunas e nove alunos. Na escola
feminina havia uma frequência maior de alunas, com idade entre oito e quinze anos,
mas também comportava meninos de seis e nove anos.
Alves (2007) destaca, também, que no decorrer do século XX, o município passou por uma
transformação mais significativa nas práticas pedagógicas e no acolhimento das crianças a
partir da criação do Grupo Escolar Coronel Pedro Nunes, em 1924. Essa instituição iniciou
com três turmas e gradativamente foi expandindo o números de alunos e funcionários. O
primeiro local de funcionamento do Grupo Escolar Coronel Pedro Nunes foi à Rua Major
Limírio, depois passou a Avenida Cel. Pedro Nunes, onde atualmente funciona o Colégio
Estadual Cel. Pedro Nunes.
Para atender a crescente demanda por vagas nas escolas isoladas e no Grupo Escolar, o
município de Morrinhos inaugurou em 1929, de modo informal, em um primeiro momento,
uma escola de formação de professores, através da ação da professora Maria Barbosa Reis,
que contou com o apoio político de seu pai, Cel. Fernando Barbosa. Segundo Reis (1979,
p.129), “diante do aumento da procura e do apoio político foram necessários ampliar o
número de professores e também aperfeiçoar os profissionais já existentes”, assim fundou-se a
Escola Normal de Morrinhos.
Em autobiografia, publicada em 1979, intitulada “Meio Século de Magistério”, Maria Barbosa
Reis retrata sua trajetória profissional. Relata que, como pertencia a uma família de políticos
da região, não teve dificuldades para conseguir recursos e materiais pedagógicos para a
manutenção de uma escola, até que o governo regularizasse a situação da mesma. Na leitura
do livro percebe-se o quanto a influência de políticos definia o andamento da educação na
cidade, e também que, se não fosse pela iniciativa de mulheres pertencentes às famílias de
políticos, estes projetos, como o Grupo Escolar e a manutenção das escolas isoladas, talvez
não tivessem sido concretizados.
Conforme Silva (1995), em janeiro de 1931 foi realizada a primeira reunião da diretoria e
corpo docente da Escola Complementar e Normal de Morrinhos. A Escola Normal de
181
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
Morrinhos funcionou no prédio que mais tarde abrigou o antigo Cine Hollywood, na Rua do
Comércio, hoje Barão do Rio Branco.
A Escola Normal de Morrinhos era pública, mista, gratuita. Ela teve sua história marcada por
problemas relativos à coeducação, ou seja, educação para ambos os sexos, além de
dificuldades com o corpo docente: os professores faltavam constantemente, frequentes troca
de docentes, consequentemente, um forte absenteísmo dos discentes. Em 1938 a Escola
Normal de Morrinhos realizou seu último exame de admissão, por causa da grande
dificuldade de se manter aberta.
Em 1937, Maria Amabini de Morais, viúva do Senador Hermenegildo Lopes de Morais 99,
doou à Mitra da Arquidiocese de Goiás uma casa e um terreno para fundar uma Escola
Doméstica100. Para direção dessa instituição de caridade, o arcebispo Dom Emanuel Gomes de
Oliveira convidou as freiras Agostinianas101. Essa casa começou a funcionar em março desse
ano.
Com o intuito de sustentar a Escola Doméstica, obra de beneficência, e difundir a instrução,
as irmãs criaram, também, um Curso Primário e um Jardim da Infância. Logo após o
encerramento das atividades da Escola Normal de Morrinhos em 1939, a escola das freiras
passou a oferecer, também, o Curso Normal, como escola só de meninas, sob a denominação
Escola Normal Dr. Hermenegildo Lopes de Morais.
Assim, a Escola Normal Senador Hermenegildo Lopes de Morais, popularmente conhecida
como Colégio das Freiras, ficou com a responsabilidade de educar meninas, as quais se
99 O Senador Hermenegildo Lopes de Morais era filho do Cel. Hermenegildo Lopes de Morais, nascido na
Cidade de Goiás, passou parte da sua vida em Santa Rita do Paranaíba (Itumbiara) até instalar-se em Morrinhos
no ano 1870. Enriqueceu-se por conta da Guerra do Paraguai, fornecendo sal para o exército, tornando-se o
maior comerciante atacadista do estado de Goiás. Acumulou mais de trinta fazendas, além de emprestar dinheiro
para o sudeste goiano e para o Triângulo Mineiro. Segundo Fonseca (1998), o Cel. Hermenegildo teve grande
destaque não somente pelo poder econômico, como também pela atuação na política nas esferas estadual e
federal. De acordo com autora, Morrinhos tinha um coronel caracterizado, possuía uma das maiores fortunas de
Goiás, lembrando que na época em termos de economia a situação do estado era crítica.
100Escola Doméstica tinha como pretensão educar mulheres pobres para projetar boas mães
de família.
101Inicialmente, o arcebispo Dom Emanuel Gomes de Oliveira convidou as Franciscanas
para administrarem a instituição, porém estas não quiseram ficar na cidade.
182
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
tornariam boas mães, boas esposas, disseminadoras dos bons costumes pautados na moral
católica.
A MISSÃO PEDAGÓGICA DAS IRMÃS AGOSTINIANAS.
Com base nos dados detalhados no livro de Maria Glória Sampaio e Eriziane Rosa, publicado
em 2006, intitulado “História que se torna vida: Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus”, que
trata da trajetória da Congregação Agostiniana no Brasil, pode-se perceber o sentido da
missão pedagógica da Congregação.
A Congregação das Agostinianas Missionárias é um ramo especificamente feminino da ordem
de Santo Agostinho. Tem sua filosofia pautada no pensamento de Santo Agostinho. Em busca
do “amor total, da verdade, numa total disponibilidade ao chamado do Espírito, para seguir a
Cristo por meio da Educação e Promoção Humana”. (SAMPAIO e ROSA, 2006, p. 18). Seu
carisma é constituído em função da missão, através da ação educativa, segue com fidelidade
às exigências da religião, de acordo com cada época.
A Congregação foi fundada na Espanha em 1890. As Agostinianas Missionárias vieram para o
Brasil, especificamente Catalão-GO, em 1921, com a finalidade de assumir a educação de
crianças e jovens, espalhando-se por outras regiões posteriormente. Segundo Silva (1995), em
1939, a Congregação se instaurou em Morrinhos. De acordo com a autora: “a vinda das Irmãs
Agostinianas para Morrinhos foi benéfica para a cidade e inaugurou uma nova época”.
(SILVA, 1995, p. 73)
A presença das Agostinianas na cidade de Morrinhos constitui um capítulo importante da ação
da Igreja Católica na instrução goiana. Estas acolheram o chamado do arcebispo de Goiás,
assumiram a direção da Escola Doméstica, criaram um Curso Primário, um Jardim da
Infância, por fim, um Curso Normal. Segundo suas palavras: “guiadas pelo ardente zelo da
religião e instrução” (ESTATUTO, 1939), se dedicaram a formar professoras por três décadas.
Considerando a importância da ação educacional das Agostinianas no estado de Goiás,
em especial em Morrinhos, este projeto de pesquisa, que se insere no campo da história da
educação, se propõe pensar o trabalho desenvolvido pelas Agostinianas nesse município. A
pesquisa tem como recorte temporal o período compreendido entre 1939-1968. O ano de 1939
é um marco porque data a criação do Curso Normal da Escola Normal Dr. Hermenegildo
183
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
Lopes de Morais, destinado à formação feminina. Já o ano de 1968 refere-se ao encerramento
das atividades das Agostinianas na cidade de Morrinhos.
AS CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE GÊNEROS E HISTÓRIA DA IGREJA
PARA A PESQUISA.
Para compreender como e por que a educação de meninas era diferenciada faz-se necessário,
nessa pesquisa, discutir o conceito de gênero. Historicamente a mulher tem sido representada
com determinadas características construídas socialmente em contextos que produzem e
reproduzem múltiplas relações de poder. Entende-se que ser mulher é ter o destino traçado
para a maternidade, o professorado e vários outros campos que exigem o instinto maternal.
Mas, afinal, o que é ser mulher? Como é ser mulher? O que define um sujeito do sexo
feminino como mulher? O sexo define o que a pessoa é? Como são construídos os
padrões/referenciais do que é ser mulher? Ora, parece-nos necessário compreender como estes
discursos são construídos. Nesse sentido, são instigantes as pistas propostas por Swain (2000,
p. 48-49):
No cadinho das práticas sociais o “eu” se forja em peles, delimitando corpos
normatizados, identidades contidas em papéis definidores: mulher e homem, assim
fomos criados, por uma voz tão ilusória quanto real em seus efeitos de significação,
cujos desígnios se materializam nos contornos do humano. Estes traços, desenhados
por valores históricos, transitórios, naturalizam-se na repetição e reaparecem
fundamentados em sua própria afirmação: as representações da “verdadeira mulher”
e do “verdadeiro homem” atualizam-se no murmúrio do discurso social. A noção de
historicidade remete aos inumeráveis perfis de formações sociais dispersas no tempo
e no espaço, cujas práticas e suas significações não podem ser senão singulares.
Desta forma, quando os feminismos colocam em questão o “natural” e a “natureza”
humana, como sendo as bases imutáveis do ser, revelam a multiplicidade do social e
as possibilidades infinitas de sentidos atribuídos às práticas, às culturas e aos seres.
A história mostra assim seu caráter de construção, resultado de uma operação de
racionalização e redução do social, de apagamento da pluralidade e da diferença.
A partir das reflexões de Swain podemos pensar as identidades femininas e masculinas
enquanto representações historicamente construídas no contexto em que se inserem. Logo,
não se nasce mulher, se aprende a ser. Torna-se mulher a partir de uma série de dispositivos de
disciplina e de controle do corpo, conforme Foucault (1988). Corpo este, que para a mulher,
acaba se tornando uma imposição da identidade a partir do uso que se faz dele.
184
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
Para entender essa questão vale retomar como historicamente se forjaram certas
representações da condição feminina, especificamente a partir do século XVIII. Tal
direcionamento nos obriga problematizar a noção de representação. Nesse sentido, tomo de
empréstimo a instigante concepção de Crampe-Casnabet (1991, p.369):
[...] uma representação significa o que está presente no espírito; esta
presença pode ser mais ou menos adequada à realidade da coisa ou da
pessoa representada, pode ir até à deformação figurada dessa realidade
e confundir-se, então, com uma produção puramente imaginária,
fantasmagórica. O ser representado é sempre segundo, mediatizado
relativamente ao sujeito que é a sede da representação.
Então podemos perguntar de que mulher se falou no século das luzes? A representação
é nitidamente marcada pela expressão “metade do gênero humano”, que expressa a idéia de
que “a metade feminina existe em relação à metade masculina que lhe confere fundamento e
permite a sua definição”. (CRAMPE-CASNABET, 1991, p.372)
Assim, o século das luzes produziu um discurso que evidenciava a diferença corporal
feminina e apresentava o sexo feminino de maneira ambígua: ora sublinhando a beleza, o
encanto e a atração que a mulher exerce sobre o homem, ora insistindo na sua fraqueza,
confundindo qualidades físicas e morais a fim de legitimar um discurso sobre a inferioridade
feminina. Inferioridade que se estendia naturalmente a todo seu ser, especialmente às
faculdades intelectuais.
Nesse contexto, as propostas educativas que surgiram enfatizaram o caráter prático da
formação feminina acentuando a desigualdade dos papéis entre os sexos. Desse modo, à
mulher se conferia papéis sociais de esposa e mãe enquanto determinação natural, que por
extensão lhes conferia o direito de serem consideradas cidadãs.
O século XIX marca o nascimento do feminismo, que é, segundo Fraisse e Perrot
(1991, p.9), “palavra emblemática que tanto designa importantes mudanças estruturais
(trabalho assalariado, autonomia do individuo civil, direito à instrução) como o aparecimento
colectivo das mulheres na cena política”. O feminismo nasceu na França apoiado na idéia de
igualdade dos indivíduos. Contudo, pode-se afirmar que as representações de pureza,
docilidade, moral cristã, maternidade, patriotismo e outros tantos predicados continuaram
vinculados ao sexo feminino ao longo desse século.
185
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
No Brasil, essas representações foram veiculadas através do ideário positivista que
impregnou a mentalidade brasileira a partir das primeiras décadas do século XX. O ideal de
um perfil feminino centrado na docilidade, desprendimento, bondade, que deveria se incumbir
das tarefas de esposa e mãe consolidou-se. Assim cabe indagar: qual educação seria
recomendada à mulher?
Instituições como o Estado, a família, a escola, a igreja, entre outras, acabaram
compondo discursos que padronizaram modelos aceitáveis como polidos, corretos, civilizados
em relação ao comportamento de mulheres e homens. Problematizar a construção e
legitimação destas representações do feminino requer que pensemos com Louro (2001, p.25):
Homens e mulheres adultos contam como determinados comportamentos ou modos
de ser parecem ter sido “gravados” em suas histórias pessoais. Para que se efetivem
essas marcas, um investimento significativo é posto em ação: família, escola, mídia,
igreja, lei participam desta produção. Todas essas instâncias realizam uma
pedagogia, fazem um investimento que, frequentemente, aparece de forma
articulada, reiterando identidades e práticas hegemônicas enquanto subordina, nega
ou recusa outras identidades e práticas.
Para autora, as instituições promovem a construção de identidades sociais, bem como os
códigos de conduta aceitáveis, frutos, portanto, de negociações entre sujeito/sociedade.
Segundo ela, tendemos a identificar a sexualidade como algo inerente ao ser humano. Todavia
a “sexualidade envolve rituais, linguagens, representações, símbolos. Estes são processos
culturais e plurais”. (LOURO, 2001, p.11) Para essa autora, não há nada de “exclusivamente
natural nesse terreno”. Numa dimensão histórica observa que “as inscrições de gêneros –
feminino e masculino são feitas no contexto de uma determinada cultura. Logo, as identidades
de gênero são definidas pelas relações sociais e moldadas pelas redes de poder de uma
sociedade”. (LOURO, 2001, p.11)
Considerando essas discussões e o fato de que a educação foi destacada como elemento
importante na modernização do país a partir dos anos 1930, expresso inclusive na crítica ao
abandono educacional que vivia a maioria dos estados no que tange à educação de meninas, o
presente trabalho se coloca a tarefa de pensar a história da educação feminina em Goiás a
partir do estudo de uma instituição de ensino confessional católico, buscando entender como
ali se instituiu normas e práticas que legitimaram uma dada concepção de educação feminina.
O objetivo é demonstrar que as formas de agir e de pensar presentes no seio da Escola
Normal Senador Hermenegildo Lopes de Morais e os dispositivos pedagógicos encarregados
para facilitar a aplicação de normas e práticas eram mediados por valores, linguagens,
186
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
códigos, hábitos específicos da religião católica, bem como por valores cívicos e morais
inerentes ao regime republicano brasileiro, com o propósito de instituir um determinado
modelo de formação feminina.
Gonçalves (2004) afirma que a correlação igreja e educação é uma questão importante
no campo dos estudos da história da educação no ocidente. Afinal, a Igreja Católica soube ao
longo dos tempos, entre altos e baixos, criar mecanismo de resistência e de adaptação às
mudanças da sociedade.
Dessa maneira, segundo a autora, é fundamental compreender o movimento
Ultramontano102, o qual surgiu para salvaguardar o poder da Igreja Católica, desencadeandose uma série de mudanças internas na Igreja em relação com os fiéis. Na luta contra o
liberalismo, o conflito ideológico enfrentados no século XIX necessitou-se da reafirmação da
identidade da Igreja. Portanto,
[...] o Concílio Vaticano I buscou sob uma nova base social, político e econômica
implementar o projeto trindentino, nesse sentido, é que se afirma que Trento 103
inaugura a possibilidade da Igreja romanizada, ou ultramontana. (GONÇALVES,
2004, p. 70-71)
Gonçalves (2004) afirma que o movimento da Romanização, que significou a adesão
aos princípios doutrinários que conferiam poderes plenos ao papa em qualquer nacionalidade,
tinha como propósito recatolizar a sociedade, valorando princípios doutrinários. Nesse
processo, a presença de ordens e congregações religiosas foi fundamental para Igreja. Cabe
aqui explicitar como aconteceu, brevemente, a expansão das ordens e congregações religiosas
no Brasil, dando ênfase as de caráter feminino.
Segundo Nunes (2013), no fim do século XIX, as freiras já se encarregavam de
diversas tarefas essenciais para a sociedade, principalmente no campo da educação. Porém,
102O projeto Ultramontano refere-se à pretensão de conferir à Cúria Pontifícia, controle absoluto da esfera
religiosa nos diversos países. Trata-se de um movimento restaurador católico que buscava manter o centralismo
romano resultante do Concílio de Trento. Ultramontano diz respeito à sede em Roma, situada nas montanhas, ou
seja, ultramontes. (AZZI apud GONÇALVES, 2004, p. 71).
103O concílio de Trento ocorreu em três períodos: 1°- 1545-1547; 2°- 1551-1552; 3°- 15621563, passando pelos pontificados de Paulo III, Júlio III e Pio IV (GONÇALVES, 2004, p.
68).
187
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
essa conquista se constituiu num caminho árduo e longo. No período Colonial e Império as
congregações religiosas não tinham espaço e nem recurso financeiro para se instalar no
território brasileiro.
Nunes (2013) descreve que nesse momento alguns bispos se opuseram a colocar
“ordem” na Igreja do Brasil. Na Primeira República, contudo, com a separação legal da Igreja
e o Estado, o processo de criação de institucionais começou a ganhar espaço. Tinha início uma
ampla reforma da Igreja, a “clericalização” do catolicismo no Brasil.
Baseada nas normas do Concílio de Trento, como ressalta Nunes (2013), a ação
religiosa passava a pautar-se nos sacramentos, sendo o padre figura importante. No âmbito
dessa reforma privilegiaram-se as mulheres por ser um público dócil, capaz de estabelecer
novas normas religiosas. Desde então, desenvolveram-se projetos educacionais voltados para
a população feminina católica, incorporando o projeto reformador: “Criam-se as associações
femininas de piedade, desenvolvem-se movimentos religiosos nos quais o concurso das
mulheres é fundamental”. (NUNES, 2013, p. 491).
Considerações finais
Em síntese, pode-se afirmar, então, que foi a partir do século XIX, com as iniciativas
católicas no campo educacional, que as mulheres, mesmo que nos moldes do sistema
patriarcal, começaram a ganhar terreno no espaço público. Como pontua Nunes (2013) os
efeitos para as mulheres foram a criação de uma imensa rede de escolas católicas, sob a
administração de religiosas estrangeiras. Os séculos XIX e XX vivenciaram o crescimento
bastante rápido das chamadas “escolas para meninas”, onde as religiosas foram elementos
fundamentais para a história da educação brasileira.
Avalio que a ação da religião católica por meio da educação, no caso do Brasil, precisa
ser mais bem estudada. Nesse sentido, citamos os estudos sobre a ação das congregações e
ordens católicas, assim como de outras igrejas. Afinal, essas iniciativas marcaram a sociedade
brasileira ao longo de todo o século XX, nas diversas regiões do país, bem como a educação
feminina.
188
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
Esta pesquisa trará contribuição para a história da educação morrinhense e de Goiás,
visto que reconstrói a memória de uma instituição, dirigida por uma congregação religiosa
que deixou marcas na educação de mulheres, que tiveram seus filhos, maridos e alunos,
disseminando uma cultura com marcas do catolicismo.
Referências:
ALVES, Miriam Fábia. Política e Escolarização em Goiás - Morrinhos na Primeira
República. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Disponível em:
<http://ebookbrowse.com/miriam-fabia-alves-tese-ufmg-pdf-d104495822>. Acesso em
05/11/2012.
AMORIM, Eron Menezes de. Morrinhos: Coronelismo e modernização 1889-1930.
Dissertação de mestrado. Goiânia: UFG, 1998. Disponível em: <http://poshistoria.historia.ufg.br/uploads/113/original_AMORIM__Eron_Meneses_de._1998.pdf>.
Acesso em29/09/2011.
CELLARD, André. A análise documental. In: POUPART, J. A pesquisa qualitativa: enfoques
espistemológicos e metodológicos. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
CRAMPE-CASNABET, M. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”. In:
DUBY, G. e PERROT, M. (orgs) História das Mulheres no Ocidente: do Renascimento à
Idade Moderna. Vol. 3, Porto: Edições Afrontamento, 1991.
FONTES, Zilda Diniz. Morrinhos: de capela a cidade dos pomares. Goiânia: Oriente 1980.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1988.
FRAISSE, G. “Da destinação ao destino. História filosófica da diferença entre os sexos”. In:
DUBY, G. e PERROT, M. (coord.). História das Mulheres no Ocidente. Vol. 4: O Século
XIX. Porto: Edições Afrontamento, 1991.
GONÇALVES, Ana Maria. Educação Secundária Feminina em Goiás: Intramuros de uma
Escola Católica (Colégio Sant’ Anna- 1915/1937). Tese de doutorado- Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara, São Paulo, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes. (org) O
corpo educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 09-34.
189
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
MOGARRO. Maria João. Arquivos e Educação: a construção da memória educativa. Revista
brasileira de história da educação, n°10 jul./dez,2005. Disponível em:
http://www.rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/article/view/169, acesso: 15/07/2014.
OLIVEIRA, Hamilton Afonso. A construção da riqueza no Sul de Goiás, 1835-1910. Tese de
Doutorado Universidade Estadual Paulista “Julio Mesquita Filho”, 2006.
REIS, Maria Barbosa. Meio Século de Magistério. Goiânia: Oriente, 1979.
SAMPAIO, M. G. R. ROSA, E.M.S. História que se torna vida: Colégio Nossa Senhora Mãe
de Deus. Gráfica São João, 2006.
SILVA, Nilza Diniz. Escola: Célula importante da Educação. Goiânia: Kelps, 1995.
SWAIN, Tânia Navarro. A invenção do corpo feminino ou “A hora e a vez do nomadismo
identitário?”. Revista Textos de História. vol. 8, n.2, 2000.
190
III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015
Download