Um estudo sobre funções contínuas que não são - famat

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Um estudo sobre funções contínuas que não são diferenciáveis
em nenhum ponto
Maria Angélica Araújo
Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Matemática
Graduanda em Matemática - Programa de Educação Tutorial
mariangelica. petmat@ yahoo. com. br
Vinícius Vieira Fávaro
Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Matemática
Professor Adjunto I
favaro@ famat. ufu. br
Resumo: Neste trabalho construímos um exemplo de uma função contínua f : R → R que não é diferenciável
em nenhum ponto. Para a construção de tal exemplo, introduzimos alguns conceitos e resultados básicos da
Análise Matemática, e aplicamos esses resultados na construção de tal exemplo. Além disso, fizemos um breve
apanhado histórico do surgimento do problema de encontrar funções contínuas que não são diferenciáveis em
nenhum ponto.
1 Introdução
Com o surgimento do Cálculo Diferencial, mais precisamente, o conceito de continuidade e diferenciabilidade de funções reais a valores reais, vários problemas naturais aparecem. Para motivar o
propósito deste trabalho, vamos estudar alguns problemas:
• Toda função contínua é diferenciável?
Não, por exemplo a função f (x) = |x|, ∀x ∈ R, não é derivável em p = 0, entretanto, esta função
é contínua em p = 0, o que nos mostra que uma função pode ser contínua em um ponto sem ser
derivável neste ponto. Desse modo, continuidade não implica em diferenciabilidade.
Note que tal função não é diferenciável em 0, pois os limites laterais abaixo são diferentes:
lim
x→ 0+
lim
x→
0−
f (x) − f (0)
|x| − |0|
=
=1
x−0
x−0
f (x) − f (0)
|x| − |0|
=
= −1
x−0
x−0
Na figura 1.1 temos o gráfico da função f (x) = |x|. Note que o gráfico de f não possui reta
tangente no ponto (0, 0).
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Figura 1.1: Exemplo de uma função contínua mas não diferenciável
• Existe alguma função que não é diferenciável em nenhum ponto?
Sim, a função de Dirichlet é um exemplo de função que não é diferenciável em nenhum ponto.
A mesma é dada por
f (x) =
1, se x ∈ Q
0, se x ∈ (R − Q)
Vamos mostrar que f não é contínua em nenhum ponto a ∈ R.
Primeiramente, seja a ∈ R − Q.
Tome ε =
1
2
> 0. Então para cada δ > 0, como Q é denso em R, existe xδ ∈ Q, tal que
|xδ − a| < δ, mas |f (xδ ) − f (a)| = |1 − 0| = 1 >
1
= ε.
2
Portanto, f não é contínua em a.
O caso a ∈ Q, decorre de maneira análoga usando a densidade de R − Q em R.
Portanto f não é contínua em nenhum ponto de R. Como toda função contínua é diferenciável,
segue que f não é diferenciável em nenhum ponto de R.
Note que, nesse exemplo, a função não é diferenciável em nenhum ponto, pois não é contínua
em nenhum ponto. Isso motiva a próxima pergunta:
• Existe alguma função contínua f que não seja diferenciável em infinitos pontos?
Sim, basta estender por periodicidade a função f (x) = |x| a toda reta, conforme figura 1.2
Agora, trataremos do problema central deste trabalho:
• Existe uma função f contínua que não seja diferenciável em todos os pontos de R?
É fácil percebermos que continuidade não implica em diferenciabilidade; que existem funções que
não são diferenciáveis em nenhum ponto; e funções contínuas f que não são diferenciáveis em infinitos
pontos; mas nossa intuição pode falhar quando nos perguntamos se existe alguma função contínua que
não é diferenciável em nenhum ponto de seu domínio.
Introdução
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Figura 1.2: Exemplo de uma função não diferenciável em infinitos pontos
De fato, no início do século XIX, muitos matemáticos acreditavam que as funções contínuas tinham
derivadas num número “significativo” de pontos e alguns matemáticos tentaram dar justificativas teóricas deste fato, como por exemplo A. M. Àmpere em um trabalho publicado em 1806. Mas até o
início do século XIX os principais conceitos do Cálculo ainda não tinham uma fundamentação lógica
adequada e o trabalho de Àmpere falhava nisso, dadas as limitações das definições de seu tempo.
Em 1872, K. Weierstrass publicou um trabalho que “chocou” a comunidade matemática provando que
esta conjectura era falsa. Mais precisamente, ele construiu um exemplo de uma função contínua que
não era diferenciável em nenhum ponto. A função em questão, foi definida por
w(x) =
∞
X
ak cos(bk πx),
k=0
onde 0 < a < 1 e b é um número ímpar tal que ab > 1 + 3π
2 . Este não foi o primeiro exemplo de uma
função com tais propriedades; com o tempo, foram encontrados exemplos datados de antes do exemplo
de Weierstrass, como os do matemático tcheco B. Bolzano, em torno de 1830 e do matemático suíço
C. Cellérier, em torno de 1860.
Após o exemplo de Weierstrass, vários outros matemáticos deram suas contribuições construindo
exemplos de funções contínuas que não são diferenciáveis em nenhum ponto.
Neste trabalho apresentaremos o exemplo devido a van der Waerden, mas para isso precisaremos de
alguns resultados básicos da Análise Matemática.
2 Definições e resultados preparatórios
Definição 2.1. Seja X ⊂ R. Uma sequência de funções fn : X → R é uma correspondência que
associa a cada número natural n uma função definida de X em R. Dizemos que a sequência de funções
converge simplesmente (ou pontualmente) para a função f : X → R se para cada x ∈ R, a sequência
de números (fn (x)) = (f1 (x), f2 (x), . . . , fn (x), . . .) converge para o número f (x). Em outras palavras,
(fn ) converge para f simplesmente se dado x ∈ X e ε > 0, ∃n0 ∈ N tal que
∀n > n0 ⇒ |fn (x) − f (x)| < ε.
Notação: fn → f simplesmente.
Definição 2.2. Dizemos que a sequência de funções fn : X → R converge uniformemente para uma
função f : X → R, se dado ε > 0, ∃n0 ∈ N tal que
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Definições e resultados preparatórios
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n > n0 ⇒ |fn (x) − f (x)| < ε, ∀x ∈ X.
u
Notação: fn → f
Definição 2.3. Uma série de funções é uma série do tipo
∞
X
fn (x) = f1 (x) + f2 (x) + · · · .
n=1
P
Dizemos que tal série converge pontualmente se para cada x ∈ X a série numérica fn (x) converge
(ou a sequência das somas parciais (sn (x))∞
n=1 , onde sn (x) = f1 (x) + · · · + fn (x), é convergente).
Definição 2.4. Dizemos que a convergência é uniforme, ou que a série de funções converge uniformemente se P
a sequência das somas parciais (sn ), onde sn (x) = f1 (x)+· · ·+fn (x), converge uniformemente.
Ou seja, ∞
n=1 fn (x) converge uniformemente em X para a soma f (x), se dado ε > 0, ∃n0 ∈ N tal que
∀n > n0 ⇒ |f (x) −
n
X
j=1
fn (x)| = |
∞
X
fj (x)| < ε, ∀x ∈ X.
j=n+1
Teorema 2.1 (Critério
de Cauchy para séries numéricas). Uma condição necessária e suficiente para
P
que uma série
an seja convergente é que dado qualquer ε > 0, exista n0 ∈ N tal que, para todo
inteiro positivo p,
n > n0 ⇒ |an+1 + an+2 + · · · + an+p | < ε
P
P
Demonstração: Primeiramente, suponha
an = S, com soma parcial Sn = nj=1 aj . Daí Sn
converge para S, donde segue que (Sn ) é uma sequência de Cauchy. Assim, seja ε > 0 e p ∈ N. Como
(Sn ) é de Cauchy, existe n0 ∈ N, tal que
m, n > n0 ⇒ |Sn − Sm | < ε.
Tome m = n + p, então
n > n0 ⇒ m = n + p > n > n0 ⇒ |an+1 + · · · + an+p | = |Sn+p − Sn | < ε
Contrariamente, considere a sequência das somas parciais Sn =
que ∀ε > 0, ∃n0 ∈ N tal que , ∀p ∈ N
Pn
j=1 aj .
Assim, segue da hipótese
n > n0 ⇒ |Sn − Sn+p | < ε
m, n > n0 , m > n ⇒ |Sn − Sm | < ε
Logo, (SnP
) é uma sequência de Cauchy, o que implica que (Sn ) é convergente.
Potanto,
an é convergente.
Apresentaremos agora dois resultados que serão usados na construção de nosso exemplo:
P
Teorema 2.2. Se uma série de funções contínuas
fn (x) converge uniformemente em um intervalo
para f (x), então f também é contínua.
Teorema 2.3 (Teste de Weierstrass). Seja fn : X → R uma sequência de funções e suponha
P que
existam constantes positivas
Mn é
P Mn , n ∈ N, tais que |fn (x)| 6 Mn , ∀x ∈ X e ∀n ∈ N. Se
convergente, então a série
fn (x) converge absolutamente e uniformemente em X.
Definições e resultados preparatórios
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Demonstração:
pois
Pelo teste da comparação, para cada x ∈ X, temos que
|fn (x)| 6 Mn , ∀x ∈ X, ∀n ∈ N e
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P
|fn (x)| converge,
Mn é convergente.
P
P
Portanto,
fn (x) converge absolutamente, ∀x ∈ X. Seja ε > 0. Como
Mn é convergente, segue do
Teorema 2.1 que existe n0 ∈ N tal que
∀m > n > n0 ⇒
P
m
X
Mj < ε.
j=n+1
Assim, ∀x ∈ X e ∀m > n > n0 temos
|fn+1 (x) + · · · + fm (x)| 6 |fn+1 (x)| + |fn+2 (x)| + · · · + |fm (x)|
m
X
6 Mn+1 + Mn+2 + · · · + Mn =
Mj < ε.
j=n+1
Portanto, segue do Critério de Cauchy para séries de funções que
P
fn (x) converge uniformemente.
Agora estamos aptos a construir uma função contínua que não é diferenciável em nenhum ponto.
3 A função de van der Waerden
Consideremos inicialmente a função f0 : R → R, dada por f0 (x) = {x}, onde {x} denota a distância
de x ao inteiro mais próximo. Por exemplo, f0 (9, 2) = 0, 2; f0 (−8) = 0; f0 (1, 83) = 0, 17.
Agora considere a função f1 (x) = f0 (10x), x ∈ R. Por exemplo f1 (5, 64) = a distância de 56, 4 a 56
que é 0, 4. Da mesma forma definimos f2 (x) como sendo a distância de 100x ao inteiro mais próximo,
ou seja, f2 (x) = f0 (100x). Generalizando, temos
fk (x) = f0 (10k x), x ∈ R e k = 0, 1, 2, . . .
As figuras 3.1, 3.2 e 3 representam os gráficos das funções f0 , f1 e f2 , respectivamente. Note que já
não é uma tarefa simples desenhar uma reta tangente ao gráfico de f2 .
A partir do gráfico de f0 , vemos que ela é periódica de período 1 (ou melhor, f0 (x+1) = f0 (x), ∀x ∈
R ), é contínua e além disso
1
|f0 (x)| 6 , ∀x ∈ R.
2
Definamos agora a seguinte função
F (x) =
∞
X
fk (x)
k=0
Como,
∞
X
fk (x)
k=0
10k
6
∞
X
k=0
10k
, x ∈ R.
(3.1)
∞
1
1X 1
=
2
2.10k
10k
k=0
1 P∞ 1
é uma série convergente, segue do Teste de Weierstrass que a série (3.1) é uniformemente
e
2 k=0 10k
convergente em R. Em particular, temos que F está bem definida.
Nosso objetivo é mostrarP
que F é contínua, mas não é derivável em nenhum ponto de R.
fk (x)
Como cada fk é contínua e ∞
k=0 10k converge uniformemente para F (x) em R, segue do Teorema
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A função de van der Waerden
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Figura 3.1: gráfico de f0
Figura 3.2: gráfico de f1
Figura 3.3: gráfico de f2
A função de van der Waerden
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2.2 que F é contínua em R. Portanto, nos resta mostrar que F não é diferenciável em nenhum ponto
de R.
Para isto, contruiremos uma sequência (xn )∞
n=1 tal que lim xn = a, mas não exista o limite
n→∞
F (xn ) − F (a)
.
n→∞
xn − a
lim
Para isto, suponha a = a0 , a1 a2 . . . an . . . , com n ∈ N e considere
xn = a0 , a1 a2 . . . an−1 bn an+1 . . .
onde bn = an + 1 se an 6= 4 ou 9 e bn = an − 1 se an = 4 ou an = 9.
Assim, xn − a = ±10−n . Por exemplo, se a = 0, 27451, temos
x1
x2
x3
x4
= 0, 37451
= 0, 28451
= 0, 27351
= 0, 27461
Para esses exemplos, temos
f0 (x3 ) − f0 (a) = −0, 001
f1 (x3 ) − f1 (a) = +0, 01
f2 (x3 ) − f2 (a) = −0, 1
f3 (x3 ) − f3 (a) = 0
fk (x3 ) − fk (a) = 0, k > 3
Generalizando, temos que para n ∈ N
fk (xn ) − fk (a) = ±10k−n , k = 0, 1, . . . , n − 1
fk (xn ) − fk (a) = 0, k > n
Assim,
∞
n−1
n−1
k=0
k=0
k=0
X
F (xn ) − F (a) X fk (xn ) − fk (a) X ±10k−n
=
=
=
±1.
xn − a
10k (xn − a)
10k (±10−n )
(a)
Logo, F (xxnn)−F
é um inteiro par, se n for par, ou é um inteiro ímpar se n for ímpar.
−a
Portanto, temos que
F (xn ) − F (a)
lim
n→∞
xn − a
não existe.
Então, F não é derivável em a, para todo a ∈ R, como queríamos demonstrar.
As figuras 3 e 3, representam os gráficos das somas parciais de F para n = 6, nos intervalos [0, 1]
e [0.49, 0.51], respectivamente. Esses gráficos dão uma noção de como o gráfico de F se comporta,
apesar de não ser possível construir o gráfico de tal função. Para somas parciais de F cada vez maiores,
fica cada vez mais difícil encontrar retas tangentes ao gráfico de F .
4 Considerações finais
O estudo de funções contínuas que não são diferenciáveis em nenhum ponto é importante não só
por ser um problema clássico do Cálculo, mas também por estar conectado com vários outros ramos
da matemática; como por exemplo na teoria de fractais e na teoria do caos. Além disso, vários outros
resultados interessantes foram obtidos para tais funções, utilizando teoremas clássicos de Topologia.
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Considerações finais
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Um exemplo surpreendente (que estudaremos posteriormente) sobre tais funções é obtido usando o
Teorema de Baire. Utilizando este resultado, S. Banach provou que existem “muito mais” funções contínuas que não são diferenciáveis em nenhum ponto (no sentido de categoria de Baire) do que funções
contínuas que são diferenciáveis.
Referências Bibliográficas
[1] G. Ávila, Introdução à Análise Matemática, Edgard Blücher, São Paulo, 2006.
[2] R. Goldberg, Methods of Real Analysis, John Wiley e Sons, New York, 1976.
[3] E. L. Lima, Curso de Análise, vol.1, Projeto Euclides, Rio de Janeiro, 2008.
Considerações finais
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