JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Sílvio Martins RESUMO

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Sílvio Martins
RESUMO
A jurisdição constitucional é um instrumento, e dos mais eficazes, na defesa da correta
aplicação dos comandos constitucionais, além de estender sua proteção aos direitos
fundamentais. Sua importância para a reelaboração do direito contemporâneo se reveste de
atributo especial, quando se tem como certo que a história da constituição seria outra, sem a
jurisdição constitucional. A concepção de uma lei fundamental, apontando para uma
hierarquia normativa e para o vértice da função legiferante ordinária, se consolida na
supremacia das normas constitucionais, que o poder constituinte de uma sociedade erigiu para
si e, por isso, as elevou à categoria de normas supremas.
Palavras-chave: jurisdição, constituição, supremacia, direito, controle, hierarquia, poder
judiciário.
ABSTRACT
The constitutional jurisdiction is an instrument,and the more effective one, in the defense of
the correct application of constitutional commands, besides extend its protection
tofundamental rights. Its importence for the reworking of contemporary law is of special
attribute,whwn it takes for granted that the history of constitution would be another without
constitutional jurisdiction. The conception of a fundamental law, pointing to a normative
hierarchy and to the vertex of ordinary legislating function, consolidates itself in the
supremacy of constitutional norms, the constituend power of a society erected for himself and
therefore elevated them to the category of supreme standards.
Keywords: jurisdiction, constitution, supremacy, Law, control, hierarchy, judiciary power.
INTRODUÇÃO
A jurisdição constitucional busca identificar o nascimento, características, funções,
evolução e efetividade desse instrumento constitucional e sua atuação em defesa da plena e
correta aplicação dos comandos constitucionais e na proteção dos direitos fundamentais.
O objetivo é trazer à compreensão a ideia da jurisdição constitucional, apontando seu
significado dentro do constitucionalismo e sua importância para a reelaboração do direito
contemporâneo. Tal projeção se reveste de atributo especial, quando se tem como certo que a
história da Constituição seria bastante diferente, sem a jurisdição constitucional. Isto nos
remete para as raízes do constitucionalismo, plantadas solidamente no século XVIII, com as
primeiras constituições, a americana e a francesa.

Ms. Ciências Jurídico-Filosóficas – Univ. de Coimbra. Ms. Ciências Jurídico-Políticas –
Univ. de Lisboa
Contudo, a arqueologia jurídica abre seus aposentos de poeira e tempo e apresenta
conteúdos que ultrapassam os sistemas político-jurídicos positivados naquelas pioneiras e
emblemáticas Cartas. A ideia da lex fundamentalis aponta para uma hierarquia normativa e
para o vértice da função legiferante ordinária. A distinção das normas jurídicas na antiga
Grécia, em nómos e pséfismas, correspondendo aqueles as leis superiores e estes aos decretos.
Antes, contudo, com Péricles e a defesa da supremacia de determinadas leis que, na graphé
paranomóm encontrou o instrumento ideal para denunciar comandos em conflito com a
politeia e com o nómos.
Em Roma, no período da República, o Senado exercia a função de órgão jurisdicional,
confirmando ou derrogando decisões tomadas nas assembleias populares. Uma lei votada na
cimeira pública só produzia efeitos depois de aprovada pelo Senado e, em caso de reprovação,
era expelida do sistema jurídico. No final da República, o magnífico Cícero lapidou sua
concepção de direito natural e defendeu que acima do Senado e do povo existisse um
magistrado que fizesse executar a lei e o respeito ao direito de cada qual. Todavia, observou
Cícero, mais do que promover a execução da lei, deve o magistrado cumpri-la.
A patrística com Santo Agostinho e a escolástica com São Tomás de Aquino, não
resistiram às imposições dos novos tempos e as demandas políticas e jurídicas, que
apontavam para novas direções. O debate jurídico voltou seu dínamo para fora das fronteiras
eclesiásticas e a ideia dos direitos inatos do homem riscou no mosaico jurídico a linha mestra
que determinava o comportamento do homem diante de outro e do poder público em face do
mesmo. A ideia imponente e vigorosa de um direito natural acima do direito positivo foi a
base de sustentação jurídica dos Estados nacionais em formação, embora faltassem
instrumentos e órgãos capazes de assegurar esses direitos.
Entretanto, a função de declarar o direto aplicável aos fatos, bem como causa final do
Poder Judiciário, iniciou sua construção na Inglaterra, onde a subordinação da lei ao common
law é fruto de várias decisões judiciais e jurisprudenciais.
Porém, uma única e essencial ideia perpassa a concepção da jurisdição constitucional,
fazendo com que as demais lhe sejam subjacentes e até mesmo dependentes: a supremacia das
normas constitucionais, que o poder constituinte de uma sociedade erigiu como fundamentais
para si e, por isso, as elevou à categoria de normas supremas.
Depois da instituição do judicial review norte-americano, que consagrou a Suprema
Corte e notabilizou Marshall, a Constituição austríaca de 1920, sob a inspiração de Kelsen,
criou a Corte Constitucional. A Constituição italiana de 1947, também criou a Corte
Constitucional, o mesmo ocorrendo na Alemanha, com a Lei Fundamental de Bonn, em
1949, fazendo com que muitos países seguissem na mesma direção.
A ideia de controle partiu da compreensão de que as leis são os objetos de verificação,
em suas variadas formas e hierarquias. Embora diferentes, os controles têm por vértice e
confluência o bem comum e os valores éticos e superiores da sociedade, alçada à categoria de
direitos nas instâncias fiscalizadoras da legitimidade constitucional.
A juridicidade ou judicialidade na justiça constitucional, ínsita ao controle difuso,
muda de feição em se tratando de controle abstrato de lei, porquanto a proteção imediata que
ai se concede não é ao direito subjetivo, mas ao direito objetivo, à constitucionalidade mesma
da ordem estabelecida, de tal sorte que o controle toma, desde então, um sentido mais político
que propriamente jurídico.
O fato é que o controle exercido pelos Tribunais Constitucionais constitui um
necessário e imperativo sistema de complementaridade entre a democracia e o Estado de
Direito que, para manter-se em equilíbrio, deve trazer claras e precisas as regras sobre sua
composição, competências e poderes.
Os fundamentos do controle no estado de direito, pressupõem a separação dos poderes,
a declaração de direitos e o devido processo, bem como o respeito à supremacia da norma
constitucional e a existência de uma Constituição escrita. O controle de constitucionalidade
das leis e atos normativos do Poder Público é uma garantia para a plena eficácia do sistema
normativo constitucional.
O controle de constitucionalidade no Brasil é resultado da experiência histórica, que
propiciou o surgimento de um sistema peculiar, que combina os critérios do controle difuso e
do controle concentrado. Este último se apresenta mais adequado à defesa dos direitos
fundamentais, por via da ação direta de inconstitucionalidade perante o STF que, embora não
seja um tribunal constitucional, segundo o modelo europeu, passou a ter competência de
jurisdição constitucional, competindo-lhe, precipuamente, a guarda da Constituição.
Só isso, porém, não seria suficiente para a organização de um sistema eficaz de
proteção aos direitos humanos, pois tal competência já lhe cabia no regime das Constituições
anteriores e, não raro, suas decisões eram contaminadas pela sustentação do arbítrio do regime
militar.
De outra feita, anteriormente à Carta de 1988, a legitimidade para a propositura da
ação direta de inconstitucionalidade pertencia apenas ao Procurador Geral da República, que
era e continua sendo de livre nomeação e exoneração pelo Presidente da República, de sorte
que só promovia ações de interesse do regime. Com a Constituição de 1988, a legitimação
para propor tal ação compete a várias autoridades e instituições.
1) Jurisdição constitucional
A jurisdição constitucional objetiva efetivar a ordem jurídica e impor, através do
Poder Judiciário, o cumprimento das normas que, por exigência do direito vigente, devem
regular as mais diversas situações jurídicas (MARQUES, 1966, p. 216).
Na qualidade de expressão da soberania do Estado, a jurisdição é a capacidade de
decidir imperativamente e de impor decisões, sendo o canal que dá efetividade ao Direito.
Através da manifestação do seu caráter soberano, o Estado conhece os conflitos de interesse,
ou não, e declara em seu nome e não em nome das partes, o direito aplicável ao caso, podendo
executar o decisum, se provocado (CHIOVENDA, 1964, p. 9 e 11).
A importância da jurisdição constitucional está no fato de firmar o Poder Judiciário no
cenário dos poderes de Estado, afastando a percepção vulgar de ser este Poder um mero
órgão de solução de conflitos de interesses. Ou seja, o Poder Judiciário não se resume a um
órgão de Estado, cuja função se esgote na prolação de sentenças. Nessa perspectiva, é
necessário reconhecer ao mesmo sua legítima participação no processo político e institucional
do País.
No exercício da função jurisdicional, o Estado se materializa juridicamente, sob os
mesmos fundamentos que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem jurídica instituída, as
funções legislativa e executiva (GONÇALVES, 1992, p. 50).
A jurisdição constitucional, portanto, prende-se à “função de declarar o direito
aplicável aos fatos, bem como é causa final e específica da atividade do judiciário”
(BARACHO, 1984, p. 75). Nessa função, a jurisdição constitucional é a própria reinvenção da
Constituição, à medida que decifra e reprime os excessos do sistema político no código
jurídico, através de sanções (SAMPAIO, 2002, p. 888-889).
A jurisdição constitucional “consiste na atuação da lei mediante a substituição da
atividade de órgãos públicos à atividade de outros, seja no afirmar a existência de uma
vontade das leis, seja em torná-la posteriormente efetiva” (CHIOVENDA, 1964, p. 3).
A jurisdição deixou o clássico conceito de apenas dizer o Direito para o caso concreto,
pois o controle de constitucionalidade praticado pelos Tribunais Constitucionais desenvolveuse em abstrato, sem qualquer referência a um caso concreto, tratando-se, contudo, de uma
atividade jurisdicional.
Uma atividade dos poderes que no controle das leis, explica-se pelo sistema
hierárquico de valores entre normas e pela constituição escrita ou flexível, cujos elementos
diferenciam a lei constitucional das leis ordinárias. A isto se soma a indispensável separação
dos poderes do Estado, de maneira que cada um tenha circunscrita a órbita intransponível de
sua competência e um órgão incumbido de assegurar a vigência do sistema hierárquico de
valor das leis, prescrito nos dispositivos constitucionais ou decorrentes da própria natureza de
determinado regime jurídico-político (JÚNIOR, 1989, p.125).
A jurisdição é uma manifestação típica da atividade judiciária, derivada do ato
jurisdicional e confirmadora da força do direito na solução de conflitos. Por seus órgãos, a
função judiciária constitui uma atividade criadora do direito. A decisão política convertida em
lei é, na visão interna do sistema jurídico, assimilada ou expelida pela decisão judicial,
embora as motivações da sentença estejam, explícitas ou não, sob a influência política que as
engendrou.
A jurisdição é uma proteção substitutiva, já que o órgão jurisdicional atua substituindo
as partes envolvidas no processo. Ela serve à tutela de direitos e interesses contra lesões ou
violações de direito, tendo como ponto de partida para o exame da jurisdição o próprio
Estado, cuja existência explica sua origem (MANDRIOLI, 1975, p. 10). Essa vinculação com
o Estado, em certa medida presente na doutrina medieval e fortemente tributária dos ideais
igualitários da Revolução francesa, decorre em substituição das jurisdições senhoriais.
Modernamente, porém, a jurisdição desenvolveu-se na direção do controle de
constitucionalidade dos atos normativos do Estado, diante da necessidade de que as leis
fossem fiscalizadas judicialmente.
Já Hamilton considerava que “a independência completa dos tribunais de justiça é
particularmente essencial em uma Constituição limitada. Por Constituição limitada entendo a
que contém certas proibições expressas aplicáveis à autoridade legislativa, como, por
exemplo, a de não ditar decretos que imponham penas e incapacidades sem prévio
julgamento, leis ipso facto e outras semelhantes. As limitações dessa índole só podem ser
mantidas na prática através dos tribunais de justiça cujo dever tem de ser o declarar nulos
todos os atos contrários ao sentido evidentes da Constituição. Sem isso, todas as reservas que
sejam feitas com respeito a determinados direitos ou privilégios serão letra morta
(HAMILTON, 1989, p.313).
Trata-se, pois, a função jurisdicional, de determinar o direito aplicável ao caso e, de
modo mais amplo, manter e atualizar as normas jurídicas, abarcando o controle abstrato de
constitucionalidade das leis, quando desenvolvido pelo Judiciário (GARCIA-PELAYO, 1991,
p. 103).
Neste aspecto, o controle judicial da constitucionalidade das leis, por meio da
legislatura, age sob uma autoridade delegada, limitada pela própria Constituição, habilitando
o Judiciário a declarar o que uma lei significa, fazendo decair toda lei inconstitucional
submetida à provação das cortes (COOLEY, 1982, p. 23).
A adoção do judicial control ou de processos equivalentes, nos Estados
democraticamente constituídos, é apenas o reconhecimento de que uma lei que reparte os
poderes dos órgãos estatais é logicamente superior às outras leis e, relativamente imutável
(PONTES DE MIRANDA, 1974, p. 113).
A jurisdição em sua integridade conceitual abarca todas as questões, não havendo
qualquer demanda que escape ao seu poder de atuação, por isso um processo contínuo de
expansão, crescendo à medida que o Estado tutela novos direitos e permite a criação de
instrumentos processuais para torná-los possíveis e eficazes (LASCANO, 1941, p. 36).
Entretanto, o vocábulo jurisdição é um conceito de direito público que não está preso,
exclusivamente, ao direito judiciário. Assim, tomar a jurisdição pelo órgão que a realiza é
fixar-se ao critério formal, que é um dos elementos para a sua noção, mas não o único. Ela
envolve ato jurisdicional, que implica em pretensão, e se apresenta como questão de direito,
colocado em termos contraditórios, que posteriormente assume a forma processual (CASTRO
NUNES, 1943, p. 3).
O processo, por ser meio de realização da jurisdição, é concebido como instrumento
da paz social, onde se busca a eliminação do conflito, devolvendo à sociedade a tranquilidade
desejada. Por isso a dimensão instrumental do processo se desenvolve aliado aos escopos da
jurisdição e da instrumentalidade, que revelam a função sócio-política da atividade
jurisdicional (DINAMARCO, 1994, p. 48).
À jurisdição compete, mediante processo, conferir eficácia forçada às relações
jurídicas espontaneamente ineficazes, impondo uma sanção jurídica em razão do dever
jurídico descumprido, como forma de atendimento ao direito que foi lesado ou ameaçado. Ao
juiz prolator da jurisdição exige-se um comportamento atuante e não mais uma posição inerte,
de mero aplicador da lei.
As teorias tradicionais do direito já exigiam uma completa adesão à realidade social.
Portanto, a dimensão axio-política do processo, aponta-o como paradigma da democracia,
porque aliado à jurisdição, age como instrumento de efetivação de direitos subjetivos
contemplados, mas ineficazes.
A Constituição Federal brasileira arrola os objetivos a serem alcançados pelo Estado,
cujo artigo 3º inclui a jurisdição como elemento teleológico do processo. Como é
indispensável a figura da jurisdição para possibilitar a efetivação da sanção, a relação
processual é o único e necessário ambiente para a sua realização. Isto leva à conclusão de que
não se pode falar em dualismo jurídico, visto que o direito processual visa conferir eficácia
forçada ao direito subjetivo material, mediante realização do direito objetivo (direito material
forçadamente eficaz).
A jurisdição está fundamentada no ato jurisdicional, que se efetiva pela realização da
norma e sua aplicação no caso concreto. O ato jurisdicional se concretiza quando o Poder
Judiciário aplica normas jurídicas em casos contraditórios, substituindo a vontade dos órgãos
do Estado ou de terceiros e impõe ao litígio a conformidade da Constituição, atuando de
ofício ou a pedido dos mesmos.
Do ponto de vista material, o ato jurisdicional é uma constatação sobre a conformidade
ou não, de um ato, situação ou fato ao ordenamento jurídico. O ato jurisdicional é, enfim, uma
decisão cuja força jurídica faz coisa julgada e transforma-se em definitivo, através de
disposições obrigatórias (DINAMARCO, 1994, p. 48).
A jurisdição constitucional na sua função de dizer o direito aplicável está intimamente
ligada ao princípio da supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, além de
prestar-se à defesa dos direitos fundamentais e à própria rigidez constitucional.
Em obediência a estes princípios, uma norma infraconstitucional não pode afrontar
preceitos contidos na norma ápice, nem modificá-los ou suprimi-los. A jurisdição
constitucional exerce o controle de constitucionalidade, verificando a compatibilidade de uma
norma menor ou de um ato normativo com a constituição. Esta verificação se dá tanto no
plano dos requisitos formais quanto dos requisitos materiais. No plano formal, verifica-se se a
norma foi produzida conforme o processo legislativo disposto na Constituição. No plano dos
requisitos materiais, verifica-se a compatibilidade do objeto da lei ou ato normativo com a
matéria constitucional.
A jurisdição constitucional é tomada, pois, no sentido de atividade jurisdicional que
tem como objetivo verificar a concordância das normas de hierarquia inferior, leis e atos
normativos, com a Constituição, desde que violem as formas impostas pelo texto
constitucional ou estejam em contradição com o preceito da Constituição, pelo que os órgãos
competentes devem declarar sua inconstitucionalidade e consequente inaplicabilidade.
A faculdade de considerar uma lei inconstitucional quer deixando de aplicá-la porque
em conflito com a Constituição, quer declarando inconstitucional uma Constituição estadual,
porque em conflito com a Constituição federal, são atos tecnicamente jurisdicionais, porque
envolvem o julgamento da legalidade, mas que representam participação na área normativa
constitucional ou legislativa.
Em relação ao processo constitucional, não há como dissociá-lo da jurisdição
constitucional, na medida em que processo significa o conjunto de atos, fatos ou operações
que se agrupam de acordo com certa ordem, para atingir um fim, cujo objetivo principal é a
decisão de um conflito de interesses jurídicos. Nesse sentido, é dizer que a jurisdição
constitucional atua por meio do processo constitucional, através do qual se aplica todas as
normas de encaminhamento de matéria fundamental à estrutura política do Estado,
vinculando-a às limitações provenientes da defesa jurídica da liberdade.
A jurisdição constitucional, também, não pode ser identificada com o controle
jurisdicional de constitucionalidade das leis, posto que o controle representa senão um, dos
vários possíveis aspectos da assim chamada justiça constitucional, e não obstante, um dos
aspectos mais importantes.
A jurisdição ou justiça constitucional reveste-se de múltiplas formas de manifestação
ou de provocação, compreendendo, por sua vez, o controle judiciário de constitucionalidade
das leis e dos atos normativos, bem como a jurisdição constitucional das liberdades e dos
direitos fundamentais.
No Brasil a justiça constitucional se materializa com o uso dos remédios
constitucionais do habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção,
ação popular e ação civil pública.
A jurisdição constitucional deve ser compreendida pelo que ela é, ou seja, a parte da
administração da justiça que tem como objeto específico matéria jurídico-constitucional. A
jurisdição constitucional é tomada, assim, no sentido de atividade jurisdicional, que tem como
objetivo verificar a concordância das normas de hierarquia inferior – leis e atos
administrativos – com a Constituição, desde que violem as formas impostas por ela ou estão
em contradição com os seus preceitos, pelo que os órgãos competentes devem declarar sua
inconstitucionalidade e consequente inaplicabilidade.
Entretanto,
reduzir
a
jurisdição
constitucional
apenas
ao
controle
de
constitucionalidade, é limitar o seu campo de abrangência. Outras manifestações incluem-se
na sua órbita e realçam a sua compreensão, que passa:
a) pela tutela dos direitos fundamentais frente a qualquer disposição dos poderes públicos;
b) pela resolução dos conflitos de atribuições entre os poderes de Estado;
c) pela fiscalização das atividades dos titulares de órgãos constitucionais;
d) pelo controle da legitimidade dos partidos políticos e pelas funções do contencioso
eleitoral;
e) pela manutenção e garantia da democracia e pelo sistema de checks and balances;
f) pela passagem da soberania parlamentar, na maioria dos sistemas constitucionais
ocidentais, para a soberania da Constituição, reforço da legalidade no Estado democrático de
direito e legitimidade constitucional.
A jurisdição constitucional tutela a regularidade constitucional no exercício ou
atividade dos órgãos constitucionais. Ao mesmo tempo faz valer as situações jurídicas
subjetivas do cidadão, previamente consagradas no texto constitucional. Por isso a jurisdição
constitucional da liberdade é o instrumento para resguardar o cumprimento e a superioridade
de certos direitos fundamentais (CASTRO, 1975, p. 149-150).
Todavia, surgem dúvidas para precisar com rigor o que é matéria de natureza
constitucional. Para parte da doutrina, sua essência está na fiscalização da constitucionalidade,
embora considere, também, o julgamento dos ilícitos praticados por titulares de órgãos
constitucionais (DI RUFFIA, 1974, p. 543).
Conteúdo que se enriquece e se amplia com o entendimento do contencioso da
liberdade ou com o nascimento da jurisdição constitucional da liberdade, própria para a
proteção, em gênero, dos direitos fundamentais. Sob o rótulo de contencioso constitucional,
compreende-se todo o conjunto de litígios que podem nascer da atividade das instituições
constitucionais, assim como os processos que permitem resolvê-los.
Outra corrente se atém ao contorno formal-orgânico da jurisdição constitucional,
prestada por um órgão especializado, encarregado de resolver os conflitos constitucionais que
lhe são deferidos. Para esta o sentido estrito é tecnicamente mais acertado, pois compreende o
estudo da atividade de verdadeiros tribunais, formal e materialmente considerados, que
conheçam e resolvam as controvérsias de natureza constitucional de maneira específica (FIXZAMUDIO, 1968, p. 15).
A conciliação entre os dois critérios (formal e material) pode ser conseguida “com a
identificação da jurisdição constitucional como uma garantia da Constituição, realizada por
meio de um órgão jurisdicional de nível superior, integrante ou não da estrutura do judiciário
comum, e de processos jurisdicionais, orientados à adequação da atuação dos poderes
públicos aos comandos constitucionais, de controle de atividade do poder do ponto de vista da
Constituição, com destaque para a proteção e realização dos direitos fundamentais”
(SAMPAIO, 2002, p. 23).
O certo, porém, é que a jurisdição constitucional em algumas das competências
deferidas, não passa de um órgão incumbido de uma atividade administrativa, de certificação
de vacância, de controle de requisitos ou condições de elegibilidade ou incompatibilidade,
mas, na grande maioria das vezes, exerce uma atividade própria de jurisdictio, em todos os
seus aspectos, formais e materiais.
A análise histórica da jurisdição constitucional nos remete para o século XVIII,
quando surgiram as primeiras constituições escritas. Entretanto, a arqueologia jurídica
apresenta conteúdos que ultrapassam as fronteiras das constituições positivadas, identificando
instrumentos legais em outros sistemas jurídico-políticos mais antigos, cuja supremacia em
relação ao restante ordenamento jurídico sempre pareceu inconteste (CAPPELETTI, 1984, p.
599).
A ideia de lex fundamentalis, por si só pressupõe a existência de uma hierarquia
normativa que o legislador de então distinguiu com superioridade vertical, colocando-a no
ápice da arquitetura jurídica e no vértice da função legiferante ordinária. Embora tais leis não
expressassem ou sequer sugerissem o figurino ou a consciência de um hipotético e remoto
constitucionalismo, o certo é que havia um escalonamento de leis – ou de um corpo de leis –
em relação a outras normas jurídicas, conferindo àquelas uma precedência especial, através
das quais seria futuramente regulada a produção das normas jurídicas gerais (KELSEN, 1985,
p. 240-241).
Na antiga civilização ateniense, os helenos distinguiam as normas jurídicas em nómos
e pséfisma, significando que àquelas correspondiam as leis superiores e a estas os decretos, ou
mais moderna e aproximadamente a legislação infraconstitucional. Os nómoï ou leis
superiores tratavam da organização do Estado e só podiam ser modificados através de um
procedimento extraordinário, que demandava a eleição de corpos legislativos especialmente
sufragados para esse fim (BATAGLINI, 1957, p. 149).
Seu caráter jurídico e sua essência política consagrados à estruturação e à
manifestação do Estado como uma unidade organizada, e sobretudo destinados à sua feitura
de especial complexidade, permitem, sem nenhuma concessão, estabelecer correspondência
tanto com as chamadas leis constitucionais fundamentais, quanto com a contemporânea noção
procedimental de revisão constitucional.
Construída no pensamento sofista, a ideia de supremacia dos nómoï surgiu da fratura
que distinguiu nomos e physis (WELZEL, 1971, p. 6). Na filosofia de Platão a lei se destinava
a uma obrigação ética, moral e transcendental, reproduzindo no cenário da cidade-Estado uma
ordem imutável e divina e por isso mesmo alheia aos interesses e paixões mundanos
(PLATÃO, 1987, p. 477-484).
Em Aristóteles os ideais e valores da democracia ateniense refletem-se na defesa do
primado da lei sobre a vontade e o governo dos homens, por isso as leis são necessárias, pois
“o controle público é plenamente efetuado pelas leis, e o bom controle depende de boas leis”
(ARISTÓTELES, 1987, p. 82 e 91-92). No Tratado da Política, Aristóteles não só exige uma
lei justa, fruto da razão humana, mas um elenco de leis fundamentais de organização do
Estado e, por isso mesmo, superiores às leis ordinárias (ARISTÓTELES, 1977, p. 79).
O pséfisma resultava da elaboração legislativa pela Assembleia Popular. Seu caráter
de produção normativa abstrata e geral guardava, porém, estreita e obrigatória conformidade
com os nómoï, condicionando sua aplicação pelos juízes à observância da legislação superior.
Na antiga Grécia tinha-se como princípio fundamental que a legislação inferior,
qualquer que fosse o seu conteúdo, devia ser legal não apenas na forma e na substância, mas
respeitar a hierarquia e a força que as leis constitucionais haviam adquirido no seu sistema
jurídico (CAPELLETTI, 1992, p. 48-50).
No sistema jurídico de Atenas, respondia penalmente através de uma ação pública de
ilegalidade, aquele que na Assembleia propunha uma lei em discordância ou em confronto
com a legislação superior e fundamental, sendo permitido a qualquer cidadão o ajuizamento e
a propositura de tal ação perante o tribunal popular da Heliaia. Ou seja, havia uma legislação
“infraconstitucional” submetida ao crivo e à supremacia dos nómoï vigentes que, se não
traziam, ainda, a noção clara de constitucionalismo, não afastava a ideia de hierarquia
jurídica, de escalonamento e de supremacia de algumas leis sobre outras ( DAVID, 1998, p.
1).
Quando Aristóteles escreveu seu tratado “Política”, não o fez sem antes estudar cento
e cinquenta e três constituições que regiam as cidades gregas e os povos bárbaros, observando
que havia distinção no ordenamento jurídico entre as leis que regulamentavam as relações de
poder e as demais normas destinadas a regular o cotidiano da vida social.
Nas constituições compiladas por Aristóteles, das centenas de Politeíai, os órgãos
governamentais política e juridicamente delineados traziam normas para a estruturação do
poder, definindo o regime político da cidade. Da mesma maneira procedeu Drácon, para
estabelecer a severidade das leis de Atenas e posteriormente Sólon, para amenizá-las, assim
como os decênviros, quando conceberam as Leis das XII Tábuas.
Séculos antes, com Péricles, a defesa da hierarquia e da supremacia de algumas leis
encontrou no graphé paranomón o instrumento ideal para denunciar comandos contrários ou
em conflitos com a Politeía e com os nómos. Criado como ferramenta para combater os
arrebatamentos perniciosos e os excessos da demagogia política, o graphé paranomón visava
fundamentalmente preservar o regime democrático e as instituições políticas e jurídicas de
Atenas. Por isso usado por qualquer cidadão nacional, com efeito retroativo, para se opor à
onipotência da Ecclésia e contê-la nos seus exatos limites.
No século de Péricles, quando o Estado era administrado no interesse do povo e não de
uma ideia egoísta do poder pelo poder, havia um julgamento sensato de que as leis tudo
podem, menos derrogar ou contraporem-se à supremacia da Lei Fundamental (POLETTI,
1998, p. 10).
Na oração fúnebre de Péricles, feita no outono de 431, em homenagem aos soldados
mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso e reproduzida pelo historiador Tucídides,
Péricles se debruça em defesa da democracia ateniense, cujas regras essenciais são a
igualdade e a liberdade (AMARAL, 2003, p. 61).
Estes valores, diz Péricles, não só impedem seus compatrícios de violar as leis
fundamentais da República, mas, sobretudo, asseguram proteção aos oprimidos e garantem ao
cidadão a defesa de seus direitos, quando ameaçados ou violados pela soberba da Ecclésia.
O instituto do graphé paranomón significou um grande passo na evolução jurídica de
Atenas, retirando do Areópago, tribunal judicial de caráter religioso, uma atribuição
eminentemente laica e portanto fora da sua competência explícita. Como aponta Aristóteles, o
Conselho de Areópago era o guardião das leis e o fiscal dos oficiais para que exercessem seus
cargos em conformidade com elas. Aos vitimados de qualquer natureza era permitido
representação ou denúncia junto ao Conselho, devendo indicar contra qual lei se cometera
injustiça (ARISTÓTELES, 1977, P.21).
Em Roma, no período da República, o Senado exerceu importante função no controle
de constitucionalidade das leis. Sua competência legislativa originária abarcava o poder de
confirmar ou derrogar as decisões tomadas nas assembleias populares, cujas deliberações só
tinham validade e produziam efeitos se recebessem sua aprovação. Caso tal deliberação lhes
fosse negada, a lei votada nas assembleias não tinha eficácia e era expelida do arcabouço
jurídico. Porém, o Senado só confirmava as leis depois de verificar se elas contrariavam ou
não os costumes e na hipótese disso ocorrer, decidia-se da conveniência da revogação dos
costumes ou das leis (POLETTI, 1998, p. 16).
No final da República, quando os estertores da política anunciavam seu ocaso e pouco
faltava para que o regime fosse substituído pela ditadura e pelo Império, Cícero escreveu suas
principais obras, os tratados De República e De Legibus (PONTES, col. 391-396).
No primeiro, Cícero lapidou magistralmente sua concepção de direito natural,
afirmando que existe uma lei verdadeira, presente em todos os homens, constante e sempre
eterna, que é a reta razão. Tal lei conduz os homens imperiosamente a fazer o que devem, ao
mesmo tempo, que, proíbe e os afasta de praticar o mal. A essa lei suprema nenhuma
alteração era permitida e não era lícito revogá-la no todo ou em parte. Nem o Senado nem o
povo podiam dispensar qualquer cidadão de obedecer-lhe.
No tratado De Legibus Cícero advoga que além do Senado e do povo exista um
magistrado que exerça o poder, que faça executar a lei e o respeito aos direitos de cada qual.
Entretanto, mais do que promover a execução da lei, deve o magistrado cumpri-la, pois ele é a
lei que fala e a lei é o magistrado mudo. Ou seja, o magistrado situa-se abaixo das leis,
embora esteja acima dos governados (CICERO, 1984, p. 16).
No status civitatis dos romanos o jus naturale é a força legitimadora da noção
inconteste ao dever; da ideia de liberdade e igualdade entre os homens; da concepção de um
Estado e de uma cidadania universal governados por uma lei de origem divina.
Homem de transição, jurista notável de grande cultura teórica, advogado, sobretudo de
causas políticas, o magnífico Cícero emancipou no seu tempo os valores e os princípios que o
Cristianismo tomaria como seus e os popularizaria. Na pessoa de Cícero, Roma seria o elo de
ligação entre a filosofia grega e o Cristianismo.
A ideia de um direito natural anterior e hierarquicamente superior às suas normas
jurídicas, erigidas como parâmetros de validade, de justiça, de moralidade e de supremacia da
lei positiva, Cícero a tomou da genialidade filosófica dos helenos, conferindo-lhe, porém, uma
expressão concreta tão plena, que a concepção do direito natural ao longo dos séculos
seguintes foi uma leitura constante e formal do seu tratado Da Política (AMARAL, 2003, p.
135-149).
Com as ditaduras militares e as guerras civis desmoronaram-se as pujantes e velhas
instituições republicanas, abrindo caminho para o principado. Depois da batalha de Actium, o
governo unipessoal pareceu a melhor solução para a manutenção da paz, embora os direitos
públicos e individuais fragmentassem, possibilitando o desenvolvimento do jus privatum. O
instituto do graphé paranomón foi relegado ao ostracismo e até mesmo a religião foi
suprimida pela onipotência dos césares que passaram a personificar a divindade. O império
rompeu com as instituições jurídicas tradicionais e o imperador concentrou na sua autoridade
exclusiva a totalidade dos poderes, tornando-se a fonte única do direito, mas situado muito
acima do mesmo, como sentenciou o próprio Ulpiano ao declarar no De legibus: principis
legibus solutus est (MALUF, 1984, p.122).
O império romano foi o último dos grandes impérios da Antiguidade, a que as
invasões bárbaras levaram à derrocada, assinalando o fim de uma época e o início da Idade
Média. Embora os invasores espoliassem e massacrassem as populações vencidas, é inegável
que implantaram o primado da lei e da razão, dando nova configuração ao Estado medieval.
O espólio jurídico e político do Império romano, foi pouco a pouco se esvaindo e uma
nova realidade política se impôs tenaz e paulatinamente, em meio a um sistema jurídico não
unificado, mas fragmentado em vários poderes independentes, sem que um órgão supremo os
coordenasse, o que produzia uma confusão intolerável (LE GOFF, 1995, p. 76). Só o
Cristianismo possuía uma ordem jurídica interna poderosa e coerente, consolidada na sua
majestosa organização hierárquica.
Diferentemente do direito comum, a ordem jurídica da Igreja estava protegida pela
documentação redigida, pelo uso da escrita e pelas escolas instaladas nos mosteiros, que se
tornaram grandes centros não só de espiritualidade, mas locais de produção e de preservação
da cultura, das decisões dos concílios e dos sínodos, dos cânones e das decretais do papa, a
que se juntaram as inumeráveis leis imperiais e as capitulares (WIACKER, 1997, p. 67).
A transição da Antiguidade para a Idade Média foi marcada por um forte teocentrismo.
Com Santo Agostinho e São Tomás, até Occam, Deus era a fonte matricial das concepções
jurídicas e políticas, projetando para a teoria do poder a exigência do bem comum como
norma de ação e decisão do Estado (GILSON e BOEHNER, 2000, p. 162).
Com São Tomás o fundamento da doutrina jurídica consolida-se na presença de três
categorias de leis, hierarquizadas de acordo com sua importância numa perfecta communitas:
a) a lex aeterna, que é a razão divina, a qual o homem só conhece parcialmente;
b) a lex naturalis, passível de conhecimento pela razão e pela participação do homem na lei
eterna;
c) a lex humana, significando o direito criado pelo homem, com fundamento na lei natural.
Portanto, devia a lei positiva submeter-se aos princípios da lei natural, que só existia
em função da própria racionalidade divina (RUSSEL, 1977, p. 155). Para São Tomás existia
uma única soberania, que era Deus e duas supremacias, a do Imperador e a do Papa. Ao
soberano não competia criar nenhuma lei, mas apenas descobri-las na ordem natural do
mundo e na vontade divina (GALÁN Y GUTIERREZ, 1945, p. 11).
O pensamento de São Tomás estava destinado a marcar definitivamente os próximos
séculos, cujo debate jurídico centrou-se na hierarquia entre a lei natural e a lei humana.
Renovadores da escolástica, os jesuítas espanhóis Soto, Molina, Bañez, Alfonso de
Castro, Mariana, Roberto Belarmino e os dominicanos Francisco de Vitória e Melchior del
Cano, além do grande pensador Suarez, buscaram na doutrina de São Tomás a fundamentação
teórica para a função papal, apresentada como de natureza superior à dos soberanos.
Argumentavam aqueles teóricos religiosos, que somente o papa recebia o poder
diretamente de Deus, enquanto o soberano não recebia o poder nem de Deus e nem do papa,
“o que seria sempre uma derivação, embora indireta de Deus” (HINOJOSA, 1890, p. 6).
Entretanto, as ideias dos escolásticos e dos seus renovadores espanhóis foram em
muitos aspectos incorporadas pelo pensamento jurídico fora das fronteiras eclesiásticas por
Grotius, Pufendorf, Wolf e Kant. Impregnados do jusnaturalismo, estes notáveis filósofos
viram na ideia de direitos inatos do homem a linha mestra que determinava tanto o
comportamento social de cada homem perante outro homem, quanto em face do poder
público.
Mesmo quando o racionalismo se impôs, fazendo erguer a poeira dos séculos
carcomidos pela patrística e pela escolástica, a ideia imponente e vigorosa de um direito
natural acima do direito positivo seria a base de sustentação jurídica dos Estados nacionais em
formação, embora faltassem instrumentos e órgãos capazes de colocar em prática e de fazer
valer a propalada supremacia do direito natural.
Espinosa percebeu o vazio institucional e instrumental e não vendo limites para o
poder e o desejo humanos, propôs a existência de um conselho eleito e vitalício de síndicos,
dentre os homens acima de sessenta anos e que tivessem exercido a função de senador, que
disporiam de força armada e de remuneração generosa, para velar pelo cumprimento e pelo
respeito às leis fundamentais.
Espinosa considerava que nenhuma instituição podia ser mais útil ao bem estar de
todos do que um segundo conselho composto por um determinado número de cidadãos,
subordinados à assembleia suprema, cuja função consistia unicamente em cuidar para que as
leis fundamentais do Estado permanecessem invioláveis (ESPINOSA, 1987, p. 113).
Entretanto, a função de declarar o direito aplicável à realidade dos fatos, bem como
causa final específica do Poder Judiciário, inicia sua construção sólida na Inglaterra, onde a
subordinação da lei ao common law é fruto de várias decisões judiciais e jurisprudenciais. Os
atos do Parlamento, bem como aqueles praticados pelo soberano, não podem fugir ou afrontar
o imemorial direito consuetudinário e os velhos costumes incrustados nas tradições seculares,
sob pena de serem considerados nulos e, por isso mesmo, alijados do ordenamento jurídico.
Quando Espinosa propôs a instituição do Conselho dos Síndicos para unicamente
guardar e defender as leis fundamentais do Estado e com isso buscou criar um instrumento de
proteção constitucional, Harrington propôs à Inglaterra em 1656 a criação do “Colégio dos
Sábios”, – os Conservators of the charter e Conservators of the liberty –, para assegurar a
permanência da república contra a restauração da monarquia.
Porém, poucas décadas antes de Harrington, Sir Edward Coke defendeu a prerrogativa
dos juízes para verificar da conformidade e da validade, ou não, da statutory law com a
common law, cuja supremacia sobre as normas escritas era inconteste. Neste mesmo período
os juízes dos Parlements franceses, elevados a tribunais superiores de justiça, arrogaram a si o
direito de examinar os editos e outras normas reais relacionadas com os direitos fundamentais
do reino. Algo então impensável e ousado por tratar-se de legis imperii, ou seja, de cláusulas
pétreas distintas das leis divinas e naturais e, por isso mesmo, insuscetíveis de serem alteradas
pelo próprio rei ou pelos estados gerais (SAMPAIO, 2002, p. 27).
Outro momento de grande ebulição no controle de constitucionalidade foi posto em
prática pelo Privy Council do soberano em relação às colônias inglesas na América. Através
desse poderoso instrumento o rei declarava a legitimidade e a eficácia, ou não, dos
ordenamentos promulgados pelas plantations, de acordo com as leis do reino. Na verdade
tratava-se de um controle duplo, pois outro se impunha, que era o de compatibilizar as leis
aprovadas pelos colonos com a normatividade jurídica das Cartas Coloniais outorgadas pela
Coroa.
O resultado desse rígido controle muito mais político do que jurídico, que entre 1696 e
1782 anulou mais de seiscentas leis coloniais, tanto pelo controle abstrato (legislative review),
quanto pelo controle concreto (judicial review), aguçou o desejo antecipado de liberdade e de
independência da Coroa britânica. Era a concretização do hipotético direito de resistência
pregado por Locke contra o poder despótico, que se erguia contrário aos direitos naturais e
fundamentais do indivíduo. As ideias que alimentaram o desejo de independência das colônias
inglesas na América saíram das premissas teóricas da filosofia jurídica e política, para se
transformarem em instrumentos de ação e de afirmação de um povo que há muito deixara de
ser colono e por isso mesmo declinava com desprezo o título de súdito, para arrogar a
qualidade de cidadão.
A ideia de supremacia da norma constitucional relaciona-se com a obrigação que se
impõe a todo ordenamento jurídico de conformar-se com os preceitos da constituição. Ou
seja, em um ordenamento jurídico as normas constitucionais enfeitam e ocupam uma posição
de supremacia porque não existem outras que lhes sejam superiores, salvo se a própria
constituição o disser. Portanto, o escalonamento e a hierarquização normativa é condição
necessária para a supremacia da constituição, que se coloca como fonte matricial de
elaboração legislativa e oferece seu conteúdo de características especiais (MORAES, 2000, p.
29).
Para além das condutas humanas que tem interesse e interferem na vida de outros
homens e por isso protegidas pelo Estado, nela também se encontram as normas que o poder
constituinte de uma sociedade política erigiu como fundamentais para si e por isso mesmo as
elevem à categoria de normas supremas.
Como parâmetro de validade das demais normas jurídicas, a constituição possui
elementos que se expressam através da forma, do procedimento de criação e da posição
hierárquica das suas normas. São estes elementos que permitem distingui-la de outros atos
com valor legislativo e constantes da norma jurídica.
Nas palavras de Canotilho, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três
expressões:
a) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de
validade em si própria (autoprimazia normativa);
b) as normas da constituição são normas de normas (norma e normarum) afirmando-se como
fonte de produção jurídica de outras normas (leis, regulamentos, estatutos);
c) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade
de todos os atos dos poderes públicos com a constituição.
Além disso, nas constituições rígidas a superioridade do ordenamento constitucional é
condição sine gua mon em relação à restante produção do Poder Legislativo, no exercício de
sua função legiferante ordinária. Daqui se deduz o princípio e o fundamento de que nenhum
ato normativo, que necessária e logicamente dela decorre, pode contestá-la, modificá-la ou
suprimi-la (CANOTILHO, 1994, p.70).
Pela sua característica de lei maior, de norma magna, a lei constitucional não pode ser
revogada ou alterada da mesma forma como o são as leis ordinárias, devendo submeter-se,
para tanto, a um processo especial cujos requisitos são comumente mais complexos e mais
severos. Isto se deve à sua posição de primeiro plano no escalão do direito positivo. Kelsen
diz que “a constituição é aqui entendida num sentido material, quer dizer, com esta palavra
significa-se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção
das normas jurídicas gerais” (KELSEN, 1985, p. 240-241).
A concepção de uma constituição escrita, formal e rígida, com raízes no
jusnaturalismo e absorvendo da filosofia jurídica as concepções do jus positum e do jus
naturale, para construir uma unidade homogênea positiva, que seja a um só tempo um texto de
lei e um conjunto de disposições de conteúdo e valores orientados por determinados
princípios, produto da dogmática só “se realiza na emissão de uma norma por parte de forças
político-constitucionais” (STERN, 1987, p. 194).
Entretanto, se a ideia de rigidez constitucional revela a supremacia das normas de uma
constituição, devendo o restante ordenamento jurídico com ela conformar-se, quer do ponto
de vista formal, quer do ponto de vista material, também é inerente à constituição flexível a
mesma ideia de supremacia das suas normas, embora aqui se trate de superioridade material,
já que a superioridade formal está intimamente relacionada com o caráter rígido das
constituições. Controlar a constitucionalidade das leis é, pois, “verificar a adequação de uma
lei ou de um ato normativo com a constituição, nos seus aspectos formais e materiais”
(CARVALHO, 2004, p. 239).
Investida da superioridade que a tradição consagrou através da lex fundamentalis, a
supremacia da norma constitucional encontrou em Lock a distinção entre lex legum e lex
inmutable e de maneira concreta na defesa dessa superioridade constitucional dos
revolucionários americanos e franceses.
Nos poucos meses que antecederam à Revolução, o abade Sieyès publicou o opúsculo
Que é o Terceiro Estado?, cuja repercussão
nos meios revolucionários antecipou os
acontecimentos políticos. O resultado foi a decisão dos estados gerais se transformarem em
assembleia nacional, para dar à França uma constituição. É o momento decisivo em que se
opera a transferência da soberania da pessoa do rei para a Assembleia Constituinte, que
elabora uma carta de direitos, cuja “supreme autoritè” advinha do poder constituinte da nação
(SIEYÈS, 1978, p. 75).
Com Hamilton a supremacia da norma constitucional foi entendida como “supreme
law of land”, ou “fundamental law” (HAMILTON, 1987, p. 204). No sistema constitucional
americano, a característica mais acentuada é a absoluta supremacia da constituição, aliada ao
seu mecanismo de efetivação jurisdicional – o judicial review – que permite ao Poder
Judiciário e, especialmente à Suprema Corte, em casos concretos levados a julgamento,
interpretar a Constituição Federal, para com ela ajustar e adequar a legislação
infraconstitucional e os atos normativos editados pelos demais Poderes do Estado.
A compreensão da Constituição como Lei Fundamental pelos pais da pátria norteamericana, não só implicou o reconhecimento da sua supremacia na ordem jurídica, mas,
igualmente, a existência de mecanismos para garantir juridicamente tal qualidade. A partir de
então, o Poder Judiciário travou lutas políticas históricas, mas, sobretudo humanas, para que a
Constituição americana fosse consagrada como a verdadeira e suprema lei do país. Essa
independência legislada pelo constituinte e consolidada pela separação do Poder Judiciário
dos demais ramos e órgãos de governo, foi o que permitiu e serviu de base para a
independência dos tribunais anglo-americanos, dando um sentido prático à soberania da lei.
Mas se escavarmos os vários planos da história jurídica e política dos povos, lá
encontraremos não indícios, mas a existência concreta de normas que se puseram numa
posição hierárquica preferencial e suprema, servindo de parâmetro e de validade para normas
gerais e menores. Nas cidades-Estado da Antiguidade Clássica os nómos (leis superiores)
prevaleciam sobre os pséfismas (decretos), tratando aqueles da organização do Estado e estes
da matéria infraconstitucional. Além desta legislação hierarquizada, o edifício jurídico dos
helenos contava com o instituto do graphé paranomón, instrumento que possibilitava qualquer
cidadão nacional denunciar lei ou ato inconstitucional ou contrário ao interesse público.
Na escala da hierarquia das leis, São Tomás menciona a existência da lei eterna, da lei
natural e da lei humana, sustentando que a obediência à lei humana só era legítima caso não
contrariasse as duas primeiras. Mas é no fim da Idade Média, com as ideias jusnaturalistas
divulgadas na segunda metade do século XVI, que a ideia de uma constituição, como um
corpo de leis primogênitas, acima e distintas das leis ordinárias, ganha status de debate,
levando os juristas a distinguir duas espécies de leis: aquelas que eram emanadas da vontade
real e, portanto, susceptíveis às vicissitudes do tempo e do jogo político e as ordenanças do
reino, que como tais eram invioláveis (CARVALHO, 2004, p. 240-242).
Na Inglaterra, berço do constitucionalismo, até mesmo Hobbes, o arauto do
absolutismo monárquico, admitia a existência de uma lei fundamental identificada no contrato
social. Tal lei advertia Hobbes, era o ponto de equilíbrio e de convergência política que, se
extinta ou suprimida, extinguiria o Estado e o faria cair na anarquia. Embora Hobbes pensasse
o Estado e o soberano como uma mesma realidade jurídica, a quem tudo era permitido, não
descurou em observar que o soberano estava ligado indissoluvelmente às bases do contrato
que o investira no poder as quais não podia violar sob qualquer pretexto, assim como eram
intocáveis as normas de direito natural. Porém, como lembra Fischbach, em Hobbes existem
“limitações casuísticas e morais, mas não jurídicas” (FISCHBACH, 1934, p. 135).
Em Espinosa o pacto social não constituiu um Estado absoluto como em Hobbes. No
seu modelo os direitos inalienáveis do homem não eram transferidos para o Estado, posto que
ao homem não é permitido renunciar a si próprio, renunciando àqueles direitos supremos, que
“como magnitude política é juridicamente considerado e digno de existir” (SOLON, 1997, p.
35-37).
Com Locke, o Estado deixa de ser um mero poder discricionário para assumir a
garantia dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, o que era da sua própria essência e
primazia. Mesmo considerando o Parlamento o poder supremo frente aos demais poderes,
Locke considerou salutar a existência de limites extraídos do direito natural à sua ação.
Entretanto, parece contraditório em Locke a omissão do Poder Judiciário como instrumento
para impor limites à ação do Estado. Isto se tornou mais paradoxal perante uma secular
tradição jurídica assentada na common law, onde o direito era secular e tradicionalmente
criado e desenvolvido pelos tribunais (GOYARD-FABRE, 1999, p. 100-101).
A supremacia da norma constitucional adquiriu tamanho significado e importância nos
estados democráticos de direito, não só por limitar a ação política e jurídica dos detentores do
poder, mas por representar um esforço fenomenal de estabelecer uma justificação espiritual,
moral e ética da autoridade.
No mundo dos valores que se pretendem perenes, a supremacia da constituição se
agasalha nas normas fundamentais de uma determinada comunidade política, que escolheu
para si estes e não aqueles valores, como dinâmica da sua vida política e jurídica e como ideal
da sua individualidade e da sociedade do seu tempo (CAPELLETTI, 1984, p. 599).
Antes, porém, a constituição é um caminho, uma forma que disciplina as decisões do
Estado, apontando como deve ser o processo de criação das normas jurídicas, sem, no entanto,
imiscuir-se no seu conteúdo. Este sentido de neutralidade em relação às políticas perseguidas
protege a vontade popular e não assoberba os órgãos parlamentares e de governo, a quem
compete as decisões políticas do Estado, sem abrir mão da sua condição de ordem suprema,
de comando maior. Talvez por isso a Constituição norte-americana traga de maneira expressa
o princípio da supremacia no seu artigo VI, parágrafo 2º: “A Constituição e as leis que se
fizerem com base nela (...) serão a lei suprema do país; e os juízes dos diversos Estados
estarão vinculados a ela, não obstante qualquer disposição contrária inserta na Constituição e
nas leis do Estado”.
Nos termos da Primeira Emenda à Constituição, o Poder Legislativo foi limitado, ao
estabelecer que o Congresso não poderá fazer nenhuma lei que tenha por objeto estabelecer
uma religião ou proibir seu livre exercício, limitar a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o
direito de reunir-se pacificamente, ou de apresentar petições ao governo.
Enfim, a ideia de supremacia de Constituição decorre do princípio da unidade, que faz
com que as normas inferiores adequem-se às normas superiores, assim nomeadas pela vontade
do Poder Constituinte originário.
Pelo princípio da constitucionalidade as normas infraconstitucionais devem se
compatibilizar com as normas superiores; enquanto o princípio da razoabilidade impõe o
dever de as normas inferiores se constituírem em instrumentos ou meios adequados aos fins
estabelecidos na Constituição.
O quarto princípio relaciona-se com a rigidez constitucional, cujo procedimento para
reformá-la não pode ser o mesmo da elaboração da norma comum. Também há que se fazer
distinção entre poder constituinte e poder constituído, ou seja, a competência funcional que
determina quem de direito pode criar os diversos níveis jurídicos.
Outro aspecto relevante está na graduação do ordenamento jurídico em diversos
níveis, desde a norma fundamental abstrata até a sua execução pelo órgão público; e o último
princípio, mas nem por isso menos importante, é a garantia do Estado de Direito, diante da
limitação em que os órgãos públicos se encontram por determinação do poder constituinte.
São muitas e variadas as correntes de interpretação da natureza jurídica dos Tribunais
Constitucionais ou das Supremas Cortes, no exercício da jurisdição constitucional
especialmente no aspecto do controle de constitucionalidade.
Para um grupo expressivo de doutrinadores, os Tribunais Constitucionais e as
Supremas Cortes, pela peculiaridade de suas decisões, pelo tipo de conflitos que julgam, pela
não realização de operações de subsenção de casos concretos à norma e, ainda por inovar a
ordem jurídica, são órgãos políticos, especialmente voltados para a legislatura, como se
fossem uma segunda câmara ou uma instância política superior às demais (SCHMITT, 1983,
p. 245).
Outra corrente, embora não negue a natureza jurisdicional dos Tribunais
Constitucionais e das Supremas Cortes, observa que estes tribunais decidem conflitos
políticos, pois todos os conflitos constitucionais são sempre conflitos políticos, porém,
“valendo-se de critérios e métodos eminentemente jurídicos na sua solução, embora sejam
critérios e métodos que gozam de certas especificidades em relação aos tribunais ordinários.
Isso se dá porque uma parte, a generalidade e a amplitude dos conceitos normativos
constitucionais, mais gerais ou concentrados normalmente do que o que é comum nas normas
ordinárias ou derivadas; em segundo lugar, a distinta funcionalidade normativa da
Constituição em relação às demais normas ordinárias; enfim, a transcendência mesma das
decisões (decisões de conflitos e, portanto, em certa medida, decisões políticas delas normas,
sem míngua de seu caráter jurisdicional)” (ENTERRIA, 1994, p. 178 e 286-287).
Para Kelsen, os tribunais constitucionais exercem uma verdadeira jurisdição. Na
“Teoria Geral do Direito e do Estado”, Kelsen afirma que “um tribunal que é competente para
abolir leis – de modo individual ou geral – funciona como legislador negativo” (KELSEN,
1990, p. 261).
Para o jurista austríaco, a função de tribunal constitucional não é nem jurisdicional
nem legislativa, nos seus sentidos clássicos. A função de tribunal constitucional, pela sua
natureza jurídica, se propõe a aplicar o direito e é neste labor que o reinventa e o recria.
O modelo europeu de controle de constitucionalidade, mediante ação direta de
inconstitucionalidade de leis e atos normativos, inspirado em Kelsen, faz da questão da
constitucionalidade o telos principal da ação, sendo a causa patendi a sua própria razão de ser.
Há, portanto, uma ação própria para litigar sobre a constitucionalidade, dentro do sistema
concentrado, porque a competência para controlar se atribuir a um só tribunal – tribunal
constitucional, corte constitucional ou supremo tribunal federal.
No modelo de Kelsen, o tribunal não só declara a inconstitucionalidade, mas
desconstitui o ato por ela inquinado, seja retroativamente (ex tunc), seja prospectivamente (ex
nunc), com eficácia erga omnes, e que pode ser modulado no tempo: ex tunc, ex nunc ou pro
futuro. Kelsen esculpe um modelo cujo perfil é o de uma autêntica jurisdição, por mais que
sua atividade – a atividade do tribunal – venha a ser legislativa (TREMPS, 1985, p.7-8).
A natureza jurídica dos tribunais de jurisdição constitucional se materializa no
processo que é levado à sua apreciação, como um processo objetivo, “de garantia da
regularidade e harmonia do ordenamento jurídico enquanto tal, o que é verdade em relação ao
controle de constitucionalidade abstrato e, em parte, naquele de conflitos federativos ou de
atribuição” (SAMPAIO, 2002, p. 59).
Nesse sistema, porém, mesmo que implicitamente, existe um interesse privado ou
individual reflexo, cuja expectativa de ser atendido acaba se concretizando. Não importa se se
trata de situações individuais particulares, como, por exemplo, a restrição ao acesso ao Poder
Judiciário, ou de um interesse difuso, como a liberdade de expressão em face de certos órgãos
ou entidades do poder público. Seja, ainda, se simples interesse em ver solucionada uma crise
institucional, cujos reflexos poderiam atingir o interessado no futuro. Seja mais, como lembra
Tremps, de um interesse de “partes públicas” envolvidas em conflito federativo.
Todavia, a natureza jurídica dos tribunais constitucionais se expressa de forma ainda
mais cadente na chamada jurisdição constitucional da liberdade, quando a questão em jogo é a
garantia direta dos direitos fundamentais, dentro de um processo objetivo (SCHLAICH, 1984,
p. 181).
Porém, tão ou mais importantes que as ponderações objetivas de parte significativa da
doutrina, que consagra a natureza jurídica dos tribunais de jurisdição constitucional, é adotar
uma postura receptiva em relação à política e ao direito. Deve-se fugir das interpretações
preconceituosas que cavam uma fossa intransponível e incomunicável entre ambos.
A convivência e a ligação entre direito e política é condição essencial para a
conformação do Estado de Direito, e até impossível de separá-los em determinadas situações.
O que não pode e não deve ser patrocinado é a redução do jurídico no político, ou de julgar
que todas as questões da política se resolverão no espaço do jurídico, nas formas do Direito,
sob pena de desgastar e vulgarizar o mais importante instrumento de integração e proteção
social (HABERMANS, 1996, p. 160 e 182). Contudo, a transcendência política das decisões
das cortes constitucionais não pode deixar aquele preconceito, assim como “não se pode
deixar seduzir pela forma política de indicação dos seus membros, pois importa mais a técnica
jurídica com que enfrentam os problemas levados à solução” (SAMPAIO, 2002, p. 60).O que
se busca é o distanciamento do juiz dos embates políticos, dos choques de opiniões, das
tendências e interesses das facções, para que tenham os atributos necessários à defesa
imparcial da Constituição. Essa era a posição de Madison e Hamilton.
Para Madison, era imperioso um estatuto que afastasse os juízes das paixões e
cultivasse um senso de responsabilidade e de virtude no exercício de defesa da norma
constitucional. Os juízes, afirma Madison, “pela forma como são nomeados, assim como pela
natureza e permanência nos cargos, estão muito distantes do povo para compartilhar as suas
simpatias” (MADISON, 1961, p. 315).
Para os “Pais da Pátria” era pouco recomendável confiar à minoria ou à maioria a
missão de definir os parâmetros da liberdade uma da outra, restando, portanto, o recurso à
Corte
Constitucional,
a
quem
caberia
desenvolver
uma
teoria
jurisdicional
constitucionalmente fundada, dado à sua natureza jurídica de tribunal jurisdicional
constitucional. Hamilton tinha clara a necessidade de independência judicial “para proteger a
Constituição e os direitos individuais dos maus humores que as artes do homem calculista ou
a influência de conjunturas especiais disseminam entre o povo...” (HAMILTON, 1987,
p.467).
A integridade e a moderação do Judiciário levam a uma defesa mais efetiva contra as
leis que violam ou ameaçam direitos, contra as leis injustas e parciais, que só a firmeza da
magistratura e a natureza jurídica da jurisdição constitucional podem proporcionar.
Pela natureza essencialmente jurídica de suas funções, pelo fato de as Cortes
Constitucionais não disporem de força policial própria para executar os seus comandos, as
Cortes são sempre o instrumento menos perigoso que possa ameaçar os direitos políticos
assegurados pela Constituição, mesmo porque sua natureza jurídica impõe o exercício do
controle de constitucionalidade dos excessos cometidos pelo Poder Público, na elaboração de
leis e atos normativos.
A interpretação das leis pelas Cortes Constitucionais, fundamentais na mais completa
juridicidade, mas também sem desconsiderar seus aspectos políticos explicita ou
implicitamente revelados, “é competência própria e peculiar das Cortes. Uma Constituição é,
com efeito, e deve ser considerada pelos juízes, uma lei fundamental, pertencendo a eles,
porquanto, precisar o seu significado legislativo. Se acontecer de haver um desacordo
inconciliável entre eles, aquele que tiver validade e obrigação superior deve, por óbvia, ser
preferido; ou, em outras palavras, a Constituição deve ser preferida à lei, a intenção do povo à
intenção de seus agentes” (HAMILTON, 1987, p. 467).
Hamilton procurava afastar o argumento de que essa compreensão pressupunha a
superioridade do Poder Judiciário sobre o Legislativo. Para ele, acima disso, era o poder do
povo superior a ambos os Poderes, e os próprios juízes também deviam estar submetidos ao
governo da Constituição, regulando suas decisões pelas leis fundamentais do que por aquelas
ordinárias, pois isso apenas resultava da natureza e razão das coisas. Ademais, o Judiciário
como fonte indispensável de garantia da Constituição, permite que os conflitos de
competências dos outros poderes não se reproduzam e, quando verificados, sejam resolvidos
pacificamente.
Rui Barbosa, enfatizando o caráter de natureza jurídica da Corte Constitucional,
afirma que “o papel dessa autoridade é de suprema vantagem para a ordem constitucional,
impossível, nesse regimen, desde que um poder estranho aos interesses políticos e às suas
influências dissolventes não constitua o laço de mediação e harmonia jurídica entre as forças
que se defrontam no systema, amparando, ao mesmo tempo, com a sua soberania moral o
direito, no indivíduo, na União e nos Estados, em seus frequentes conflitos” (BARBOSA,
1933, p. 405-406).
Não se questiona que o caráter de natureza jurídica das cortes constitucionais no
exercício da jurisdição constitucional pressuponha uma cultura e um certo isolamento
necessário dos seus juízes, para perseguirem mais objetivamente o interesse público. Sem
deixarem de ser órgãos políticos que lançam mãos de instrumentos jurídicos na solução de
conflitos, as cortes devem ser o bastião da Justiça e do Direito, a voz da razão, cujo papel é
decisivo para a sociedade, pois cabe-lhes a tarefa indeclinável de concretizar a constituição,
expressa na “nacionalidade, na continuidade, na unidade e no objetivo comum” (BICKEL,
1986, p. 25-27 e 31).
Dworkin também reserva aos juízes o papel de pêndulos, que nenhuma gravidade
poderá arrastar do centro do oráculo de sua moralidade e coerência, principalmente se se tratar
de uma questão constitucional alçada à Corte Suprema. Seu juiz hercúleo com talentos superhumanos e sem limitação de tempo lançará mão do princípio da integridade da legislação e do
princípio da integridade da adjudicação. O primeiro a exigir do legislador o respeito aos
direitos básicos morais, políticos e de igualdade entre os cidadãos. O segundo requer do juiz
uma decisão rastreada na coerência, no sentido de justiça e na igual proteção da lei, que só um
juiz hercúleo poderá proporcionar. E a interpretação que Hércules der à Constituição, “quando
ele intervém no processo de governo para declarar alguma norma ou ato de governo
inconstitucional, ele o faz em um julgamento consciente sobre o que a democracia, realmente
significa” (DWORKIN, 1991, p. 166-167 e 219-221).
Mas tanto Dworkin quanto Bickel prestam um tributo demasiado ao pensamento
elitista que desde Platão, Locke e Burke, sempre menosprezou a capacidade do povo para
determinar seus próprios caminhos, para escolher seu destino. Platão pregou um governo de
sábios, como o único capaz de gerir a coletividade. Locke acreditava que as verdades
primeiras escapavam da percepção da maioria e para Burke, as classes populares viviam
dissociadas da razão por inteiro. Hamilton e Madison diziam que o povo era incapaz de
identificar os reais interesses da Nação.
Bickel assim como Dworkin revelam suas faces preconceituosas. A função mística
conferida aos juízes por Bickel e o juiz super-homem de Dworkin, fogem à função da
natureza essencialmente jurídica da jurisdição constitucional, pois é uma concepção
antidemocrática, que conduz ao açodamento do esforço de discricionariedade judicial,
permitindo não o controle jurisdicional salutar, mas a prevalência de valores elitistas de uma
classe social. John Hart Ely denuncia o caráter antidemocrático que existe por trás dessas
teorias, apontando que “nossa sociedade não tomou a decisão constitucional de um sufrágio
quase universal para (...) serem as decisões populares submetidas a valores dos juristas de
primeira classe” (ELY, 1980, p. 56-59).
Mais contundente Frank Michelman aponta que a teoria de Dworkin desconhece a
ideia de pluralismo e de diálogo: “Hércules, o mítico juiz de Dworkin, é um solitário. É
demasiado heroico. Suas narrações construtivas são monólogos. Ele não conversa com
ninguém, a não ser com seus livros. Não tem nenhum enfrentamento. Não se encontra com
ninguém. Nada o comove. Nenhum interlocutor viola o inevitável isolamento de sua
experiência e de sua visão. Hércules é um homem, apesar de tudo. Não é a totalidade da sua
comunidade. Nenhum homem ou mulher pode sê-lo” (MICHELMAN, 1986, p. 76).
A jurisdição constitucional caracteriza-se pela unidade e indivisibilidade, por ser uma
das manifestações da soberania do Estado. Contudo, são diversos os critérios de classificação
da justiça constitucional, assim como uma divisão orgânica da jurisdição, em jurisdição
comum, especial e constitucional. Portanto, existem, “tecnicamente, múltiplas manifestações
de uma só jurisdição, para atender à plenitude e à especialização decorrentes dos
ordenamentos jurídicos” (BARACHO, 1989, p. 84).
Uma parte da doutrina adota a classificação de jurisdição comum ou ordinária,
jurisdição especial, jurisdição administrativa e jurisdição constitucional. A jurisdição comum
é exercida pelos órgãos que integram a magistratura ordinária e a jurisdição especial pelos
órgãos que integram o Poder Judicial. No Brasil não existe a jurisdição administrativa, a
exemplo da Itália e França, cuja função é corrigir os excessos e distorções da Administração
Pública.
A jurisdição constitucional se distingue das outras espécies por uma sucessão de
fatores e em razão da sua natureza original, do seu caráter político e até mesmo pela sua
prescindibilidade, já que se concebe uma ordem jurídica democrática sem tribunal
constitucional, como na Inglaterra (JAYME, 1999, p. 76).
Na jurisdição constitucional, as decisões são proferidas em única instância e o seu
alcance não se destina à tutela de direitos individuais, porquanto os provimentos são de
interesse de toda a coletividade. Outra característica da jurisdição constitucional diz respeito
ao controle de constitucionalidade das leis, que devem adequar-se à Constituição.
Os provimentos do Tribunal Constitucional, tanto no controle abstrato, quanto no
concreto, têm alcance geral. É essa agenda diferenciada que afirma o caráter especial do
Tribunal Constitucional, já que ele pode, por iniciativa de outrem, “opor-se às decisões do
governo e da legislação e sua sentença é vinculativa para os outros poderes” (HESSE, 1978,
p. 422). O Tribunal Constitucional tem, por conseguinte, participação expressiva na direção
superior do Estado.
De outra forma, os sistemas constitucionais podem ser divididos entre os que possuem
um controle de constitucionalidade mais ou menos desenvolvido, de outros, que não
reconhecem esse controle, em que o sistema britânico surge como paradigma da sua
prescindibilidade, ao mesmo tempo que consagra uma notável e sólida democracia. Dentro
dos sistemas que adotam o controle de constitucionalidade, podem ser apontados um sistema
político anti-judicial ou francês e um sistema jurisdicional ou norte-americano e austríaco.
No sistema político ou francês, cuja inspiração remete-se para a tradição jacobina e
para as formulações teóricas de Rousseau, ambas consagrando a supremacia do Parlamento,
por meio do controle político de constitucionalidade, nos moldes da Constituição suíça de
1848, com a Emenda de 1874, ou sob a influência das constituições francesas do ano VIII, de
1852, o controle de constitucionalidade é político, porque exercido por um órgão de
orientação política. De certa forma, a Constituição francesa de 1946, também corrobora a
tendência em qualificar o Conselho Constitucional como órgão político, tributária que é dessa
linha de pensamento.
Para caracterizar um órgão como político, vários aspectos são tomados em
consideração, indo da escolha dos seus membros; o modo de atuação; o caráter necessário do
controle em relação a determinadas leis; a falta do contraditório e de partes em sentido
técnico; até o seu caráter preventivo, inserido no processo de formação das leis
(CAPELLETTI, 1992, p. 29).
No sistema jurisdicional, a competência para fiscalizar a constitucionalidade das leis é
atribuída a qualquer juiz ou é reservada a um único órgão que, fazendo uso de instrumentos
jurídicos, de forma imparcial, decide com força de coisa julgada.
Entretanto, uma realidade se impõe, quando são apontadas as tentativas de distinguir
ou de afastar o atual modelo político francês do modelo jurisdicional. Em maior ou menor
grau, os elementos caracterizadores daquele modelo político se fazem presentes nos modelos
jurisdicionais. As formas de composição dos quadros de juízes, o modo de provocação dos
tribunais e sua atuação, invocam esta grande semelhança.
A pretensão doutrinária de que um controle preventivo dominante poderia servir de
base à distinção, tornando o Conselho uma terceira câmara política e, excepcionalmente, uma
jurisdição, não se sustenta. O fato é que o controle a priori se faz presente em outros sistemas,
ainda que de forma mais branda, mas de qualquer forma existente, não deixando dúvidas
sobre sua efetividade. Deve-se considerar relevante que mesmo no controle a posteriori de
constitucionalidade, a Corte se coloca na posição de outra câmara de revisão, seja julgando os
embates entre Governo e Parlamento, seja entre Governo central e Governo local, ou mesmo
entre as disputas parlamentares dos grupos da maioria e das minorias.
Para que a distinção entre o modelo político francês e o modelo constitucional faça
sentido, é necessário que um modelo de controle exercido por um órgão político em sentido
próprio, entre em cena. Esta forma de controle pode ser invocada no papel do Senado nas
Constituições do ano VIII e de 1852, da França, já que, para o efeito, não basta tomar como
parâmetro o papel do Conselho de Estado, que deve ser ouvido antes de o Governo submeter
qualquer projeto de lei ao Parlamento, ou mesmo o controle difuso previsto na Constituição
do ano III, com a atribuição a todos os cidadãos qualificados de protegerem a Constituição.
Nesse sentido, o modelo socialista deve ser lembrado, com sua técnica de deferir, em
alguns casos, competência ao Praesidium da Assembleia Legislativa a função de controle de
constitucionalidade dos projetos de Lei. São exemplos as Constituições da Romênia (1965);
da Hungria (1972); de Cuba (1976); da China (1978) e da então União Soviética, de 1977
(AZEVEDO, 2001, p. 13).
Com esse mesmo efeito, podem ser mencionados certos instrumentos de controle
recíprocos dos poderes funcionais do Estado, com efeito classificatório, como o veto do
Presidente da República a projetos de lei aprovados pelo Parlamento e considerados
inconstitucionais.
Um segundo critério para distinguir o modelo político do jurisdicional, está na
existência de um modelo norte-americano ou de Suprema Corte e um modelo austríaco ou
europeu de Tribunal Constitucional, ambos destinados essencialmente às operações
jurisdicionais.
No modelo norte-americano de Suprema Corte, de controle difuso, a jurisdição
constitucional se diferencia de outra qualquer pela supremacia da Constituição, que deve ser
garantida por qualquer juiz, em todas as instâncias do Poder Judiciário. A Suprema Corte se
põe não apenas como um terceiro grau de jurisdição federal, mas também como juízo de apelo
das decisões proferidas nos tribunais inferiores. Isto se dá por meio de certiorari, na hipótese
de estar em questão a validade constitucional de uma lei – seja originariamente, nos casos
constitucionalmente previstos. Por conseguinte, o controle de constitucionalidade é
descentralizado, incidental e a posteriori, atuando sobre um caso concreto levado ao tribunal.
Difundido à exaustão, o modelo de Suprema Corte espalhou-se pelo mundo, com
exemplos eloquentes na Argentina, Austrália, Guiana e Japão.
No modelo de Tribunal Constitucional austríaco, europeu ou concentrado, o
controle de constitucionalidade passa a ser principal, abstrato, cuja provocação compete
apenas a certas autoridades do Estado ou de representação da sociedade, com destaque da
função de garantia do respeito pelos valores constitucionais. A consequência dessa postura é
uma maior exigência da especialização jurisdicional, com a dotação de instrumentos e
técnicas processuais específicos e com a criação de um órgão único que centraliza todo o
controle.
Esse órgão se situa fora da hierarquia jurisdicional ou possui um destaque especial
nessa estrutura, detendo seja a especialização seja o monopólio do contencioso constitucional.
Adotam o modelo de Tribunal Constitucional, entre outros, a África do Sul, Alemanha,
Áustria, Bulgária, Chile, Espanha, Hungria, Itália, Luxemburgo, Polônia, Síria e Turquia.
Essa classificação, entretanto, se mostra insuficiente, pois se restringe exclusivamente
ao controle de constitucionalidade das leis, sem tocar nas demais competências dos tribunais
jurisdicionais. O fato é que existe um grupo de países que apresentam características dos dois
modelos. Como exemplo de Suprema Corte com controle abstrato, tem-se o Brasil, Canadá,
México, Namíbia e Nicarágua. De Tribunal Constitucional com controle concreto, a
Alemanha, Áustria, Espanha e Itália; ou com função de corte de apelação, Portugal e, em
geral, nos sistemas que possuem recursos ou ações individuais contra violação dos direitos
fundamentais, pois neste caso a Corte funciona como uma espécie de cassação universal
(SAMPAIO, 2002, p. 47).
O modelo de Suprema Corte pode assumir a feição de um controle preventivo de
constitucionalidade, como acontece em Belize, Canadá, Finlândia, Irlanda, Noruega,
Cingapura...; e até mesmo monopolizar ou controlar o contencioso, como nas Bahamas, Chile,
Granada, Nepal, Panamá e Uruguai; abrindo em outros casos, salas especializadas, a exemplo
da Costa Rica, El Salvador e Paraguai.
Por outro lado, existe Tribunal Constitucional que não detém monopólio da jurisdição
constitucional, ou o conserva de maneira atenuada, como em diversos países latinoamericanos. Na Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala e Peru, são exemplos de países em
que os juízes ordinários têm competência para conhecer de razões incidentais de
constitucionalidade.
Na Espanha e na Bulgária, este monopólio também é relativo e os tribunais ordinários
podem pronunciar-se sobre a constitucionalidade de regulamentos e disposições
administrativas sem valor de lei. Na Polônia, em caso de dúvida por parte do juiz, sobre a
constitucionalidade ou a legalidade de um regulamento, pode ele deixar de aplicá-lo, inter
partes, como pode formular consulta ao Tribunal Constitucional.
Na Espanha, também se pode deixar de fora da competência do Tribunal
Constitucional a fiscalização das leis anteriores à Constituição, o mesmo ocorrendo na
Bulgária, na Itália e na Romênia. Nestes países, o juiz ordinário pode simplesmente declarar
revogada a norma, embora lhe seja facultado enviar a questão ao Tribunal Constitucional para
declaração de inconstitucionalidade superveniente.
Em função do objeto controlado pelo Tribunal da jurisdição constitucional, pode-se
falar, ainda, dentro de um modelo preventivo ou francês e outro, americano e austríaco, de
uma especialização de modelos.
No modelo preventivo, francês ou de conselho constitucional, o sistema objetiva filtrar
as leis de possíveis vícios de inconstitucionalidade, antes de sua entrada em vigor. Na
perfeição da lei está a sua autoridade. Esse controle é obrigatório e sistemático, embora seja
previsto também de maneira facultativa. Adotado na França, foi copiado por outros países
como Argélia, Camboja, Congo, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Tunísia.
No modelo sucessivo, americano-austríaco, de corte suprema ou constitucional, o
controle de constitucionalidade deve ser da lei, não do seu projeto. Tradicionalmente é dado
ao juiz conhecer do ato normativo pronto, promulgado, sem que o Poder Judiciário entre no
debate legislativo. São exemplos os Estados Unidos, Alemanha, Argentina e Áustria.
Em razão dos fins perseguidos, outra decisão bipartida se impõe, entre um sistema
centrado nas leis e outro centrado na defesa dos direitos fundamentais (LLORENTE, 1998, p.
159).
No modelo centrado na lei, objetiva-se buscar harmonia e coerência à ordem jurídica, por
meio de instrumentos e mecanismos de aperfeiçoamento das leis e atos normativos que
atentem contra a Constituição. Em regra, instaura-se por meio de ação direta de
inconstitucionalidade, processos objetivos em que não aparecem as partes com interesses
particulares e concretos, mas detentores de poder constitucional para salvaguarda de
competências e organizações definidas na Constituição. Apenas indiretamente pode-se ter a
proteção dos direitos fundamentais ou constitucionais.
No modelo centrado na defesa de direitos, busca-se a imediata garantia dos direitos
constitucionalmente consagrados, podendo produzir, por via de consequência e apenas
incidentalmente, a consistência normativa do ordenamento. Sua expressão maior é o controle
difuso ou norte-americano, a que se deve acrescentar outros instrumentos processuais
concentrados de defesa dos direitos fundamentais, como o amparo e o recurso de direito
público, dentre outros.
Outra classificação fundada no tipo de processo e sobre a natureza e o objeto das
decisões dos órgãos encarregados de prestação da jurisdição constitucional, divide-se em
jurisdição concreta e jurisdição abstrata.
No modelo de jurisdição concreta, o processo se destina a resolver situações subjetivas
concretas de pessoas particulares.
No modelo de jurisdição abstrata, o objeto se contém num conflito de normas ou de
órgãos do Estado, visando principalmente regular uma questão relativa ao bom
funcionamento do mesmo, posta por uma pessoa com a missão de falar em nome de um
interesse geral.
Todavia, esta classificação não se constitui numa situação petrificada, pois aqui,
também, surgem figuras híbridas, abstrata e subjetiva, quando, por exemplo se interpõe um
recurso individual dirigido contra uma lei para proteção de direitos fundamentais específicos.
Como exemplo de modelo objetivo e concreto está o envio, por um juiz, a um tribunal, da
questão de inconstitucionalidade de uma lei aplicável para dirimir um caso concreto.
Se, porém, forem combinados os critérios orgânicos e processuais, mais uma
classificação se impõe. Na jurisdição concreta, entretanto, existem duas hipóteses distintas.
Na primeira a jurisdição concreta da Suprema Corte caracteriza-se por uma jurisdição
ordinária, submetida a uma hierarquia judiciária e à possibilidade de apelo
ou
recurso último, extraordinário ou de cassação à Corte, sem, no entanto, excluir-se a
possibilidade de recursos individuais por violação de um direito constitucionalmente
garantido.
Na segunda hipótese, a jurisdição concreta da Corte Constitucional contempla recursos
individuais de defesa dos direitos fundamentais e o reenvio à Corte da questão de
inconstitucionalidade. Nos dois casos, todavia e a rigor, as Cortes funcionam como Supremas
Cortes ou Cortes de revisão; seja pela hierarquia no primeiro caso, seja pela ligação que se faz
necessária no segundo caso.
Quanto à jurisdição abstrata, os tribunais são agentes políticos, órgãos estatais ou
sociais que agem com vistas a assegurar o funcionamento do Estado nos termos estabelecidos
pela Constituição. Também se dividem em jurisdição abstrata de Corte Suprema e Jurisdição
abstrata de Corte Constitucional, abrangendo conflitos entre os poderes públicos federativos e
conflitos de normas (controle prévio ou posterior).
A realidade aponta que não existe um sistema puro, concreto ou abstrato; nem
totalmente concentrado ou difuso. O exemplo da Suprema Corte norte-americana é
emblemático, pois detém competência para conhecer de conflitos entre os Estados e, pela sua
posição institucional, tem a última palavra em matéria constitucional, não sendo rara a
hipótese de ação declaratória simulada. Com exceção da França, se limitada a observação
apenas ao Conselho Constitucional, não existe um sistema exclusivo de jurisdição abstrata e
objetiva.
Uma última classificação se coloca, considerando o âmbito da jurisdição e o rol de
competências. Assim, temos:
a) jurisdição constitucional de caráter interno, assentada no rol de competências
constitucionais atinentes a um contencioso de normas, ou seja, a jurisdição constitucional de
controle de constitucionalidade ou juiz de constitucionalidade; existe um contencioso penal
(jurisdição constitucional penal); um contencioso eleitoral; um contencioso de conflitos
constitucionais entre entes federativos e entre órgãos constitucionais; e um contencioso de
direitos fundamentais (jurisdição constitucional da liberdade);
b) jurisdição constitucional de caráter internacional e comunitário, semelhante ou moldada na
jurisdição constitucional de caráter interno, de quem assimilou técnicas e experiências. Na
verdade trata-se do alargamento desta, no cruzamento das duas ordens, voltada para a
resolução de conflitos entre atos e disposições legislativas internas, com as normas e
princípios internacionais ou comunitários entre as normas externas e os preceitos
constitucionais internos.
c) controle de conformidade dos atos internos com as normas externas, que se apresenta sob
duas questões. A primeira trata da hierarquia existente entre os atos externos e internos e a
segunda sobre o órgão encarregado de exercer a fiscalização. No primeiro caso, existe uma
variada gama de enfoques. Na Itália, Alemanha e Portugal, as Constituições dão um
tratamento especial ao Direito Internacional. Em vários outros sistemas, os atos internacionais
possuem a mesma estatura das leis ordinárias, como no Brasil; em outras lhe são conferidas
hierarquia superior às leis internas.
Na Europa os juízes nacionais exercem o controle difuso, incidental e prejudicial dos atos
internos em face do direito comunitário, podendo deixar de aplicar as normas nacionais que
considerem contrárias aos tratados da Comunidade. Isso não inibe um controle concentrado
perante a Corte Europeia de Direitos Humanos, que decide sobre recursos individuais
fundados na violação dos direitos fundamentais por atos do poder público de um Estado
signatário. No exercício dessa competência a Corte define qual interpretação deve ser dada às
disposições da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Enquanto os Tribunais Constitucionais visam a conciliação entre interesse público e
interesse privado, a Corte Europeia procede a uma reconciliação entre interesses estatais e
interesses individuais. Naqueles procede-se à invalidação da norma abstrata e impessoal,
enquanto na Corte visa-se uma situação ou decisão individual. Por isso o provimento do
recurso não gera nulidade ou anulação do ato impugnado, apenas decreta a responsabilidade
internacional do Estado e a reparação de danos ao recorrente. Ademais, fortalece a tese de
que, no quadro das medidas gerais que devem ser adotadas pelos Estados, há de se incluir a
obrigação positiva de edição de norma jurídica compatível com os termos da decisão. A ideia
é levar os Estados a ab-rogar as normas reputadas inconvencionais condenando, em linha de
princípio, o Estado que não adotar providência para alterar sua legislação, considerada
contrária à Convenção, em outro recurso envolvendo outro Estado.
d) controle dos atos externos em face das constituições nacionais, exercido de duas formas. A
primeira com base num procedimento preventivo, como na França, Portugal, Espanha e Costa
Rica, em que o Tribunal examina a conformidade entre os tratados subscritos pelo Executivo
antes de sua aprovação pelo Parlamento, abrindo-se três possibilidades em caso de
incompatibilidade: reforma da Constituição; aprovação com reservas e renegociação pelo
Executivo para eliminar os dispositivos inconstitucionais, ou rejeição pura e simples.
Na segunda forma, o procedimento é sucessivo ou posterior, ao procedimento anterior
de fiscalização pelo Tribunal da jurisdição constitucional do tratado, depois de sua
incorporação na ordem jurídica interna. Em caso de inconstitucionalidade, impõe-se a não
aplicação ou nulidade, fazendo-se a denúncia do ato que, no entanto, permanecerá vinculante
do ponto de vista do Direito Internacional, até que a denúncia se concretize.
CONCLUSÃO
Uma norma jurídica para ter validade, precisa buscar seu fundamento numa norma
superior e, assim por diante, de tal forma que todas as normas, cuja validade pode ser
reconduzida a uma mesma norma fundamental, formem um sistema de normas, uma ordem
normativa.
Nesse sistema normativo, a Constituição é a norma suprema, fundamental, pois é nela
que se busca a validade das normas existentes. No corpo do texto constitucional devem estar
contidas as normas relativas às condutas que o poder constituinte de uma sociedade política
erigiu à categoria de fundamentais para si e as reputou importantes e supremas.
Em qualquer ordenamento jurídico, as normas constitucionais ocupam uma posição de
primazia, porque não encontram outras que lhes sejam superiores, salvo se elas mesmas assim
o determinar, como é o caso dos Estados que adotam o princípio da superioridade do direito
internacional sobre o nacional. A Constituição é sempre o parâmetro de validade das demais
normas, na medida em que para terem validade, estas normas devem conformar-se aos
ditames das normas constitucionais.
Pode-se afirmar em relação à supremacia constitucional que, no mundo dos valores, a
Constituição é suprema por conter as normas fundamentais de uma determinada sociedade
política. No plano jurídico, a Constituição é suprema porque suas normas são rígidas e
requerem u procedimento especial e qualificado para serem modificadas.
Tendo em vista a hierarquia das normas, a condição de supremacia constitucional
impõe-se como referencial para todo ordenamento jurídico, sendo que, ao menos em tese, a
garantia dos princípios nela contidos estaria preservada. Portanto, no ordenamento jurídico
deve existir a compatibilidade vertical de normas, tornando-se a incompatibilidade uma
situação anômala, atacável por via do controle de constitucionalidade de leis e atos do Poder
Público.
Acatando-se o axioma de que a Constituição tem como finalidade limitar e
racionalizar o poder estatal, distribuindo-lhe por diversos órgãos independentes e sujeitos a
controles, e que é dotada de rigidez e supremacia normativa, desemboca-se no fenômeno do
controle de constitucionalidade. A forma de garantir a supremacia da lei magna, indispensável
em todo Estado democrático de Direito, só se podendo falar em controle do poder nos Estados
democráticos, posto que nos Estados autoritários, o poder concentra-se, de maneira
monolítica, em detentores que o exercem sem fiscalização e limites.
Depreende-se, então, que o controle de constitucionalidade é o mecanismo disposto na
Constituição, que tem por objeto defender a supremacia das normas constitucionais,
competindo ao Poder Público, através de seus órgãos, demonstrar a desconformidade
existente entre uma lei e as normas constitucionais.
O sistema de controle de constitucionalidade varia de país para país. No Brasil são três
as espécies de controle de constitucionalidade: o controle político, o controle jurisdicional e o
controle difuso. \porém, considerando o momento de intervenção do órgão competente para
apreciação da inconstitucionalidade, encontramos sistemas que adotam o controle preventivo,
que ocorre numa fase anterior à publicação da lei, ou seja, antes da produção final do ato
legislativo. Nesse caso, ainda se está diante da formação do ato, do estudo e da discussão do
projeto de lei.
Esse controle se dá, efetivamente, quando o projeto de lei passa pelo crivo da
Comissão de Constituição e Justiça, ou quando o próprio chefe do Executivo veta o projeto. O
controle preventivo é exercido tanto pelo Poder Legislativo, através da Comissão de
Constituição e Justiça, quanto pelo Poder Executivo, através do veto.
Existe ainda o controle repressivo, que se dá após a publicação da lei ou ato
normativo. Também faz parte deste tipo de controle, o veto de competência do Congresso
Nacional, quando os atos do Poder Executivo exorbitem o poder regulamentar ou os limites
da delegação legislativa.
O princípio do controle de constitucionalidade liga-se à concepção moderna de Estado
democrático de direito, que traz ínsito a ideia de um sistema jurídico contrário a qualquer
forma de opressão do indivíduo. Tal modelo foi expressamente recepcionado pela
Constituição de 1988, fundada na legalidade e no controle judiciário. O princípio da
constitucionalidade expressa que o Estado brasileiro norteia-se na legitimidade de sua
Constituição, emanada da vontade popular e dotada de soberania, vinculando todos os poderes
e atos deles provenientes, com a garantia de atuação livre de regras da jurisdição
constitucional. Foi a partir da necessidade de adequação vertical das normas
infraconstitucionais à lei fundamental, que surgiu o sistema de controle jurisdicional de
constitucionalidade de leis e atos normativos.
Quanto ao sujeito controlador, além dos magistrados, os demais operadores do direito
têm a obrigação de controlar a juridicidade dos atos jurídicos, agindo cada qual no âmbito de
sua atividade. O controle exercido pelos juízes é repressivo da inconstitucionalidade, sendo
posterior à existência da lei. A atividade de controlar a juridicidade converte-se em legítimo
poder-dever democrático. Ou seja, qualquer cidadão, praticante de um ato jurídico e que nele
colabore, ou não, deve controlar sua juridicidade.
Em relação ao Supremo Tribunal Federal e ao instituto da jurisdição constitucional,
esta legitimidade deve ser melhor encontrada mediante a sua reformulação ou a criação de
novos critérios de composição, competências e atuação. Quanto mais perto estiver do povo o
juiz constitucional, mais elevado há de ser o grau de sua legitimidade. Isto não significa que o
STF deva abdicar-se de suas competências originárias de guardião da Constituição e nem que,
a exemplo nosso, se encarregue de outras funções que não esta.
O STF, embora possua as típicas competências dos Tribunais Constitucionais
europeus, deles se distanciou por constituir-se, também, na última instância da jurisdição
ordinária. Esse distanciamento reflete-se na realidade processual, com o inusitado número de
processos que chegam àquela Casa. Todavia, para que o STF possa assumir plenamente seu
papel de órgão de direção do Estado, transformando-se exclusiva e definitivamente em Corte
de Constitucionalidade, não basta a simples alteração constitucional de suas competências,
sendo igualmente necessário alterações na sua composição e no procedimento de atuação,
Ao STF deve competir, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe
processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo federal ou estadual; a ação declaratória de constitucionalidade; pedido de medida
cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de
constitucionalidade; a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; a ação de
inconstitucionalidade interventiva e a arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Nosso sistema é um dos mais completos, pois adota, conjuntamente, os métodos
difuso e concentrado. Dessa forma, o atual modelo deve ser mantido, mas em se tratando do
controle judicial preventivo de constitucionalidade, que legitima todos os parlamentares a
ingressarem com mandado de segurança deve ser ampliado para possibilitar o controle
jurisdicional em respeito aos direitos dos grupos parlamentares minoritários.
Conclui-se com a lembrança de que a jurisdição constitucional retira sua legitimidade
formalmente da própria Constituição e materialmente da necessidade de proteção ao Estado
de direito e aos direitos fundamentais, pois as decisões dos Tribunais Constitucionais
prevalecem sobre a dos representantes eleitos, porque se presume que assim desejou a maioria
na elaboração da Constituição, por meio do exercício do poder constituinte originário e
porque AS Cortes Constitucionais são órgãos de garantia da supremacia de seus princípios,
resguardando dessa forma o Estado de direito e preservando as ideias básicas da Constituição.
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