JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Sílvio Martins RESUMO A jurisdição constitucional é um instrumento, e dos mais eficazes, na defesa da correta aplicação dos comandos constitucionais, além de estender sua proteção aos direitos fundamentais. Sua importância para a reelaboração do direito contemporâneo se reveste de atributo especial, quando se tem como certo que a história da constituição seria outra, sem a jurisdição constitucional. A concepção de uma lei fundamental, apontando para uma hierarquia normativa e para o vértice da função legiferante ordinária, se consolida na supremacia das normas constitucionais, que o poder constituinte de uma sociedade erigiu para si e, por isso, as elevou à categoria de normas supremas. Palavras-chave: jurisdição, constituição, supremacia, direito, controle, hierarquia, poder judiciário. ABSTRACT The constitutional jurisdiction is an instrument,and the more effective one, in the defense of the correct application of constitutional commands, besides extend its protection tofundamental rights. Its importence for the reworking of contemporary law is of special attribute,whwn it takes for granted that the history of constitution would be another without constitutional jurisdiction. The conception of a fundamental law, pointing to a normative hierarchy and to the vertex of ordinary legislating function, consolidates itself in the supremacy of constitutional norms, the constituend power of a society erected for himself and therefore elevated them to the category of supreme standards. Keywords: jurisdiction, constitution, supremacy, Law, control, hierarchy, judiciary power. INTRODUÇÃO A jurisdição constitucional busca identificar o nascimento, características, funções, evolução e efetividade desse instrumento constitucional e sua atuação em defesa da plena e correta aplicação dos comandos constitucionais e na proteção dos direitos fundamentais. O objetivo é trazer à compreensão a ideia da jurisdição constitucional, apontando seu significado dentro do constitucionalismo e sua importância para a reelaboração do direito contemporâneo. Tal projeção se reveste de atributo especial, quando se tem como certo que a história da Constituição seria bastante diferente, sem a jurisdição constitucional. Isto nos remete para as raízes do constitucionalismo, plantadas solidamente no século XVIII, com as primeiras constituições, a americana e a francesa. Ms. Ciências Jurídico-Filosóficas – Univ. de Coimbra. Ms. Ciências Jurídico-Políticas – Univ. de Lisboa Contudo, a arqueologia jurídica abre seus aposentos de poeira e tempo e apresenta conteúdos que ultrapassam os sistemas político-jurídicos positivados naquelas pioneiras e emblemáticas Cartas. A ideia da lex fundamentalis aponta para uma hierarquia normativa e para o vértice da função legiferante ordinária. A distinção das normas jurídicas na antiga Grécia, em nómos e pséfismas, correspondendo aqueles as leis superiores e estes aos decretos. Antes, contudo, com Péricles e a defesa da supremacia de determinadas leis que, na graphé paranomóm encontrou o instrumento ideal para denunciar comandos em conflito com a politeia e com o nómos. Em Roma, no período da República, o Senado exercia a função de órgão jurisdicional, confirmando ou derrogando decisões tomadas nas assembleias populares. Uma lei votada na cimeira pública só produzia efeitos depois de aprovada pelo Senado e, em caso de reprovação, era expelida do sistema jurídico. No final da República, o magnífico Cícero lapidou sua concepção de direito natural e defendeu que acima do Senado e do povo existisse um magistrado que fizesse executar a lei e o respeito ao direito de cada qual. Todavia, observou Cícero, mais do que promover a execução da lei, deve o magistrado cumpri-la. A patrística com Santo Agostinho e a escolástica com São Tomás de Aquino, não resistiram às imposições dos novos tempos e as demandas políticas e jurídicas, que apontavam para novas direções. O debate jurídico voltou seu dínamo para fora das fronteiras eclesiásticas e a ideia dos direitos inatos do homem riscou no mosaico jurídico a linha mestra que determinava o comportamento do homem diante de outro e do poder público em face do mesmo. A ideia imponente e vigorosa de um direito natural acima do direito positivo foi a base de sustentação jurídica dos Estados nacionais em formação, embora faltassem instrumentos e órgãos capazes de assegurar esses direitos. Entretanto, a função de declarar o direto aplicável aos fatos, bem como causa final do Poder Judiciário, iniciou sua construção na Inglaterra, onde a subordinação da lei ao common law é fruto de várias decisões judiciais e jurisprudenciais. Porém, uma única e essencial ideia perpassa a concepção da jurisdição constitucional, fazendo com que as demais lhe sejam subjacentes e até mesmo dependentes: a supremacia das normas constitucionais, que o poder constituinte de uma sociedade erigiu como fundamentais para si e, por isso, as elevou à categoria de normas supremas. Depois da instituição do judicial review norte-americano, que consagrou a Suprema Corte e notabilizou Marshall, a Constituição austríaca de 1920, sob a inspiração de Kelsen, criou a Corte Constitucional. A Constituição italiana de 1947, também criou a Corte Constitucional, o mesmo ocorrendo na Alemanha, com a Lei Fundamental de Bonn, em 1949, fazendo com que muitos países seguissem na mesma direção. A ideia de controle partiu da compreensão de que as leis são os objetos de verificação, em suas variadas formas e hierarquias. Embora diferentes, os controles têm por vértice e confluência o bem comum e os valores éticos e superiores da sociedade, alçada à categoria de direitos nas instâncias fiscalizadoras da legitimidade constitucional. A juridicidade ou judicialidade na justiça constitucional, ínsita ao controle difuso, muda de feição em se tratando de controle abstrato de lei, porquanto a proteção imediata que ai se concede não é ao direito subjetivo, mas ao direito objetivo, à constitucionalidade mesma da ordem estabelecida, de tal sorte que o controle toma, desde então, um sentido mais político que propriamente jurídico. O fato é que o controle exercido pelos Tribunais Constitucionais constitui um necessário e imperativo sistema de complementaridade entre a democracia e o Estado de Direito que, para manter-se em equilíbrio, deve trazer claras e precisas as regras sobre sua composição, competências e poderes. Os fundamentos do controle no estado de direito, pressupõem a separação dos poderes, a declaração de direitos e o devido processo, bem como o respeito à supremacia da norma constitucional e a existência de uma Constituição escrita. O controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público é uma garantia para a plena eficácia do sistema normativo constitucional. O controle de constitucionalidade no Brasil é resultado da experiência histórica, que propiciou o surgimento de um sistema peculiar, que combina os critérios do controle difuso e do controle concentrado. Este último se apresenta mais adequado à defesa dos direitos fundamentais, por via da ação direta de inconstitucionalidade perante o STF que, embora não seja um tribunal constitucional, segundo o modelo europeu, passou a ter competência de jurisdição constitucional, competindo-lhe, precipuamente, a guarda da Constituição. Só isso, porém, não seria suficiente para a organização de um sistema eficaz de proteção aos direitos humanos, pois tal competência já lhe cabia no regime das Constituições anteriores e, não raro, suas decisões eram contaminadas pela sustentação do arbítrio do regime militar. De outra feita, anteriormente à Carta de 1988, a legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade pertencia apenas ao Procurador Geral da República, que era e continua sendo de livre nomeação e exoneração pelo Presidente da República, de sorte que só promovia ações de interesse do regime. Com a Constituição de 1988, a legitimação para propor tal ação compete a várias autoridades e instituições. 1) Jurisdição constitucional A jurisdição constitucional objetiva efetivar a ordem jurídica e impor, através do Poder Judiciário, o cumprimento das normas que, por exigência do direito vigente, devem regular as mais diversas situações jurídicas (MARQUES, 1966, p. 216). Na qualidade de expressão da soberania do Estado, a jurisdição é a capacidade de decidir imperativamente e de impor decisões, sendo o canal que dá efetividade ao Direito. Através da manifestação do seu caráter soberano, o Estado conhece os conflitos de interesse, ou não, e declara em seu nome e não em nome das partes, o direito aplicável ao caso, podendo executar o decisum, se provocado (CHIOVENDA, 1964, p. 9 e 11). A importância da jurisdição constitucional está no fato de firmar o Poder Judiciário no cenário dos poderes de Estado, afastando a percepção vulgar de ser este Poder um mero órgão de solução de conflitos de interesses. Ou seja, o Poder Judiciário não se resume a um órgão de Estado, cuja função se esgote na prolação de sentenças. Nessa perspectiva, é necessário reconhecer ao mesmo sua legítima participação no processo político e institucional do País. No exercício da função jurisdicional, o Estado se materializa juridicamente, sob os mesmos fundamentos que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem jurídica instituída, as funções legislativa e executiva (GONÇALVES, 1992, p. 50). A jurisdição constitucional, portanto, prende-se à “função de declarar o direito aplicável aos fatos, bem como é causa final e específica da atividade do judiciário” (BARACHO, 1984, p. 75). Nessa função, a jurisdição constitucional é a própria reinvenção da Constituição, à medida que decifra e reprime os excessos do sistema político no código jurídico, através de sanções (SAMPAIO, 2002, p. 888-889). A jurisdição constitucional “consiste na atuação da lei mediante a substituição da atividade de órgãos públicos à atividade de outros, seja no afirmar a existência de uma vontade das leis, seja em torná-la posteriormente efetiva” (CHIOVENDA, 1964, p. 3). A jurisdição deixou o clássico conceito de apenas dizer o Direito para o caso concreto, pois o controle de constitucionalidade praticado pelos Tribunais Constitucionais desenvolveuse em abstrato, sem qualquer referência a um caso concreto, tratando-se, contudo, de uma atividade jurisdicional. Uma atividade dos poderes que no controle das leis, explica-se pelo sistema hierárquico de valores entre normas e pela constituição escrita ou flexível, cujos elementos diferenciam a lei constitucional das leis ordinárias. A isto se soma a indispensável separação dos poderes do Estado, de maneira que cada um tenha circunscrita a órbita intransponível de sua competência e um órgão incumbido de assegurar a vigência do sistema hierárquico de valor das leis, prescrito nos dispositivos constitucionais ou decorrentes da própria natureza de determinado regime jurídico-político (JÚNIOR, 1989, p.125). A jurisdição é uma manifestação típica da atividade judiciária, derivada do ato jurisdicional e confirmadora da força do direito na solução de conflitos. Por seus órgãos, a função judiciária constitui uma atividade criadora do direito. A decisão política convertida em lei é, na visão interna do sistema jurídico, assimilada ou expelida pela decisão judicial, embora as motivações da sentença estejam, explícitas ou não, sob a influência política que as engendrou. A jurisdição é uma proteção substitutiva, já que o órgão jurisdicional atua substituindo as partes envolvidas no processo. Ela serve à tutela de direitos e interesses contra lesões ou violações de direito, tendo como ponto de partida para o exame da jurisdição o próprio Estado, cuja existência explica sua origem (MANDRIOLI, 1975, p. 10). Essa vinculação com o Estado, em certa medida presente na doutrina medieval e fortemente tributária dos ideais igualitários da Revolução francesa, decorre em substituição das jurisdições senhoriais. Modernamente, porém, a jurisdição desenvolveu-se na direção do controle de constitucionalidade dos atos normativos do Estado, diante da necessidade de que as leis fossem fiscalizadas judicialmente. Já Hamilton considerava que “a independência completa dos tribunais de justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada. Por Constituição limitada entendo a que contém certas proibições expressas aplicáveis à autoridade legislativa, como, por exemplo, a de não ditar decretos que imponham penas e incapacidades sem prévio julgamento, leis ipso facto e outras semelhantes. As limitações dessa índole só podem ser mantidas na prática através dos tribunais de justiça cujo dever tem de ser o declarar nulos todos os atos contrários ao sentido evidentes da Constituição. Sem isso, todas as reservas que sejam feitas com respeito a determinados direitos ou privilégios serão letra morta (HAMILTON, 1989, p.313). Trata-se, pois, a função jurisdicional, de determinar o direito aplicável ao caso e, de modo mais amplo, manter e atualizar as normas jurídicas, abarcando o controle abstrato de constitucionalidade das leis, quando desenvolvido pelo Judiciário (GARCIA-PELAYO, 1991, p. 103). Neste aspecto, o controle judicial da constitucionalidade das leis, por meio da legislatura, age sob uma autoridade delegada, limitada pela própria Constituição, habilitando o Judiciário a declarar o que uma lei significa, fazendo decair toda lei inconstitucional submetida à provação das cortes (COOLEY, 1982, p. 23). A adoção do judicial control ou de processos equivalentes, nos Estados democraticamente constituídos, é apenas o reconhecimento de que uma lei que reparte os poderes dos órgãos estatais é logicamente superior às outras leis e, relativamente imutável (PONTES DE MIRANDA, 1974, p. 113). A jurisdição em sua integridade conceitual abarca todas as questões, não havendo qualquer demanda que escape ao seu poder de atuação, por isso um processo contínuo de expansão, crescendo à medida que o Estado tutela novos direitos e permite a criação de instrumentos processuais para torná-los possíveis e eficazes (LASCANO, 1941, p. 36). Entretanto, o vocábulo jurisdição é um conceito de direito público que não está preso, exclusivamente, ao direito judiciário. Assim, tomar a jurisdição pelo órgão que a realiza é fixar-se ao critério formal, que é um dos elementos para a sua noção, mas não o único. Ela envolve ato jurisdicional, que implica em pretensão, e se apresenta como questão de direito, colocado em termos contraditórios, que posteriormente assume a forma processual (CASTRO NUNES, 1943, p. 3). O processo, por ser meio de realização da jurisdição, é concebido como instrumento da paz social, onde se busca a eliminação do conflito, devolvendo à sociedade a tranquilidade desejada. Por isso a dimensão instrumental do processo se desenvolve aliado aos escopos da jurisdição e da instrumentalidade, que revelam a função sócio-política da atividade jurisdicional (DINAMARCO, 1994, p. 48). À jurisdição compete, mediante processo, conferir eficácia forçada às relações jurídicas espontaneamente ineficazes, impondo uma sanção jurídica em razão do dever jurídico descumprido, como forma de atendimento ao direito que foi lesado ou ameaçado. Ao juiz prolator da jurisdição exige-se um comportamento atuante e não mais uma posição inerte, de mero aplicador da lei. As teorias tradicionais do direito já exigiam uma completa adesão à realidade social. Portanto, a dimensão axio-política do processo, aponta-o como paradigma da democracia, porque aliado à jurisdição, age como instrumento de efetivação de direitos subjetivos contemplados, mas ineficazes. A Constituição Federal brasileira arrola os objetivos a serem alcançados pelo Estado, cujo artigo 3º inclui a jurisdição como elemento teleológico do processo. Como é indispensável a figura da jurisdição para possibilitar a efetivação da sanção, a relação processual é o único e necessário ambiente para a sua realização. Isto leva à conclusão de que não se pode falar em dualismo jurídico, visto que o direito processual visa conferir eficácia forçada ao direito subjetivo material, mediante realização do direito objetivo (direito material forçadamente eficaz). A jurisdição está fundamentada no ato jurisdicional, que se efetiva pela realização da norma e sua aplicação no caso concreto. O ato jurisdicional se concretiza quando o Poder Judiciário aplica normas jurídicas em casos contraditórios, substituindo a vontade dos órgãos do Estado ou de terceiros e impõe ao litígio a conformidade da Constituição, atuando de ofício ou a pedido dos mesmos. Do ponto de vista material, o ato jurisdicional é uma constatação sobre a conformidade ou não, de um ato, situação ou fato ao ordenamento jurídico. O ato jurisdicional é, enfim, uma decisão cuja força jurídica faz coisa julgada e transforma-se em definitivo, através de disposições obrigatórias (DINAMARCO, 1994, p. 48). A jurisdição constitucional na sua função de dizer o direito aplicável está intimamente ligada ao princípio da supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, além de prestar-se à defesa dos direitos fundamentais e à própria rigidez constitucional. Em obediência a estes princípios, uma norma infraconstitucional não pode afrontar preceitos contidos na norma ápice, nem modificá-los ou suprimi-los. A jurisdição constitucional exerce o controle de constitucionalidade, verificando a compatibilidade de uma norma menor ou de um ato normativo com a constituição. Esta verificação se dá tanto no plano dos requisitos formais quanto dos requisitos materiais. No plano formal, verifica-se se a norma foi produzida conforme o processo legislativo disposto na Constituição. No plano dos requisitos materiais, verifica-se a compatibilidade do objeto da lei ou ato normativo com a matéria constitucional. A jurisdição constitucional é tomada, pois, no sentido de atividade jurisdicional que tem como objetivo verificar a concordância das normas de hierarquia inferior, leis e atos normativos, com a Constituição, desde que violem as formas impostas pelo texto constitucional ou estejam em contradição com o preceito da Constituição, pelo que os órgãos competentes devem declarar sua inconstitucionalidade e consequente inaplicabilidade. A faculdade de considerar uma lei inconstitucional quer deixando de aplicá-la porque em conflito com a Constituição, quer declarando inconstitucional uma Constituição estadual, porque em conflito com a Constituição federal, são atos tecnicamente jurisdicionais, porque envolvem o julgamento da legalidade, mas que representam participação na área normativa constitucional ou legislativa. Em relação ao processo constitucional, não há como dissociá-lo da jurisdição constitucional, na medida em que processo significa o conjunto de atos, fatos ou operações que se agrupam de acordo com certa ordem, para atingir um fim, cujo objetivo principal é a decisão de um conflito de interesses jurídicos. Nesse sentido, é dizer que a jurisdição constitucional atua por meio do processo constitucional, através do qual se aplica todas as normas de encaminhamento de matéria fundamental à estrutura política do Estado, vinculando-a às limitações provenientes da defesa jurídica da liberdade. A jurisdição constitucional, também, não pode ser identificada com o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, posto que o controle representa senão um, dos vários possíveis aspectos da assim chamada justiça constitucional, e não obstante, um dos aspectos mais importantes. A jurisdição ou justiça constitucional reveste-se de múltiplas formas de manifestação ou de provocação, compreendendo, por sua vez, o controle judiciário de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, bem como a jurisdição constitucional das liberdades e dos direitos fundamentais. No Brasil a justiça constitucional se materializa com o uso dos remédios constitucionais do habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, ação popular e ação civil pública. A jurisdição constitucional deve ser compreendida pelo que ela é, ou seja, a parte da administração da justiça que tem como objeto específico matéria jurídico-constitucional. A jurisdição constitucional é tomada, assim, no sentido de atividade jurisdicional, que tem como objetivo verificar a concordância das normas de hierarquia inferior – leis e atos administrativos – com a Constituição, desde que violem as formas impostas por ela ou estão em contradição com os seus preceitos, pelo que os órgãos competentes devem declarar sua inconstitucionalidade e consequente inaplicabilidade. Entretanto, reduzir a jurisdição constitucional apenas ao controle de constitucionalidade, é limitar o seu campo de abrangência. Outras manifestações incluem-se na sua órbita e realçam a sua compreensão, que passa: a) pela tutela dos direitos fundamentais frente a qualquer disposição dos poderes públicos; b) pela resolução dos conflitos de atribuições entre os poderes de Estado; c) pela fiscalização das atividades dos titulares de órgãos constitucionais; d) pelo controle da legitimidade dos partidos políticos e pelas funções do contencioso eleitoral; e) pela manutenção e garantia da democracia e pelo sistema de checks and balances; f) pela passagem da soberania parlamentar, na maioria dos sistemas constitucionais ocidentais, para a soberania da Constituição, reforço da legalidade no Estado democrático de direito e legitimidade constitucional. A jurisdição constitucional tutela a regularidade constitucional no exercício ou atividade dos órgãos constitucionais. Ao mesmo tempo faz valer as situações jurídicas subjetivas do cidadão, previamente consagradas no texto constitucional. Por isso a jurisdição constitucional da liberdade é o instrumento para resguardar o cumprimento e a superioridade de certos direitos fundamentais (CASTRO, 1975, p. 149-150). Todavia, surgem dúvidas para precisar com rigor o que é matéria de natureza constitucional. Para parte da doutrina, sua essência está na fiscalização da constitucionalidade, embora considere, também, o julgamento dos ilícitos praticados por titulares de órgãos constitucionais (DI RUFFIA, 1974, p. 543). Conteúdo que se enriquece e se amplia com o entendimento do contencioso da liberdade ou com o nascimento da jurisdição constitucional da liberdade, própria para a proteção, em gênero, dos direitos fundamentais. Sob o rótulo de contencioso constitucional, compreende-se todo o conjunto de litígios que podem nascer da atividade das instituições constitucionais, assim como os processos que permitem resolvê-los. Outra corrente se atém ao contorno formal-orgânico da jurisdição constitucional, prestada por um órgão especializado, encarregado de resolver os conflitos constitucionais que lhe são deferidos. Para esta o sentido estrito é tecnicamente mais acertado, pois compreende o estudo da atividade de verdadeiros tribunais, formal e materialmente considerados, que conheçam e resolvam as controvérsias de natureza constitucional de maneira específica (FIXZAMUDIO, 1968, p. 15). A conciliação entre os dois critérios (formal e material) pode ser conseguida “com a identificação da jurisdição constitucional como uma garantia da Constituição, realizada por meio de um órgão jurisdicional de nível superior, integrante ou não da estrutura do judiciário comum, e de processos jurisdicionais, orientados à adequação da atuação dos poderes públicos aos comandos constitucionais, de controle de atividade do poder do ponto de vista da Constituição, com destaque para a proteção e realização dos direitos fundamentais” (SAMPAIO, 2002, p. 23). O certo, porém, é que a jurisdição constitucional em algumas das competências deferidas, não passa de um órgão incumbido de uma atividade administrativa, de certificação de vacância, de controle de requisitos ou condições de elegibilidade ou incompatibilidade, mas, na grande maioria das vezes, exerce uma atividade própria de jurisdictio, em todos os seus aspectos, formais e materiais. A análise histórica da jurisdição constitucional nos remete para o século XVIII, quando surgiram as primeiras constituições escritas. Entretanto, a arqueologia jurídica apresenta conteúdos que ultrapassam as fronteiras das constituições positivadas, identificando instrumentos legais em outros sistemas jurídico-políticos mais antigos, cuja supremacia em relação ao restante ordenamento jurídico sempre pareceu inconteste (CAPPELETTI, 1984, p. 599). A ideia de lex fundamentalis, por si só pressupõe a existência de uma hierarquia normativa que o legislador de então distinguiu com superioridade vertical, colocando-a no ápice da arquitetura jurídica e no vértice da função legiferante ordinária. Embora tais leis não expressassem ou sequer sugerissem o figurino ou a consciência de um hipotético e remoto constitucionalismo, o certo é que havia um escalonamento de leis – ou de um corpo de leis – em relação a outras normas jurídicas, conferindo àquelas uma precedência especial, através das quais seria futuramente regulada a produção das normas jurídicas gerais (KELSEN, 1985, p. 240-241). Na antiga civilização ateniense, os helenos distinguiam as normas jurídicas em nómos e pséfisma, significando que àquelas correspondiam as leis superiores e a estas os decretos, ou mais moderna e aproximadamente a legislação infraconstitucional. Os nómoï ou leis superiores tratavam da organização do Estado e só podiam ser modificados através de um procedimento extraordinário, que demandava a eleição de corpos legislativos especialmente sufragados para esse fim (BATAGLINI, 1957, p. 149). Seu caráter jurídico e sua essência política consagrados à estruturação e à manifestação do Estado como uma unidade organizada, e sobretudo destinados à sua feitura de especial complexidade, permitem, sem nenhuma concessão, estabelecer correspondência tanto com as chamadas leis constitucionais fundamentais, quanto com a contemporânea noção procedimental de revisão constitucional. Construída no pensamento sofista, a ideia de supremacia dos nómoï surgiu da fratura que distinguiu nomos e physis (WELZEL, 1971, p. 6). Na filosofia de Platão a lei se destinava a uma obrigação ética, moral e transcendental, reproduzindo no cenário da cidade-Estado uma ordem imutável e divina e por isso mesmo alheia aos interesses e paixões mundanos (PLATÃO, 1987, p. 477-484). Em Aristóteles os ideais e valores da democracia ateniense refletem-se na defesa do primado da lei sobre a vontade e o governo dos homens, por isso as leis são necessárias, pois “o controle público é plenamente efetuado pelas leis, e o bom controle depende de boas leis” (ARISTÓTELES, 1987, p. 82 e 91-92). No Tratado da Política, Aristóteles não só exige uma lei justa, fruto da razão humana, mas um elenco de leis fundamentais de organização do Estado e, por isso mesmo, superiores às leis ordinárias (ARISTÓTELES, 1977, p. 79). O pséfisma resultava da elaboração legislativa pela Assembleia Popular. Seu caráter de produção normativa abstrata e geral guardava, porém, estreita e obrigatória conformidade com os nómoï, condicionando sua aplicação pelos juízes à observância da legislação superior. Na antiga Grécia tinha-se como princípio fundamental que a legislação inferior, qualquer que fosse o seu conteúdo, devia ser legal não apenas na forma e na substância, mas respeitar a hierarquia e a força que as leis constitucionais haviam adquirido no seu sistema jurídico (CAPELLETTI, 1992, p. 48-50). No sistema jurídico de Atenas, respondia penalmente através de uma ação pública de ilegalidade, aquele que na Assembleia propunha uma lei em discordância ou em confronto com a legislação superior e fundamental, sendo permitido a qualquer cidadão o ajuizamento e a propositura de tal ação perante o tribunal popular da Heliaia. Ou seja, havia uma legislação “infraconstitucional” submetida ao crivo e à supremacia dos nómoï vigentes que, se não traziam, ainda, a noção clara de constitucionalismo, não afastava a ideia de hierarquia jurídica, de escalonamento e de supremacia de algumas leis sobre outras ( DAVID, 1998, p. 1). Quando Aristóteles escreveu seu tratado “Política”, não o fez sem antes estudar cento e cinquenta e três constituições que regiam as cidades gregas e os povos bárbaros, observando que havia distinção no ordenamento jurídico entre as leis que regulamentavam as relações de poder e as demais normas destinadas a regular o cotidiano da vida social. Nas constituições compiladas por Aristóteles, das centenas de Politeíai, os órgãos governamentais política e juridicamente delineados traziam normas para a estruturação do poder, definindo o regime político da cidade. Da mesma maneira procedeu Drácon, para estabelecer a severidade das leis de Atenas e posteriormente Sólon, para amenizá-las, assim como os decênviros, quando conceberam as Leis das XII Tábuas. Séculos antes, com Péricles, a defesa da hierarquia e da supremacia de algumas leis encontrou no graphé paranomón o instrumento ideal para denunciar comandos contrários ou em conflitos com a Politeía e com os nómos. Criado como ferramenta para combater os arrebatamentos perniciosos e os excessos da demagogia política, o graphé paranomón visava fundamentalmente preservar o regime democrático e as instituições políticas e jurídicas de Atenas. Por isso usado por qualquer cidadão nacional, com efeito retroativo, para se opor à onipotência da Ecclésia e contê-la nos seus exatos limites. No século de Péricles, quando o Estado era administrado no interesse do povo e não de uma ideia egoísta do poder pelo poder, havia um julgamento sensato de que as leis tudo podem, menos derrogar ou contraporem-se à supremacia da Lei Fundamental (POLETTI, 1998, p. 10). Na oração fúnebre de Péricles, feita no outono de 431, em homenagem aos soldados mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso e reproduzida pelo historiador Tucídides, Péricles se debruça em defesa da democracia ateniense, cujas regras essenciais são a igualdade e a liberdade (AMARAL, 2003, p. 61). Estes valores, diz Péricles, não só impedem seus compatrícios de violar as leis fundamentais da República, mas, sobretudo, asseguram proteção aos oprimidos e garantem ao cidadão a defesa de seus direitos, quando ameaçados ou violados pela soberba da Ecclésia. O instituto do graphé paranomón significou um grande passo na evolução jurídica de Atenas, retirando do Areópago, tribunal judicial de caráter religioso, uma atribuição eminentemente laica e portanto fora da sua competência explícita. Como aponta Aristóteles, o Conselho de Areópago era o guardião das leis e o fiscal dos oficiais para que exercessem seus cargos em conformidade com elas. Aos vitimados de qualquer natureza era permitido representação ou denúncia junto ao Conselho, devendo indicar contra qual lei se cometera injustiça (ARISTÓTELES, 1977, P.21). Em Roma, no período da República, o Senado exerceu importante função no controle de constitucionalidade das leis. Sua competência legislativa originária abarcava o poder de confirmar ou derrogar as decisões tomadas nas assembleias populares, cujas deliberações só tinham validade e produziam efeitos se recebessem sua aprovação. Caso tal deliberação lhes fosse negada, a lei votada nas assembleias não tinha eficácia e era expelida do arcabouço jurídico. Porém, o Senado só confirmava as leis depois de verificar se elas contrariavam ou não os costumes e na hipótese disso ocorrer, decidia-se da conveniência da revogação dos costumes ou das leis (POLETTI, 1998, p. 16). No final da República, quando os estertores da política anunciavam seu ocaso e pouco faltava para que o regime fosse substituído pela ditadura e pelo Império, Cícero escreveu suas principais obras, os tratados De República e De Legibus (PONTES, col. 391-396). No primeiro, Cícero lapidou magistralmente sua concepção de direito natural, afirmando que existe uma lei verdadeira, presente em todos os homens, constante e sempre eterna, que é a reta razão. Tal lei conduz os homens imperiosamente a fazer o que devem, ao mesmo tempo, que, proíbe e os afasta de praticar o mal. A essa lei suprema nenhuma alteração era permitida e não era lícito revogá-la no todo ou em parte. Nem o Senado nem o povo podiam dispensar qualquer cidadão de obedecer-lhe. No tratado De Legibus Cícero advoga que além do Senado e do povo exista um magistrado que exerça o poder, que faça executar a lei e o respeito aos direitos de cada qual. Entretanto, mais do que promover a execução da lei, deve o magistrado cumpri-la, pois ele é a lei que fala e a lei é o magistrado mudo. Ou seja, o magistrado situa-se abaixo das leis, embora esteja acima dos governados (CICERO, 1984, p. 16). No status civitatis dos romanos o jus naturale é a força legitimadora da noção inconteste ao dever; da ideia de liberdade e igualdade entre os homens; da concepção de um Estado e de uma cidadania universal governados por uma lei de origem divina. Homem de transição, jurista notável de grande cultura teórica, advogado, sobretudo de causas políticas, o magnífico Cícero emancipou no seu tempo os valores e os princípios que o Cristianismo tomaria como seus e os popularizaria. Na pessoa de Cícero, Roma seria o elo de ligação entre a filosofia grega e o Cristianismo. A ideia de um direito natural anterior e hierarquicamente superior às suas normas jurídicas, erigidas como parâmetros de validade, de justiça, de moralidade e de supremacia da lei positiva, Cícero a tomou da genialidade filosófica dos helenos, conferindo-lhe, porém, uma expressão concreta tão plena, que a concepção do direito natural ao longo dos séculos seguintes foi uma leitura constante e formal do seu tratado Da Política (AMARAL, 2003, p. 135-149). Com as ditaduras militares e as guerras civis desmoronaram-se as pujantes e velhas instituições republicanas, abrindo caminho para o principado. Depois da batalha de Actium, o governo unipessoal pareceu a melhor solução para a manutenção da paz, embora os direitos públicos e individuais fragmentassem, possibilitando o desenvolvimento do jus privatum. O instituto do graphé paranomón foi relegado ao ostracismo e até mesmo a religião foi suprimida pela onipotência dos césares que passaram a personificar a divindade. O império rompeu com as instituições jurídicas tradicionais e o imperador concentrou na sua autoridade exclusiva a totalidade dos poderes, tornando-se a fonte única do direito, mas situado muito acima do mesmo, como sentenciou o próprio Ulpiano ao declarar no De legibus: principis legibus solutus est (MALUF, 1984, p.122). O império romano foi o último dos grandes impérios da Antiguidade, a que as invasões bárbaras levaram à derrocada, assinalando o fim de uma época e o início da Idade Média. Embora os invasores espoliassem e massacrassem as populações vencidas, é inegável que implantaram o primado da lei e da razão, dando nova configuração ao Estado medieval. O espólio jurídico e político do Império romano, foi pouco a pouco se esvaindo e uma nova realidade política se impôs tenaz e paulatinamente, em meio a um sistema jurídico não unificado, mas fragmentado em vários poderes independentes, sem que um órgão supremo os coordenasse, o que produzia uma confusão intolerável (LE GOFF, 1995, p. 76). Só o Cristianismo possuía uma ordem jurídica interna poderosa e coerente, consolidada na sua majestosa organização hierárquica. Diferentemente do direito comum, a ordem jurídica da Igreja estava protegida pela documentação redigida, pelo uso da escrita e pelas escolas instaladas nos mosteiros, que se tornaram grandes centros não só de espiritualidade, mas locais de produção e de preservação da cultura, das decisões dos concílios e dos sínodos, dos cânones e das decretais do papa, a que se juntaram as inumeráveis leis imperiais e as capitulares (WIACKER, 1997, p. 67). A transição da Antiguidade para a Idade Média foi marcada por um forte teocentrismo. Com Santo Agostinho e São Tomás, até Occam, Deus era a fonte matricial das concepções jurídicas e políticas, projetando para a teoria do poder a exigência do bem comum como norma de ação e decisão do Estado (GILSON e BOEHNER, 2000, p. 162). Com São Tomás o fundamento da doutrina jurídica consolida-se na presença de três categorias de leis, hierarquizadas de acordo com sua importância numa perfecta communitas: a) a lex aeterna, que é a razão divina, a qual o homem só conhece parcialmente; b) a lex naturalis, passível de conhecimento pela razão e pela participação do homem na lei eterna; c) a lex humana, significando o direito criado pelo homem, com fundamento na lei natural. Portanto, devia a lei positiva submeter-se aos princípios da lei natural, que só existia em função da própria racionalidade divina (RUSSEL, 1977, p. 155). Para São Tomás existia uma única soberania, que era Deus e duas supremacias, a do Imperador e a do Papa. Ao soberano não competia criar nenhuma lei, mas apenas descobri-las na ordem natural do mundo e na vontade divina (GALÁN Y GUTIERREZ, 1945, p. 11). O pensamento de São Tomás estava destinado a marcar definitivamente os próximos séculos, cujo debate jurídico centrou-se na hierarquia entre a lei natural e a lei humana. Renovadores da escolástica, os jesuítas espanhóis Soto, Molina, Bañez, Alfonso de Castro, Mariana, Roberto Belarmino e os dominicanos Francisco de Vitória e Melchior del Cano, além do grande pensador Suarez, buscaram na doutrina de São Tomás a fundamentação teórica para a função papal, apresentada como de natureza superior à dos soberanos. Argumentavam aqueles teóricos religiosos, que somente o papa recebia o poder diretamente de Deus, enquanto o soberano não recebia o poder nem de Deus e nem do papa, “o que seria sempre uma derivação, embora indireta de Deus” (HINOJOSA, 1890, p. 6). Entretanto, as ideias dos escolásticos e dos seus renovadores espanhóis foram em muitos aspectos incorporadas pelo pensamento jurídico fora das fronteiras eclesiásticas por Grotius, Pufendorf, Wolf e Kant. Impregnados do jusnaturalismo, estes notáveis filósofos viram na ideia de direitos inatos do homem a linha mestra que determinava tanto o comportamento social de cada homem perante outro homem, quanto em face do poder público. Mesmo quando o racionalismo se impôs, fazendo erguer a poeira dos séculos carcomidos pela patrística e pela escolástica, a ideia imponente e vigorosa de um direito natural acima do direito positivo seria a base de sustentação jurídica dos Estados nacionais em formação, embora faltassem instrumentos e órgãos capazes de colocar em prática e de fazer valer a propalada supremacia do direito natural. Espinosa percebeu o vazio institucional e instrumental e não vendo limites para o poder e o desejo humanos, propôs a existência de um conselho eleito e vitalício de síndicos, dentre os homens acima de sessenta anos e que tivessem exercido a função de senador, que disporiam de força armada e de remuneração generosa, para velar pelo cumprimento e pelo respeito às leis fundamentais. Espinosa considerava que nenhuma instituição podia ser mais útil ao bem estar de todos do que um segundo conselho composto por um determinado número de cidadãos, subordinados à assembleia suprema, cuja função consistia unicamente em cuidar para que as leis fundamentais do Estado permanecessem invioláveis (ESPINOSA, 1987, p. 113). Entretanto, a função de declarar o direito aplicável à realidade dos fatos, bem como causa final específica do Poder Judiciário, inicia sua construção sólida na Inglaterra, onde a subordinação da lei ao common law é fruto de várias decisões judiciais e jurisprudenciais. Os atos do Parlamento, bem como aqueles praticados pelo soberano, não podem fugir ou afrontar o imemorial direito consuetudinário e os velhos costumes incrustados nas tradições seculares, sob pena de serem considerados nulos e, por isso mesmo, alijados do ordenamento jurídico. Quando Espinosa propôs a instituição do Conselho dos Síndicos para unicamente guardar e defender as leis fundamentais do Estado e com isso buscou criar um instrumento de proteção constitucional, Harrington propôs à Inglaterra em 1656 a criação do “Colégio dos Sábios”, – os Conservators of the charter e Conservators of the liberty –, para assegurar a permanência da república contra a restauração da monarquia. Porém, poucas décadas antes de Harrington, Sir Edward Coke defendeu a prerrogativa dos juízes para verificar da conformidade e da validade, ou não, da statutory law com a common law, cuja supremacia sobre as normas escritas era inconteste. Neste mesmo período os juízes dos Parlements franceses, elevados a tribunais superiores de justiça, arrogaram a si o direito de examinar os editos e outras normas reais relacionadas com os direitos fundamentais do reino. Algo então impensável e ousado por tratar-se de legis imperii, ou seja, de cláusulas pétreas distintas das leis divinas e naturais e, por isso mesmo, insuscetíveis de serem alteradas pelo próprio rei ou pelos estados gerais (SAMPAIO, 2002, p. 27). Outro momento de grande ebulição no controle de constitucionalidade foi posto em prática pelo Privy Council do soberano em relação às colônias inglesas na América. Através desse poderoso instrumento o rei declarava a legitimidade e a eficácia, ou não, dos ordenamentos promulgados pelas plantations, de acordo com as leis do reino. Na verdade tratava-se de um controle duplo, pois outro se impunha, que era o de compatibilizar as leis aprovadas pelos colonos com a normatividade jurídica das Cartas Coloniais outorgadas pela Coroa. O resultado desse rígido controle muito mais político do que jurídico, que entre 1696 e 1782 anulou mais de seiscentas leis coloniais, tanto pelo controle abstrato (legislative review), quanto pelo controle concreto (judicial review), aguçou o desejo antecipado de liberdade e de independência da Coroa britânica. Era a concretização do hipotético direito de resistência pregado por Locke contra o poder despótico, que se erguia contrário aos direitos naturais e fundamentais do indivíduo. As ideias que alimentaram o desejo de independência das colônias inglesas na América saíram das premissas teóricas da filosofia jurídica e política, para se transformarem em instrumentos de ação e de afirmação de um povo que há muito deixara de ser colono e por isso mesmo declinava com desprezo o título de súdito, para arrogar a qualidade de cidadão. A ideia de supremacia da norma constitucional relaciona-se com a obrigação que se impõe a todo ordenamento jurídico de conformar-se com os preceitos da constituição. Ou seja, em um ordenamento jurídico as normas constitucionais enfeitam e ocupam uma posição de supremacia porque não existem outras que lhes sejam superiores, salvo se a própria constituição o disser. Portanto, o escalonamento e a hierarquização normativa é condição necessária para a supremacia da constituição, que se coloca como fonte matricial de elaboração legislativa e oferece seu conteúdo de características especiais (MORAES, 2000, p. 29). Para além das condutas humanas que tem interesse e interferem na vida de outros homens e por isso protegidas pelo Estado, nela também se encontram as normas que o poder constituinte de uma sociedade política erigiu como fundamentais para si e por isso mesmo as elevem à categoria de normas supremas. Como parâmetro de validade das demais normas jurídicas, a constituição possui elementos que se expressam através da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. São estes elementos que permitem distingui-la de outros atos com valor legislativo e constantes da norma jurídica. Nas palavras de Canotilho, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três expressões: a) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); b) as normas da constituição são normas de normas (norma e normarum) afirmando-se como fonte de produção jurídica de outras normas (leis, regulamentos, estatutos); c) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os atos dos poderes públicos com a constituição. Além disso, nas constituições rígidas a superioridade do ordenamento constitucional é condição sine gua mon em relação à restante produção do Poder Legislativo, no exercício de sua função legiferante ordinária. Daqui se deduz o princípio e o fundamento de que nenhum ato normativo, que necessária e logicamente dela decorre, pode contestá-la, modificá-la ou suprimi-la (CANOTILHO, 1994, p.70). Pela sua característica de lei maior, de norma magna, a lei constitucional não pode ser revogada ou alterada da mesma forma como o são as leis ordinárias, devendo submeter-se, para tanto, a um processo especial cujos requisitos são comumente mais complexos e mais severos. Isto se deve à sua posição de primeiro plano no escalão do direito positivo. Kelsen diz que “a constituição é aqui entendida num sentido material, quer dizer, com esta palavra significa-se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais” (KELSEN, 1985, p. 240-241). A concepção de uma constituição escrita, formal e rígida, com raízes no jusnaturalismo e absorvendo da filosofia jurídica as concepções do jus positum e do jus naturale, para construir uma unidade homogênea positiva, que seja a um só tempo um texto de lei e um conjunto de disposições de conteúdo e valores orientados por determinados princípios, produto da dogmática só “se realiza na emissão de uma norma por parte de forças político-constitucionais” (STERN, 1987, p. 194). Entretanto, se a ideia de rigidez constitucional revela a supremacia das normas de uma constituição, devendo o restante ordenamento jurídico com ela conformar-se, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista material, também é inerente à constituição flexível a mesma ideia de supremacia das suas normas, embora aqui se trate de superioridade material, já que a superioridade formal está intimamente relacionada com o caráter rígido das constituições. Controlar a constitucionalidade das leis é, pois, “verificar a adequação de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, nos seus aspectos formais e materiais” (CARVALHO, 2004, p. 239). Investida da superioridade que a tradição consagrou através da lex fundamentalis, a supremacia da norma constitucional encontrou em Lock a distinção entre lex legum e lex inmutable e de maneira concreta na defesa dessa superioridade constitucional dos revolucionários americanos e franceses. Nos poucos meses que antecederam à Revolução, o abade Sieyès publicou o opúsculo Que é o Terceiro Estado?, cuja repercussão nos meios revolucionários antecipou os acontecimentos políticos. O resultado foi a decisão dos estados gerais se transformarem em assembleia nacional, para dar à França uma constituição. É o momento decisivo em que se opera a transferência da soberania da pessoa do rei para a Assembleia Constituinte, que elabora uma carta de direitos, cuja “supreme autoritè” advinha do poder constituinte da nação (SIEYÈS, 1978, p. 75). Com Hamilton a supremacia da norma constitucional foi entendida como “supreme law of land”, ou “fundamental law” (HAMILTON, 1987, p. 204). No sistema constitucional americano, a característica mais acentuada é a absoluta supremacia da constituição, aliada ao seu mecanismo de efetivação jurisdicional – o judicial review – que permite ao Poder Judiciário e, especialmente à Suprema Corte, em casos concretos levados a julgamento, interpretar a Constituição Federal, para com ela ajustar e adequar a legislação infraconstitucional e os atos normativos editados pelos demais Poderes do Estado. A compreensão da Constituição como Lei Fundamental pelos pais da pátria norteamericana, não só implicou o reconhecimento da sua supremacia na ordem jurídica, mas, igualmente, a existência de mecanismos para garantir juridicamente tal qualidade. A partir de então, o Poder Judiciário travou lutas políticas históricas, mas, sobretudo humanas, para que a Constituição americana fosse consagrada como a verdadeira e suprema lei do país. Essa independência legislada pelo constituinte e consolidada pela separação do Poder Judiciário dos demais ramos e órgãos de governo, foi o que permitiu e serviu de base para a independência dos tribunais anglo-americanos, dando um sentido prático à soberania da lei. Mas se escavarmos os vários planos da história jurídica e política dos povos, lá encontraremos não indícios, mas a existência concreta de normas que se puseram numa posição hierárquica preferencial e suprema, servindo de parâmetro e de validade para normas gerais e menores. Nas cidades-Estado da Antiguidade Clássica os nómos (leis superiores) prevaleciam sobre os pséfismas (decretos), tratando aqueles da organização do Estado e estes da matéria infraconstitucional. Além desta legislação hierarquizada, o edifício jurídico dos helenos contava com o instituto do graphé paranomón, instrumento que possibilitava qualquer cidadão nacional denunciar lei ou ato inconstitucional ou contrário ao interesse público. Na escala da hierarquia das leis, São Tomás menciona a existência da lei eterna, da lei natural e da lei humana, sustentando que a obediência à lei humana só era legítima caso não contrariasse as duas primeiras. Mas é no fim da Idade Média, com as ideias jusnaturalistas divulgadas na segunda metade do século XVI, que a ideia de uma constituição, como um corpo de leis primogênitas, acima e distintas das leis ordinárias, ganha status de debate, levando os juristas a distinguir duas espécies de leis: aquelas que eram emanadas da vontade real e, portanto, susceptíveis às vicissitudes do tempo e do jogo político e as ordenanças do reino, que como tais eram invioláveis (CARVALHO, 2004, p. 240-242). Na Inglaterra, berço do constitucionalismo, até mesmo Hobbes, o arauto do absolutismo monárquico, admitia a existência de uma lei fundamental identificada no contrato social. Tal lei advertia Hobbes, era o ponto de equilíbrio e de convergência política que, se extinta ou suprimida, extinguiria o Estado e o faria cair na anarquia. Embora Hobbes pensasse o Estado e o soberano como uma mesma realidade jurídica, a quem tudo era permitido, não descurou em observar que o soberano estava ligado indissoluvelmente às bases do contrato que o investira no poder as quais não podia violar sob qualquer pretexto, assim como eram intocáveis as normas de direito natural. Porém, como lembra Fischbach, em Hobbes existem “limitações casuísticas e morais, mas não jurídicas” (FISCHBACH, 1934, p. 135). Em Espinosa o pacto social não constituiu um Estado absoluto como em Hobbes. No seu modelo os direitos inalienáveis do homem não eram transferidos para o Estado, posto que ao homem não é permitido renunciar a si próprio, renunciando àqueles direitos supremos, que “como magnitude política é juridicamente considerado e digno de existir” (SOLON, 1997, p. 35-37). Com Locke, o Estado deixa de ser um mero poder discricionário para assumir a garantia dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, o que era da sua própria essência e primazia. Mesmo considerando o Parlamento o poder supremo frente aos demais poderes, Locke considerou salutar a existência de limites extraídos do direito natural à sua ação. Entretanto, parece contraditório em Locke a omissão do Poder Judiciário como instrumento para impor limites à ação do Estado. Isto se tornou mais paradoxal perante uma secular tradição jurídica assentada na common law, onde o direito era secular e tradicionalmente criado e desenvolvido pelos tribunais (GOYARD-FABRE, 1999, p. 100-101). A supremacia da norma constitucional adquiriu tamanho significado e importância nos estados democráticos de direito, não só por limitar a ação política e jurídica dos detentores do poder, mas por representar um esforço fenomenal de estabelecer uma justificação espiritual, moral e ética da autoridade. No mundo dos valores que se pretendem perenes, a supremacia da constituição se agasalha nas normas fundamentais de uma determinada comunidade política, que escolheu para si estes e não aqueles valores, como dinâmica da sua vida política e jurídica e como ideal da sua individualidade e da sociedade do seu tempo (CAPELLETTI, 1984, p. 599). Antes, porém, a constituição é um caminho, uma forma que disciplina as decisões do Estado, apontando como deve ser o processo de criação das normas jurídicas, sem, no entanto, imiscuir-se no seu conteúdo. Este sentido de neutralidade em relação às políticas perseguidas protege a vontade popular e não assoberba os órgãos parlamentares e de governo, a quem compete as decisões políticas do Estado, sem abrir mão da sua condição de ordem suprema, de comando maior. Talvez por isso a Constituição norte-americana traga de maneira expressa o princípio da supremacia no seu artigo VI, parágrafo 2º: “A Constituição e as leis que se fizerem com base nela (...) serão a lei suprema do país; e os juízes dos diversos Estados estarão vinculados a ela, não obstante qualquer disposição contrária inserta na Constituição e nas leis do Estado”. Nos termos da Primeira Emenda à Constituição, o Poder Legislativo foi limitado, ao estabelecer que o Congresso não poderá fazer nenhuma lei que tenha por objeto estabelecer uma religião ou proibir seu livre exercício, limitar a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito de reunir-se pacificamente, ou de apresentar petições ao governo. Enfim, a ideia de supremacia de Constituição decorre do princípio da unidade, que faz com que as normas inferiores adequem-se às normas superiores, assim nomeadas pela vontade do Poder Constituinte originário. Pelo princípio da constitucionalidade as normas infraconstitucionais devem se compatibilizar com as normas superiores; enquanto o princípio da razoabilidade impõe o dever de as normas inferiores se constituírem em instrumentos ou meios adequados aos fins estabelecidos na Constituição. O quarto princípio relaciona-se com a rigidez constitucional, cujo procedimento para reformá-la não pode ser o mesmo da elaboração da norma comum. Também há que se fazer distinção entre poder constituinte e poder constituído, ou seja, a competência funcional que determina quem de direito pode criar os diversos níveis jurídicos. Outro aspecto relevante está na graduação do ordenamento jurídico em diversos níveis, desde a norma fundamental abstrata até a sua execução pelo órgão público; e o último princípio, mas nem por isso menos importante, é a garantia do Estado de Direito, diante da limitação em que os órgãos públicos se encontram por determinação do poder constituinte. São muitas e variadas as correntes de interpretação da natureza jurídica dos Tribunais Constitucionais ou das Supremas Cortes, no exercício da jurisdição constitucional especialmente no aspecto do controle de constitucionalidade. Para um grupo expressivo de doutrinadores, os Tribunais Constitucionais e as Supremas Cortes, pela peculiaridade de suas decisões, pelo tipo de conflitos que julgam, pela não realização de operações de subsenção de casos concretos à norma e, ainda por inovar a ordem jurídica, são órgãos políticos, especialmente voltados para a legislatura, como se fossem uma segunda câmara ou uma instância política superior às demais (SCHMITT, 1983, p. 245). Outra corrente, embora não negue a natureza jurisdicional dos Tribunais Constitucionais e das Supremas Cortes, observa que estes tribunais decidem conflitos políticos, pois todos os conflitos constitucionais são sempre conflitos políticos, porém, “valendo-se de critérios e métodos eminentemente jurídicos na sua solução, embora sejam critérios e métodos que gozam de certas especificidades em relação aos tribunais ordinários. Isso se dá porque uma parte, a generalidade e a amplitude dos conceitos normativos constitucionais, mais gerais ou concentrados normalmente do que o que é comum nas normas ordinárias ou derivadas; em segundo lugar, a distinta funcionalidade normativa da Constituição em relação às demais normas ordinárias; enfim, a transcendência mesma das decisões (decisões de conflitos e, portanto, em certa medida, decisões políticas delas normas, sem míngua de seu caráter jurisdicional)” (ENTERRIA, 1994, p. 178 e 286-287). Para Kelsen, os tribunais constitucionais exercem uma verdadeira jurisdição. Na “Teoria Geral do Direito e do Estado”, Kelsen afirma que “um tribunal que é competente para abolir leis – de modo individual ou geral – funciona como legislador negativo” (KELSEN, 1990, p. 261). Para o jurista austríaco, a função de tribunal constitucional não é nem jurisdicional nem legislativa, nos seus sentidos clássicos. A função de tribunal constitucional, pela sua natureza jurídica, se propõe a aplicar o direito e é neste labor que o reinventa e o recria. O modelo europeu de controle de constitucionalidade, mediante ação direta de inconstitucionalidade de leis e atos normativos, inspirado em Kelsen, faz da questão da constitucionalidade o telos principal da ação, sendo a causa patendi a sua própria razão de ser. Há, portanto, uma ação própria para litigar sobre a constitucionalidade, dentro do sistema concentrado, porque a competência para controlar se atribuir a um só tribunal – tribunal constitucional, corte constitucional ou supremo tribunal federal. No modelo de Kelsen, o tribunal não só declara a inconstitucionalidade, mas desconstitui o ato por ela inquinado, seja retroativamente (ex tunc), seja prospectivamente (ex nunc), com eficácia erga omnes, e que pode ser modulado no tempo: ex tunc, ex nunc ou pro futuro. Kelsen esculpe um modelo cujo perfil é o de uma autêntica jurisdição, por mais que sua atividade – a atividade do tribunal – venha a ser legislativa (TREMPS, 1985, p.7-8). A natureza jurídica dos tribunais de jurisdição constitucional se materializa no processo que é levado à sua apreciação, como um processo objetivo, “de garantia da regularidade e harmonia do ordenamento jurídico enquanto tal, o que é verdade em relação ao controle de constitucionalidade abstrato e, em parte, naquele de conflitos federativos ou de atribuição” (SAMPAIO, 2002, p. 59). Nesse sistema, porém, mesmo que implicitamente, existe um interesse privado ou individual reflexo, cuja expectativa de ser atendido acaba se concretizando. Não importa se se trata de situações individuais particulares, como, por exemplo, a restrição ao acesso ao Poder Judiciário, ou de um interesse difuso, como a liberdade de expressão em face de certos órgãos ou entidades do poder público. Seja, ainda, se simples interesse em ver solucionada uma crise institucional, cujos reflexos poderiam atingir o interessado no futuro. Seja mais, como lembra Tremps, de um interesse de “partes públicas” envolvidas em conflito federativo. Todavia, a natureza jurídica dos tribunais constitucionais se expressa de forma ainda mais cadente na chamada jurisdição constitucional da liberdade, quando a questão em jogo é a garantia direta dos direitos fundamentais, dentro de um processo objetivo (SCHLAICH, 1984, p. 181). Porém, tão ou mais importantes que as ponderações objetivas de parte significativa da doutrina, que consagra a natureza jurídica dos tribunais de jurisdição constitucional, é adotar uma postura receptiva em relação à política e ao direito. Deve-se fugir das interpretações preconceituosas que cavam uma fossa intransponível e incomunicável entre ambos. A convivência e a ligação entre direito e política é condição essencial para a conformação do Estado de Direito, e até impossível de separá-los em determinadas situações. O que não pode e não deve ser patrocinado é a redução do jurídico no político, ou de julgar que todas as questões da política se resolverão no espaço do jurídico, nas formas do Direito, sob pena de desgastar e vulgarizar o mais importante instrumento de integração e proteção social (HABERMANS, 1996, p. 160 e 182). Contudo, a transcendência política das decisões das cortes constitucionais não pode deixar aquele preconceito, assim como “não se pode deixar seduzir pela forma política de indicação dos seus membros, pois importa mais a técnica jurídica com que enfrentam os problemas levados à solução” (SAMPAIO, 2002, p. 60).O que se busca é o distanciamento do juiz dos embates políticos, dos choques de opiniões, das tendências e interesses das facções, para que tenham os atributos necessários à defesa imparcial da Constituição. Essa era a posição de Madison e Hamilton. Para Madison, era imperioso um estatuto que afastasse os juízes das paixões e cultivasse um senso de responsabilidade e de virtude no exercício de defesa da norma constitucional. Os juízes, afirma Madison, “pela forma como são nomeados, assim como pela natureza e permanência nos cargos, estão muito distantes do povo para compartilhar as suas simpatias” (MADISON, 1961, p. 315). Para os “Pais da Pátria” era pouco recomendável confiar à minoria ou à maioria a missão de definir os parâmetros da liberdade uma da outra, restando, portanto, o recurso à Corte Constitucional, a quem caberia desenvolver uma teoria jurisdicional constitucionalmente fundada, dado à sua natureza jurídica de tribunal jurisdicional constitucional. Hamilton tinha clara a necessidade de independência judicial “para proteger a Constituição e os direitos individuais dos maus humores que as artes do homem calculista ou a influência de conjunturas especiais disseminam entre o povo...” (HAMILTON, 1987, p.467). A integridade e a moderação do Judiciário levam a uma defesa mais efetiva contra as leis que violam ou ameaçam direitos, contra as leis injustas e parciais, que só a firmeza da magistratura e a natureza jurídica da jurisdição constitucional podem proporcionar. Pela natureza essencialmente jurídica de suas funções, pelo fato de as Cortes Constitucionais não disporem de força policial própria para executar os seus comandos, as Cortes são sempre o instrumento menos perigoso que possa ameaçar os direitos políticos assegurados pela Constituição, mesmo porque sua natureza jurídica impõe o exercício do controle de constitucionalidade dos excessos cometidos pelo Poder Público, na elaboração de leis e atos normativos. A interpretação das leis pelas Cortes Constitucionais, fundamentais na mais completa juridicidade, mas também sem desconsiderar seus aspectos políticos explicita ou implicitamente revelados, “é competência própria e peculiar das Cortes. Uma Constituição é, com efeito, e deve ser considerada pelos juízes, uma lei fundamental, pertencendo a eles, porquanto, precisar o seu significado legislativo. Se acontecer de haver um desacordo inconciliável entre eles, aquele que tiver validade e obrigação superior deve, por óbvia, ser preferido; ou, em outras palavras, a Constituição deve ser preferida à lei, a intenção do povo à intenção de seus agentes” (HAMILTON, 1987, p. 467). Hamilton procurava afastar o argumento de que essa compreensão pressupunha a superioridade do Poder Judiciário sobre o Legislativo. Para ele, acima disso, era o poder do povo superior a ambos os Poderes, e os próprios juízes também deviam estar submetidos ao governo da Constituição, regulando suas decisões pelas leis fundamentais do que por aquelas ordinárias, pois isso apenas resultava da natureza e razão das coisas. Ademais, o Judiciário como fonte indispensável de garantia da Constituição, permite que os conflitos de competências dos outros poderes não se reproduzam e, quando verificados, sejam resolvidos pacificamente. Rui Barbosa, enfatizando o caráter de natureza jurídica da Corte Constitucional, afirma que “o papel dessa autoridade é de suprema vantagem para a ordem constitucional, impossível, nesse regimen, desde que um poder estranho aos interesses políticos e às suas influências dissolventes não constitua o laço de mediação e harmonia jurídica entre as forças que se defrontam no systema, amparando, ao mesmo tempo, com a sua soberania moral o direito, no indivíduo, na União e nos Estados, em seus frequentes conflitos” (BARBOSA, 1933, p. 405-406). Não se questiona que o caráter de natureza jurídica das cortes constitucionais no exercício da jurisdição constitucional pressuponha uma cultura e um certo isolamento necessário dos seus juízes, para perseguirem mais objetivamente o interesse público. Sem deixarem de ser órgãos políticos que lançam mãos de instrumentos jurídicos na solução de conflitos, as cortes devem ser o bastião da Justiça e do Direito, a voz da razão, cujo papel é decisivo para a sociedade, pois cabe-lhes a tarefa indeclinável de concretizar a constituição, expressa na “nacionalidade, na continuidade, na unidade e no objetivo comum” (BICKEL, 1986, p. 25-27 e 31). Dworkin também reserva aos juízes o papel de pêndulos, que nenhuma gravidade poderá arrastar do centro do oráculo de sua moralidade e coerência, principalmente se se tratar de uma questão constitucional alçada à Corte Suprema. Seu juiz hercúleo com talentos superhumanos e sem limitação de tempo lançará mão do princípio da integridade da legislação e do princípio da integridade da adjudicação. O primeiro a exigir do legislador o respeito aos direitos básicos morais, políticos e de igualdade entre os cidadãos. O segundo requer do juiz uma decisão rastreada na coerência, no sentido de justiça e na igual proteção da lei, que só um juiz hercúleo poderá proporcionar. E a interpretação que Hércules der à Constituição, “quando ele intervém no processo de governo para declarar alguma norma ou ato de governo inconstitucional, ele o faz em um julgamento consciente sobre o que a democracia, realmente significa” (DWORKIN, 1991, p. 166-167 e 219-221). Mas tanto Dworkin quanto Bickel prestam um tributo demasiado ao pensamento elitista que desde Platão, Locke e Burke, sempre menosprezou a capacidade do povo para determinar seus próprios caminhos, para escolher seu destino. Platão pregou um governo de sábios, como o único capaz de gerir a coletividade. Locke acreditava que as verdades primeiras escapavam da percepção da maioria e para Burke, as classes populares viviam dissociadas da razão por inteiro. Hamilton e Madison diziam que o povo era incapaz de identificar os reais interesses da Nação. Bickel assim como Dworkin revelam suas faces preconceituosas. A função mística conferida aos juízes por Bickel e o juiz super-homem de Dworkin, fogem à função da natureza essencialmente jurídica da jurisdição constitucional, pois é uma concepção antidemocrática, que conduz ao açodamento do esforço de discricionariedade judicial, permitindo não o controle jurisdicional salutar, mas a prevalência de valores elitistas de uma classe social. John Hart Ely denuncia o caráter antidemocrático que existe por trás dessas teorias, apontando que “nossa sociedade não tomou a decisão constitucional de um sufrágio quase universal para (...) serem as decisões populares submetidas a valores dos juristas de primeira classe” (ELY, 1980, p. 56-59). Mais contundente Frank Michelman aponta que a teoria de Dworkin desconhece a ideia de pluralismo e de diálogo: “Hércules, o mítico juiz de Dworkin, é um solitário. É demasiado heroico. Suas narrações construtivas são monólogos. Ele não conversa com ninguém, a não ser com seus livros. Não tem nenhum enfrentamento. Não se encontra com ninguém. Nada o comove. Nenhum interlocutor viola o inevitável isolamento de sua experiência e de sua visão. Hércules é um homem, apesar de tudo. Não é a totalidade da sua comunidade. Nenhum homem ou mulher pode sê-lo” (MICHELMAN, 1986, p. 76). A jurisdição constitucional caracteriza-se pela unidade e indivisibilidade, por ser uma das manifestações da soberania do Estado. Contudo, são diversos os critérios de classificação da justiça constitucional, assim como uma divisão orgânica da jurisdição, em jurisdição comum, especial e constitucional. Portanto, existem, “tecnicamente, múltiplas manifestações de uma só jurisdição, para atender à plenitude e à especialização decorrentes dos ordenamentos jurídicos” (BARACHO, 1989, p. 84). Uma parte da doutrina adota a classificação de jurisdição comum ou ordinária, jurisdição especial, jurisdição administrativa e jurisdição constitucional. A jurisdição comum é exercida pelos órgãos que integram a magistratura ordinária e a jurisdição especial pelos órgãos que integram o Poder Judicial. No Brasil não existe a jurisdição administrativa, a exemplo da Itália e França, cuja função é corrigir os excessos e distorções da Administração Pública. A jurisdição constitucional se distingue das outras espécies por uma sucessão de fatores e em razão da sua natureza original, do seu caráter político e até mesmo pela sua prescindibilidade, já que se concebe uma ordem jurídica democrática sem tribunal constitucional, como na Inglaterra (JAYME, 1999, p. 76). Na jurisdição constitucional, as decisões são proferidas em única instância e o seu alcance não se destina à tutela de direitos individuais, porquanto os provimentos são de interesse de toda a coletividade. Outra característica da jurisdição constitucional diz respeito ao controle de constitucionalidade das leis, que devem adequar-se à Constituição. Os provimentos do Tribunal Constitucional, tanto no controle abstrato, quanto no concreto, têm alcance geral. É essa agenda diferenciada que afirma o caráter especial do Tribunal Constitucional, já que ele pode, por iniciativa de outrem, “opor-se às decisões do governo e da legislação e sua sentença é vinculativa para os outros poderes” (HESSE, 1978, p. 422). O Tribunal Constitucional tem, por conseguinte, participação expressiva na direção superior do Estado. De outra forma, os sistemas constitucionais podem ser divididos entre os que possuem um controle de constitucionalidade mais ou menos desenvolvido, de outros, que não reconhecem esse controle, em que o sistema britânico surge como paradigma da sua prescindibilidade, ao mesmo tempo que consagra uma notável e sólida democracia. Dentro dos sistemas que adotam o controle de constitucionalidade, podem ser apontados um sistema político anti-judicial ou francês e um sistema jurisdicional ou norte-americano e austríaco. No sistema político ou francês, cuja inspiração remete-se para a tradição jacobina e para as formulações teóricas de Rousseau, ambas consagrando a supremacia do Parlamento, por meio do controle político de constitucionalidade, nos moldes da Constituição suíça de 1848, com a Emenda de 1874, ou sob a influência das constituições francesas do ano VIII, de 1852, o controle de constitucionalidade é político, porque exercido por um órgão de orientação política. De certa forma, a Constituição francesa de 1946, também corrobora a tendência em qualificar o Conselho Constitucional como órgão político, tributária que é dessa linha de pensamento. Para caracterizar um órgão como político, vários aspectos são tomados em consideração, indo da escolha dos seus membros; o modo de atuação; o caráter necessário do controle em relação a determinadas leis; a falta do contraditório e de partes em sentido técnico; até o seu caráter preventivo, inserido no processo de formação das leis (CAPELLETTI, 1992, p. 29). No sistema jurisdicional, a competência para fiscalizar a constitucionalidade das leis é atribuída a qualquer juiz ou é reservada a um único órgão que, fazendo uso de instrumentos jurídicos, de forma imparcial, decide com força de coisa julgada. Entretanto, uma realidade se impõe, quando são apontadas as tentativas de distinguir ou de afastar o atual modelo político francês do modelo jurisdicional. Em maior ou menor grau, os elementos caracterizadores daquele modelo político se fazem presentes nos modelos jurisdicionais. As formas de composição dos quadros de juízes, o modo de provocação dos tribunais e sua atuação, invocam esta grande semelhança. A pretensão doutrinária de que um controle preventivo dominante poderia servir de base à distinção, tornando o Conselho uma terceira câmara política e, excepcionalmente, uma jurisdição, não se sustenta. O fato é que o controle a priori se faz presente em outros sistemas, ainda que de forma mais branda, mas de qualquer forma existente, não deixando dúvidas sobre sua efetividade. Deve-se considerar relevante que mesmo no controle a posteriori de constitucionalidade, a Corte se coloca na posição de outra câmara de revisão, seja julgando os embates entre Governo e Parlamento, seja entre Governo central e Governo local, ou mesmo entre as disputas parlamentares dos grupos da maioria e das minorias. Para que a distinção entre o modelo político francês e o modelo constitucional faça sentido, é necessário que um modelo de controle exercido por um órgão político em sentido próprio, entre em cena. Esta forma de controle pode ser invocada no papel do Senado nas Constituições do ano VIII e de 1852, da França, já que, para o efeito, não basta tomar como parâmetro o papel do Conselho de Estado, que deve ser ouvido antes de o Governo submeter qualquer projeto de lei ao Parlamento, ou mesmo o controle difuso previsto na Constituição do ano III, com a atribuição a todos os cidadãos qualificados de protegerem a Constituição. Nesse sentido, o modelo socialista deve ser lembrado, com sua técnica de deferir, em alguns casos, competência ao Praesidium da Assembleia Legislativa a função de controle de constitucionalidade dos projetos de Lei. São exemplos as Constituições da Romênia (1965); da Hungria (1972); de Cuba (1976); da China (1978) e da então União Soviética, de 1977 (AZEVEDO, 2001, p. 13). Com esse mesmo efeito, podem ser mencionados certos instrumentos de controle recíprocos dos poderes funcionais do Estado, com efeito classificatório, como o veto do Presidente da República a projetos de lei aprovados pelo Parlamento e considerados inconstitucionais. Um segundo critério para distinguir o modelo político do jurisdicional, está na existência de um modelo norte-americano ou de Suprema Corte e um modelo austríaco ou europeu de Tribunal Constitucional, ambos destinados essencialmente às operações jurisdicionais. No modelo norte-americano de Suprema Corte, de controle difuso, a jurisdição constitucional se diferencia de outra qualquer pela supremacia da Constituição, que deve ser garantida por qualquer juiz, em todas as instâncias do Poder Judiciário. A Suprema Corte se põe não apenas como um terceiro grau de jurisdição federal, mas também como juízo de apelo das decisões proferidas nos tribunais inferiores. Isto se dá por meio de certiorari, na hipótese de estar em questão a validade constitucional de uma lei – seja originariamente, nos casos constitucionalmente previstos. Por conseguinte, o controle de constitucionalidade é descentralizado, incidental e a posteriori, atuando sobre um caso concreto levado ao tribunal. Difundido à exaustão, o modelo de Suprema Corte espalhou-se pelo mundo, com exemplos eloquentes na Argentina, Austrália, Guiana e Japão. No modelo de Tribunal Constitucional austríaco, europeu ou concentrado, o controle de constitucionalidade passa a ser principal, abstrato, cuja provocação compete apenas a certas autoridades do Estado ou de representação da sociedade, com destaque da função de garantia do respeito pelos valores constitucionais. A consequência dessa postura é uma maior exigência da especialização jurisdicional, com a dotação de instrumentos e técnicas processuais específicos e com a criação de um órgão único que centraliza todo o controle. Esse órgão se situa fora da hierarquia jurisdicional ou possui um destaque especial nessa estrutura, detendo seja a especialização seja o monopólio do contencioso constitucional. Adotam o modelo de Tribunal Constitucional, entre outros, a África do Sul, Alemanha, Áustria, Bulgária, Chile, Espanha, Hungria, Itália, Luxemburgo, Polônia, Síria e Turquia. Essa classificação, entretanto, se mostra insuficiente, pois se restringe exclusivamente ao controle de constitucionalidade das leis, sem tocar nas demais competências dos tribunais jurisdicionais. O fato é que existe um grupo de países que apresentam características dos dois modelos. Como exemplo de Suprema Corte com controle abstrato, tem-se o Brasil, Canadá, México, Namíbia e Nicarágua. De Tribunal Constitucional com controle concreto, a Alemanha, Áustria, Espanha e Itália; ou com função de corte de apelação, Portugal e, em geral, nos sistemas que possuem recursos ou ações individuais contra violação dos direitos fundamentais, pois neste caso a Corte funciona como uma espécie de cassação universal (SAMPAIO, 2002, p. 47). O modelo de Suprema Corte pode assumir a feição de um controle preventivo de constitucionalidade, como acontece em Belize, Canadá, Finlândia, Irlanda, Noruega, Cingapura...; e até mesmo monopolizar ou controlar o contencioso, como nas Bahamas, Chile, Granada, Nepal, Panamá e Uruguai; abrindo em outros casos, salas especializadas, a exemplo da Costa Rica, El Salvador e Paraguai. Por outro lado, existe Tribunal Constitucional que não detém monopólio da jurisdição constitucional, ou o conserva de maneira atenuada, como em diversos países latinoamericanos. Na Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala e Peru, são exemplos de países em que os juízes ordinários têm competência para conhecer de razões incidentais de constitucionalidade. Na Espanha e na Bulgária, este monopólio também é relativo e os tribunais ordinários podem pronunciar-se sobre a constitucionalidade de regulamentos e disposições administrativas sem valor de lei. Na Polônia, em caso de dúvida por parte do juiz, sobre a constitucionalidade ou a legalidade de um regulamento, pode ele deixar de aplicá-lo, inter partes, como pode formular consulta ao Tribunal Constitucional. Na Espanha, também se pode deixar de fora da competência do Tribunal Constitucional a fiscalização das leis anteriores à Constituição, o mesmo ocorrendo na Bulgária, na Itália e na Romênia. Nestes países, o juiz ordinário pode simplesmente declarar revogada a norma, embora lhe seja facultado enviar a questão ao Tribunal Constitucional para declaração de inconstitucionalidade superveniente. Em função do objeto controlado pelo Tribunal da jurisdição constitucional, pode-se falar, ainda, dentro de um modelo preventivo ou francês e outro, americano e austríaco, de uma especialização de modelos. No modelo preventivo, francês ou de conselho constitucional, o sistema objetiva filtrar as leis de possíveis vícios de inconstitucionalidade, antes de sua entrada em vigor. Na perfeição da lei está a sua autoridade. Esse controle é obrigatório e sistemático, embora seja previsto também de maneira facultativa. Adotado na França, foi copiado por outros países como Argélia, Camboja, Congo, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Tunísia. No modelo sucessivo, americano-austríaco, de corte suprema ou constitucional, o controle de constitucionalidade deve ser da lei, não do seu projeto. Tradicionalmente é dado ao juiz conhecer do ato normativo pronto, promulgado, sem que o Poder Judiciário entre no debate legislativo. São exemplos os Estados Unidos, Alemanha, Argentina e Áustria. Em razão dos fins perseguidos, outra decisão bipartida se impõe, entre um sistema centrado nas leis e outro centrado na defesa dos direitos fundamentais (LLORENTE, 1998, p. 159). No modelo centrado na lei, objetiva-se buscar harmonia e coerência à ordem jurídica, por meio de instrumentos e mecanismos de aperfeiçoamento das leis e atos normativos que atentem contra a Constituição. Em regra, instaura-se por meio de ação direta de inconstitucionalidade, processos objetivos em que não aparecem as partes com interesses particulares e concretos, mas detentores de poder constitucional para salvaguarda de competências e organizações definidas na Constituição. Apenas indiretamente pode-se ter a proteção dos direitos fundamentais ou constitucionais. No modelo centrado na defesa de direitos, busca-se a imediata garantia dos direitos constitucionalmente consagrados, podendo produzir, por via de consequência e apenas incidentalmente, a consistência normativa do ordenamento. Sua expressão maior é o controle difuso ou norte-americano, a que se deve acrescentar outros instrumentos processuais concentrados de defesa dos direitos fundamentais, como o amparo e o recurso de direito público, dentre outros. Outra classificação fundada no tipo de processo e sobre a natureza e o objeto das decisões dos órgãos encarregados de prestação da jurisdição constitucional, divide-se em jurisdição concreta e jurisdição abstrata. No modelo de jurisdição concreta, o processo se destina a resolver situações subjetivas concretas de pessoas particulares. No modelo de jurisdição abstrata, o objeto se contém num conflito de normas ou de órgãos do Estado, visando principalmente regular uma questão relativa ao bom funcionamento do mesmo, posta por uma pessoa com a missão de falar em nome de um interesse geral. Todavia, esta classificação não se constitui numa situação petrificada, pois aqui, também, surgem figuras híbridas, abstrata e subjetiva, quando, por exemplo se interpõe um recurso individual dirigido contra uma lei para proteção de direitos fundamentais específicos. Como exemplo de modelo objetivo e concreto está o envio, por um juiz, a um tribunal, da questão de inconstitucionalidade de uma lei aplicável para dirimir um caso concreto. Se, porém, forem combinados os critérios orgânicos e processuais, mais uma classificação se impõe. Na jurisdição concreta, entretanto, existem duas hipóteses distintas. Na primeira a jurisdição concreta da Suprema Corte caracteriza-se por uma jurisdição ordinária, submetida a uma hierarquia judiciária e à possibilidade de apelo ou recurso último, extraordinário ou de cassação à Corte, sem, no entanto, excluir-se a possibilidade de recursos individuais por violação de um direito constitucionalmente garantido. Na segunda hipótese, a jurisdição concreta da Corte Constitucional contempla recursos individuais de defesa dos direitos fundamentais e o reenvio à Corte da questão de inconstitucionalidade. Nos dois casos, todavia e a rigor, as Cortes funcionam como Supremas Cortes ou Cortes de revisão; seja pela hierarquia no primeiro caso, seja pela ligação que se faz necessária no segundo caso. Quanto à jurisdição abstrata, os tribunais são agentes políticos, órgãos estatais ou sociais que agem com vistas a assegurar o funcionamento do Estado nos termos estabelecidos pela Constituição. Também se dividem em jurisdição abstrata de Corte Suprema e Jurisdição abstrata de Corte Constitucional, abrangendo conflitos entre os poderes públicos federativos e conflitos de normas (controle prévio ou posterior). A realidade aponta que não existe um sistema puro, concreto ou abstrato; nem totalmente concentrado ou difuso. O exemplo da Suprema Corte norte-americana é emblemático, pois detém competência para conhecer de conflitos entre os Estados e, pela sua posição institucional, tem a última palavra em matéria constitucional, não sendo rara a hipótese de ação declaratória simulada. Com exceção da França, se limitada a observação apenas ao Conselho Constitucional, não existe um sistema exclusivo de jurisdição abstrata e objetiva. Uma última classificação se coloca, considerando o âmbito da jurisdição e o rol de competências. Assim, temos: a) jurisdição constitucional de caráter interno, assentada no rol de competências constitucionais atinentes a um contencioso de normas, ou seja, a jurisdição constitucional de controle de constitucionalidade ou juiz de constitucionalidade; existe um contencioso penal (jurisdição constitucional penal); um contencioso eleitoral; um contencioso de conflitos constitucionais entre entes federativos e entre órgãos constitucionais; e um contencioso de direitos fundamentais (jurisdição constitucional da liberdade); b) jurisdição constitucional de caráter internacional e comunitário, semelhante ou moldada na jurisdição constitucional de caráter interno, de quem assimilou técnicas e experiências. Na verdade trata-se do alargamento desta, no cruzamento das duas ordens, voltada para a resolução de conflitos entre atos e disposições legislativas internas, com as normas e princípios internacionais ou comunitários entre as normas externas e os preceitos constitucionais internos. c) controle de conformidade dos atos internos com as normas externas, que se apresenta sob duas questões. A primeira trata da hierarquia existente entre os atos externos e internos e a segunda sobre o órgão encarregado de exercer a fiscalização. No primeiro caso, existe uma variada gama de enfoques. Na Itália, Alemanha e Portugal, as Constituições dão um tratamento especial ao Direito Internacional. Em vários outros sistemas, os atos internacionais possuem a mesma estatura das leis ordinárias, como no Brasil; em outras lhe são conferidas hierarquia superior às leis internas. Na Europa os juízes nacionais exercem o controle difuso, incidental e prejudicial dos atos internos em face do direito comunitário, podendo deixar de aplicar as normas nacionais que considerem contrárias aos tratados da Comunidade. Isso não inibe um controle concentrado perante a Corte Europeia de Direitos Humanos, que decide sobre recursos individuais fundados na violação dos direitos fundamentais por atos do poder público de um Estado signatário. No exercício dessa competência a Corte define qual interpretação deve ser dada às disposições da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Enquanto os Tribunais Constitucionais visam a conciliação entre interesse público e interesse privado, a Corte Europeia procede a uma reconciliação entre interesses estatais e interesses individuais. Naqueles procede-se à invalidação da norma abstrata e impessoal, enquanto na Corte visa-se uma situação ou decisão individual. Por isso o provimento do recurso não gera nulidade ou anulação do ato impugnado, apenas decreta a responsabilidade internacional do Estado e a reparação de danos ao recorrente. Ademais, fortalece a tese de que, no quadro das medidas gerais que devem ser adotadas pelos Estados, há de se incluir a obrigação positiva de edição de norma jurídica compatível com os termos da decisão. A ideia é levar os Estados a ab-rogar as normas reputadas inconvencionais condenando, em linha de princípio, o Estado que não adotar providência para alterar sua legislação, considerada contrária à Convenção, em outro recurso envolvendo outro Estado. d) controle dos atos externos em face das constituições nacionais, exercido de duas formas. A primeira com base num procedimento preventivo, como na França, Portugal, Espanha e Costa Rica, em que o Tribunal examina a conformidade entre os tratados subscritos pelo Executivo antes de sua aprovação pelo Parlamento, abrindo-se três possibilidades em caso de incompatibilidade: reforma da Constituição; aprovação com reservas e renegociação pelo Executivo para eliminar os dispositivos inconstitucionais, ou rejeição pura e simples. Na segunda forma, o procedimento é sucessivo ou posterior, ao procedimento anterior de fiscalização pelo Tribunal da jurisdição constitucional do tratado, depois de sua incorporação na ordem jurídica interna. Em caso de inconstitucionalidade, impõe-se a não aplicação ou nulidade, fazendo-se a denúncia do ato que, no entanto, permanecerá vinculante do ponto de vista do Direito Internacional, até que a denúncia se concretize. CONCLUSÃO Uma norma jurídica para ter validade, precisa buscar seu fundamento numa norma superior e, assim por diante, de tal forma que todas as normas, cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental, formem um sistema de normas, uma ordem normativa. Nesse sistema normativo, a Constituição é a norma suprema, fundamental, pois é nela que se busca a validade das normas existentes. No corpo do texto constitucional devem estar contidas as normas relativas às condutas que o poder constituinte de uma sociedade política erigiu à categoria de fundamentais para si e as reputou importantes e supremas. Em qualquer ordenamento jurídico, as normas constitucionais ocupam uma posição de primazia, porque não encontram outras que lhes sejam superiores, salvo se elas mesmas assim o determinar, como é o caso dos Estados que adotam o princípio da superioridade do direito internacional sobre o nacional. A Constituição é sempre o parâmetro de validade das demais normas, na medida em que para terem validade, estas normas devem conformar-se aos ditames das normas constitucionais. Pode-se afirmar em relação à supremacia constitucional que, no mundo dos valores, a Constituição é suprema por conter as normas fundamentais de uma determinada sociedade política. No plano jurídico, a Constituição é suprema porque suas normas são rígidas e requerem u procedimento especial e qualificado para serem modificadas. Tendo em vista a hierarquia das normas, a condição de supremacia constitucional impõe-se como referencial para todo ordenamento jurídico, sendo que, ao menos em tese, a garantia dos princípios nela contidos estaria preservada. Portanto, no ordenamento jurídico deve existir a compatibilidade vertical de normas, tornando-se a incompatibilidade uma situação anômala, atacável por via do controle de constitucionalidade de leis e atos do Poder Público. Acatando-se o axioma de que a Constituição tem como finalidade limitar e racionalizar o poder estatal, distribuindo-lhe por diversos órgãos independentes e sujeitos a controles, e que é dotada de rigidez e supremacia normativa, desemboca-se no fenômeno do controle de constitucionalidade. A forma de garantir a supremacia da lei magna, indispensável em todo Estado democrático de Direito, só se podendo falar em controle do poder nos Estados democráticos, posto que nos Estados autoritários, o poder concentra-se, de maneira monolítica, em detentores que o exercem sem fiscalização e limites. Depreende-se, então, que o controle de constitucionalidade é o mecanismo disposto na Constituição, que tem por objeto defender a supremacia das normas constitucionais, competindo ao Poder Público, através de seus órgãos, demonstrar a desconformidade existente entre uma lei e as normas constitucionais. O sistema de controle de constitucionalidade varia de país para país. No Brasil são três as espécies de controle de constitucionalidade: o controle político, o controle jurisdicional e o controle difuso. \porém, considerando o momento de intervenção do órgão competente para apreciação da inconstitucionalidade, encontramos sistemas que adotam o controle preventivo, que ocorre numa fase anterior à publicação da lei, ou seja, antes da produção final do ato legislativo. Nesse caso, ainda se está diante da formação do ato, do estudo e da discussão do projeto de lei. Esse controle se dá, efetivamente, quando o projeto de lei passa pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça, ou quando o próprio chefe do Executivo veta o projeto. O controle preventivo é exercido tanto pelo Poder Legislativo, através da Comissão de Constituição e Justiça, quanto pelo Poder Executivo, através do veto. Existe ainda o controle repressivo, que se dá após a publicação da lei ou ato normativo. Também faz parte deste tipo de controle, o veto de competência do Congresso Nacional, quando os atos do Poder Executivo exorbitem o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa. O princípio do controle de constitucionalidade liga-se à concepção moderna de Estado democrático de direito, que traz ínsito a ideia de um sistema jurídico contrário a qualquer forma de opressão do indivíduo. Tal modelo foi expressamente recepcionado pela Constituição de 1988, fundada na legalidade e no controle judiciário. O princípio da constitucionalidade expressa que o Estado brasileiro norteia-se na legitimidade de sua Constituição, emanada da vontade popular e dotada de soberania, vinculando todos os poderes e atos deles provenientes, com a garantia de atuação livre de regras da jurisdição constitucional. Foi a partir da necessidade de adequação vertical das normas infraconstitucionais à lei fundamental, que surgiu o sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade de leis e atos normativos. Quanto ao sujeito controlador, além dos magistrados, os demais operadores do direito têm a obrigação de controlar a juridicidade dos atos jurídicos, agindo cada qual no âmbito de sua atividade. O controle exercido pelos juízes é repressivo da inconstitucionalidade, sendo posterior à existência da lei. A atividade de controlar a juridicidade converte-se em legítimo poder-dever democrático. Ou seja, qualquer cidadão, praticante de um ato jurídico e que nele colabore, ou não, deve controlar sua juridicidade. Em relação ao Supremo Tribunal Federal e ao instituto da jurisdição constitucional, esta legitimidade deve ser melhor encontrada mediante a sua reformulação ou a criação de novos critérios de composição, competências e atuação. Quanto mais perto estiver do povo o juiz constitucional, mais elevado há de ser o grau de sua legitimidade. Isto não significa que o STF deva abdicar-se de suas competências originárias de guardião da Constituição e nem que, a exemplo nosso, se encarregue de outras funções que não esta. O STF, embora possua as típicas competências dos Tribunais Constitucionais europeus, deles se distanciou por constituir-se, também, na última instância da jurisdição ordinária. Esse distanciamento reflete-se na realidade processual, com o inusitado número de processos que chegam àquela Casa. Todavia, para que o STF possa assumir plenamente seu papel de órgão de direção do Estado, transformando-se exclusiva e definitivamente em Corte de Constitucionalidade, não basta a simples alteração constitucional de suas competências, sendo igualmente necessário alterações na sua composição e no procedimento de atuação, Ao STF deve competir, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual; a ação declaratória de constitucionalidade; pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade; a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; a ação de inconstitucionalidade interventiva e a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Nosso sistema é um dos mais completos, pois adota, conjuntamente, os métodos difuso e concentrado. Dessa forma, o atual modelo deve ser mantido, mas em se tratando do controle judicial preventivo de constitucionalidade, que legitima todos os parlamentares a ingressarem com mandado de segurança deve ser ampliado para possibilitar o controle jurisdicional em respeito aos direitos dos grupos parlamentares minoritários. Conclui-se com a lembrança de que a jurisdição constitucional retira sua legitimidade formalmente da própria Constituição e materialmente da necessidade de proteção ao Estado de direito e aos direitos fundamentais, pois as decisões dos Tribunais Constitucionais prevalecem sobre a dos representantes eleitos, porque se presume que assim desejou a maioria na elaboração da Constituição, por meio do exercício do poder constituinte originário e porque AS Cortes Constitucionais são órgãos de garantia da supremacia de seus princípios, resguardando dessa forma o Estado de direito e preservando as ideias básicas da Constituição. REFERÊNCIA AMARAL, Diogo Freitas do. 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