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O GENOMA INTERATIVO: PIAGET E A BIOLOGIA DO SÉCULO XXI
Paulo Candido de Oliveira Filho (USP) - [email protected]
Lino de Macedo (USP) - [email protected]
Introdução
Talvez como introdução caiba admitir que o título desta comunicação é enganoso. Não
temos neste momento qualquer garantia de que seja possível defender a expressão
“Genoma Interativo” de um ataque epistemológico minimamente organizado. Podemos
intuir, podemos supor, que a expressão se mostrará produtiva ao final do percurso, mas
dificilmente ela se sustentará em mais que uma esperança de sentido ao final desta
apresentação, que nada mais é que o início do percurso. Mais ainda que nosso olhar,
parcial necessariamente, não leva ao relato do psicologo nem do biólogo, mas sim ao de
um estudante que se quer atento, de um colecionador de dúvidas se desejarmos,
tentando extrair um sentido, talvez epifenomênico, de fontes dispares e por vezes
contraditórias.
É quase consenso considerar que Piaget estudou a construção do conhecimento no ser
humano. Como acontece com qualquer generalização didática, o verdadeiro sentido da
obra de Piaget é muito mais complexo e sutil, envolvendo interações entre a Biologia, a
Filosofia, a Lógica, a Matemática e, quase que lateralmente, quase que apenas como
suporte empírico, a Psicologia. Em uma primeira aproximação, ainda também simples e
didática, poderíamos dizer que Piaget estudou as condições necessárias para a
construção do conhecimento em qualquer organismo vivo. Esta definição tem a
vantagem de ao menos nos eximir de um erro bastante comum entre psicólogos e
pedagogos, mesmo entre aqueles que se dedicam ao estudo de Piaget, ignorar ou
desprezar os trabalhos “biológicos” de Piaget. Ora, uma das premissas que anima este
trabalho é que sequer existe um suposto “Piaget biólogo” apartado e isolado de um
“Piaget filósofo” e de um “Piaget psicólogo” e que essa leitura fragmentada da obra
piagetiana foi e é um dos grandes entraves ao entendimento de tal obra.
Em uma de suas últimas grandes obras, considerada por alguns o resumo mesmo dos 60
2
anos anteriores de trabalho do cientista suíço, “A Equilibração das Estruturas
Cognitivas” (PIAGET 1975/1976), Piaget escreve
A ideia central é que este [o conhecimento] não procede nem da experiência
única dos objetos, nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas
de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas (p.
7)
Tendo um dia retirado da Biologia dois conceitos básicos de sua teoria, a assimilação e a
acomodação, Piaget mostra nessa obra como o jogo de equilíbrio entre estas duas forças
acaba levando à construção das estruturas cognitivas do sujeito. O uso do neologismo
“equilibração” indica exatamente este jogo, esta tensão, um equilíbrio que além de ser
dinâmico e instável tende sempre a uma estrutura de complexidade maior, donde a
complementação posterior da equilibração pelo adjetivo “majorante”. No processo
eternamente instável de assimilação e acomodação a estrutura cognitiva tende a se
complicar e a complicar seu entendimento do ambiente e, neste complicar, adquirir
poderes de análise e síntese das relações entre os objetos e entre si e os objetos cada vez
maiores.
Não nos parece de forma alguma casual que, ao mesmo tempo em que escrevia o texto
que de alguma forma coroa sua obra epistemológica, Piaget se dedicasse também ao
texto que melhor sintetiza sua visão dos mecanismos da Evolução, “Comportamento,
Motriz da Evolução” (PIAGET 1976/1977).
Quase dez anos antes Piaget havia publicado “Biologia e Conhecimento" (PIAGET
1967/1973), expondo pela primeira vez sua visão da integração necessária entre a
biologia e a psicologia e, especialmente, entre o genótipo e o meio, sugerindo a ideia de
uma terceira via entre o lamarckismo e o neodarwinismo.
Piaget retoma o tema no pequeno volume chamado “Adaptação Vital” (PIAGET
1973/1978) para tanto rebater as acusações de “lamarckismo” contra a obra anterior
quanto para detalhar os mecanismos de interação entre os genes e o meio:
Mas antes de deixar ao leitor a tarefa de julgar estas tentativas de interpretação,
3
gostaria de fazer uma observação quanto a suas relações com o que
sustentamos em nossa obra anterior, Biologia e Conhecimento. A vários de
nossos colegas as teses ali expostas pareceram mais ou menos manchadas de
lamarckismo, pois insistíamos na improbabilidade de se conceder ao genoma
poderes sintéticos mais amplos e melhor organizados sem que as múltiplas
regulações em jogo o informassem por sua vez dos êxitos e fracassos dessas
construções endógenas. (página 5)
Assim, pois, esperamos que o presente ensaio, que apresenta um modelo
possível para a substituição do exógeno pelo endógeno, pareça mais aceitável
em um autor que combateu infatigavelmente o empirismo no terreno
epistemológico e, portanto, o lamarckismo puro no terreno biológico (página
6)
Mas será no já citado “Comportamento, Motriz da Evolução” (PIAGET 1976/1977) que
Piaget vai expor de forma mais completa suas objeções ao consenso biológico da época
e suas ideias sobre os mecanismos da Evolução. A exposição que segue se baseia
principalmente nesta obra.
Objetivos
Antes porém podemos declarar nossos objetivos, partindo daqueles mais insensatos,
mais ideais, aqueles que esperamos ver cumpridos antes de morrer, e ir reduzindo aos
poucos o escopo até chegarmos ao pequeno e modesto objetivo deste texto.
O sentido amplo deste trabalho, que retorna ao que se convencionou chamar de “Piaget
biólogo” é recuperar o sentido da obra de Piaget para o seculo XXI – uma obra que hoje
é descartada e atacada sem ser lida ou entendida. Assim, este recuperar precisa ao
mesmo tempo esclarecer e reafirmar. Esclarecer a sociedade, esclarecer a escola,
esclarecer nossos colegas pedagogos sobre o significado da obra de Piaget e a
importância de suas descobertas para a Educação. Ainda que, com Piaget, não nos
importemos demasiadamente com o que a Escola entende ou deixa de entender,
acreditando que eventualmente uma acomodação das estruturas burocráticas e
institucionais permitirá a assimilação de tais descobertas.
4
Em um sentido mais restrito a este programa de pesquisa, nossa intenção é demonstrar
como as ideias de Piaget sobre a evolução das espécies e a seleção natural anteciparam
uma série de achados da Biologia desde a última década do século passado, achados que
modificaram de forma decisiva o entendimento corrente sobre como se deu a evolução
da vida no planeta. Isto inevitavelmente acabará nos levando a examinar como, em
Piaget, a biologia e a epistemologia se encaixam em um todo coerente e coeso.
Cabe ainda um último fechamento de foco, que nos leve ao modesto objetivo deste texto
particular. Aqui queremos comparar brevemente as ideias de Piaget sobre a Evolução
com a visão ortodoxa e ainda corrente da Biologia e, ao examinar lado a lado tais
propostas, tentar caracterizar como o ponto de vista de Piaget engloba e aumenta o
neodarwinismo. Mencionamos também alguns resultados surpreendentes obtidos em
pesquisas algo recentes sobre a transmissão de caracteres aprendidos, resultados que por
si só justificariam algum interesse neste estudo que nos propomos a realizar. Por fim,
concluímos com exposição do caminho a seguir em direção a uma visão interativa do
processo evolutivo e com algumas considerações sobre as consequências e a
importância de se subtrair ao genoma seu caráter finalista e inatista.
A Síntese Moderna
Theodosius Dobzhansky, um dos maiores biólogos do século 20, uma vez disse “Nada
na Biologia faz sentido exceto à luz da Evolução” ( DOBZHANSKY, 1973). Esta
afirmação pode ser estendida sem reparos a todos os campos do conhecimento
derivados da Biologia, incluindo aí toda a Psicologia e sem dúvida alguma toda a teoria
piagetiana. Afinal, a teoria de Piaget nada mais faz que estabelecer as bases biológicas
do conhecimento. Não é então nada espantoso que Piaget dialogasse intensamente com
a Biologia de sua época e, especialmente, com a teoria da Evolução.
Para entender melhor as críticas de Piaget ao neodarwinismo vamos primeiro expor
brevemente as principais teses ali encontradas.
Nas décadas de 30 e 40 do século XX consolidou-se na Biologia um consenso científico
unificando as ideias de Darwin e as descobertas da genética, no que veio a ser
5
conhecido como a Síntese Moderna, a partir do título de um livro do grande biólogo
Julian Huxley (HUXLEY, 1942). A síntese envolveu descobertas da genética, da
genética de populações, da matemática, da história natural, da taxonomia e da
paleontologia, abarcando desde o papel dos genes na transmissão de caracteres até a
explicação da evidência fóssil.
As ideias principais que emergiram da Síntese são conhecidas coletivamente como a
Teoria Sintética e representam até os dias de hoje a base da biologia evolutiva, tanto
daquela que é ensinada quando daquela que é praticada e foi a este conjunto de
proposições que Piaget designou “ortodoxia neodarwinista”. Em resumo, a Teoria
Sintética da Evolução diz o seguinte 1 :
1. As características físicas observáveis(o fenótipo) são diferentes do genótipo
(conjunto de genes de um indivíduo). As diferenças fenotípicas entre organismos
individuais se devem a diferenças genéticas e a efeitos diretos do meio.
2. Os efeitos do meio sobre o fenótipo de um organismo não afetam os genes
transmitidos pelo organismo a seus descendentes. Ou seja, características
adquiridas não são herdadas. O meio pode, entretanto, afetar a expressão dos
genes de um organismo.
3. As variações hereditárias se baseiam nos genes, que retém sua identidade
enquanto passam de uma geração para outra. Genes não se misturam com outros
genes.
4. Genes sofrem mutação, em geral numa frequência bastante baixa, gerando
formas alternativas (alelos). O efeito dessas mutações pode ser indetectável a
extremo. A recombinação entre alelos do mesmo loci pode amplificar o efeito
das mutações.
5. Fatores ambientais (tais como produtos químicos ou radiação) podem afetar a
frequência de mutação, mas tais fatores de forma alguma garantem mutações
que seriam favoráveis ao organismo.
1
No intuito de melhor caracterizar a teoria “ortodoxa”, nós optamos por retirar suas definições de
um dos livros didáticos mais utilizados em cursos de pós-graduação sobre Evolução, Evolutionary
Biology (FUTUYMA, 1998). A lista é uma adaptação da lista apresentada aparece nas páginas 26 e 27
daquele texto. A tradução é nossa.
6
6. A evolução é um processo populacional: ela afeta as proporções de indivíduos
com diferentes genótipos dentro de uma população. Ao longo do tempo a
proporção de um genótipo pode aumentar gradualmente e eventualmente
substituir totalmente o genótipo alternativo. Isto pode acontecer tanto em
determinadas populações quanto afetar toda uma espécie.
7. A mutação sozinha é insuficiente para modificar o genótipo de toda uma
população. Tais modificações são causadas por dois outros fenômenos,
flutuações aleatórias na proporção de um genótipo (“derivação genética
aleatória”) e ou flutuações não aleatórias devidas à superioridade de um
genótipo quanto à sobrevivência ou à capacidade de reprodução em relação aos
genótipos alternativos (seleção natural).
8. Em determinadas circunstâncias mesmo uma pequena pressão da seleção natural
pode gerar grandes mudanças evolutivas em um intervalo de tempo
relativamente curto. Diferenças muito pequenas entre dois organismos podem
resultar em pequenas diferenças na sobrevivência ou na capacidade de
reprodução. A seleção natural assim poderia explicar pequenas diferenças entre
espécies e o aparecimento de novas características.
9. A seleção pode alterar uma população para além de sua faixa de variação
original pelo aumento na proporção de alelos alternativos.
10. As populações naturais são geneticamente variáveis.
11. Populações de uma mesma espécie em regiões geográficas diferentes diferem
em características genéticas.
12. É possível demonstrar que a maior parte das diferenças entre espécies diferentes
e entre populações diferentes de uma mesma espécie se deve a diferenças
genéticas, localizadas principalmente em fatores poligênicos. Esta descoberta
sustenta a hipótese de que a especiação ocorre em pequenos passos e não através
de mutações com grande efeito fenotípico.
13. A seleção natural continua ocorrendo nas populações atuais.
14. As diferenças entre populações geograficamente dispersas de uma mesma
espécie são frequentemente adaptativas, pois estão muitas vezes correlacionadas
com fatores ambientais relevantes.
15. O que determina a separação entre espécies são diferenças genéticas e não
7
diferenças fenotípicas. Uma espécie é um grupo de indivíduos capazes de se
reproduzir entre si. Não há troca genética entre espécies diferentes.
16. Mas há uma escala contínua de diferenciação entre populações, tanto em termos
fenotípicos quanto no que diz respeito ao isolamento reprodutivo, indo desde
populações quase idênticas até espécies completamente diferentes. Esta
observação corrobora a ideia de que uma espécie ancestral se diferencia em duas
por acumulação gradual de pequenas diferenças e não em um salto mutacional
único.
17. A especiação em geral ocorre pela diferenciação genética de populações
separadas geograficamente. A separação evita que as pequenas mudanças
genéticas se percam pelo cruzamento entre indivíduos com genótipos diferentes.
18. Há inúmeras gradações nas características fenotípicas de espécies do mesmo
gênero, de gêneros diferentes, de famílias diferentes, etc. Isto corrobora
novamente a ideia de que as famílias, ordem, classes etc aparecem através do
acúmulo de pequenas mudanças e não em uma grande salto.
19. Apesar de incompleta, a evidência fóssil também apresenta exemplos de
gradação entre supostos organismos ancestrais e descendentes muito diferentes.
Isto novamente suporta a ideia de que a evolução de grandes diferenças se dá
através de inúmeros pequenos passos.
20. Assim, todas as observações da evidência fóssil são consistentes com os
princípios de mudança evolucionária apresentados acima. Não há então
necessidade de invocar hipóteses não-Darwinistas tais como mecanismos
Lamarckistas, evolução ortogenética, vitalismo ou o aparecimento abrupto de
grandes mutações.
Os vinte pontos acima representam, até hoje, a visão ortodoxa da teoria moderna da
evolução. Veremos que a critica piagetiana vai se concentrar em alguns pontos desta
estrutura, especialmente o segundo (efeitos do fenótipo sobre o genótipo), de alguma
forma o quinto (a direção do efeito dos fatores ambientais sobre as mutações) e, por
consequência, o último.
Piaget: o comportamento como motor da evolução
8
Não temos espaço nesta breve apresentação para uma exposição detalhada de todos os
argumentos que Piaget alinha para defender o papel central do comportamento na
evolução das espécies e especialmente para examinar todas as descobertas recentes da
Biologia que corroboram a visão exposta sucessivamente em “Biologia e
Conhecimento”, “Adaptação Vital” e “Comportamento, Motriz da Evolução”. Este
trabalho será feito em outro momento.
Nos propomos aqui a apresentar um breve apanhado das ideias expostas na última obra
mencionada para a seguir explorar um estudo recente que exemplifica de forma quase
dramática a aproximação da Biologia recente com princípios que Piaget já havia
deduzido há mais de 40 anos.
Em “Comportamento, Motriz da Evolução” Piaget examina uma série de propostas
descartadas pela Teoria Sintética da Evolução tal como resumida acima e tal como
defendida pelos principais neodarwinistas de sua época (ver HUXLEY 1943, MAYR
1982 e MAYR 1980).
Em capítulos sucessivos, Piaget trata das ideias de Lamarck, da seleção orgânica (o
“efeito Baldwin” 2 ), das descobertas da etologia sobre o papel do comportamento na
evolução, da assimilação genética demonstrada por Waddington (posteriormente
assimilada à Teoria Sintética sob o guarda-chuva da canalização) e das ideias de Weiss
sobre a hierarquia dos sistemas para, a seguir, apresentar uma visão coerente da
influência do comportamento aprendido sobre o genótipo e sobre a evolução das
espécies.
Ao retomar e examinar cuidadosamente ideias descartadas pela ortodoxia, ao explorar
os limites da Biologia corrente de sua época, Piaget não busca afrontar o establishment
científico mas sim fazer ciência na sua mais pura concepção. Ele vai tentar determinar
para além do discurso fácil da unanimidade quais elementos daquelas teorias
2
A ideia que ficou conhecida como “efeito Baldwin” poderia ser chamada “efeito Baldwin-MorganOsborne, tendo sido apresentada quase que simultaneamente e de forma independente pelos biólogos
James Mark Baldwin, Conway Lloyd Morgan e Henry Fairfield Osborne em 1895 e 1896 (DEPEW,
2003/2007)
9
desacreditadas pela ciência oficial podem ser úteis para uma construção alternativa,
sempre baseando sua decisão na análise racional à luz dos fatos observáveis e de
experimentos reproduzíveis.
Tome-se Lamarck, cuja teoria por um lado apresenta insigths muito interessantes sobre
a relação entre o comportamento e a formação dos órgãos mas peca em considerar o
comportamento um fenômeno unicamente externo, determinado exclusivamente pelo
meio. Como diz Piaget. “Estas dificuldades [em definir as causas do surgimento de um
comportamento] provêm inteiramente da sua interpretação empírica do comportamento,
concebido apenas como determinado pelo meio, sem fatores endógenos que fossem
homogêneos com os de organização” (PIAGET, 1976/1977, p. 29).
Baldwin, que era também psicólogo, “procura completar (mas não contradizer) o
darwinismo através da noção de 'seleção funcional' e sobretudo 'orgânica'”. (PIAGET,
1976/1977, p. 34). Em uma leitura contemporânea, o “efeito Baldwin” propõe que em
determinadas condições os comportamentos aprendidos afetam a direção e a velocidade
da evolução por seleção natural. Uma herança cultural através de um número
indeterminado de gerações criaria um espaço no qual seria possível que o
comportamento aprendido se convertesse em adaptações genéticas (DEPEW, 2007, p.3).
Piaget, comentando os textos de Baldwin em 1974, observa que Baldwin falha em ligar
a nova acomodação representada por um comportamento inédito provocado por
mudanças no meio a modificações correspondentes no meio interior e é insuficiente
para explicar o processo de fenocópia 3 (PIAGET 1976/1977, p. 38/39).
O efeito Baldwin tem sido objeto de controvérsias desde sua proposição, sendo
sucessivamente descartado e revivido inúmeras vezes ao longo do último século (para
uma história mais completa desta ideia, ver DEPEW & WEBER, 2003/2007).
Em um artigo de 1953, C. H. Waddington (WADDINGTON, 1953) relata um caso de
assimilação genética em uma população da mosca de fruta Drosophila megalogaster.
3
Fenocópia é o processo através do qual uma característica que aparece inicialmente apenas no
fenótipo de indivíduos de uma espécie acaba, ao longo de gerações, por se fixar no (ou ser “copiada”
pelo) genótipo.
1
Pupas submetidas a altas temperaturas durante quatro horas desenvolveram uma quebra
na veia transversal posterior. Após algumas gerações, o efeito fenotípico começou a
surgir em indivíduos não submetidos às altas temperaturas durante o desenvolvimento.
Depois disto o fenótipo se fixou em algumas linhagens e apareceu de forma consistente
em indivíduos que se desenvolveram a temperaturas normais e mesmo em temperaturas
abaixo do normal. Piaget observa que a explicação para o fenômeno de assimilação
genética, incorporado à teoria através da canalização genética (tendência do genótipo a
estabilizar o fenótipo dentro de determinada faixa de variação), exige que o genótipo
contenha já genes alelos para as alternativas assimiladas (PIAGET, 1976/1977, p. 6174). Mas é importante reter o fato de que este processo já mostra de forma conclusiva a
influência direta do meio externo e da epigênese sobre o genoma.
Piaget examina a seguir as ideias de Paul Weiss (PIAGET, 1976/1977, p. 75-89),
especialmente a visão do genótipo como uma parte integrante de uma estrutura maior
que começa nos genes, passa pelo sistema epigenético que comanda o desenvolvimento
e termina no próprio ambiente em que o organismo se desenvolve. O acréscimo
fundamental aqui é a visão do organismo como “sistema”, composto de partes em
constante interação entre si e entre si e o todo. Diz Piaget:
Compreendemos agora o que significa a origem de um carácter inato na
perspectiva de P. Weiss: ela não está contida em certos genes por si sós, mas
consiste num processo que, começando neles, engloba ainda um sector
determinado da epigênese com o qual os genes estão em interação e apresenta
no seu trajeto uma certa unidade que o distingue dos outros, com os quais pode
aliás se combinar. (PIAGET, 1976/1977, p. 87)
A ideia central aqui é, vale repetir, a criação de novidades genéticas pela interação entre
diversos subsistemas de um sistema maior, este último englobando desde o genoma até
o ambiente que contém o indivíduo. Mais ainda:
Sucessos tão surpreendentes como os dos instintos e da inteligência só podem
ser explicados de duas maneiras, se se rejeitar a generalidade das origens
aleatórias canalizadas apenas pela seleção-sobrevivência (hipótese que
desvalorizaria o próprio conhecimento científico): um constante adivinhar
11
profético da parte de genômios chamados a prever a adequação dos seus
produtos aos mais diferenciados meios, ou interações entre as diversas etapas
da organização, e trata-se agora de saber em que é que essas interações podem
consistir no caso dos comportamentos mais simples. (PIAGET, 1976/1977, p.
88-89)
Ao final da obra aqui examinada Piaget constrói uma visão interativa do processo
evolutivo, assentada no papel fundador do comportamento dos organismos como fonte
de inovações. O comportamento agrega três características que o habilitam a este papel:
sua finalidade, suas adequações especializadas e o papel particular das seleções
exercidas pelo meio interno (intermediário entre o meio exterior e a orientação de novas
variações).
Sobre a finalidade, Piaget já havia definido nas primeiras linhas desta obra o
comportamento como “o conjunto das ações que os organismos exercem sobre o meio
exterior para modificarem os seus estados ou para transformarem a sua própria situação,
em
relação
a
esse
meio”.
Condutas
sensório-motoras,
por
exemplo,
são
comportamentos. Também o são as condutas interiores, como as operações mentais.
Mas a respiração (que modifica a atmosfera) ou as contrações musculares não são
comportamentos, pois carecem da finalidade explícita e da intencionalidade implícita na
definição dada.
Na conclusão, a finalidade é um dos elementos incorporados ao papel do
comportamento no processo evolutivo:
[…] sendo o comportamento uma ação exercida sobre o meio e visando desde a
sua ativação atingir um resultado exterior, ele não pode ser assimilado a uma
mutação qualquer, que se produza com toda a independência em relação ao
ambiente, que este aceitará ou rejeitará tardiamente tendo em vista os
resultados não previstos no programa.(PIAGET, 1976/1977, p. 167)
Segue que um comportamento exige informações detalhadas sobre o meio onde ele vai
se dar, não podendo (a menos que retornemos à mais simples leitura empiricista de
Lamarck) ser gerado aleatoriamente. Pense-se aqui nos instintos.
1
O comportamento também conduz a adaptações por adequação:
Donde o segundo aspecto do caráter intrínseco das adaptações do
comportamento: é conduzir a um “saivor-faire” isomorfo a um sistema
cognitivo. […] a adaptação por adequação seleciona os ensaios ou ações em
função de seu sucesso, sendo esse sucesso relativo às finalidade perseguidas.
Ora, embora estas resultem sempre em conservações e sobrevivências, são
além disso ricas em acomodações particulares e sobretudo cheias de
adiantamentos possíveis. (PIAGET, 1976/1977, p. 168)
Cabe destacar a analogia que liga o comportamento e por extensão o processo
evolutivo, ao sistema cognitivo, analogia a qual já mencionamos logo na introdução.
Por fim, há o aspecto relativo ao meio interior:
Para explicar sem ações diretas lamarckianas a ligação entre as condutas
específicas ou instintos e as particularidades dos meios sobre os quais agem,
podemos recorrer a duas hipóteses: uma é que os comportamentos
“elementares” se adquiram no plano fenotípico, e que o meio interior
modificado por eles selecione depois as variações dos genes até à produção
endógena de uma fenocópia que reconstrua as ações em função desse novo
quadro; a outra é que os instintos complexos procedam de uma combinação de
genes que compõe entre eles essas condutas “elementares”, ultrapassando-os
depois através de reforços completivos, o que supõe igualmente uma ação
seletiva do meio epigenético. (PIAGET, 1976/1977, p. 168-169)
Piaget conclui, ainda que “a título especulativo”, que a evolução se apresenta de duas
formas, a forma variativa (aquela proposta na Síntese Moderna) e a organizadora,
conduzida pelo comportamento e ligada à totalidade do sistema:
De fato, se admitirmos esse “dualismo” entre as ações, aliás complementares,
de uma dinâmica global e de subconjuntos de “unidades discretas”, parece
difícil fugir a duas consequências que provêm logicamente (embora,
infelizmente, apenas a título especulativo) de uma evolução organizadora, além
da variativa, e do papel motor desempenhado pelo comportamento no seio da
1
primeira. (PIAGET, 1976/1977, p. 177)
Observe-se que na própria conclusão Piaget deixa claro que aceita plenamente a
evolução clássica nos moldes neodarwinista e apenas acrescenta a necessidade de uma
evolução organizadora, agindo em um patamar diferente, para explicar as insuficiências
da primeira.
Se saltarmos agora mais de 30 anos, podemos examinar rapidamente um artigo que
corrobora algumas das ideias de Piaget. Em “Transgenerational Rescue of a Genetic
Defect in Long-Term Potentiation and Memory Formation by Juvenile Enrichment”
(JUNKO, A. A.; FEIG, L. A, 2009) os pesquisadores demonstram a transmissão
transgeracional dos efeitos de comportamentos aprendidos. Em uma experiência com
camundongos, descendentes de animais expostos a ambientes enriquecidos na
adolescência apresentaram os mesmos efeitos sobre a memória sem terem sido expostos
aos mesmos ambientes. A transmissão ocorre na embriogênese (pois mesmo
descendentes criados por mães substitutas, estas não expostas àqueles ambientes,
apresentam o mesmo efeito). Se tal fenômeno ocorrer nos seres humanos, a memória na
adolescência seria influenciada pelas experiências da mãe quando jovem. Não vamos
examinar aqui os detalhes e as consequências deste artigo, apenas o mencionamos como
um dos pontos de partida para explorações futuras.
Conclusão
Como conclusão gostaríamos de inicialmente retomar a introdução. Parece-nos claro
que há valor no confronto das hipóteses de Piaget sobre a Evolução com a Síntese
Moderna. Neste trabalho, talvez não mais que uma declaração de intenções, apenas
esboçamos este confronto, que precisa agora ser acrescido das inúmeras comprovações
fornecidas pela própria Biologia, pela Psicologia do Desenvolvimento, pela Psicologia
Evolutiva, pela Neurologia e pela Etologia. Sabemos que estas comprovações vem se
acumulando nos últimos anos, nosso próximo passo será reuni-las em um todo coerente.
Esperamos também que tenha ficado evidente a continuidade estrutural da teoria
piagetiana. Os processos e estruturas que sustentam a evolução das espécies são, nas
1
palavras de Piaget, análogos àqueles que sustentam a construção do conhecimento,
podendo os processos de construção de conhecimento também ser dispostos ao longo de
um contínuo na escala biológica.
Em um Congresso de Psicologia Escolar e Educacional nos parece que caberia, como
conclusão, explorar um pouco o sentido do que foi dito acima na direção da escola e da
educação.
Nosso objetivo principal, não neste texto mas de forma mais global, é resgatar a teoria
de Piaget para o século XXI. Isto nos parece tanto importante quanto oportuno.
Importante porque acreditamos que Piaget desenvolveu a mais completa teoria sobre a
construção de conhecimento que temos, uma teoria que estabelece as bases biológicas
do conhecer e nos informa tanto sobre as estruturas quanto sobre os processos
envolvidos na construção do conhecimento. Oportuno em um momento em que se
enfrentam ataques desinformados contra um “construtivismo” genérico que ameaçam
fazer regredir todos os avanços pedagógicos descobertos pela Psicologia nos últimos
cem anos.
Se escolhemos iniciar este caminho muito próximos da Biologia não foi por acaso – a
retomada dessas ideias biológicas de Piaget visa um fim específico: discutir a natureza
fundamentalmente interativa do aprender (e por extensão, necessariamente, do ensinar),
natureza já estabelecida lá nos processos biológicos. Desta forma esperamos colaborar
na desconstrução tanto de ideias inatistas (e muitas vezes mesmo racistas) baseadas em
uma leitura simplista genética evolutiva quanto de ideias empiristas que animam os
defensores de uma lendária escola tradicional, no mais das vezes nada mais que aquilo
que Paulo Freire chamou de “educação bancária”.
Não esperamos ter comprovado aqui a validade das teorias de Piaget sobre a Evolução,
apenas iniciado um caminho que agora nos levará a examinar como cada ponto
levantado aqui e outros, à luz dos conhecimentos adquiridos pela Biologia, pela
Etologia e pela Psicologia nos últimos 40 anos, em um trabalho que se apresenta tanto
como uma empresa retrospectiva e arqueológica quanto como uma oportunidade de
1
prospecção de novos caminhos e de busca de novas perspectivas para ideias talvez
injustamente esquecidas.
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