O GENOMA INTERATIVO: PIAGET E A BIOLOGIA DO SÉCULO XXI Paulo Candido de Oliveira Filho (USP) - [email protected] Lino de Macedo (USP) - [email protected] Introdução Talvez como introdução caiba admitir que o título desta comunicação é enganoso. Não temos neste momento qualquer garantia de que seja possível defender a expressão “Genoma Interativo” de um ataque epistemológico minimamente organizado. Podemos intuir, podemos supor, que a expressão se mostrará produtiva ao final do percurso, mas dificilmente ela se sustentará em mais que uma esperança de sentido ao final desta apresentação, que nada mais é que o início do percurso. Mais ainda que nosso olhar, parcial necessariamente, não leva ao relato do psicologo nem do biólogo, mas sim ao de um estudante que se quer atento, de um colecionador de dúvidas se desejarmos, tentando extrair um sentido, talvez epifenomênico, de fontes dispares e por vezes contraditórias. É quase consenso considerar que Piaget estudou a construção do conhecimento no ser humano. Como acontece com qualquer generalização didática, o verdadeiro sentido da obra de Piaget é muito mais complexo e sutil, envolvendo interações entre a Biologia, a Filosofia, a Lógica, a Matemática e, quase que lateralmente, quase que apenas como suporte empírico, a Psicologia. Em uma primeira aproximação, ainda também simples e didática, poderíamos dizer que Piaget estudou as condições necessárias para a construção do conhecimento em qualquer organismo vivo. Esta definição tem a vantagem de ao menos nos eximir de um erro bastante comum entre psicólogos e pedagogos, mesmo entre aqueles que se dedicam ao estudo de Piaget, ignorar ou desprezar os trabalhos “biológicos” de Piaget. Ora, uma das premissas que anima este trabalho é que sequer existe um suposto “Piaget biólogo” apartado e isolado de um “Piaget filósofo” e de um “Piaget psicólogo” e que essa leitura fragmentada da obra piagetiana foi e é um dos grandes entraves ao entendimento de tal obra. Em uma de suas últimas grandes obras, considerada por alguns o resumo mesmo dos 60 2 anos anteriores de trabalho do cientista suíço, “A Equilibração das Estruturas Cognitivas” (PIAGET 1975/1976), Piaget escreve A ideia central é que este [o conhecimento] não procede nem da experiência única dos objetos, nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas (p. 7) Tendo um dia retirado da Biologia dois conceitos básicos de sua teoria, a assimilação e a acomodação, Piaget mostra nessa obra como o jogo de equilíbrio entre estas duas forças acaba levando à construção das estruturas cognitivas do sujeito. O uso do neologismo “equilibração” indica exatamente este jogo, esta tensão, um equilíbrio que além de ser dinâmico e instável tende sempre a uma estrutura de complexidade maior, donde a complementação posterior da equilibração pelo adjetivo “majorante”. No processo eternamente instável de assimilação e acomodação a estrutura cognitiva tende a se complicar e a complicar seu entendimento do ambiente e, neste complicar, adquirir poderes de análise e síntese das relações entre os objetos e entre si e os objetos cada vez maiores. Não nos parece de forma alguma casual que, ao mesmo tempo em que escrevia o texto que de alguma forma coroa sua obra epistemológica, Piaget se dedicasse também ao texto que melhor sintetiza sua visão dos mecanismos da Evolução, “Comportamento, Motriz da Evolução” (PIAGET 1976/1977). Quase dez anos antes Piaget havia publicado “Biologia e Conhecimento" (PIAGET 1967/1973), expondo pela primeira vez sua visão da integração necessária entre a biologia e a psicologia e, especialmente, entre o genótipo e o meio, sugerindo a ideia de uma terceira via entre o lamarckismo e o neodarwinismo. Piaget retoma o tema no pequeno volume chamado “Adaptação Vital” (PIAGET 1973/1978) para tanto rebater as acusações de “lamarckismo” contra a obra anterior quanto para detalhar os mecanismos de interação entre os genes e o meio: Mas antes de deixar ao leitor a tarefa de julgar estas tentativas de interpretação, 3 gostaria de fazer uma observação quanto a suas relações com o que sustentamos em nossa obra anterior, Biologia e Conhecimento. A vários de nossos colegas as teses ali expostas pareceram mais ou menos manchadas de lamarckismo, pois insistíamos na improbabilidade de se conceder ao genoma poderes sintéticos mais amplos e melhor organizados sem que as múltiplas regulações em jogo o informassem por sua vez dos êxitos e fracassos dessas construções endógenas. (página 5) Assim, pois, esperamos que o presente ensaio, que apresenta um modelo possível para a substituição do exógeno pelo endógeno, pareça mais aceitável em um autor que combateu infatigavelmente o empirismo no terreno epistemológico e, portanto, o lamarckismo puro no terreno biológico (página 6) Mas será no já citado “Comportamento, Motriz da Evolução” (PIAGET 1976/1977) que Piaget vai expor de forma mais completa suas objeções ao consenso biológico da época e suas ideias sobre os mecanismos da Evolução. A exposição que segue se baseia principalmente nesta obra. Objetivos Antes porém podemos declarar nossos objetivos, partindo daqueles mais insensatos, mais ideais, aqueles que esperamos ver cumpridos antes de morrer, e ir reduzindo aos poucos o escopo até chegarmos ao pequeno e modesto objetivo deste texto. O sentido amplo deste trabalho, que retorna ao que se convencionou chamar de “Piaget biólogo” é recuperar o sentido da obra de Piaget para o seculo XXI – uma obra que hoje é descartada e atacada sem ser lida ou entendida. Assim, este recuperar precisa ao mesmo tempo esclarecer e reafirmar. Esclarecer a sociedade, esclarecer a escola, esclarecer nossos colegas pedagogos sobre o significado da obra de Piaget e a importância de suas descobertas para a Educação. Ainda que, com Piaget, não nos importemos demasiadamente com o que a Escola entende ou deixa de entender, acreditando que eventualmente uma acomodação das estruturas burocráticas e institucionais permitirá a assimilação de tais descobertas. 4 Em um sentido mais restrito a este programa de pesquisa, nossa intenção é demonstrar como as ideias de Piaget sobre a evolução das espécies e a seleção natural anteciparam uma série de achados da Biologia desde a última década do século passado, achados que modificaram de forma decisiva o entendimento corrente sobre como se deu a evolução da vida no planeta. Isto inevitavelmente acabará nos levando a examinar como, em Piaget, a biologia e a epistemologia se encaixam em um todo coerente e coeso. Cabe ainda um último fechamento de foco, que nos leve ao modesto objetivo deste texto particular. Aqui queremos comparar brevemente as ideias de Piaget sobre a Evolução com a visão ortodoxa e ainda corrente da Biologia e, ao examinar lado a lado tais propostas, tentar caracterizar como o ponto de vista de Piaget engloba e aumenta o neodarwinismo. Mencionamos também alguns resultados surpreendentes obtidos em pesquisas algo recentes sobre a transmissão de caracteres aprendidos, resultados que por si só justificariam algum interesse neste estudo que nos propomos a realizar. Por fim, concluímos com exposição do caminho a seguir em direção a uma visão interativa do processo evolutivo e com algumas considerações sobre as consequências e a importância de se subtrair ao genoma seu caráter finalista e inatista. A Síntese Moderna Theodosius Dobzhansky, um dos maiores biólogos do século 20, uma vez disse “Nada na Biologia faz sentido exceto à luz da Evolução” ( DOBZHANSKY, 1973). Esta afirmação pode ser estendida sem reparos a todos os campos do conhecimento derivados da Biologia, incluindo aí toda a Psicologia e sem dúvida alguma toda a teoria piagetiana. Afinal, a teoria de Piaget nada mais faz que estabelecer as bases biológicas do conhecimento. Não é então nada espantoso que Piaget dialogasse intensamente com a Biologia de sua época e, especialmente, com a teoria da Evolução. Para entender melhor as críticas de Piaget ao neodarwinismo vamos primeiro expor brevemente as principais teses ali encontradas. Nas décadas de 30 e 40 do século XX consolidou-se na Biologia um consenso científico unificando as ideias de Darwin e as descobertas da genética, no que veio a ser 5 conhecido como a Síntese Moderna, a partir do título de um livro do grande biólogo Julian Huxley (HUXLEY, 1942). A síntese envolveu descobertas da genética, da genética de populações, da matemática, da história natural, da taxonomia e da paleontologia, abarcando desde o papel dos genes na transmissão de caracteres até a explicação da evidência fóssil. As ideias principais que emergiram da Síntese são conhecidas coletivamente como a Teoria Sintética e representam até os dias de hoje a base da biologia evolutiva, tanto daquela que é ensinada quando daquela que é praticada e foi a este conjunto de proposições que Piaget designou “ortodoxia neodarwinista”. Em resumo, a Teoria Sintética da Evolução diz o seguinte 1 : 1. As características físicas observáveis(o fenótipo) são diferentes do genótipo (conjunto de genes de um indivíduo). As diferenças fenotípicas entre organismos individuais se devem a diferenças genéticas e a efeitos diretos do meio. 2. Os efeitos do meio sobre o fenótipo de um organismo não afetam os genes transmitidos pelo organismo a seus descendentes. Ou seja, características adquiridas não são herdadas. O meio pode, entretanto, afetar a expressão dos genes de um organismo. 3. As variações hereditárias se baseiam nos genes, que retém sua identidade enquanto passam de uma geração para outra. Genes não se misturam com outros genes. 4. Genes sofrem mutação, em geral numa frequência bastante baixa, gerando formas alternativas (alelos). O efeito dessas mutações pode ser indetectável a extremo. A recombinação entre alelos do mesmo loci pode amplificar o efeito das mutações. 5. Fatores ambientais (tais como produtos químicos ou radiação) podem afetar a frequência de mutação, mas tais fatores de forma alguma garantem mutações que seriam favoráveis ao organismo. 1 No intuito de melhor caracterizar a teoria “ortodoxa”, nós optamos por retirar suas definições de um dos livros didáticos mais utilizados em cursos de pós-graduação sobre Evolução, Evolutionary Biology (FUTUYMA, 1998). A lista é uma adaptação da lista apresentada aparece nas páginas 26 e 27 daquele texto. A tradução é nossa. 6 6. A evolução é um processo populacional: ela afeta as proporções de indivíduos com diferentes genótipos dentro de uma população. Ao longo do tempo a proporção de um genótipo pode aumentar gradualmente e eventualmente substituir totalmente o genótipo alternativo. Isto pode acontecer tanto em determinadas populações quanto afetar toda uma espécie. 7. A mutação sozinha é insuficiente para modificar o genótipo de toda uma população. Tais modificações são causadas por dois outros fenômenos, flutuações aleatórias na proporção de um genótipo (“derivação genética aleatória”) e ou flutuações não aleatórias devidas à superioridade de um genótipo quanto à sobrevivência ou à capacidade de reprodução em relação aos genótipos alternativos (seleção natural). 8. Em determinadas circunstâncias mesmo uma pequena pressão da seleção natural pode gerar grandes mudanças evolutivas em um intervalo de tempo relativamente curto. Diferenças muito pequenas entre dois organismos podem resultar em pequenas diferenças na sobrevivência ou na capacidade de reprodução. A seleção natural assim poderia explicar pequenas diferenças entre espécies e o aparecimento de novas características. 9. A seleção pode alterar uma população para além de sua faixa de variação original pelo aumento na proporção de alelos alternativos. 10. As populações naturais são geneticamente variáveis. 11. Populações de uma mesma espécie em regiões geográficas diferentes diferem em características genéticas. 12. É possível demonstrar que a maior parte das diferenças entre espécies diferentes e entre populações diferentes de uma mesma espécie se deve a diferenças genéticas, localizadas principalmente em fatores poligênicos. Esta descoberta sustenta a hipótese de que a especiação ocorre em pequenos passos e não através de mutações com grande efeito fenotípico. 13. A seleção natural continua ocorrendo nas populações atuais. 14. As diferenças entre populações geograficamente dispersas de uma mesma espécie são frequentemente adaptativas, pois estão muitas vezes correlacionadas com fatores ambientais relevantes. 15. O que determina a separação entre espécies são diferenças genéticas e não 7 diferenças fenotípicas. Uma espécie é um grupo de indivíduos capazes de se reproduzir entre si. Não há troca genética entre espécies diferentes. 16. Mas há uma escala contínua de diferenciação entre populações, tanto em termos fenotípicos quanto no que diz respeito ao isolamento reprodutivo, indo desde populações quase idênticas até espécies completamente diferentes. Esta observação corrobora a ideia de que uma espécie ancestral se diferencia em duas por acumulação gradual de pequenas diferenças e não em um salto mutacional único. 17. A especiação em geral ocorre pela diferenciação genética de populações separadas geograficamente. A separação evita que as pequenas mudanças genéticas se percam pelo cruzamento entre indivíduos com genótipos diferentes. 18. Há inúmeras gradações nas características fenotípicas de espécies do mesmo gênero, de gêneros diferentes, de famílias diferentes, etc. Isto corrobora novamente a ideia de que as famílias, ordem, classes etc aparecem através do acúmulo de pequenas mudanças e não em uma grande salto. 19. Apesar de incompleta, a evidência fóssil também apresenta exemplos de gradação entre supostos organismos ancestrais e descendentes muito diferentes. Isto novamente suporta a ideia de que a evolução de grandes diferenças se dá através de inúmeros pequenos passos. 20. Assim, todas as observações da evidência fóssil são consistentes com os princípios de mudança evolucionária apresentados acima. Não há então necessidade de invocar hipóteses não-Darwinistas tais como mecanismos Lamarckistas, evolução ortogenética, vitalismo ou o aparecimento abrupto de grandes mutações. Os vinte pontos acima representam, até hoje, a visão ortodoxa da teoria moderna da evolução. Veremos que a critica piagetiana vai se concentrar em alguns pontos desta estrutura, especialmente o segundo (efeitos do fenótipo sobre o genótipo), de alguma forma o quinto (a direção do efeito dos fatores ambientais sobre as mutações) e, por consequência, o último. Piaget: o comportamento como motor da evolução 8 Não temos espaço nesta breve apresentação para uma exposição detalhada de todos os argumentos que Piaget alinha para defender o papel central do comportamento na evolução das espécies e especialmente para examinar todas as descobertas recentes da Biologia que corroboram a visão exposta sucessivamente em “Biologia e Conhecimento”, “Adaptação Vital” e “Comportamento, Motriz da Evolução”. Este trabalho será feito em outro momento. Nos propomos aqui a apresentar um breve apanhado das ideias expostas na última obra mencionada para a seguir explorar um estudo recente que exemplifica de forma quase dramática a aproximação da Biologia recente com princípios que Piaget já havia deduzido há mais de 40 anos. Em “Comportamento, Motriz da Evolução” Piaget examina uma série de propostas descartadas pela Teoria Sintética da Evolução tal como resumida acima e tal como defendida pelos principais neodarwinistas de sua época (ver HUXLEY 1943, MAYR 1982 e MAYR 1980). Em capítulos sucessivos, Piaget trata das ideias de Lamarck, da seleção orgânica (o “efeito Baldwin” 2 ), das descobertas da etologia sobre o papel do comportamento na evolução, da assimilação genética demonstrada por Waddington (posteriormente assimilada à Teoria Sintética sob o guarda-chuva da canalização) e das ideias de Weiss sobre a hierarquia dos sistemas para, a seguir, apresentar uma visão coerente da influência do comportamento aprendido sobre o genótipo e sobre a evolução das espécies. Ao retomar e examinar cuidadosamente ideias descartadas pela ortodoxia, ao explorar os limites da Biologia corrente de sua época, Piaget não busca afrontar o establishment científico mas sim fazer ciência na sua mais pura concepção. Ele vai tentar determinar para além do discurso fácil da unanimidade quais elementos daquelas teorias 2 A ideia que ficou conhecida como “efeito Baldwin” poderia ser chamada “efeito Baldwin-MorganOsborne, tendo sido apresentada quase que simultaneamente e de forma independente pelos biólogos James Mark Baldwin, Conway Lloyd Morgan e Henry Fairfield Osborne em 1895 e 1896 (DEPEW, 2003/2007) 9 desacreditadas pela ciência oficial podem ser úteis para uma construção alternativa, sempre baseando sua decisão na análise racional à luz dos fatos observáveis e de experimentos reproduzíveis. Tome-se Lamarck, cuja teoria por um lado apresenta insigths muito interessantes sobre a relação entre o comportamento e a formação dos órgãos mas peca em considerar o comportamento um fenômeno unicamente externo, determinado exclusivamente pelo meio. Como diz Piaget. “Estas dificuldades [em definir as causas do surgimento de um comportamento] provêm inteiramente da sua interpretação empírica do comportamento, concebido apenas como determinado pelo meio, sem fatores endógenos que fossem homogêneos com os de organização” (PIAGET, 1976/1977, p. 29). Baldwin, que era também psicólogo, “procura completar (mas não contradizer) o darwinismo através da noção de 'seleção funcional' e sobretudo 'orgânica'”. (PIAGET, 1976/1977, p. 34). Em uma leitura contemporânea, o “efeito Baldwin” propõe que em determinadas condições os comportamentos aprendidos afetam a direção e a velocidade da evolução por seleção natural. Uma herança cultural através de um número indeterminado de gerações criaria um espaço no qual seria possível que o comportamento aprendido se convertesse em adaptações genéticas (DEPEW, 2007, p.3). Piaget, comentando os textos de Baldwin em 1974, observa que Baldwin falha em ligar a nova acomodação representada por um comportamento inédito provocado por mudanças no meio a modificações correspondentes no meio interior e é insuficiente para explicar o processo de fenocópia 3 (PIAGET 1976/1977, p. 38/39). O efeito Baldwin tem sido objeto de controvérsias desde sua proposição, sendo sucessivamente descartado e revivido inúmeras vezes ao longo do último século (para uma história mais completa desta ideia, ver DEPEW & WEBER, 2003/2007). Em um artigo de 1953, C. H. Waddington (WADDINGTON, 1953) relata um caso de assimilação genética em uma população da mosca de fruta Drosophila megalogaster. 3 Fenocópia é o processo através do qual uma característica que aparece inicialmente apenas no fenótipo de indivíduos de uma espécie acaba, ao longo de gerações, por se fixar no (ou ser “copiada” pelo) genótipo. 1 Pupas submetidas a altas temperaturas durante quatro horas desenvolveram uma quebra na veia transversal posterior. Após algumas gerações, o efeito fenotípico começou a surgir em indivíduos não submetidos às altas temperaturas durante o desenvolvimento. Depois disto o fenótipo se fixou em algumas linhagens e apareceu de forma consistente em indivíduos que se desenvolveram a temperaturas normais e mesmo em temperaturas abaixo do normal. Piaget observa que a explicação para o fenômeno de assimilação genética, incorporado à teoria através da canalização genética (tendência do genótipo a estabilizar o fenótipo dentro de determinada faixa de variação), exige que o genótipo contenha já genes alelos para as alternativas assimiladas (PIAGET, 1976/1977, p. 6174). Mas é importante reter o fato de que este processo já mostra de forma conclusiva a influência direta do meio externo e da epigênese sobre o genoma. Piaget examina a seguir as ideias de Paul Weiss (PIAGET, 1976/1977, p. 75-89), especialmente a visão do genótipo como uma parte integrante de uma estrutura maior que começa nos genes, passa pelo sistema epigenético que comanda o desenvolvimento e termina no próprio ambiente em que o organismo se desenvolve. O acréscimo fundamental aqui é a visão do organismo como “sistema”, composto de partes em constante interação entre si e entre si e o todo. Diz Piaget: Compreendemos agora o que significa a origem de um carácter inato na perspectiva de P. Weiss: ela não está contida em certos genes por si sós, mas consiste num processo que, começando neles, engloba ainda um sector determinado da epigênese com o qual os genes estão em interação e apresenta no seu trajeto uma certa unidade que o distingue dos outros, com os quais pode aliás se combinar. (PIAGET, 1976/1977, p. 87) A ideia central aqui é, vale repetir, a criação de novidades genéticas pela interação entre diversos subsistemas de um sistema maior, este último englobando desde o genoma até o ambiente que contém o indivíduo. Mais ainda: Sucessos tão surpreendentes como os dos instintos e da inteligência só podem ser explicados de duas maneiras, se se rejeitar a generalidade das origens aleatórias canalizadas apenas pela seleção-sobrevivência (hipótese que desvalorizaria o próprio conhecimento científico): um constante adivinhar 11 profético da parte de genômios chamados a prever a adequação dos seus produtos aos mais diferenciados meios, ou interações entre as diversas etapas da organização, e trata-se agora de saber em que é que essas interações podem consistir no caso dos comportamentos mais simples. (PIAGET, 1976/1977, p. 88-89) Ao final da obra aqui examinada Piaget constrói uma visão interativa do processo evolutivo, assentada no papel fundador do comportamento dos organismos como fonte de inovações. O comportamento agrega três características que o habilitam a este papel: sua finalidade, suas adequações especializadas e o papel particular das seleções exercidas pelo meio interno (intermediário entre o meio exterior e a orientação de novas variações). Sobre a finalidade, Piaget já havia definido nas primeiras linhas desta obra o comportamento como “o conjunto das ações que os organismos exercem sobre o meio exterior para modificarem os seus estados ou para transformarem a sua própria situação, em relação a esse meio”. Condutas sensório-motoras, por exemplo, são comportamentos. Também o são as condutas interiores, como as operações mentais. Mas a respiração (que modifica a atmosfera) ou as contrações musculares não são comportamentos, pois carecem da finalidade explícita e da intencionalidade implícita na definição dada. Na conclusão, a finalidade é um dos elementos incorporados ao papel do comportamento no processo evolutivo: […] sendo o comportamento uma ação exercida sobre o meio e visando desde a sua ativação atingir um resultado exterior, ele não pode ser assimilado a uma mutação qualquer, que se produza com toda a independência em relação ao ambiente, que este aceitará ou rejeitará tardiamente tendo em vista os resultados não previstos no programa.(PIAGET, 1976/1977, p. 167) Segue que um comportamento exige informações detalhadas sobre o meio onde ele vai se dar, não podendo (a menos que retornemos à mais simples leitura empiricista de Lamarck) ser gerado aleatoriamente. Pense-se aqui nos instintos. 1 O comportamento também conduz a adaptações por adequação: Donde o segundo aspecto do caráter intrínseco das adaptações do comportamento: é conduzir a um “saivor-faire” isomorfo a um sistema cognitivo. […] a adaptação por adequação seleciona os ensaios ou ações em função de seu sucesso, sendo esse sucesso relativo às finalidade perseguidas. Ora, embora estas resultem sempre em conservações e sobrevivências, são além disso ricas em acomodações particulares e sobretudo cheias de adiantamentos possíveis. (PIAGET, 1976/1977, p. 168) Cabe destacar a analogia que liga o comportamento e por extensão o processo evolutivo, ao sistema cognitivo, analogia a qual já mencionamos logo na introdução. Por fim, há o aspecto relativo ao meio interior: Para explicar sem ações diretas lamarckianas a ligação entre as condutas específicas ou instintos e as particularidades dos meios sobre os quais agem, podemos recorrer a duas hipóteses: uma é que os comportamentos “elementares” se adquiram no plano fenotípico, e que o meio interior modificado por eles selecione depois as variações dos genes até à produção endógena de uma fenocópia que reconstrua as ações em função desse novo quadro; a outra é que os instintos complexos procedam de uma combinação de genes que compõe entre eles essas condutas “elementares”, ultrapassando-os depois através de reforços completivos, o que supõe igualmente uma ação seletiva do meio epigenético. (PIAGET, 1976/1977, p. 168-169) Piaget conclui, ainda que “a título especulativo”, que a evolução se apresenta de duas formas, a forma variativa (aquela proposta na Síntese Moderna) e a organizadora, conduzida pelo comportamento e ligada à totalidade do sistema: De fato, se admitirmos esse “dualismo” entre as ações, aliás complementares, de uma dinâmica global e de subconjuntos de “unidades discretas”, parece difícil fugir a duas consequências que provêm logicamente (embora, infelizmente, apenas a título especulativo) de uma evolução organizadora, além da variativa, e do papel motor desempenhado pelo comportamento no seio da 1 primeira. (PIAGET, 1976/1977, p. 177) Observe-se que na própria conclusão Piaget deixa claro que aceita plenamente a evolução clássica nos moldes neodarwinista e apenas acrescenta a necessidade de uma evolução organizadora, agindo em um patamar diferente, para explicar as insuficiências da primeira. Se saltarmos agora mais de 30 anos, podemos examinar rapidamente um artigo que corrobora algumas das ideias de Piaget. Em “Transgenerational Rescue of a Genetic Defect in Long-Term Potentiation and Memory Formation by Juvenile Enrichment” (JUNKO, A. A.; FEIG, L. A, 2009) os pesquisadores demonstram a transmissão transgeracional dos efeitos de comportamentos aprendidos. Em uma experiência com camundongos, descendentes de animais expostos a ambientes enriquecidos na adolescência apresentaram os mesmos efeitos sobre a memória sem terem sido expostos aos mesmos ambientes. A transmissão ocorre na embriogênese (pois mesmo descendentes criados por mães substitutas, estas não expostas àqueles ambientes, apresentam o mesmo efeito). Se tal fenômeno ocorrer nos seres humanos, a memória na adolescência seria influenciada pelas experiências da mãe quando jovem. Não vamos examinar aqui os detalhes e as consequências deste artigo, apenas o mencionamos como um dos pontos de partida para explorações futuras. Conclusão Como conclusão gostaríamos de inicialmente retomar a introdução. Parece-nos claro que há valor no confronto das hipóteses de Piaget sobre a Evolução com a Síntese Moderna. Neste trabalho, talvez não mais que uma declaração de intenções, apenas esboçamos este confronto, que precisa agora ser acrescido das inúmeras comprovações fornecidas pela própria Biologia, pela Psicologia do Desenvolvimento, pela Psicologia Evolutiva, pela Neurologia e pela Etologia. Sabemos que estas comprovações vem se acumulando nos últimos anos, nosso próximo passo será reuni-las em um todo coerente. Esperamos também que tenha ficado evidente a continuidade estrutural da teoria piagetiana. Os processos e estruturas que sustentam a evolução das espécies são, nas 1 palavras de Piaget, análogos àqueles que sustentam a construção do conhecimento, podendo os processos de construção de conhecimento também ser dispostos ao longo de um contínuo na escala biológica. Em um Congresso de Psicologia Escolar e Educacional nos parece que caberia, como conclusão, explorar um pouco o sentido do que foi dito acima na direção da escola e da educação. Nosso objetivo principal, não neste texto mas de forma mais global, é resgatar a teoria de Piaget para o século XXI. Isto nos parece tanto importante quanto oportuno. Importante porque acreditamos que Piaget desenvolveu a mais completa teoria sobre a construção de conhecimento que temos, uma teoria que estabelece as bases biológicas do conhecer e nos informa tanto sobre as estruturas quanto sobre os processos envolvidos na construção do conhecimento. Oportuno em um momento em que se enfrentam ataques desinformados contra um “construtivismo” genérico que ameaçam fazer regredir todos os avanços pedagógicos descobertos pela Psicologia nos últimos cem anos. Se escolhemos iniciar este caminho muito próximos da Biologia não foi por acaso – a retomada dessas ideias biológicas de Piaget visa um fim específico: discutir a natureza fundamentalmente interativa do aprender (e por extensão, necessariamente, do ensinar), natureza já estabelecida lá nos processos biológicos. Desta forma esperamos colaborar na desconstrução tanto de ideias inatistas (e muitas vezes mesmo racistas) baseadas em uma leitura simplista genética evolutiva quanto de ideias empiristas que animam os defensores de uma lendária escola tradicional, no mais das vezes nada mais que aquilo que Paulo Freire chamou de “educação bancária”. Não esperamos ter comprovado aqui a validade das teorias de Piaget sobre a Evolução, apenas iniciado um caminho que agora nos levará a examinar como cada ponto levantado aqui e outros, à luz dos conhecimentos adquiridos pela Biologia, pela Etologia e pela Psicologia nos últimos 40 anos, em um trabalho que se apresenta tanto como uma empresa retrospectiva e arqueológica quanto como uma oportunidade de 1 prospecção de novos caminhos e de busca de novas perspectivas para ideias talvez injustamente esquecidas. Bibliografia ARAI, J. A.; LI, S.; HARTLEY, D. M.; FEIG, L. A. Transgenerational Rescue of a Genetic Defect in Long-Term Potentiation and Memory Formation by Juvenile Enrichment. The Journal of Neuroscience, February 4 2009 – 29(5); 1496-1502. DEPEW, D.J. & WEBER, B.H. [2003] (2007) Evolution and Learning: The Baldwin Effect Reconsidered. Cambridge: MIT Press. DEPEW, D. J. [2003] (2007) Baldwin and His Many Effects in DEPEW, D.J. And WEBER, B.H. [2003] (2007) Evolution and Learning: The Baldwin Effect Reconsidered. Cambridge: MIT Press. DOBZHANSKY, T. (1973). Nothing in biology makes sense except in the light of evolution. American Biology Teacher 35, 125-129. FUTUYAMA, D. J. (1998) Evolutionary Biology. Sunderland: Sinauer Associates Inc. HUXLEY, J. S. (1942). Evolution: the modern synthesis. London: Allen & Unwin. MAYR, E.; Provine W.B. (orgs) (1980) The Evolutionary Synthesis: Perspectives on the Unification of Biology. Cambridge: Harvard Press University. MAYR, E. (1982) The Growth of Biological Thought: Diversity, Evolution and Inheritance. Cambridge: Harvard Press University. PIAGET, J. [1967] (1973). Biologia e Conhecimento. Petrópolis: Vozes. PIAGET, J. [1973] (1978). Adaptación vital y psicología de la inteligencia. Madrid: Siglo XXI de España. 1 PIAGET, J. [1975] (1976). A Equilibração das Estruturas Cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar Editores. PIAGET, J. [1976] (1977). Comportamento, Motriz da Evolução. Porto: RES Editora . WADDINGTON, C. H. Genetic Assimilation of an Acquired Character. Evolution, Vol. 7, n. 2 (Junho, 1953), pp. 118-126.