DIREITO CONSTITUCIONAL NORMAS CONSTITUCIONAIS 1

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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
DIREITO CONSTITUCIONAL
NORMAS CONSTITUCIONAIS
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Muito se discutiu e ainda se discute no que toca à imperatividade ou carga cogente das normas
jurídicas, ou seja, sua aptidão para impor-se aos seus destinatários e obrigar-lhes a conduzir-se nos
termos por ela determinados.
Uma adequada compreensão da matéria parte de duas premissas básicas: (a) toda e qualquer norma
jurídica possui imperatividade, potencial jurídico para impor-se aos seus destinatários, produzindo
efeitos jurídicos sobre as relações jurídicas da qual participam; (b) a imperatividade não se manifesta
com a mesma intensidade em todas as normas jurídicas, ou seja, as normas jurídicas, conforme sua
categoria possuem graus diversos de imperatividade.
Nesse contexto, são duas as categorias básicas em que se dividem as normas jurídicas: as normas
cogentes e as normas dispositivas.
As normas cogentes possuem imperatividade em grau absoluto, no sentido de que impõe aos seus
destinatários independentemente de sua anuência.
É, no caso, de nenhuma valia a vontade do sujeito: basta que a situação em concreto da qual ele
participe amolde-se à hipótese em abstrato prevista na norma jurídica, e esta incide automaticamente,
disciplinando a relação jurídica.
Como subespécies de normas cogentes temos as normas preceptivas, que obrigam a uma certa
conduta; e as proibitivas, que vedam determinado comportamento. Ilustrando a exposição, trazemos o
art. 1.245 do Código Civil/2002, segundo o qual: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o
registro do título translativo no Registro de Imóveis”. É exemplo de norma cogente preceptiva, pois
obriga seu destinatário a certo comportamento. Nos seus termos, todo aquele que desejar adquirir uma
propriedade (imóvel) deverá necessariamente levar a registro o título translativo, pois só tal conduta o
torna efetivamente proprietário, integrando o imóvel ao seu patrimônio. Não basta ao interessado, no
caso, a posse de um contrato de compra e venda e dos comprovantes de pagamento do valor
acordado. A propriedade só se transfere, o imóvel só se torna seu, se levar tal contrato, com a prova da
quitação, a registro no Registro de Imóveis.
Pode-se citar, como segundo exemplo, o art. 426 do Código Civil/2002, que reza: “Não poderá ser
objeto de contrato a herança de pessoa viva”. Trata-se, aqui, de uma norma cogente proibitiva,
fulminando a validade de quaisquer contratos desta natureza. A todos, portanto, é vedada celebração
de contratos cujo objeto seja a herança de pessoas ainda vivas, sendo absolutamente nula qualquer
disposição contratual em sentido contrário.
As normas dispositivas, por sua vez, são aquelas que estabelecem uma regra, mas permitem que
seus destinatários disponham de forma diversa da nela estabelecida. É o caso, por exemplo, do art.
427 do Código Civil/2002, que dispõe: “A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não
resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”.
Segundo o dispositivo, se alguém (proponente) faz uma proposta de contrato a outrem (aceitante),
regra geral vincula-se a ela, se a outra parte concordar com a proposta nos termos originalmente
formulados. Esse efeito, todavia, pode ser sustado pelo proponente, se este, ao elaborar a proposta,
ressalvar expressamente que se reserva o direito de desistência (ou quando o contrário resultar da
natureza do negócio ou de circunstâncias do caso, como consta no dispositivo).
Como se percebe, o art. 427 estipula uma regra para dada situação (proposta de contrato),
disciplinando seus efeitos jurídicos (vinculação do proponente à sua proposta). Permite, entretanto, que
a parte estabeleça efeito diverso (não se vinculando à proposta apresentada), mediante sua
manifestação de vontade (ressalvando que não se vincula à proposta).
Temos aqui, então, uma típica norma dispositiva: regula dada situação, mas apenas no silêncio das
partes participantes da relação jurídica. Ela incide, pois, de forma supletiva, regulando a relação
jurídica frente à omissão das partes em disporem de forma diversa daquela nela estipulada.
Perceba-se que a norma dispositiva goza de imperatividade, apenas em grau menor que a norma
cogente. Esta incide sempre, independentemente de vontade das partes, ao passo que a norma
dispositiva pode ter sua incidência afastada pela vontade individual. Contudo, se não houver tal
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manifestação de vontade, regrando a relação jurídica em termos diferentes do estipulado na norma
dispositiva, ela incide integralmente. E esta é, precisamente, sua imperatividade.
Concluímos, então, reforçando as duas afirmações antes formuladas: toda e qualquer norma jurídica é
imperativa, mas varia o grau de imperatividade conforme o tipo de norma jurídica de que se trate, se
cogente ou dispositiva.
Tal conclusão aplica-se em tudo e por tudo às normas constitucionais, como veremos a seguir.
A doutrina constitucional italiana, analisando o tema, num estágio inicial dividiu as normas
constitucionais em duas categorias: normas preceptivas e normas programáticas, assim
consideradas as normas constitucionais que instituem programas de ação para o Estado.
Tal concepção foi inicialmente elaborada reconhecendo efeitos jurídicos distintos às duas categorias de
normas constitucionais: os impositivos (imperativos) e os meramente indicativos, aqueles aplicáveis às
normas preceptivas, e estes, às normas programáticas. Posteriormente, tal concepção evoluiu, de
forma que a doutrina italiana passou a reconhecer que todas as normas constitucionais, qualquer
que seja sua natureza e seu conteúdo, são detentoras imperatividade, produzindo efeitos jurídicos
sobre seus destinatários e regulando as relações jurídicas que constituem seu objeto. Assim, uma
visão inicial, que vislumbrava as normas programáticas como simples orientações de conduta, sem
maior efeito vinculante para os Poderes Públicos, evoluiu para uma construção teórica em que essa
espécie de norma não consiste apenas num aconselhamento, sendo também um comando, uma
determinação a ser obedecida pelo ente estatal.
Reconhecido o fato de que as normas programáticas, tais como as preceptivas, são detentoras de
imperatividade, partiu a doutrina italiana para o estabelecimento das diferenças entre uma e outra
categoria de norma constitucional, arquitetando tais diferenciações a partir de três aspectos: os
destinatários, o objeto e a natureza dessas normas.
Quanto aos destinatários, seriam programáticas as normas dirigidas ao legislador, encarregado da
elaboração da legislação infraconstitucional, e preceptivas, as endereçadas ao magistrado e aos
cidadãos em geral. Em termos gerais, tal distinção afigura-se correta, pois as normas programáticas
destinam-se precipuamente ao legislador, a quem cabe disciplinar os programas a serem executados
pelo Estado. Não há como se negar, todavia, que de forma indireta elas também alcançam os demais
agentes estatais, e mesmo aos cidadãos em geral, uma vez que eles estarão sujeitos à legislação
editada em obediência à norma programática.
Com relação ao objeto, seriam programáticas aquelas que recaíssem sobre a atuação do Estado e
preceptivas as direcionadas ao indivíduo, seja para regular suas relações jurídicas com o Estado, seja
para disciplinar suas relações privadas.
Quanto à natureza, programáticas seriam as normas caracterizadas por um elevado grau de
abstração, de imprecisão ou mesmo de imperfeição, isto é, normas que não possuíssem todos os
elementos estruturais necessários à plena definição de seu conteúdo, e que não prescrevessem
sanções específicas para sua inobservância, requerendo, para sua plena aplicação, o trabalho do
legislador infraconstitucional. Já as normas preceptivas seriam as normas dotadas de todos os
elementos estruturais necessários à deflagração imediata e integral de seus efeitos.
Vista as diferenças propostas pela doutrina italiana entre as normas programáticas e as preceptivas,
retornando ao ponto principal até aqui abordado, podemos concluir que toda e qualquer norma
constitucional, pelo só fato de compor o estatuto fundamental do Estado, independente de quaisquer
outras considerações, goza de imperatividade, produzindo, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos
sobre seus destinatários.
Prosseguindo na matéria, é indispensável a percepção de que a Constituição é composta de duas
modalidades básicas de dispositivos – princípios e normas -, que apresentam diferenças quanto aos
tipos de efeitos jurídicos produzidos. Para a análise desta diferença recorreremos às lições de Gabriel
Dezen Junior.
Ensina o Professor que os princípios constitucionais, por sua maior subjetividade e generalidade ou,
de outro modo, menor concreção e densidade semântica (comparativamente às normas), permitem
amplas possibilidades de interpretação e aplicação, o que lhes confere um tempo de vida superior ao
das normas, destinando-se precipuamente a direcionar o trabalho do legislador no momento de
elaboração da norma e a servir como parâmetro de verificação da compatibilidade da legislação
ordinária com a Constituição, em especial com os próprios princípios constitucionais.
Enfim, presta-se o princípio constitucional, essencialmente, para a verificação da constitucionalidade da
legislação ordinária em vigor e para a orientação da legislação ordinária futura, que deverá consagrar
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os valores neles corporificados. Esses são os dois principais tipos de efeitos jurídicos a que se
destinam os princípios.
As normas constitucionais, por sua vez, objetivam tipos diversos de efeitos jurídicos. Caracterizadas
(em comparação com os princípios) por uma maior concreção e densidade semântica, por um grau
mais elevado de precisão e detalhamento, oferecem ao intérprete menores possibilidades
interpretativas, o que restringe seu tempo de vida útil. Visam, basicamente, a reger a relação jurídica
que constitui seu objeto, a disciplinar a situação em concreto que se amolda à sua precisão abstrata, a
aferir sua constitucionalidade.
Apenas para ilustrar a diferença, transcreveremos dois dispositivos constitucionais:
“Art. 37. A administração direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência, e, também, ao seguinte:
(...)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de
provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e o grau de complexidade do cargo ou
emprego, na forma da lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei de
livre nomeação e exoneração;
(...)”
O caput do art. 37 enumera cinco princípios constitucionais de observância obrigatória por toda a
Administração direta e indireta, qualquer que seja o Poder ou a esfera de governo que ela integre.
Perceba-se que a Constituição, neste dispositivo, limita-se a identificar tais princípios, conferindo ao
intérprete da Carta uma ampla gama de possibilidades interpretativas, uma variedade de sentidos e
definições que ele pode descobrir inserido no princípio, o que permitirá sua aplicação numa infinidade
de situações. É evidente que a previsão não objetiva uma situação em especial, não visa a regular um
caso específico, ao contrário, destina-se ela a abranger um sem-número de casos em que poderão
incidir os referidos princípios, os quais, ademais, devem ser valorizados pelo legislador, ao elaborar as
diversas leis aplicáveis à Administração, bem como pelo magistrado, que deverá decretar a nulidade,
por inconformidade com a Constituição, de qualquer ato normativo ou concreto que afronte a
disposição.
Já o inc. II do art. 37, que traz uma norma constitucional, é de aplicação muito mais restrita. Trata-se de
dispositivo que estabelece uma dos requisitos indispensáveis para a específica hipótese que regula:
provimento de cargos efetivos e empregos públicos. Prescreve, pois, uma condição para que os cargos
efetivos e empregos públicos sejam validamente preenchidos – aprovação em concurso público – e
sua utilidade essencial reside aí. O dispositivo aplica-se exclusivamente a tal situação, e não permite
praticamente nenhuma margem de interpretação na sua aplicação: ou houve a aprovação em concurso
público, ou é inconstitucional o ato de provimento.
Em conclusão, temos, de um lado, os princípios constitucionais, de menor densidade semântica e
maior grau de abstração, características que possibilitam ao jurista amplas possibilidades de
interpretação, assegurando-lhes uma maior longevidade. São úteis, principalmente, como orientação
para a legislação futura e verificação da compatibilidade da legislação anterior à Constituição.De outro
lado, temos as normas constitucionais, diferenciadas pela maior densidade semântica e menor nível de
abstração, características que limita suas possibilidades de interpretação e acarretam menor
longevidade. Prestam-se, principalmente, para a regulação da situação específica nela normatizada.
Como último ponto introdutório, cabe apenas ressaltar que todos os dispositivos constitucionais gozam
de superioridade hierárquica sobre a legislação ordinária. No Brasil, acompanhando a tendência
contemporânea, adotamos um conceito formal de Constituição, e, consequentemente, um conceito
formal de supremacia da Constituição, de modo que todo e qualquer dispositivo, pelo só fato de estar
prescrito em nossa Constituição, goza de supremacia, de superioridade hierárquica sobre as demais
normas integrantes de nosso ordenamento jurídico.
Reunindo os apontamentos até aqui formulados, temos, então, que na análise das normas
constitucionais três pontos devem ser ressaltados: 1º) toda Constituição é composta de dois tipos de
dispositivos, princípios e normas, os primeiros caracterizados por um maior grau de generalidade e
abstração, o que permite inúmeras interpretações de seu sentido e sua aplicação em uma infinidade de
situações diversas. Já as normas são dispositivos de maior concreção, maior nível de detalhamento, o
que reduz consideravelmente as possibilidades interpretativas. Ademais, destinam-se a regular
situações específicas; 2º) todos os princípios e normas constitucionais, por estarem prescritos na
Constituição, gozam de superioridade hierárquica com relação à legislação ordinária. Qualquer
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divergência é decidida necessariamente em seu favor; 3º) é veemente negada pela moderna doutrina
constitucionalista a possibilidade de existirem dispositivos constitucionais despidos de imperatividade,
de eficácia jurídica. Em maior ou menor grau, conforme o tipo de dispositivo ou a maior ou menor
precisão de sua redação, todos os dispositivos constitucionais possuem eficácia jurídica,
imperatividade, carga cogente, regulando as relações jurídicas que constituem seu objeto e seus
respectivos destinatários.
A seguir, apresentaremos rapidamente os conceitos de validade (ou validez), vigência e eficácia das
normas constitucionais. Apenas uma observação: quando empregarmos o termo normas, estaremos
utilizando-o com sentido mais genérico, significando dispositivo, com o que estão englobados também
os princípios. Essa escolha decorre da forma como a matéria é usualmente tratada pela doutrina.
2) VALIDEZ, VIGÊNCIA E EFICÁCIA:
Inicialmente, trataremos destes três institutos aplicáveis à generalidade das normas jurídicas.
Nesse contexto, validade significa que a norma jurídica foi produzida em conformidade com os
preceitos, materiais e formais, da Constituição.
A validez não deve ser confundida com a vigência, sendo esta a aptidão da norma para produzir
efeitos jurídicos. Uma fez produzida a norma, ela ainda não está apta à produção de efeitos jurídicos,
ela ainda não vige, por ainda não ter poder para impor seus comandos aos seus destinatários.
A vigência – a aquisição de seu caráter de obrigatoriedade – pode ser definida de dois modos: (a) por
expressa prescrição na própria norma, que em seu texto define o momento em que se iniciará sua
vigência; ou (b) pela aplicação das regras da lei de Introdução do Código Civil (LICC), incidentes
quando omissa na matéria a própria norma. Assim, se a própria norma não define o período a partir do
qual começa a vigorar, aplicam-se as normas da LICC, segundo as quais, frente a tal omissão, a
vigência da norma inicia-se 45 depois de sua publicação, no Brasil, e 90 dias, no exterior.
Eficácia, por sua vez, pode ser compreendida sob duas perspectivas distintas. Pela primeira,
corresponde à efetiva observância da norma pelos seus destinatários; a denominada eficácia
social. Pela segunda, corresponde à aptidão da norma para a produção de efeitos jurídicos,
independentemente da real sujeição dos destinatários a seus preceitos; a chamada eficácia técnica ou
jurídica.
Transladando tais conceitos para o Direito Constitucional, temos que:
- no que toca à validade, esta perde a relevância no que toca à própria Constituição, uma vez que a
obra do poder constituinte originário não está sujeita a qualquer regra de norma ou de fundo. Logo,
nada a ser alegado quanto à sua validade. Esta adquire relevo, todavia, quanto às alterações
promovidas no texto constitucional. Tais alterações estão sujeitas material e formalmente aos preceitos
da Constituição. Logo, serão inválidas quando desconformes para com eles;
- quanto à vigência, nada de novo, pois corresponde à data em que a Constituição, já promulgada e
publicada, entrou em vigor, ou seja, adquiriu aptidão para produzir efeitos jurídicos. A Constituição de
1988, por exemplo, entrou em vigor em 05 de outubro de 1988, embora alguns de seus dispositivos
tenham tido sua vigência diferida, por determinação neles mesmo contida;
- quanto à eficácia, aplicam-se também os conceitos anteriormente apresentados. A eficácia técnica
ou jurídica confunde-se com a vigência: desse modo uma Constituição vigente é juridicamente eficaz,
e vice versa. Este é o sentido usual de eficácia. Já a eficácia social exige mais: não basta que a
Constituição esteja em vigor, é necessário que ela efetivamente seja obedecida por seus destinatários,
é indispensável que estes reconheçam sua posição de estatuto supremo do Estado e conformem sua
conduta aos seus comandos. Desse modo, uma Constituição vigente pode não possuir de eficácia
social, o que ocorre quando, apesar de estar formalmente em vigor, é desconsiderada pelos seus
destinatários. Na verdade, o mais comum é que a Constituição, genericamente falando, goze de
eficácia social, enquanto que algumas de suas normas são despidas da mesma. Assim, a Constituição,
como um todo, possui eficácia social, sendo acatada pelos seus destinatários, mas alguns de seus
dispositivos são por estes desconsiderados, gozando somente de eficácia jurídica. Passemos, agora,
ao tópico principal dessa unidade.
3) CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
3.1) CLASSIFICAÇÃO NORTE-AMERICANA
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A doutrina norte-americana construiu uma classificação que até hoje mantém sua utilidade no estudo
das Constituições escritas, diferenciando as normas constitucionais em auto-aplicáveis ou autoexecutáveis e não autoaplicáveis ou não auto-executáveis.
As normas constitucionais auto-aplicáveis ou auto-executáveis são aquelas que possuem todos os
elementos necessários à integral produção de seus efeitos jurídicos, não requerendo, para tanto,
complementação pela legislação ordinária. São normas cuja redação desce a um nível de precisão, de
detalhamento, que permite sua imediata aplicação, independentemente da edição de quaisquer outras
normas infraconstitucionais.
As normas constitucionais não auto-aplicáveis ou não autoexecutáveis, ao contrário, são aquelas
que requerem necessariamente complementação pela legislação ordinária, como requisito para a
integral deflagração de sua eficácia jurídica. São normas cuja construção não conta com todos os
elementos estruturais de uma norma jurídica, o que impede a plena produção de seus efeitos até que
venham a ser complementadas pela legislação ordinária.
3.2) CLASSIFICAÇÃO DE AZZARITTI
Gaetano Azzaritti, doutrinador italiano, classificou as normas constitucionais em duas modalidades:
normas preceptivas e normas programáticas, aquelas detentoras de imperatividade, de eficácia
jurídica, estas despidas de imperatividade, equiparando-se a um enunciado de natureza política ou
filosófica.
Na sua visão, apenas as normas preceptivas seriam verdadeiras normas jurídicas, pois detentoras de
eficácia jurídica, do poder de impor-se aos seus destinatários e obriga-los a conformar sua conduta
com os preceitos nela contidos. As normas programáticas, apesar de constarem da Constituição, não
seriam efetivamente normas jurídicas, pois destituídas de eficácia jurídica. Teriam o valor de meros
aconselhamentos, sem obrigar seus destinatários a agir nos termos por ela indicados.
A classificação de Azzaritti foi formulada nos primórdios dos estudos constitucionalistas na Itália,
quando então se admitia, como vimos, um fenômeno contraditório: a existência de normas no
ordenamento jurídico supremo do Estado – sua Constituição – que não seriam efetivamente normas
jurídicas, já que não tinham poder de impor-se aos seus destinatários.
3.3) CLASSIFICAÇÃO DE CRISAFULI
Todavia, essa concepção italiana inicial logo caiu por terra, com a obra de Vésio Crisafuli, que
classificou as normas constitucionais em três modalidades: normas programáticas, normas
imediatamente preceptivas e normas de eficácia diferida.
Sem adentrar nos pormenores de seu raciocínio, importa-nos destacar que este doutrinador superou a
visão italiana inicial, que reconhecia efeitos meramente indicativos às normas programáticas, as quais
passaram a ter reconhecida sua condição de verdadeira norma jurídica, pois detentoras de eficácia
jurídica.
Seu ponto de vista logo se consolidou, e, a partir de então, é tranqüilo o entendimento de que todas as
normas constitucionais, justamente pelo fato de constarem no estatuto jurídico supremo do Estado, são
normas jurídicas propriamente ditas, de cumprimento obrigatório pelos seus destinatários.
3.4) CLASSIFICAÇÃO DE RUY BARBOSA
A classificação desse eminente jurista nada mais é, na verdade, do que a transposição para o Direito
Constitucional brasileiro da classificação norteamericana, que dividiu as normas de uma Constituição
em duas categorias: normas constitucionais auto-aplicáveis ou auto-executáveis e normas
constitucionais não auto-aplicáveis ou não auto-executáveis.
Aqui como lá, as normas auto-executáveis são aquelas que possuem todos os elementos necessários
à plena produção de seus efeitos jurídicos, estando aptas para tanto já no momento em que a
Constituição entra em vigor. Não requerem, pois, a edição de legislação ordinária que complete seus
preceitos.
Por outro lado, as normas não auto-executáveis são normas incompletas, porque não elaboradas com
todos os elementos necessários à integral deflagração de sua eficácia jurídica. De um modo geral, são
normas que estabelecem princípios a serem observados pelos órgãos estatais, ou mesmo pela
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coletividade, ou que dispõem sobre programas a serem executados pelo Estado, exigindo regulação
pela legislação ordinária como requisito para a produção da totalidade dos efeitos jurídicos pretendidos
pelo legislador constituinte.
Advirta-se, entretanto, que tais normas, com a entrada em vigor da Constituição, mesmo antes de
editada a legislação complementar, já tem aptidão para a produção de efeitos jurídicos, pois sua
inserção na Constituição automaticamente revoga toda a legislação ordinária precedente incompatível
com seus preceitos, e torna inconstitucional toda a legislação ordinária posterior que apresente o
mesmo vício. Negar-se tais efeitos é negar a essas normas a condição de normas jurídicas, o que é
refutado pela doutrina constitucional contemporânea.
As normas não auto-executáveis são, enfim, normas jurídicas que, desde a entrada em vigor da
Constituição, já produzem os efeitos jurídicos acima indicados, estando a produção da plenitude de
seus efeitos condicionada à elaboração da legislação infraconstitucional requerida.
3.5) CLASSIFICAÇÃO DE LUIZ ROBERTO BARROSO
Luiz Roberto Barroso elaborou uma classificação em que reconhece três grupos distintos de normas
constitucionais, (a) as normas constitucionais definidoras de direitos; (b) as normas constitucionais
de organização e (c) as normas constitucionais programáticas.
As normas constitucionais definidoras de direitos têm por objeto a previsão dos direitos e garantias
fundamentais.
As normas constitucionais de organização têm por objeto o estabelecimento de regras relativas à
organização do Estado e ao exercício do poder, tratando de temas como forma de Estado, forma e
regime de Governo, separação dos Poderes, meios de aquisição e perda do poder, entre outros. E as
normas programáticas, por sua via, são aquelas que estabelecem finalidades para a ação estatal.
3.6) CLASSIFICAÇÃO DE CELSO BASTOS E CARLOS AYRES BRITO
Os citados mestres produziram uma classificação que subdivide as normas constitucionais em dois
grandes grupos: as normas de aplicação, subdivididas, por sua vez, em regulamentáveis e
irregulamentáveis; e as normas de integração, que apresentam como subtipos as normas
completáveis e as normas restringíveis.
As normas de aplicação são as normas da Constituição que já possuem todos os elementos
necessários para a produção da totalidade de seus efeitos jurídicos, pois apresentam em seu corpo os
três os elementos lógicoestruturais de uma norma jurídica: hipótese, mandamento e conseqüência.
Tais normas já regulam suficiente a matéria que é seu conteúdo, estabelecendo com precisão a
hipótese em que se aplicam, a conduta a ser observada, e as conseqüências da sua incidência.
Subdividem-se em normas de aplicação irregulamentáveis, que não admitem complementação pela
legislação ordinária, restringindo-se seu disciplinamento à própria Constituição; e normas de aplicação
regulamentáveis, que permitem sua complementação pela legislação infraconstitucional.
Já as normas de integração são aquelas que não possuem, em si mesmas, aptidão para a produção
de efeitos jurídicos na forma desejada pelo legislador constituinte, por não apresentarem em seu corpo
alguns dos três elementos lógico-estruturais. Para a produção de tais efeitos faz-se indispensável o
disciplinamento infraconstitucional.
Subdividem-se em normas de integração completáveis, que tem na elaboração da legislação
ordinária a condição para a produção integral de seus efeitos; e normas de integração restringíveis,
que permitem sua limitação pela legislação infraconstitucional.
3.7) CLASSIFICAÇÃO DE ZAGREBELSKI
Zagrebelski constrói sua classificação tendo por critério diferenciador a eficácia das normas
constitucionais, a partir do que estabelece duas modalidades de normas constitucionais: as normas de
eficácia direta e as normas de eficácia indireta, estas, subdivididas em normas de eficácia diferida,
normas de princípio e normas programáticas.
As normas constitucionais de eficácia direta são aquelas que possuem uma estrutura redacional
suficientemente completa para produzir imediatamente todos os efeitos jurídicos a que se
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predispõem, sendo passíveis, desde sua prescrição no texto constitucional, de aplicação pelo Poder
Judiciário e pela Administração Pública, e de observância pelos indivíduos em geral.
Normas de eficácia indireta, por seu turno, são aquelas que não possuem uma estrutura completa, a
qual deve ser objeto de elaboração pela legislação infraconstitucional.
Subdividem-se em:
a) normas de eficácia diferida, como as que prescrevem as linhas gerais de certos órgãos e entidades,
ficam sua efetiva criação a cargo da legislação ordinária;
b) normas de princípio, que se limitam a prever o valor jurídico (isonomia, razoabilidade etc), ficando a
cargo da legislação ordinária definir suas múltiplas aplicações (embora o Autor não negue que a
própria previsão do princípio, a partir de sua interpretação pela doutrina e pela jurisprudência, pode
gerar, por si só, conseqüências jurídicas); e
c) normas programáticas, que estabelecem programas a serem postos em funcionamento pelo Estado,
tanto a nível legislativo como executivo.
3.8) CLASSIFICAÇÃO DE MARIA HELENA DINIZ
A Professora Maria Helena Diniz elaborou uma classificação em que são identificadas quatro espécies
de normas constitucionais: as normas supereficazes ou com eficácia absoluta; as normas com
eficácia plena; as normas com eficácia restringível e as normas com eficácia relativa
complementável.
As normas supereficazes ou com eficácia absoluta, nas palavras de Gabriel Dezen Junior, são aquelas
“dotadas de efeito paralisante de toda a legislação infraconstitucional com elas incompatíveis, as quais
vêm sendo identificadas nas cláusulas pétreas”.
As normas com eficácia plena, por sua vez, são as normas constitucionais que não requerem
complementação pela legislação ordinária, já possuindo todos os elementos indispensáveis para a
produção imediata da totalidade de seus efeitos jurídicos. Nas palavras da Professora, “consistem, por
exemplo, nos preceitos que contenham proibições, confiram isenções, prerrogativas e que não
indiquem órgãos ou processos especiais para sua execução”.
Já as normas com eficácia restringível são as normas da Constituição que, desde sua entrada em
vigor, já possuem todos os elementos necessários para a integral produção de seus efeitos jurídicos,
admitindo, entretanto, que tais efeitos sejam restringidos pela legislação infraconstitucional.
E, por fim, as normas de eficácia relativa complementável (subdividas em normas de princípio
institutivo e de princípio programático), que não possuem, por si sós, condições para a integral
produção de seus efeitos jurídicos, para o que se faz indispensável a complementação pela legislação
infraconstitucional.
3.9) CLASSIFICAÇÃO DE JOSÉ AFONSO DA SILVA
É da autoria do Professor José Afonso da Silva a famosa classificação das normas constitucionais em:
a) normas constitucionais de eficácia plena,
b) normas constitucionais de eficácia contida e
c) normas constitucionais de eficácia limitada.
Normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição,
estão aptas a produzir na integralidade os efeitos jurídicos a que se predispõem. São normas, portanto,
que trazem em si mesmas todos os elementos necessários à plena deflagração de seus efeitos, sem
necessidade de normatização infraconstitucional posterior que as complemente. Em virtude disso,
possuem aplicabilidade direta, imediata e integral.
Norma dessa espécie encontra-se, por exemplo, no art. 5º, II, da CF, o qual dispõe que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O dispositivo estabelece o
princípio da legalidade, de imediata e integral aplicação, independentemente da elaboração de
qualquer norma complementar.
Normas constitucionais de eficácia contida, por sua vez, são aquelas que possuem todos os
elementos necessários à imediata produção de seus efeitos, mas admitem que os mesmos
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sejam restringidos pela legislação infraconstitucional, por certos conceitos jurídicos nela
mesmo prescritos ou mesmo por outras normas constitucionais.
Considera-se que tais normas têm aplicabilidade direta e imediata, como as normas de eficácia plena,
porque aptas a produzir imediatamente seus efeitos, mas não integral, porque admitem restrição na
amplitude de tais efeitos.
Como apontado, as normas de eficácia contida podem ter seus efeitos limitados por força da legislação
infraconstitucional, por determinados conceitos jurídicos largamente aceitos ou por outras normas
constitucionais.
Como exemplo do primeiro caso – restrição pela legislação infraconstitucional – podemos citar o art. 5º,
XIII, da CF, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer”. O dispositivo traz um direito assegurado a todos,
independentemente de lei, mas admite uma legislação posterior que estabeleça os requisitos para o
exercício de determinado trabalho, ofício ou profissão, desta forma restringindo o seu alcance.
Aplicada a regra a um caso concreto, temos que atualmente não há qualquer regulação sobre o ofício
de massagista, não há qualquer requisito de cumprimento obrigatório para aqueles que pretendem
exercer o ofício.
Logo, tal exercício é, até o presente momento, livre para todos os interessados. Entretanto, o art. 5º,
XIII, da CF, autoriza que seja editada uma lei estabelecendo requisitos para o ofício, a partir do que
poderão atuar como massagista somente aqueles que preencherem os requisitos legais. É esse o
raciocínio que envolve a compreensão de toda e qualquer norma constitucional de eficácia contida.
No segundo caso, a restrição se dá por força de determinados conceitos jurídicos, amplamente aceitos
pela doutrina e pela jurisprudência, em função de sua antiga e constante utilização pela legislação,
como “interesse público”, “bons costumes”, “segurança nacional”, “ordem pública”, entre outros. Tais
conceitos estão previstos na própria norma de eficácia contida, e sua interpretação pode implicar na
redução de seus efeitos.
É o que pode ocorrer, por exemplo, na aplicação do inc. XXV do art. 5º da CF. Reza o dispositivo que
“no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular,
assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. A interpretação da expressão
“iminente perigo público” pelas autoridades competentes implicará em restrição na aplicação do
instituto previsto na norma (a requisição administrativa)
E, temos, como terceira hipótese de redução dos efeitos das normas de eficácia contida, as demais
normas constantes da Constituição. O inc. XII do art. 5º da CF, por exemplo, assegura o direito à
inviolabilidade da correspondência, mas tal direito admite restrições no estado de sítio, pela aplicação
do inc. III do art. 139 da CF.
Por fim, existem as normas constitucionais de eficácia limitada, aquelas que não foram elaboradas
com todos os elementos indispensáveis à plena produção de seus efeitos, necessitando, para tanto, da
edição de uma legislação infraconstitucional posterior que as complemente. Enquanto não editada essa
legislação, não estão aptas para a produção integral de seus efeitos. Em função disso, afirma-se que
sua aplicabilidade é indireta, mediata e reduzida.
Não se conclua, a partir disso, que as normas de eficácia limitada, por si só, não possuam qualquer
eficácia jurídica. Elas detêm, independentemente de qualquer providência complementar, uma eficácia
mínima, também denominada negativa, adquirida desde o momento da entrada em vigor da
Constituição, qual seja: a revogação da legislação anterior com ela incompatível e a
inconstitucionalidade da legislação posterior que, do mesmo modo, afronte seus preceitos.
Exemplo de norma de eficácia limitada é a prescrita no art. 5º, VII, da CF, segundo o qual “é
assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de
internação coletiva”.
O dispositivo estabelece um direito, mas o mesmo é passível de exercício somente quando editada a
lei nele requerida. Todavia, desde a entrada em vigor da Constituição, independentemente de
legislação ordinária, por si só revogou eventual legislação anterior que vedasse a assistência religiosa
nas entidades civis (p. ex., hospitais) e militares (p. ex., quartéis) de internação coletiva, e tornou
inconstitucional qualquer norma posta em legislação superveniente que pretenda estabelecer essa
proibição.
As normas constitucionais de eficácia limitada admitem subdivisão em duas modalidades: normas
constitucionais de princípio institutivo e normas constitucionais de princípio programático.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
Normas constitucionais de princípio institutivo são as que prescrevem os traçados gerais de
estruturação e as atribuições de órgãos, entidades ou institutos, determinando ao legislador
ordinário que, com maior ou menor liberdade, edite lei que estabeleça efetivamente tais órgãos,
entidades ou institutos, e especifique suas atribuições.
A norma constitucional de princípio institutivo pode ser impositiva (normas de princípio institutivo
impositivas), quando impõe ao legislador ordinário, como dever, a elaboração da legislação, como se
observa, por exemplo, no § 7º do art. 144 da CF (“A lei disciplinará a organização e o funcionamento
dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas
atividades”); ou pode ser permissiva (normas de princípio institutivo permissivas ou facultativas),
quando confere ao legislador uma mera faculdade, uma competência de exercício não obrigatório,
como se observa, por exemplo, no § 8º do art. 144 da CF (“Os Municípios poderão constituir guardas
municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”).
Ademais, perceba-se que, nos dois exemplos citados, a norma constitucional estabeleceu alguns
elementos de observância obrigatória quando da elaboração da legislação ordinária: no primeiro caso,
a lei que regulará a organização dos órgãos de segurança pública deverá estabelecer regras que
assegurem sua eficiência; no segundo, a lei local que criar a Guarda municipal poderá atribuir-lhe
somente as atribuições de proteção dos bens e serviços e instalações municipais, sem possibilidade de
ampliação dessa competência.
Entretanto, a prescrição desses elementos limitadores da competência legislativa não é uma regra
geral, pois a norma constitucional pode outorgar a competência sem estabelecer qualquer restrição em
seu próprio texto, como se nota, por exemplo, no art. 128, § 5º, da CF, que faculta aos ProcuradoresGerais da União e dos Estados a elaboração de projeto de lei que disponha sobre a organização, as
atribuições e o estatuto dos respectivos Ministérios Públicos, sem prescrever qualquer elemento
limitativo de tal competência. Entenda-se: a própria norma que prevê a competência não traz qualquer
limitação, o que não significa que estas não existam, a partir da aplicação de outras normas
constitucionais.
Pode-se citar, também, o art. 33, o qual determina, simplesmente, que “a lei disporá sobre a
organização administrativa e judiciária dos Territórios”; e o art. 91, § 2o, conforme o qual “a lei regulará
a organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional.
Normas constitucionais de princípio programático, segunda categoria de normas de eficácia limitada,
são as normas constitucionais que instituem programas de ação para o Estado.
Na lição do Professor Vicente Paulo, com base nos ensinamentos de José Afonso da Silva, as normas
programáticas: são aquelas (de eficácia limitada) pelas quais o constituinte, em vez de regular, direta e
imediatamente, determinados interesses, limitou-se a lhes traçar os princípios para serem cumpridos
pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das
respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado. Constituem programas a serem
realizados pelo Poder Público, disciplinando os interesses econômico-sociais, tais como: realização da
justiça social; valorização do trabalho; amparo à família; combate à ignorância etc.
Em tais normas, o constituinte não remete simplesmente à lei o seu intento; estabelece como finalidade
um princípio, mas não impõe propriamente ao legislador a tarefa de executá-los, requer, na verdade,
uma política de seus órgãos, pertinentes à satisfação dos fins propostos (...)
São, em suma, normas caracterizadas por um alto grau de abstração, estabelecendo um programa de
ação para o Estado, os objetivos a serem nele perseguidos e os princípios a serem observados na sua
persecução. A eficácia dessas normas é, efetivamente, em parte limitada ou, melhor dizendo, diferida,
pois sua aplicabilidade plena pressupõe a atuação do Estado, por qualquer de seus Poderes,
elaborando a legislação necessária para a completa deflagração de seus efeitos ou adotando medidas
concretas com a mesma finalidade. Possuem, todavia, um efeito jurídico imediato, independente de
qualquer construção normativa posterior, a chamada eficácia negativa, anteriormente mencionada,
que é a vedação à elaboração de normas que disponham de forma contrária às suas prescrições e a
revogação de toda e qualquer norma ordinária eventualmente existente que disponha em sentido
contrário.
As normas programáticas são normas típicas das Constituições dirigentes.
Relembrando, tais Constituições são aquelas que se voltam precipuamente para o futuro, estipulando
programas de ação para o Estado. Ora, são justamente as normas programáticas que prescrevem tais
programas, logo, podemos inferir que não só as normas programáticas são típicas de Constituições
dirigentes, mas que uma Constituição é assim classificada justamente por conter em seu texto normas
programáticas.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
Ilustrando a exposição, trazemos como exemplo de norma programática o art. 170 da Constituição, o
qual dispõe que a “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e da livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios (...)”. O dispositivo prescreve os elementos que embasam a ordem econômica, os objetivos
que dentro dela devem ser alcançados e os princípios que nela devem ser respeitados. A eficácia
negativa dessa norma consiste, pois, precisamente, em impedir a elaboração de qualquer norma que
contrarie suas disposições. A partir da edição da legislação que a regule, pormenorizando-a e
ampliando em muito seu leque de aplicação, teremos o que poderíamos chamar de eficácia positiva de
uma norma programática: sua aplicação integral, plena, em obediência à vontade do legislador
constituinte originário.
Segundo José Afonso da Silva, há três tipos de normas programáticas: (a) normas programáticas
relacionadas com o princípio da legalidade (como o inc. XXVII do art. 7º, que assegura a “proteção
em face da automação, na forma da lei”); normas programáticas relativas aos Poderes Públicos
(como o art. 227, § 1º, segundo o qual “o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde
da criança e do adolescente...” e o art. 218, segundo o qual “o Estado promoverá e incentivará o
desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”); e normas programáticas
referentes à ordem econômico-social em geral (como o art. 178, caput, segundo o qual “a lei
disporá sobre a ordenação dos transportes aéreos, aquático e terrestre ...”).
Encerrando, compilamos lição de Vicente Paulo sobre a diferença entre as normas de eficácia contida
e limitada:
a) com a promulgação da Constituição, a força de tais normas é distinta: as normas de eficácia contida
são de aplicabilidade direta e imediata, vale dizer, o direito nelas previsto é imediatamente exercitável,
desde a promulgação da Constituição; as normas de eficácia limitada são de aplicabilidade indireta e
mediata, vale dizer, não produzem seus plenos efeitos desde a promulgação da Constituição, ficando o
exercício do direito nelas previsto dependente da edição de regulamentação ordinária;
b) ambas requerem normatização legislativa, mas a finalidade dessa normatização ordinária é distinta:
nas normas de eficácia contida, a norma regulamentadora virá para restringir, para impor limites ao
exercício do direito (que, até então, desde a promulgação da Constituição, era amplamente
exercitável); nas normas de eficácia limitada, a norma regulamentadora virá para assegurar, para
tornar viável o exercício do direito (cujo exercício, até então, estava impedido);
c) a ausência de regulamentação implica conseqüências distintas: em se tratando de norma de eficácia
contida, enquanto não houver regulamentação ordinária, o exercício do direito é amplo (a legislação
ordinária virá para impor restrições ao exercício desse direito); em se tratando de norma de eficácia
limitada, enquanto não houver regulamentação ordinária, o exercício do direito permanece obstado,
impedido (a legislação ordinária virá para tornar viável o exercício desse direito).
3.10) NORMAS CONSTITUCIONAIS DE EFICÁCIA EXAURIDA
As normas constitucionais de eficácia exaurida (ou de aplicabilidade esgotada), definidas por Uadi
Lammêgo Bulos, são aquelas que já produziram todos os efeitos jurídicos para os quais foram
editadas, sendo encontradas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Exemplificativamente, podemos citar como norma constitucional desta espécie a contida no art. 3º do
ADCT, que prevê o processo de revisão constitucional, a ser instaurado uma só vez, após 05 anos da
promulgação da Constituição.
Esta norma já foi aplicada em 1994, quando, então, foi instaurado o referido processo, dele resultando
a edição de seis emendas (emendas constitucionais de revisão). Como não há possibilidade de ser
iniciado um novo processo desta natureza, a norma prescrita no referido dispositivo é de eficácia
exaurida, tendo encerrado a produção de seus efeitos jurídicos.
DIREITO CONSTITUCIONAL
INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Segundo André Ramos Tavares, a interpretação do Direito “é a operação intelectiva por meio da qual a
partir da linguagem vertida em disposições (enunciados) com força normativa o operador do Direito
chega a determinado e específico conteúdo”. É a atividade mediante a qual se obtém o significado da
norma jurídica, a fim de aplicá-la a determinada situação, concreta ou hipotética.
Não se sustenta mais o aforismo segundo o qual a interpretação é dispensada nas normas claras,
sendo necessária somente para se descobrir o significado de dispositivos jurídicos com redação vaga,
obscura, ambígua.
E não se sustenta porque o próprio juízo sobre a “clareza” ou a imprecisão da norma parte da sua
interpretação, da análise de seu conteúdo pelo intérprete. A aplicação de uma norma pressupõe a
anterior compreensão de seu significado; logo, não há possibilidade de aplicá-la sem, anteriormente,
proceder-se à sua interpretação.
Deve-se também afastar a idéia de que a toda norma jurídica corresponde necessariamente um
significado, ou, de outro modo, que há um sentido necessariamente “verdadeiro” para cada norma
jurídica. Toda e qualquer atividade intelectiva é influenciada pela subjetividade daquele que a exerce, e
a atividade interpretativa não se afasta dessa realidade. Convicções ideológicas, políticas, religiosas, o
próprio nível intelectual do intérprete interferem no resultado de seu trabalho.
Ademais, há diversos métodos de interpretação, como o literal, o lógico, o sistemático, o valorativo e o
teleológico, e o significado da norma afinal obtido pode divergir conforme o método ou os métodos
utilizados, de forma exclusiva ou preponderante, pelo intérprete. O próprio posicionamento individual do
operador jurídico, suas convicções pessoais, pode fazer com que privilegie um ou mais métodos em
detrimento dos demais, o que fatalmente influenciará no sentido por ele alcançado para a norma
jurídica.
Enfim, devemos ter presente que a utilização dos diversos métodos de interpretação e as
peculiaridades do operador jurídico inegavelmente influenciam o resultado da atividade interpretativa, o
significado por fim alcançado para a norma jurídica, o que lança por terra a errônea concepção de que
existe um único sentido “verdadeiro” para cada norma.
2. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
As normas constitucionais possuem algumas especificidades às quais deve se dar destaque, porque
influenciam significativamente na sua interpretação.
Os pontos a ser destacados são os seguintes:
1º) a Constituição é o ponto inicial, inaugural do Estado, o que posiciona suas normas e princípios no
ápice do seu ordenamento jurídico, ostentando hierarquia superior a todas as demais normas
jurídicas dele integrantes. Em vista disso, a interpretação de seus dispositivos é sobremaneira
abrangente, pois os resultados daí decorrentes influenciarão na interpretação e aplicação de toda a
legislação infraconstitucional;
2º) natureza política das normas constitucionais: é de fundamental importância a lição de Gabriel
Dezen Junior, conforme o qual, em segundo lugar, cumpre notar que a norma constitucional é uma
norma de natureza política, não-jurídica, embora juridicizada. Se o objeto da Constituição é impor a
estrutura do Estado e os órgãos de seu funcionamento, claro é que as normas que farão isso terão um
conteúdo marcadamente político, já que termos como democracia, soberania, República e outros têm
pouco ou nenhum sentido jurídico.
Assim, a atividade interpretativa da Constituição deve partir da ciência de que não se pode pensar em
descobrir sentido jurídico em todas as suas normas, mas apenas sentido normativo e político, os quais
condicionam a estrutura jurídica. Apreendido o sentido extrajurídico da norma em sua origem, com
valorização do sistema constitucional para tanto, parte o intérprete para sua versão juridicizada,
utilizando uma regra não-jurídica com efeitos jurídicos.
Um erro que não pode ser cometido pelo intérprete da norma constitucional é pretender entender a
Constituição a partir do sistema jurídico. O movimento correto é exatamente o inverso.
Da lição do Professor resulta que as normas que compõem a Constituição não têm natureza jurídica,
sendo sua origem nitidamente política, circunstância que não pode ser desconsiderada pelo jurista
quando da sua interpretação. Este, num primeiro momento, deve buscar apreender o sentido originário,
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
político da norma, analisando todo o contexto social que culminou na sua elaboração, as forças
políticas que a inscreveram na Constituição e os valores que ela, então, visa a consagrar. Apreendido
este significado, extrajurídico, parte o intérprete, num segundo momento, para sua inserção dentro do
contexto normativo constitucional, buscando, assim, obter os efeitos jurídicos da norma
constitucional, seu conteúdo propriamente jurídico.
Como leciona Alexandre de Moraes, trazendo lição de Juarez Freitas, a Constituição há de ser sempre
interpretada, pois somente por meio da conjugação da letra do texto com as características históricas,
políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em confronto com
a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia Retornado à lição de Gabriel
Dézen Júnior, no seu parágrafo final, esclarece o Professor que não se deve tentar obter o significado
da norma constitucional a partir de sua análise com as demais normas integrantes do ordenamento
jurídico do Estado. O raciocínio correto é o oposto: uma vez obtido o significado extrajurídico da norma
constitucional, deve o intérprete determinar os efeitos jurídicos que a norma está apta a produzir, o
conteúdo jurídico que ela contém, e aplicá-los às normas que integram o restante do ordenamento
jurídico estatal. Parte-se da análise do sistema constitucional para se obter a interpretação da norma
constitucional, e desta para a análise das normas infraconstitucionais.
No mesmo contexto, Paulo Bonavides afirma que a interpretação constitucional é atividade que ocorre
numa esfera integrada pelo político e pelo jurídico, ambos essenciais, cabendo ao intérprete da
Constituição equilibrar esses dois elementos. Advirta-se, entretanto, que o objetivo final de sua
atividade é obter o significado jurídico da norma constitucional.
Finalizando, mais uma vez recorremos à Gabriel Dezen Junior: A Constituição tem um texto
marcadamente político, pois é sua função realizar o ordenamento do Estado. As normas constitucionais
são políticas quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e quanto ao resultado de sua aplicação.
Apesar dessa sua natureza política, a Constituição materializa a tentativa de conversão das normas,
objetivos e princípios políticos em poder jurídico, ou, na definição de Luiz Roberto Barroso, seu objeto é
um esforço de juridicização do fenômeno político. Por conta dessa raiz política e dessa tentativa de
conversão do político no jurídico, não se pode pretender neutralizar totalmente esse elemento político
quando da atividade interpretativa.
Ele fatalmente aparecerá e influirá, e será considerado, até porque já disse Mauro Capelletti que o
controle de constitucionalidade das leis sempre é destinado, por sua própria natureza, a ter também
uma coloração política mais ou menos evidente.
3º) Essa tentativa de se obter o significado da norma constitucional considerando-se todas as variáveis
sociais, políticas, ideológicas, culturais e econômicas influentes na sua elaboração não é, entretanto,
isenta de limites, sendo o primeiro deles, e mesmo o principal, a própria literalidade da norma, sua
redação, as expressões de que ela é composta e a forma como ela foi redigida. Esse é o terceiro ponto
a ser enfatizado. Não pode o intérprete, a pretexto de atingir o “espírito” da norma, desprezar a própria
norma, a literalidade de suas disposições. Como alerta Celso Bastos, “a letra da lei, constitui sempre
ponto de referência obrigatório para a interpretação de qualquer norma”. Este é uma fronteira que não
pode ser ultrapassada pelo intérprete.
Não estamos aqui advogando a utilização exclusiva do método de interpretação literal, que se limita à
análise dos vocábulos lingüísticos que compõem a norma e forma como ela foi redigida. Como é
notório, até pelo que até este momento foi exposto, este método é insuficiente para a compreensão de
qualquer norma jurídica, ainda mais em se tratando de normas constitucionais, em virtude de sua
natureza política.
Esse método, entretanto, é o ponto de partida da atividade interpretativa, não sendo admissível que os
resultados da sua utilização sejam desprezados pelo jurista. A literalidade da norma permite uma maior
ou menor amplitude de interpretação, e é dentro deste limite que seu trabalho deve ser realizado. Em
suma, a “letra” da norma constitucional não pode ser desconsiderada pelo intérprete;
4º) Em prosseguimento, como quarto ponto a ser enfatizado, deve-se destacar que, apesar de as
normas constitucionais serem compostas de uma infinidade de vocábulos técnicos (democracia,
soberania, federação), bem como de vocábulos comuns, deve-se interpretá-los, sempre que possível, a
partir de seu significado comum. André Ramos Tavares é taxativo ao afirmar que: (...) a
interpretação da Constituição deve operar, sempre, o mais possível de seu povo. Portanto, a linguagem
deve ser-lhe próxima, vale dizer, há de se privilegiar o emprego da linguagem comum. Até porque,
como salienta Häberle, em muitas ocasiões a norma é compreendida e interpretada por instâncias não
oficiais, que só podem apegar-se ao sentido comum que os termos constitucionais apresentam.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
Completando sua lição, o Autor afirma: Tem-se, pois, como diretriz, de admitir os significados comuns
dos vocábulos em que se expressam as Constituições, só recorrendo à linguagem técnica nas
ocorrências em que o próprio contexto constitucional sinaliza nesse sentido.
A lição é clara: deve-se interpretar não os termos comuns, mas também os termos técnicos constantes
das disposições constitucionais a partir de seu sentido usual, comum, corriqueiro, salvo quando se
evidenciar, pela análise da Constituição, que sua utilização se deu no sentido específico, próprio com
que é compreendido pelos especialistas na matéria.
5º) devemos levar em consideração que a Constituição, em linhas gerais, apresenta uma estrutura de
linguagem resumida, tendo suas disposições formadas, em grande parte, por palavras vagas,
imprecisas, dúbias (interesse público, iminente perigo público, bem comum etc), que possibilitam ao
intérprete uma considerável margem para o exercício de sua tarefa, do que resulta que diversos serão
os resultados possíveis dela decorrentes, ou seja, diversos serão os significados possíveis
extraídos do dispositivo constitucional analisado, variáveis conforme a índole do intérprete, os
métodos por ele utilizados e o próprio contexto no qual a norma será aplicada.
Como ensina Luiz Roberto Barroso, embora existam na Constituição normas com redação completa,
prevendo dada hipótese e seu respectivo efeito jurídico, predominam normas que não prescrevem
condutas, não criam direitos nem impõem obrigações, mas consagram valores, fins, objetivos,
programas de ação estatal (normas de estrutura). São normas destinadas precipuamente ao legislador,
que deve, ao elaborar as normas ordinárias, buscar a efetivação das prescrições constitucionais,
definindo a forma como o programa de ação será realizado, a finalidade alcançada, o valor
concretizado.
Tais normas, se de um lado requerem complementação pela legislação ordinária para a deflagração
integral de sua eficácia jurídica, por outro lado dão margem a uma ampla gama de variações
interpretativas, permitindo a atualização da Constituição frente à realidade social e, com isso, a
manutenção de sua eficácia e sua preservação como estatuto jurídico supremo do Estado.
Sintetizando as conclusões até aqui anotadas, temos, como aspectos relevantes a serem considerados
na interpretação constitucional:
1º) as normas constitucionais gozam de hierarquia superior com relação às demais normas
integrantes do ordenamento jurídico. Daí decorre que sua interpretação tem alcance muito mais amplo
do que a interpretação de uma norma ordinária, já que o significado conferido à norma constitucional
influenciará a interpretação e a aplicação de toda a legislação infraconstitucional com ela relacionada;
2º) a tarefa do operador do Direito é obter o significado jurídico das normas que interpreta. Contudo,
em se tratando de normas constitucionais a sua tarefa é mais complexa, em função da sua origem
eminentemente política. Em vista disso, deve o intérprete, inicialmente, buscar apreender o
significado originário, político, do dispositivo que analisa, mediante a pesquisa das forças sociais que
culminaram na sua elaboração, do ambiente político e social em que isto ocorreu. Com isso, descobrirá
os interesses que tal dispositivo visa a satisfazer, os valores que ele busca proteger.
Cumprida esta parte de sua tarefa, apreendido o sentido extrajurídico do dispositivo, passa o intérprete
a determinar seus efeitos jurídicos, seu conteúdo jurídico, para o fim de aplicar o dispositivo não só
no âmbito da própria Constituição, mas do ordenamento jurídico como um todo;
3º) a busca do “espírito” da norma constitucional, entretanto, está sujeita a certas restrições, a principal
das quais é justamente sua literalidade, as palavras em que está vazada e a forma como está
redigida. É vedado ao intérprete, a pretexto de obter um sentido para a norma, desconsiderar sua
redação. A “letra” da norma é limite que não pode ser ultrapassado;
4º) a Constituição é rica em vocábulos técnicos, os quais devem ser interpretados a partir de seu
significado comum, usual, salvo quando o próprio contexto constitucional dá a entender que, no caso,
o vocábulo foi utilizado em seu sentido próprio, caso em que deverá ser interpretado a partir desse
sentido;
5º) a Constituição também é rica em dispositivos compostos por termos vagos, imprecisos,
subjetivos, que possibilitam uma ampla variedade de versões interpretativas. São dispositivos que
estabelecem fins, valores e programas para o Estado, tendo por destinatário precípuo o legislador. Tais
normas, de um lado, dificultam a atividade do intérprete, mas, por outro, acrescem consideravelmente a
longevidade da Constituição, a permanência do texto constitucional, pois permitem a adaptação de seu
sentido às transformações ocorridas no contexto social e institucional em que é aplicado.
Apreendidas essas peculiaridades das normas constitucionais, que influem decisivamente no resultado
da sua interpretação, vamos, agora, analisar alguns métodos de interpretação constitucional
elaborados pela doutrina.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
3) MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1) Método interpretativo da concretização - Segundo Konrad Hesse, a interpretação da Constituição é
aquela que busca sua concretização, efetivando e integrando os preceitos constitucionais ao aplicá-los
a um caso em concreto.
Não basta ao intérprete, entretanto, recorrer somente à norma específica a ser aplicada. Antes de mais
nada, deve ele compreender o contexto no qual a norma está inserida. Com uma clara percepção
desse contexto, chega o intérprete a uma clara compreensão do sentido da norma, e só então está ele
apto a aplicá-la ao caso concreto a ser solucionado, com o que atinge a concretização da Constituição.
Nunca é demais reforçar que esse método vê como indispensável, antes da análise da norma
propriamente dita, a compreensão prévia do contexto no qual a norma está inserida, pois é justamente
tal compreensão que permitirá ao intérprete superar eventuais contradições, ambigüidades e lacunas
eventualmente existentes no texto constitucional. Ademais, a interpretação não deve ser feita em
abstrato, divorciada da realidade, mas sempre perante uma situação real a ser solucionada pela
aplicação do dispositivo constitucional.
Em suma, o método estrutura-se em três elementos: o contexto que envolve a norma constitucional, a
própria norma constitucional e o caso específico ao qual ela será aplicada, concretizando, assim, a
Constituição.
3.2) Método integrativo ou científico-espiritual - Da autoria de Rudolf Smend, esse método em certo
grau aproxima-se do anterior, pois se fundamenta numa percepção global da Constituição, a qual deve
ser compreendida como o somatório de todos os elementos que compõem o Estado, tais como
forma de governo, regime de governo, forma de Estado, separação dos poderes, direitos e garantias
fundamentais, fatores econômicos e ideológicos e fenômenos culturais.
Como explica Gabriel Dezen Junior, a premissa fundamental, portanto, é que a Constituição há que ser
interpretada sempre como um todo, a partir de uma percepção de seu conjunto, da soma dos fatores
que a integram, os quais se interpenetram e se completam na busca do sentido harmônico de todo o
corpo constitucional. A Constituição é, assim, tomada como um conjunto de distintos fatores que a
integram, de diferentes níveis de importância e legitimidade, mas que sem exceção, são partes do
sistema. A Constituição consubstancia todos os valores primários e superiores do Estado a partir dessa
convergência espiritual de valores.
O método integrativo, portanto, baseia-se numa visão unitária, da totalidade do contexto
constitucional, dos diversos fatores presentes no momento de elaboração da Constituição e no
momento da aplicação de suas normas. Nenhum dispositivo constitucional é uma realidade autônoma,
mas um elemento dentro de um conjunto maior, denominado contexto constitucional, composto por
todos os elementos políticos, jurídicos, ideológicos, sociológicos, filosóficos, econômicos presentes no
momento de construção e aplicação da Constituição.
A compreensão prévia deste todo, mediante a identificação de todos seus elementos constitutivos e
suas diversas formas de ação e interação, permite ao intérprete perceber a Constituição de forma
sistemática, como uma unidade de sentido, sem elementos desarmônicos ou incongruentes.
3.3) Método da interpretação conforme a Constituição Não se trata, propriamente, de um método de
interpretação da Constituição, mas de um método de interpretação da legislação ordinária frente à
Constituição, com o fim último de se obter uma interpretação que compatibilize a legislação ordinária
com o texto constitucional. Sua aplicação é razoavelmente simples, e pode ser assim sintetizada: é
possível, até bastante provável, como já afirmamos, que uma norma jurídica ordinária admita mais de
uma interpretação (normas plurissignificativas ou polissêmicas), ou, em outros termos, é possível que
da sua interpretação resultem diversos significados, alguns compatíveis, outros incompatíveis com a
Constituição. Frente a uma situação dessa natureza, deve o intérprete, calcado no princípio da
presunção da constitucionalidade das leis, privilegiar o sentido (ou os sentidos) da norma que se
amoldem aos dispositivos constitucionais, reconhecendo, pois, a sua validade.
Enfim, se a norma ordinária admitir mais de um sentido, (ou, como se afirma mais comumente, se a
norma admitir mais de uma interpretação), alguns em conformidade e outros em desconformidade com
a Constituição, deve o intérprete desprezar os últimos e adotar os primeiros, reconhecendo a
constitucionalidade da norma ordinária, desde que aplicada nos sentidos compatíveis com o texto
constitucional.
Evidentemente, não pode o intérprete, a pretexto de manter a constitucionalidade da norma ordinária,
adotar interpretação que não seja comportada por seus preceitos, que ultrapasse sua literalidade.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
Como já afirmado, a literalidade da norma é limite intransponível para o intérprete, seja qual for seu
intuito, até porque dar a uma norma um significado não comportado por seus termos é, na prática, criar
uma nova norma jurídica.
Canotilho é peremptório ao afirmar que o método de interpretação conforme a Constituição só é de uso
legítimo quando efetivamente existe um espaço de decisão dentro do qual pode ser pode ser obtida
uma variável interpretativa consetânea com a Constituição.
Vicente Paulo apresenta mais uma restrição ao uso do método, esclarecendo que “deve o intérprete
zelar pela manutenção da vontade do legislador, devendo ser afastada a interpretação conforme a
Constituição, quando dela resultar uma regulação distinta daquela originalmente almejada pelo
legislador (...) sob pena de transformar-se o intérprete em autêntico e ilegítimo legislador positivo”.
Condensando todos os comentários, temos que a interpretação conforme a Constituição só tem lugar
quando efetivamente há um espaço de decisão que permita ao intérprete, sem fugir da literalidade
da norma e da vontade do legislador, obter um ou mais sentidos sentido para a norma admitidos
pela Constituição.
4) PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Inúmeros foram os princípios de interpretação constitucional elaborados pela doutrina. Os principais
serão nosso objeto de exame nesse tópico.
4.1) PRINCÍPIO DA UNIDADE CONSTITUCIONAL - O referido princípio impõe ao operador jurídico
três vetores interpretativos:
1º) a Constituição, como um todo, ocupa o topo do edifício jurídico de um Estado, sobrepondo-se
hierarquicamente às demais normas jurídicas. Os princípios e normas que compõem seu texto, por
sua vez, encontram-se no mesmo patamar hierárquico, justamente porque integram a Constituição.
Logo, não há como se sobrepor qualquer deles aos demais;
2º) a Constituição não é um conjunto de dispositivos aleatoriamente reunidos em um texto jurídico
hierarquicamente superior aos demais; mas um conjunto coeso, coerente, de normas e princípios;
3º) em vista disso, não existem verdadeiras antinomias, contradições jurídicas entre os princípios e
normas constitucionais, impondo-se ao intérprete da Carta a obtenção de um resultado interpretativo
que harmonize tais princípios e normas dentro do contexto constitucional.
O primeiro vetor baseia-se na circunstância de que os Estados contemporâneos, em regra, adotam um
conceito formal de Constituição, como é o caso do Brasil. Desse modo, o só fato de um dispositivo
compor a Constituição, automaticamente o posiciona em idêntico patamar hierárquico de todos os
demais dispositivos que a integram. A conclusão é simples: todas as normas e princípios da
Constituição encontram-se no mesmo nível hierárquico.
O segundo vetor completa o primeiro, acrescendo à identidade hierárquica das normas e princípios
constitucionais a sua organização sistemática. Desse modo, a interpretação de qualquer dispositivo
constitucional exige do intérprete, como já afirmado, uma prévia compreensão de toda a Constituição,
da interação do dispositivo a ser aplicado com todos os demais dispositivos da Constituição, o que
impõe uma interpretação que harmonize seus respectivos sentidos, reconhecendo-se assim a unidade
da Constituição. O erro mais trivial a ser evitado pelo intérprete, é, pois, interpretar um dispositivo
isoladamente, divorciado do restante do corpo constitucional.
Com isso, chega-se ao terceiro vetor. Se todos os princípios e normas constitucionais gozam de
mesma hierarquia e estão organizados de forma sistemática, segue-se que a Constituição não possui
verdadeiras antinomias, contradições jurídicas. Como ressalta Gabriel Dezen Junior, pode ela,
eventualmente, apresentar contradições lógicas, mas cabe ao intérprete, pela aplicação do princípio
da unidade da Constituição, descobrir uma solução que negue a possibilidade da existência de
contradição jurídica. Exemplificativamente, pode-se citar os art. 61, § 1º, II, d, e 128, § 5º, da CF, que
conferem, respectivamente, ao Presidente da República e ao Procurador-Geral da República a
competência para elaborar o projeto de lei sobre a organização do Ministério Público da União. Há,
evidentemente, uma contradição lógica entre os dois dispositivos, uma vez que a mesma competência
foi outorgada a autoridades distintas. Ao intérprete compete, em face dessa situação, descobrir uma
solução jurídica que permita uma aplicação harmônica de ambas as regras. Foi o que fez o Supremo
Tribunal Federal, quando declarou que, na hipótese, trata-se de competência concorrente, passível de
exercício tanto pelo Presidente da República como pelo Procurador-Geral da República.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
Em síntese: o princípio da unidade da Constituição impõe uma interpretação sistemática da
Constituição, que negue a possibilidade de verdadeiras contradições (as contradições jurídicas)
entre seus dispositivos, a partir da compreensão de que eles compõem um todo unitário (a
Constituição), ostentando idêntico status hierárquico.
4.2) PRINCÍPIO DAS BASES PRINCIPIOLÓGICAS - Antes ressaltamos que a interpretação da
Constituição deve-se dar necessariamente sob uma perspectiva sistemática. Tal conclusão é
complementada pelo princípio ora tratado. Como leciona André Ramos Tavares, “não obstante todas
as normas constitucionais sejam dotadas da mesma natureza e do mesmo grau hierárquico, algumas,
em virtude de sua generalidade e abstratividade intensas, acabam por servir como vetores, princípios
que guiam a compreensão e a aplicação das demais normas, devendo-se buscar sua
compatibilização”.
Essas normas gerais e intensamente abstratas referidas por André Ramos Tavares nada mais são do
que os princípios constitucionais, considerados pela doutrina como os alicerces do sistema
constitucional, como os elementos que, em grau superior, conferem racionalidade e coesão a toda a
Constituição.
Note-se bem: não se está a afirmar que os princípios são hierarquicamente superiores às normas. Isto
seria negar o que afirmamos acima. Ocorre que os princípios, pela sua reduzida densidade semântica,
pela sua imprecisão e subjetividade, são passíveis de aplicação a um universo muito superior de
situações concretas comparativamente às normas jurídicas, que, por sua maior concreção, destinamse precipuamente a disciplinar as hipóteses específicas que constituem seu objeto. Em vista disso,
ocupam eles a posição de pedra angular de toda a interpretração sistemática da Constituição.
4.3) PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE - A Constituição não aconselha, determina, impõe,
comanda. É missão do operador do Direito, ao aplicar suas normas, fazê-lo com a interpretação que
maior eficácia lhes confira. André Ramos Tavares, tratando do tema, colhe lição de Celso Ribeiro
Bastos, esclarecendo que “não se deve interpretar uma regra de maneira que algumas de suas partes
ou algumas de suas palavras acabem se tornando supérfluas, o que equivale a nulificá-las”. A, seguir,
em complemento, alerta também é vedado ao intérprete, por força dessa orientação hermenêutica,
desprezar partículas, palavras, conceitos, alíneas, incisos, parágrafos ou artigos da Constituição. Todo
o conjunto normativo tem que ser captado em suas peças constitutivas elementares, a cada qual
devendo-se atribuir a devida importância em face do todo constitucional.
O princípio impõe ao intérprete, por conseguinte, a interpretação que maior força jurídica confira à
norma constitucional, reconhecendo eficácia a todos os seus elementos constitutivos.
4.4) PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO - Princípio elaborado por
Konrad Hesse, ele na verdade deriva do primeiro princípio que analisamos, o princípio da unidade da
Constituição. Se a Constituição é composta por um conjunto de princípios e normas de idêntico peso
hierárquico, organizados de forma sistemática, segue-se que a aplicação de um deles não pode ser
feita em detrimento de outro. Em outros termos, a aplicação de um dispositivo constitucional não
pode ser feita de modo a resultar na perda de valor ou de eficácia de outro. Em caso de conflito
(aparente) entre dois dispositivos, a solução deve ser conciliatória (harmônica), reduzindo-se
proporcionalmente o alcance jurídico de ambos.
Como ensina Vicente Paulo, “o princípio da harmonização fundamenta-se na idéia de igual valor dos
bens constitucionais (ausência de hierarquia entre dispositivos constitucionais), que impede, como
solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e
condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre
esses dispositivos”.
4.5) PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR - É dever do intérprete, ao aplicar os dispositivos
constitucionais a um caso concreto, fazê-lo a partir de soluções e critérios que fortaleçam a
integração política e social e reforcem a unidade política, aproximando a Constituição do ambiente
real que deve reger e assegurando, assim, sua permanência e efetividade.
O princípio impõe, então, a busca de uma interpretação que tenha como resultado a solução dos
conflitos e problemas constitucionais mediante a adoção de critérios e perspectivas que integrem a
Constituição com a realidade sócio-política, fortalecendo, desse modo, sua força jurídica.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
4.6) PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO – O princípio exige do intérprete que,
ao aplicar o dispositivo constitucional a um caso em concreto, faça-o adotando, dentre as diversas
soluções possíveis, aquela que proporcione maior atualidade e efetividade ao dispositivo aplicado,
aproximando-o do problema a ser solucionado.
Enfim, o intérprete deve buscar, dentre as variáveis interpretativas possíveis, aquela que mais se
aproxima da realidade, da atualidade do problema a ser solucionado. Ao optar por esta variável e com
ela solucionar o caso em concreto, o intérprete confere eficácia à Constituição, força normativa para
reger a sociedade e, consequentemente, para manter-se como estatuto jurídico-político supremo do
Estado.
4.7) PRINCÍPIO DO CONTEÚDO IMPLÍCITO DOS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS - A
interpretação constitucional deve levar em consideração não apenas o conteúdo explícito, expresso
dos dispositivos da Constituição, mas também seu conteúdo implícito.
4.8) PRINCÍPIO DA CONFORMIDADE FUNCIONAL - O princípio da conformidade funcional (ou da
justeza), segundo Vicente Paulo, “estabelece que o órgão encarregado de interpretar a Constituição
não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional
estabelecido pelo legislador constituinte”.
A Constituição traça regras explícitas sobre a repartição das funções do Estado, e esta distribuição
não pode ser modificada pelo operador jurídico no momento de interpretar e aplicar a Constituição.
4.9) PRINCÍPIO DA IMPERATIVIDADE DOS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS - Como já anotado
anteriormente, não se sustenta mais a concepção teórica que percebia as normas programáticas como
meros aconselhamentos, sem valor impositivo para seus destinatários.
A moderna doutrina constitucionalista refuta esta possibilidade, afirmando de forma peremptória que
todas as normas e princípios da Constituição têm o caráter de comando, de mandamento, de
determinação, gozando assim, de imperatividade, de eficácia jurídica, impondo-se aos seus
destinatários e regulando as relações jurídicas que formam seu objeto.
É vedado ao intérprete, portanto, pretender tratar dado dispositivo constitucional como mera orientação
de conduta. Seu caráter impositivo jamais pode ser desconsiderado.
4.10) PRINCÍPIO DO SENTIDO USUAL DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS - Conforme Márcia
Haydée Porto de Carvalho, citada por Gabriel Dezen Junior, “as palavras expressas no texto
constitucional devem ser tomadas em seu sentido corrente, usual, exceto quando essa interpretação
leve a absurdo, ambigüidade ou contradição com o sistema constitucional, situação em que se deve
preferir o sentido técnico dos vocábulos ou qualquer outro significado que as reconcilie com o resto da
Constituição”.
A Constituição apresenta diversas expressões técnicas (República, Federação, Estado Democrático de
Direito), o que autorizaria o intérprete, num primeiro momento, a apreender seu significado partir da
definição técnica da expressão. Contudo, este não é o critério a ser adotado: seja a expressão comum,
seja técnica, deve-se tentar determinar seu conteúdo utilizando na interpretação seu sentido comum,
usual, a não ser quando o próprio contexto em que a expressão é utilizada autoriza-nos a fazer uso de
seu significado técnico.
É o caso, por exemplo, das expressões contidas nos dispositivos da Constituição Federal que tratam
das competências dos Tribunais do Poder Judiciário, como é o caso do art. 102, que prescreve a
competência do STF.
Ali observamos expressões como ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de
constitucionalidade, revisão criminal, habeas corpus, mandado de injunção, crimes políticos entre
outras, as quais, pelo contexto em que estão inseridas - competências do STF -, devem ser analisadas
com base em seu sentido técnico, próprio, específico.
5) INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO SEGUNDO AS LEIS
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Alguns de nossos doutrinadores ainda advogam o entendimento de que a Constituição pode ser
interpretada recorrendo-se a algumas leis cujas disposições já estão sedimentadas em nosso
ordenamento, em regra as mais antigas, como a antiga Lei de Introdução ao Código Civil. Seria um
raciocínio, então, segundo o qual o sentido dos dispositivos constitucionais deveria ser buscado
nesses dispositivos legais.
Como já apontado, o movimento do intérprete é exatamente o oposto. Como a Constituição inaugura a
ordem jurídica e prevalece sobre todas as demais normas dela integrantes, é a interpretação de seus
dispositivos que orienta a interpretação da legislação ordinária, seja qual for sua relevância ou
anciedade. Não é por outro motivo que esta concepção é desconsiderada pela imensa maioria de
nossa doutrina.
6) TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS
Construção da doutrina constitucionalista norte-americana, sua premissa básica é singela: sempre que
a Constituição outorga um poder, nesta outorga incluem-se todos os poderes necessários para
o seu exercício, ou, de outra forma, sempre que a Constituição determina um fim a ser atingido,
na previsão estão incluídos todos os meios necessários para sua realização.
A Constituição, quando confere um poder, o faz tendo em vista certa finalidade, logo, deve-se
considerar contidos neste poder geral todos os poderes específicos necessários à satisfação da
finalidade inscrita na Constituição.
O poder (geral) deve ser percebido como um instrumento prescrito na Constituição para se atingir o
objetivo nela determinado, devendo-se desmembrá-lo em todos os poderes (específicos) que sejam
necessários para se atingir tal objetivo, ou seja, que sejam, também, instrumentos para sua
consecução. Tais poderes, específicos, estão implicitamente previstos no poder geral. É, esta, em
síntese, a teoria dos poderes implícitos.
A construção desta teoria parte da constatação de que a Constituição deve necessariamente adaptarse às mutações ocorridas na sociedade. A ela compete instituir os objetivos a serem alcançados pelo
Estado e prescrever de forma genérica os poderes necessários para tanto. Em determinado momento
histórico, será necessário o exercício de determinados poderes, que devemos considerar contidos na
outorga genérica de poder, para a consecução do objetivo constitucional. Em momento diverso, em
vista da evolução religiosa, política, econômica, tecnológica, cultural da sociedade, alteram-se os
poderes necessários para a realização do objetivo. Como a Constituição mantém entre suas
prescrições tal desígnio, bem como a outorga genérica de poder para sua efetivação, devemos
considerar implicitamente autorizados por ela os novos poderes, os novos instrumentos que se fazem
indispensáveis para a consagração do escopo constitucional.
Como ressalta Vicente Paulo, (...) na interpretação de um poder constitucional, todos os meios
ordinários e apropriados a executá-los devem ser vistos como parte desse poder. Se a Constituição
pretende o fim, entenda-se que tenha conferido os meios para a satisfação desse fim.
7) INTERPRETAÇÃO EVOLUTIVA
Segundo Zagrebelski, citado por André Ramos Tavares, interpretação evolutiva é “a operação
destinada a reconstruir o direito dinamicamente, na medida das exigências cambiantes que a realidade
social manifesta”. É uma orientação hermenêutica marcadamente histórica, que visa à evolução
material da Constituição.
André Ramos Tavares observa que a interpretação evolutiva é extremamente adequada às
Constituições que estabelecem finalidades absolutamente diferenciadas, com pouca ou nenhuma
relação entre si, ou mesmo antagônicas, como a proteção do meio-ambiente, o respeito às diferenças
étnico-culturais, o resguardo da soberania nacional, a liberdade de imprensa, o direito à intimidade.
Será o momento histórico da sociedade que determinará quais dessas finalidades, todas prescritas na
Constituição, devem ter sua consecução intentada. Haverá, portanto, uma escolha, que não decorre da
Constituição, mas do “momento histórico vivido”, como declara o Autor, que cita, como exemplos, a
escolha entre a segurança e a privacidade, ou entre a comunicação e a intimidade.
A interpretação evolutiva busca, portanto, nos limites da Constituição, conferir primazia à satisfação
dos objetivos, das finalidades, dos valores, dos desejos demandados mais intensamente pela
sociedade naquele período histórico.
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8) INTEGRAÇÃO
Eventualmente, por mais esmerado que seja o esforço interpretativo perante um caso concreto, ele não
logra êxitos, não obtém o regramento jurídico a ser aplicado na hipótese em questão. São hipóteses de
lacuna legislativa, situações que não encontram normatização no ordenamento jurídico mediante a
aplicação dos métodos de interpretação. Se o vazio normativo ocorrer na aplicação da Constituição,
poderemos estar perante uma lacuna constitucional, que requer, para seu preenchimento, o recurso
à via da integração.
A integração e a interpretação são duas ciências ou disciplinas, como se prefira, que visam ao mesmo
objetivo: obter o regramento jurídico aplicável a determinada situação específica, abstrata ou concreta.
Entretanto, diferenciam-se, e profundamente, quanto à sua lógica de aplicação. A interpretação parte
sempre de uma norma posta, no nosso caso, da Constituição, e, mediante a aplicação de seus
diversos métodos, quando exitosa, soluciona uma situação que se descobriu tratada na Constituição.
Já a integração surge justamente quando se conclui que a situação em questão não foi tratada no
texto constitucional, ou seja, quando se descobre uma lacuna constitucional. A lacuna
constitucional, portanto, ocorre quando, levado um problema a ser elucidado pela aplicação da
Constituição, chega-se à conclusão de que, na verdade, a Constituição não trata da hipótese em
questão.
Há duas modalidades de lacuna constitucional: as lacunas constitucionais descobertas e as lacunas
constitucionais ocultas.
As lacunas constitucionais descobertas são vazios normativos que o legislador constituinte
identificou no momento de elaboração da Constituição e conscientizou-se da necessidade de
preenchê-los, mas, por qualquer motivo, deixou de fazê-lo. São vazios relativos a situações já
existentes quando da formulação da Carta, mas que o legislador optou por não solucionar.
As lacunas constitucionais ocultas são os vazios normativos relativos a situações não existentes
no momento de elaboração da Constituição.
Essas lacunas evidentemente não poderiam ter sido preenchidas, porque a situação que a gerou não
havia ocorrido quando da elaboração da Constituição. Na verdade, essa lacuna não existia quando da
elaboração da Carta, surgindo em momento posterior, em função de modificações ocorridas na
sociedade.
Identificada uma lacuna constitucional, torna-se lícito ao jurista colmatá-la pela via da integração. Um
dos recursos integrativos de uso mais comum, citado por Gabriel Dezen Junior, é a analogia, técnica
pela qual se alarga o âmbito de incidência de certa norma constitucional. A norma, criada para
regular determinadas hipóteses, tem sua aplicação ampliada para abranger também hipóteses
originalmente não comportadas por ela (e, diga-se de passagem, nem por outra norma da
Constituição).
Não devemos, entretanto, entender que todo e qualquer vazio normativo, toda e qualquer situação não
regulada na Constituição, corresponde necessariamente a uma lacuna constitucional.
Gabriel Dezen Junior, valendo-se dos ensinamentos de Celso Bastos, traça os pressupostos para o
reconhecimento de uma lacuna constitucional. Nas palavras do Autor: O primeiro desses pressupostos
é que a situação não tenha sido prevista na Constituição. O segundo, que tenha existido situação
semelhante a atual, no passado, a partir do que a omissão em relação à presente a torne insatisfatória,
parecendo razoável o esperar-se que ela estivesse prevista e regulamentada. O terceiro, que essa
lacuna identificada não possa ser preenchida pela via da interpretação, ainda que extensiva, de outros
preceitos constitucionais.
Identificada essa lacuna, torna-se lícito o uso da interpretação analógica, a partir de outros parâmetros,
para suprir essa lacuna.
A seguir, enumera os diferentes tipos de vazios normativos que podem ser encontrados ou
descobertos na análise de uma Constituição. São, assim, espécies de vazios normativos:
1) as lacunas constitucionais, descobertas ou ocultas;
2) as omissões existentes em normas de eficácia contida (segundo a classificação de José Afonso da
Silva), que podemos considerar sem relevância constitucional, porque a norma constitucional está apta
a produzir regularmente seus efeitos jurídicos, apenas da forma não concebida pelo constituinte
originário, o que só ocorrerá quando houver sua complementação pela legislação infraconstitucional.
Segundo Gabriel, nesse caso a matéria está totalmente tratada na Constituição, mas parcialmente
normatizada;
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
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3) as omissões existentes em normas constitucionais de eficácia limitada (mais uma vez, adotando-se
a mesma classificação). Gabriel denomina-as de “omissões inconstitucionais”, e afirma que, na
hipótese, a matéria também está totalmente tratada na Constituição, mas não normatizada;
4) os silêncios normativos, que ocorrem “quando o constituinte, podendo impor à matéria dois
tratamentos diferentes, usou uma construção lógica para enunciar apenas uma das regras, a partir da
qual depreenderá, a contrario sensu, a outra”. A hipótese é de normatização plena.
Nas hipóteses “2” e “3” não se trata de lacuna constitucional. Como lá dito, a Constituição tratou da
matéria, cabendo o restante da atividade legislativa ao legislador ordinário. O mesmo pode ser dito na
hipótese “4”, em que nem mesmo se faz necessário qualquer complementação pela legislação
infraconstitucional, já que é caso de normatização plena.
Temos, assim que os únicos “vazios normativos” que justificam o recurso à integração são as lacunas
constitucionais, as matérias realmente não tratadas na Constituição. Ocorre que, se observarmos a
lição de Celso Bastos, acima transcrita, somente as lacunas constitucionais descobertas (aquelas
identificadas pelo legislador constituinte no momento de elaboração da Constituição, porque relativas a
situações já existentes à época) correspondem a verdadeiras lacunas constitucionais, justificando o
uso da integração. As lacunas constitucionais ocultas, oriundas de fatos surgidos posteriormente à
elaboração da Constituição, não são, de acordo com o Professor, verdadeiras lacunas constitucionais.
Esta é a posição que devemos adotar. As únicas lacunas que legitimam o uso da integração são as
lacunas constitucionais descobertas, os vazios normativos já identificados pelo legislador Constituinte
quando da elaboração da Carta, pelo fato de se originarem de situações já existentes à época.
9) O VALOR DO PREÂMBULO CONSTITUCIONAL COMO ELEMENTO DE
INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
Reza o preâmbulo da Constituição Federal de 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais,a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”
Nosso questionamento nesse tópico é bem simples: o preâmbulo da Constituição Federal de 1988,
acima transcrito, tem algum valor na interpretação de seus dispositivos? Para respondermos a essa
indagação, temos que determinar a natureza jurídica do preâmbulo, sobre a qual há três posições:
1ª) tese da irrelevância jurídica: segundo a qual o preâmbulo apenas proclama, enuncia valores e
princípios albergados na Constituição, não tendo por si só, qualquer valor jurídico;
2ª) tese da plena eficácia: pela qual o preâmbulo, por constar na Constituição, tem a mesma eficácia
das normas nela contidas;
3ª) tese da relevância jurídica indireta: corresponde a um meio-termo entre as duas teses anteriores,
afirmando que o preâmbulo possui eficácia jurídica, contudo, em menor grau que as normas
constitucionais.
Apesar de a doutrina apresentar defensores para cada uma das teses apresentadas, em face de
nossos objetivos devemos adotar, na matéria o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal
Federal. Entendeu a Corte que o preâmbulo nada mais é do que uma exortação, uma proclamação dos
princípios contidos na Constituição e que, em vista disso, não possui relevância jurídica. Os
princípios, os valores mencionados no preâmbulo, porque prescritos no texto constitucional
propriamente dito, inegavelmente possuem valor jurídico, constituindo elemento indispensável para
uma interpretação sistemática da Constituição. O mesmo, entretanto, não se aplica ao preâmbulo, que
se limita a, numa linguagem de natureza eminentemente ideológica, enunciar esses princípios.
Enfim, o preâmbulo é apenas uma “declaração de boas intenções”, onde são enunciados os valores e
objetivos fundamentais do nosso Estado, a República Federativa do Brasil. Trata-se de um texto
despido de eficácia jurídica. Não tem, portanto, utilidade na interpretação do texto constitucional.
DIREITO CONSTITUCIONAL
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
PODER CONSTITUINTE, SUPREMACIA, VIGÊNCIA E
APLICABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO
PODER CONSTITUINTE
1) CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O poder constituinte, numa primeira definição, é o poder de criar a Constituição, de instituir o
ordenamento jurídico supremo do Estado, e pois, o próprio Estado, juridicamente falando.
É evidente que, pela sua obra – a Constituição -, o poder constituinte deve ser diferenciado do poderes
de alteração da própria Constituição ou de elaboração da legislação infraconstitucional (poderes
constituídos, como veremos logo mais). No primeiro momento, estamos falando do poder que institui a
Constituição, no segundo, do poder que a modifica ou a complementa, segundo as regras por ela
postas. Daí decorre a profunda diversidade dos processos de produção legislativa, em um e outro
momento.
Como se trata de um poder excepcional, único, por instituir a ordem fundamental do Estado, o poder
constituinte não é exercido a todo momento, embora, em termos teóricos, possa sê-lo. Seu
exercício ocorre, sempre, em situações anômalas, como resultado de crises políticas, econômicas,
sociais, ideológicas, insuscetíveis de serem contornadas pelas regras fundamentais então vigorantes
no Estado, as quais, bem por isso, precisam ser profundamente alteradas. O movimento pelo qual se
dá a substituição de tais regras basilares, instituindo-se a nova Constituição, os novos paradigmas de
ação do Estado e da sociedade, é justamente o poder constituinte.
Eventualmente, pelo exercício do poder constituinte temos efetivamente a criação de um Estado novo,
de um organismo político absolutamente inédito. No mais das vezes, contudo, não é isto que se
verifica. O Estado, enquanto estrutura de poder, preexiste, e o poder constituinte vai apenas
reinaugurá-lo, sob novas bases. De qualquer modo, seja instituindo um Estado novo, seja alterando
intensamente as bases de um Estado já existente, o poder constituinte sempre constrói uma nova
Constituição, e pois, em termos jurídicos, um novo Estado.
Pelas suas características, podemos concluir que o poder constituinte existe e sempre existiu em
toda sociedade. Em toda e qualquer sociedade com um mínimo de organização política sempre
existiu um conjunto de regras disciplinando os aspectos básicos da convivência social e do exercício do
poder. Ora, tais regras basilares são, sempre, fruto do poder constituinte, com o que podemos afirmar
que a sociedade é juridicamente organizada justamente em decorrência do exercício do poder
constituinte, instaurando suas regras fundamentais.
O mesmo não se pode dizer, todavia, quando à teoria do poder constituinte, que é muito mais recente,
tendo surgido no período da Revolução Francesa, fruto do pensamento do abade Emmanuel Sieyès,
apresentado em seu livro “O que é Terceiro Estado?”. Na verdade, as ex-colônias inglesas na América
do Norte, recém emancipadas, já tinham efetivamente exercido este poder durante a elaboração de
seus textos constitucionais, nos moldes propostos pelo abade. Tanto que os norteamericanos, tendo
como expoente maior La Fayette, sempre defenderam que a teoria do poder constituinte era de sua
autoria, posição que, evidentemente, era refutada com veemência por Emmanuel Sieyès e pelos
demais ideólogos da Revolução Francesa. Os franceses ganharam a disputa, e são considerados os
criadores da teoria do poder constituinte.
Mas, afinal de contas, qual a relevância da criação da teoria, se o poder constituinte, como apontamos,
já era, de fato, exercido há milênios, em qualquer sociedade com organização política? Quais os
motivos para a construção da teoria?
Era a necessidade, frente às profundas alterações ocorridas na sociedade, de se justificar o exercício
do poder pelos governantes. Em outras palavras, era a necessidade de conferir legitimidade ao
exercício do poder.
As monarquias até então reinantes, principalmente na Europa, fundavam-se no Direito divino e no
Direito hereditário: Deus era o titular do poder, e o rei ou monarca seu representante na terra, cabendolhe exercê-lo por força da vontade divina e transmiti-lo a seus sucessores de sangue.
Tais bases ideológicas perderam seu valor como justificativa para o exercício do poder com a
ascensão social da burguesia. Fazia-se necessário, pois, reconstruir ideologicamente seus
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
fundamentos, a fim de conferir-lhe legitimidade. Foi a isto que se prestou a teoria do poder constituinte:
assentou as novas bases de legitimidade, definindo um novo titular do poder e um novo fundamento
para seu exercício: não mais Deus (representado pelo monarca), mas a nação como titular; não mais a
vontade divina, mas a razão humana como fundamento. Em última perspectiva, a origem da
Constituição assentou-se no conceito de soberania nacional.
A principal dificuldade de Sieyès, ao reconhecer a nação como titular do poder constituinte, foi justificar
seu exercício por uma parcela restrita de seus integrantes. O ideólogo francês afastou-se da visão de
Rousseau, que propugnava ser dos membros da sociedade, diretamente, o direito a exercer a
soberania e construir a Constituição, pois tal concepção na prática era inexeqüível, pela absoluta
impossibilidade de toda a sociedade intervir diretamente na elaboração da Constituição.
Em seu lugar, elegeu o regime representativo como o caminho para o exercício do poder constituinte.
Por esse regime, não é a própria nação, a titular do poder, que o exerce diretamente, mas
representantes por ela escolhidos para realizar a tarefa, elaborar a Constituição. A nação permanece
como titular incontestável do poder, mas delega soberanamente seu exercício a representantes por
ela escolhidos, aos quais incumbirá elaborar a Constituição, reunidos em Convenção ou Assembléia
Nacional Constituição. Promulgada a Constituição, encerra-se a tarefa destes representantes, que não
teriam competência para votar quaisquer outras leis ou mesmo alterar a Constituição, na forma como a
teoria foi formulada por Sieyès.
Atualmente, considera-se que a titularidade do poder constituinte não pertence mais à nação, mas ao
povo: nação é o conjunto de pessoas com identidade de língua e tradições, onde quer se encontrem;
povo é a parcela da nação que se localiza em certo território. Como o elemento territorial é
indispensável ao conceito de Estado, substituiu-se a idéia de soberania nacional pela de soberania
popular, com a titularidade do poder constituinte sendo conferida ao povo.
Ademais, além do sistema representativo (democracia indireta), proposto pelo abade, admite-se hoje o
exercício do poder constituinte nos moldes da democracia direta (quando o povo é chamado a aprovar
o texto constitucional, mediante referendo ou plebiscito), ou mesmo da democracia mista (quando,
após a eleição dos membros da Assembléia Constituinte, o povo é convocado a se manifestar sobre o
documento constitucional). Contudo, nem sempre a vida segue a teoria. Como relembra Vicente Paulo,
(...) embora a titularidade do poder constituinte pertença ao povo, nem sempre o seu exercício se dá de
maneira legítima, democrática.
Há casos em que essa titularidade é desrespeitada, usurpada, e um ditador impõe, unilateralmente, um
texto constitucional, por meio da denominada outorga (Constituição outorgada). Nesse caso, se houver
ruptura de ordenamento ou criação de um novo ordenamento jurídico, terá havido manifestação do
poder constituinte, embora não democraticamente (poder constituinte ilegítimo ou usurpado).
Encerrando esses apontamentos iniciais, devemos destacar que, segundo a doutrina, foi a
compreensão da diferença entre o poder constituinte e os poderes constituídos que possibilitou o
surgimento das Constituições escritas. Poder constituinte, objeto de nosso estudo, é aquele cujo
exercício resulta na Constituição; poderes constituídos, por sua vez, são aqueles que resultam da
Constituição. Temos, então, o poder pelo qual a Constituição é criada, o poder constituinte, e os
poderes pela Constituição criados, os poderes constituídos (por exemplo, os poderes para alterar a
Constituição e elaborar a legislação infraconstitucional), e foi a percepção desta diferença essencial
que permitiu separar-se algumas matérias, consideradas de fundamental importância para o Estado, e
instituí-las em um documento político-jurídico à parte, distinto de todos os demais diplomas jurídicos do
Estado e a eles hierarquicamente superior.
2) PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO
Quando falamos em poder constituinte, sem qualquer designativo, estamos nos referindo justamente
ao poder constituinte originário (inicial, inaugural ou de primeiro grau). O poder constituinte
originário, desse modo, é aquele que dá vida à Constituição de um Estado, definindo de forma
soberana toda a estrutura do ente político e as garantias dos seus cidadãos, bem como as demais
matérias consideradas fundamentais pela sociedade em dado momento histórico.
Como afirma Alexandre de Moraes: O Poder Constituinte originário estabelece a Constituição de um
novo Estado, organizando-o e criando os poderes destinados a reger os interesses de uma
comunidade. Tanto haverá Poder Constituinte no surgimento de uma primeira Constituição, quanto na
elaboração de qualquer Constituição posterior.
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Apostila 03
Como sua manifestação dá-se em meio a uma situação de instabilidade social, em que se faz
necessário o estabelecimento de novos parâmetros e princípios jurídicos, políticos e econômicos, a
origem do poder constituinte originário varia conforme a forma através da qual ele é instituído.
Pode ele provir da atuação dos próprios governantes que, em meio à crise, percebem a necessidade
de uma renovação radical na estrutura política do Estado e, a partir disso, elaboram uma nova
Constituição por meio de uma Assembléia Nacional Constituinte, com representatividade popular. É
possível, também, que o seu exercício se dê por um movimento revolucionário que expurgue os
antigos governantes do poder e estabeleça a nova Constituição ao arrepio da ordem jurídica anterior.
E, por fim, pode ele provir de um ato de imposição do atual detentor do poder político, que à revelia do
povo, estabelece uma nova Constituição.
A primeira situação caracterizara exercício legítimo do poder constituinte originário; não a segunda e a
terceira, que representam um ato de força, seja do movimento revolucionário, seja do governante do
momento, não se enquadrando nas premissas democráticas propugnadas pela teoria do poder
constituinte. De qualquer modo, em termos práticos elas se equivalem, pois todas apresentam o
mesmo resultado: a edificação de uma nova ordem jurídico-política, mediante a instituição de uma nova
Constituição.
Vicente Paulo analisa as diferentes formas de manifestação do poder constituinte originário. Segundo o
Autor, podemos ter:
a) poder constituinte usurpado, quando a competência do povo é usurpada por algum ditador, que
elabora uma Constituição e a impõe ao povo (Constituição outorgada);
b) poder constituinte legítimo, quando da elaboração da Constituição, há participação do povo,
mediante democracia direta (o povo, diretamente, aprova a Constituição, por meio de plebiscito ou
referendo) ou democracia representativa (o povo escolhe seus representantes, que formam a
Assembléia Constituinte e elaboram a Constituição do tipo democrática) ou mista (quando combinadas
as democracia direta e representativa).
Alexandre de Moraes, por sua vez, percebe duas formas básicas de expressão do poder constituinte
originário, a Assembléia Nacional Constituinte ou Convenção e o Movimento Revolucionário (na
denominação do Autor), afirmando que, tradicionalmente, o movimento revolucionário ocorre na
primeira Constituição de um novo País, que conquiste sua liberdade política, sendo as demais
Constituições deste país elaboradas por assembléias nacionais constituintes. Elucidando os conceitos,
declara: A outorga é o estabelecimento da Constituição por declaração unilateral do agente
revolucionário, que autolimita seu poder.
(...)
A assembléia nacional constituinte, também denominada convenção, nasce da deliberação da
representação popular, devidamente convocada pelo agente revolucionário, para estabelecer o texto
organizatório e limitativo do Poder. Na matéria, vale mencionar a lição de Pedro Lenza, segundo a qual
o poder constituinte originário que estrutura pela primeira vez um Estado é dito histórico, e aquele que
reestrutura juridicamente um Estado já existente é denominado revolucionário.
Das possíveis formas de instituição da Constituição, acima descritas, resulta a natureza política (não
jurídica) do poder constituinte originário. É tal poder que estabelece o regramento jurídico supremo do
Estado, sendo anterior e superior ao mesmo. Logo, sua natureza não pode ser jurídica.
Apesar da conclusão apresentada, a matéria não é pacífica. Para a escola normativista, dominante
entre nós, o poder constituinte originário tem, efetivamente, natureza política, extrajurídica. Tendo por
objeto o primeiro documento jurídico do Estado, e sendo ilimitado (como veremos) não poderia este
poder fundar-se em critérios jurídicos: ele é o próprio critério jurídico inicial do Estado, com base no
qual outras normas serão elaboradas. Assim sendo, sua fundamentação deve necessariamente advir
de fatores extrajurídicos, políticos. Já os jusnaturalistas, calcados na sua visão de que o Direito não
se limita ao Direito positivo, havendo regras de Direito inerentes à própria natureza humana, defendem
o caráter jurídico do poder constituinte originário. Frente às duas correntes, predomina a normativista,
que concebe o poder constituinte originário como sendo de natureza política, extrajurídica.
Com base na sua natureza política, podemos concluir que esse poder é:
1o) incondicionado, ilimitado pois não se subordina a qualquer regra ou princípio de índole material
ou processual, podendo estabelecer de forma absolutamente livre o regramento primário de um
Estado.
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2º) absoluto, pois, pelo fato de instituir livremente a Constituição, pode atingir qualquer situação
jurídica formada sob a égide da Constituição anterior, até mesmo aquelas que, sob esta
Constituição, estavam protegidas pelo direito adquirido, pelo ato jurídico perfeito ou pela coisa julgada;
3o) autônomo, porque apenas ao titular do poder (o povo), por meio de seus representantes, cabe
determinar as concepções jurídico-políticas que definirão a estrutura do Estado e a atuação de seus
Poderes;
4o) inicial, pois tem por função inaugurar uma nova estrutura constitucional de um Estado, não tendo
nenhum poder, seja de fato ou de direito, antes e acima dele;
5º) permanente, encontrando-se sempre em estado de latência, já que basta que seu titular – o povo –
decida pela edificação de uma nova ordem constitucional para que tal poder volte a ser exercido;
6º) inalienável: seus titulares (o povo) não podem abrir mão do poder, mas apenas outorgar seu
exercício a representantes escolhidos por eles próprios;
O caráter incondicionado impede que as normas postas pelo poder constituinte originário sejam objeto
de discussão quanto à sua validade em sede de controle de constitucionalidade. Na verdade, a
validade ou invalidade de uma norma é juízo que depende de um parâmetro de análise.
Como, no caso, não há qualquer parâmetro, uma vez que as normas postas pelo poder constituinte
originário são justamente o parâmetro de validade das demais normas do ordenamento jurídico, jamais
o contrário, a discussão sobre a validade das normas instituídas por tal poder inicial simplesmente não
é possível de existir.
Ainda sobre o caráter incondicionado do poder constituinte originário, ele não é aceito com a mesma
amplitude por toda a doutrina. A incondicionalidade, em termos absolutos, é o posicionamento adotado
pela escola normativista, largamente predominante no Brasil, apesar de alguns integrantes da escola
admitirem algumas limitações, mencionando, exemplificativamente, os ideais de justiça, o direito
natural, o direito internacional. Já a escola jusnaturalista defende posicionamento diverso, no sentido
de que há alguns direitos inalienáveis do ser humano, os direitos naturais, como vida e dignidade
humana, representam um limite intransponível para o poder constituinte originário, o qual, portanto, terá
que respeitá-los quando do seu exercício. Como dito, entre nós prevalece a escola normativista, cujos
adeptos, em sua maioria, entendem total o caráter incondicionado do poder constituinte inicial.
Há, também, aqueles que entendem que o caráter ilimitado do poder constituinte inaugural só se aplica
ao próprio Estado, não alcançando a comunidade internacional, ao passo que outros não colocam
limites à sua incondicionalidade. Para os primeiros, o exercício do poder constituinte originário é
limitado por alguns princípios básicos de Direito Internacional, não podendo desconsiderar tais valores.
Já a segunda corrente não aceita qualquer limite, considerando que seu exercício pode resultar em
normas com qualquer conteúdo.
Para nós, este segundo entendimento é o que deve ser acolhido. Enfim, o poder constituinte originário,
justamente porque originário, pode resultar em normas de qualquer conteúdo, sem quaisquer
condicionamentos e limitações.
3) PODER CONSTITUINTE DERIVADO
O produto do poder constituinte originário é a Constituição, e esta, por sua vez, dá origem aos poder
constituinte derivado (também denominado poder constituído, instituído, secundário ou de
segundo grau). Podemos perceber o poder constituinte derivado, portanto, como fruto da Constituição,
ou como fruto do poder que a instituiu, o poder constituinte originário.
O poder constituinte derivado assume duas formas básicas de expressão:
1º) poder constituinte derivado decorrente é o poder conferido aos demais entes federativos, que não
a União, para estabelecerem e modificarem seus próprios diplomas constitucionais, sempre sujeitos
às disposições da “verdadeira” Constituição, a Constituição Federal. É, então, o poder conferido aos
Estados, para elaborem e alterarem suas Constituições, e ao Distrito Federal e aos Municípios para
elaborarem e alterarem suas Leis Orgânicas;
2º) poder constituinte derivado reformador (ou competência reformadora): é o poder conferido ao
legislador federal para proceder à alteração das normas fixadas pelo poder constituinte originário. Em
termos mais simples, é o poder conferido pela Constituição Federal para que sejam promovidas
alterações em seus dispositivos. No sistema pátrio, como modalidades de exercício do poder
constituinte derivado reformador, foram previstos na Constituição de 1988 os processos de reforma
constitucional (CF, art. 60) e de revisão constitucional (ADCT, 3o), este a ser realizado uma única vez,
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após cinco anos da promulgação da Carta Magna. Porque se origina do poder constituinte originário, o
derivado está por ele condicionado, devendo observar as condições de forma e de fundo por ele
estabelecidas para seu exercício. Disso ressalta a natureza jurídica do poder constituinte derivado (e
não política, como o poder originário), sujeito que está aos parâmetros jurídicos estabelecidos pela
Constituição Federal.
A doutrina aponta como características deste poder o fato dele ser:
1º) derivado, porque se origina de outro poder, o poder constituinte originário;
2º) condicionado: porque seu exercício pressupõe a estrita observância das normas materiais e
formais estabelecidas pelo poder constituinte originário; e
3º) subordinado, porque possui hierarquia inferior à Constituição, sujeitando-se aos seus limites.
Vamos analisar as duas formas de expressão do poder constituinte derivado, seguindo a ordem de
apresentação.
3.1) Poder constituinte derivado decorrente - O poder constituinte derivado decorrente é
aquele conferido pela Constituição Federal aos Estados (CF, art. 25, caput), aos Municípios (CF, art.
29, caput) e ao Distrito Federal (CF, art. 32, caput) para elaborarem e alterarem suas constituições
e leis orgânicas. É exercido pelos deputados estaduais, deputados distritais e vereadores, segundo as
regras e limites postos na Constituição Federal. Tal poder deriva da capacidade de auto-organização
outorgada pela Constituição aos entes federados locais e regionais. Para os Estados a outorga consta
do art. 25 da Constituição, consoante o qual “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições
e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. O dispositivo em apreço é
complementado pelo art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que confere
especificamente o poder de elaboração das Constituições estaduais à respectiva Assembléia
Legislativa do Estado, devendo ser exercido no prazo de um ano, a contar da data da promulgação da
Constituição Federal.
Para os Municípios a capacidade de auto-organização é prevista no art. 29 da Constituição Federal, e
do seu exercício resulta a elaboração da Lei Orgânica de cada Município integrante de nossa Federal.
O art. 29 é complementado pelo art. 11, parágrafo único do ADCT, que assevera: “Promulgada a
Constituição do Estado, caberá a Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica
respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na
Constituição Estadual”.
Como se nota, as Leis Orgânicas Municipais estão sujeitas a dois limites na sua elaboração, a
Constituição Federal e a Constituição do Estado que integram. O texto constitucional municipal é, pois,
subordinado hierarquicamente, num primeiro plano, à Constitucional Federal, e, num segundo, à
Constituição do Estado, sendo a observância dos preceitos nelas contidos condição insuperável para
sua válida produção. Essa dupla subordinação faz com que parcela de nossa doutrina não reconheça
aos entes municipais a titularidade de poder constituinte derivado decorrente, restringindo-o, pois, aos
Estados e ao Distrito Federal.
Essa é a posição, entre outros, do Professor Pedro Lenza, a partir do entendimento adotado pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo.
Predominantemente, contudo, considera-se que os Municípios são titulares de poder constituinte
derivado decorrente, apesar da dupla subordinação acima apontada.
O Distrito Federal goza, também, desta capacidade, a teor do art. 32, caput, da Constituição Federal.
Tal poder é exercido pela Câmara Legislativa do DF, e resulta na elaboração da Lei Orgânica do DF, a
qual deve obediência, a exemplo das Constituições estaduais, aos princípios estabelecidos na
Constituição Federal. Apesar de alguns negarem ao Distrito Federal tal capacidade, prepondera o
entendimento contrário, reconhecendo-se ao ente federado a titularidade de poder constituinte derivado
decorrente, no mesmo nível daquele outorgado aos Estados, uma vez que subordinado apenas aos
ditames da Constituição Federal.
Temos, assim, que todos os entes federados locais e regionais gozam de poder constituinte
derivado decorrente, pelo qual editam e alteram seus respectivos diplomas constitucionais, com a
diferença de que os Estados e o DF devem obediência somente aos preceitos postos na Constituição
Federal, ao passo que os Municípios devem observância, também, às preceitos prescritos nas
respectivas Constituições estaduais.
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Pois bem, definida a titularidade do poder constituinte derivado decorrente, resta agora apresentarmos
os limites a que ele está sujeito, ou, em outros termos, os princípios a que ele está adstrito. Segundo
nossa doutrina e jurisprudência, tais limitações são de três ordens:
1º) princípios constitucionais estabelecidos (ou organizatórios): são restrições que decorrem da
literalidade do texto constitucional, ou seja, são limites que a Constituição expressamente impõe aos
Estados, ao Distrito Federal ou aos Municípios. Sempre que a Constituição impuser algo a tais entes
federados, seja no sentido de proibir determinada conduta, seja no sentido de obrigar à sua adoção,
seja no sentido de limitar seu exercício, estamos perante um princípio constitucional estabelecido.
Significa isso que os deputados estaduais, deputados distritais e vereadores, ao elaboram suas
respectivas Constituições e Leis Orgânicas, deverão fazê-lo com total obediência a tais limites
expressos, sob pena de serem os dispositivos destoantes declarados inválidos por desconformidade
com a Constituição Federal. Exemplos de princípios constitucionais estabelecidos são o art. 25, § 2º,
da CF, que obriga os Estados a explorarem diretamente ou mediante concessão os serviços locais de
gás canalizado (limite expresso mandatório, impõe certa conduta); o art. 28, que fixa as regras para a
eleição dos Governadores e Vice-Governadores dos Estados e do Distrito Federal (outro limite
expresso mandatório); o art. 31, § 4º, que proíbe os Municípios de criarem Tribunais, Conselhos ou
órgãos de contas municipais (limite expresso vedatório, impede certa conduta), entre outros.
2º) princípios constitucionais extensíveis: são preceitos da Constituição que, segundo sua literalidade,
aplicam-se somente à União, mas que, a partir de uma interpretação sistemática e finalística da
Constituição Federal, feita principalmente pelo STF, tiveram seu alcance ampliado para abranger
também os demais entes federados. A Constituição, portanto, não traz expressamente tais princípios
como impositivos para os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; expressamente, eles aplicam-se
somente à União. Ocorre que a interpretação unitária e teleológica do texto constitucional, valorizando
essencialmente o conjunto da Constituição e a finalidade da previsão de tais princípios e institutos,
considerou-os vinculantes também para os demais entes federados. Desse modo, expressamente
eles vinculam a União, implicitamente, como resultado da interpretação constitucional, todos os entes
federados. Em termos de eficácia jurídica, a diferença é nenhuma. Entre os princípios constitucionais
extensíveis podemos citar os princípios do Tribunal de Contas da União, do processo legislativo federal
e do sistema de governo.
3º) princípios constitucionais sensíveis: alguns doutrinadores apontam à parte os princípios impostos
aos Estados e ao Distrito Federal pelo art. 34, VII, da CF, e aos Municípios pelo seu art. 35 da Carta
Magna. A peculiaridade de tais princípios é que a sua inobservância nas respectivas Constituições e
Leis Orgânicas autoriza, nas hipóteses do art. 34, VII, a intervenção da União nos Estados e no DF e,
nas hipóteses do art. 35, a intervenção dos Estados nos Municípios localizados em seus territórios, e
da União nos Municípios localizados em territórios federais. Na verdade, os princípios constitucionais
sensíveis, no âmbito de poder constituinte derivado decorrente, podem ser arrolados entre os princípios
constitucionais estabelecidos, já que constituem limites expressamente prescritos pela CF aos Estados,
DF e Municípios, com a singularidade de que sua violação autoriza a intervenção no ente federado.
Quando tratarmos da organização do Estado analisaremos com a devida atenção esta matéria,
ficando, desde já, esclarecido que tais princípios também são de observância obrigatória na elaboração
e reforma dos diplomas constitucionais regionais e locais.
3.2) Poder constituinte derivado reformador
Relembrando, o poder constituinte derivado reformador é o poder conferido aos deputados federais e
senadores para alterarem a Constituição Federal, subdividindo-se em duas modalidades:
- poder de reforma constitucional (ou competência reformadora), previsto no art. 60 da CF; e
- poder de revisão constitucional (ou competência revisional), previsto no art. 3º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Não é esse o momento de adentrarmos a fundo nas regras
relativas ao exercício dos dois poderes, ou, de outro modo, dos dois processos de modificação da
Constituição Federal, matéria a ser devidamente analisada após o estudo do processo legislativo
ordinário, quando, a partir do conhecimento das regras atinentes ao processo de elaboração da
legislação infraconstitucional, poderemos apresentar de forma mais adequada as peculiaridades
desses dois processos legislativos de alteração do texto constitucional.
Neste ponto, portanto nos limitaremos a destacar sumariamente, em termos teóricos, os tipos de
limitações que podem ser impostos ao exercício do poder constituinte derivado reformador. A seguir,
destacaremos aquelas que foram prescritas pela CF para sua primeira modalidade, o poder de reforma
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constitucional (não estranhem: o nome é semelhante). Ao final, veremos quais dessas limitações são
aplicáveis ao processo de revisão.
O poder constituinte derivado reformador, tanto o de reforma propriamente dito quanto o de revisão,
são exercidos mediante a elaboração de emendas à Constituição.
O processo de reforma constitucional, que segue as regras do art. 60 da CF, é um processo de
regramento sobremaneira mais dificultoso que o processo legislativo ordinário. É um processo de
caráter permanente, no sentido de que, desde a promulgação da Constituição Federal, em 05 de
outubro de 1988, e enquanto esta permanecer em vigor, pode ser ele exercido pelos legitimados a
tanto pelo art. 60. É, portanto, o processo normal, regular de alteração da Constituição.
Já o processo de revisão constitucional foi previsto no art. 3º do ADCT para permitir uma alteração
mais fácil da Constituição Federal, em função da maior simplicidade das regras a ele aplicáveis,
comparativamente às do processo de reforma. Ao contrário deste, é um processo de aplicação única,
pois, pelo dispositivo em apreço, só foi autorizada a instauração de um processo desta espécie, a
contar de cinco anos da promulgação da Constituição, o qual já foi levado a cabo no primeiro semestre
de 1994, daí resultando seis emendas, denominadas Emendas Constitucionais de Revisão. Com isso,
exauriu-se a eficácia do art. 3º do ADCT, não havendo mais, desde 1994, a possibilidade de
instauração de um segundo processo de revisão. Por conseguinte, atualmente existe apenas um modo
de modificação da CF, o processo de reforma constitucional.
Isto posto, passemos a apresentar as possíveis limitações a serem impostas ao poder de reforma
constitucional, genericamente considerado:
1º) temporais: é a estipulação, pela Constituição, de um prazo mínimo para a alteração de seus
dispositivos, antes do qual a Constituição é imutável;
2º) circunstanciais: quando a Constituição proíbe sua modificação em determinadas circunstâncias
de anormalidade institucional, a exemplo do estado de defesa ou de sítio;
3º) processuais: são as limitações relativas ao processo especial para a alteração da Constituição,
mais solene e dificultoso que o previsto para a modificação da legislação ordinária. André Ramos
Tavares reúne as três espécies de limitações até aqui apresentadas sob a denominação limitações
formais, pois não dizem respeito ao conteúdo possível da alteração constitucional.
4º) materiais expressas: limitação referente a determinadas matérias, por corresponderem a certos
direitos e princípios considerados de fundamental relevância na conformação política do Estado (as
cláusulas pétreas), as quais não podem ser objeto de propostas de emenda que pretendam sua
abolição ou substancial modificação;
5º) materiais implícitas: construção doutrinária e jurisprudencial que obsta a modificação (1) dos
legitimados ao exercício do poder constituinte, (e não seu titular, que é o povo, sendo inalienável essa
titularidade), (2) dos titulares da iniciativa de apresentação de propostas de emenda, (3) das regras
referentes ao processo legislativo previsto para a elaboração das propostas de emenda; e (4) das
matérias que correspondem às cláusulas pétreas.
Dessas limitações, aplicam-se ao poder de reforma constitucional, tal como prescrito em nossa
Constituição, as seguintes:
1º) limitações circunstanciais: na Constituição Federal foi prevista esta espécie de limitação no art. 60,
§ 1º, que proíbe a votação e promulgação de emendas na vigência de estado de defesa, de estado
de sítio e de intervenção federal. De se ressaltar que a restrição não atinge os atos de apresentação e
de discussão da proposta de emenda, que não configuram atos decisórios, atingindo apenas os atos
de votação e promulgação;
2º) limitações processuais: a CF, no art. 60, §§ 2o, 3o e 5º prevê esse processo especial, que
apresenta como peculiaridades, frente ao processo legislativo comum:
- limitação do poder de iniciativa de proposta de emenda, restrito ao (a) Presidente da República, (b) à
câmara dos Deputados ou ao Senado Federal, por, no mínimo, um terço de seus membros, e (c) a
mais da metade das Assembléias Legislativas, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa
de seus deputados;
- quorum qualificado de três quintos para a aprovação da proposta de emenda;
- necessidade de serem realizadas quatro votações para a aprovação da proposta, duas na Câmara e
duas no Senado;
- impossibilidade de apreciação de nova proposta de emenda, na mesma sessão legislativa, que trate
da mesma matéria de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada naquela sessão.
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3º) limitações materiais expressas: a CF prevê tal limitação no art. 60, § 4º, proibindo a deliberação de
propostas de emendas tendentes a abolir ou alterar substancialmente (a) a forma federativa de Estado;
(b) o voto direto, secreto, universal e periódico; (c) a separação dos Poderes e (d) os direitos e
garantias individuais;
4º) materiais implícitas: essas limitações aplicam-se integralmente ao processo de reforma da
Constituição Federal, segundo entendimento jurisprudencial e doutrinário largamente predominante.
Como podemos perceber, das cinco espécies de limitações passíveis de aplicação ao poder
constituinte derivado reformador, quatro aplicam-se ao processo de reforma, sobre ele não incidindo
apenas a limitação temporal, pois a CF, desde sua promulgação, podia ser alterada pelo processo
legislativo previsto no art. 60.
Por sua vez, O processo de revisão constitucional, regulado pelo art. 3º do ADCT, está sujeito às
seguintes limitações:
1º) temporais: o art. 3º do ADCT estabeleceu tal espécie de limite ao processo de revisão,
determinando que ele poderia ser instaurado somente após cinco anos da promulgação da
Constituição;
2º) circunstanciais: apesar de o dispositivo em questão não estabelecer expressamente tal limitação,
nossa doutrina sempre entendeu que ela lhe é aplicável, em termos idênticos ao que ocorre no
processo de emenda. Assim, não era possível a votação e promulgação de emendas de revisão na
vigência de estado de defesa, de estado de sítio e de intervenção federal;
3º) processuais: o processo de revisão tem regramento especial, diferente do processo legislativo
ordinário. Todavia, é ele menos solene e dificultoso que o estatuído para o processo de reforma,
exigindo-se para a aprovação de uma proposta de emenda de revisão somente o voto em sentido
positivo da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, reunidos em sessão unicameral
(na qual senadores e deputados federais reúnem-se e votam numa mesma ocasião, constituindo um
corpo legislativo único, somando-se o voto de todos os presentes). Relembrando, no processo de
reforma a aprovação da proposta de emenda exige quatro votações em separado, duas na Câmara e
duas no Senado, sendo necessário, em cada uma delas, o voto favorável de três quintos de seus
membros;
4o) materiais expressas: apesar de alguma discussão inicial, pacificou-se afinal que as limitações
desta espécie, aplicáveis ao processo de reforma, incidem em idênticos termos sobre o processo de
revisão, no qual, portanto, foi proibida a deliberação de propostas de emendas tendentes a abolir (a) a
forma federativa de Estado, (b) o voto direto, secreto, universal e periódico, (c) a separação dos
Poderes e (d) os direitos e garantias individuais;
5o) materiais implícitas: na verdade, nem se colocou em questão se essa espécie de limitação seria
aplicável ao processo de revisão. Em termos teóricos, podemos concluir que ela provavelmente seria
considerada também aqui incidente. Em termos práticos, como atualmente não há mais a possibilidade
de instauração de um processo de revisão, a questão perdeu qualquer relevância.
SUPREMACIA, VIGÊNCIA E APLICABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO
1) SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
Em termos doutrinários, pode-se admitir duas espécies de supremacia constitucional, a material e a
formal.
A supremacia material decorre do conteúdo das normas constitucionais, e vincula-se diretamente ao
conceito material de Constituição, que só reconhece como constitucionais as normas referentes aos
aspectos fundamentais da organização do Estado, sendo os principais aqueles referentes à forma de
Estado, à forma de governo, ao regime de governo, à separação dos Poderes, à aquisição, exercício e
perda do poder e aos direitos e garantias fundamentais.
Nessa concepção as normas que tratem de tais temas, qualquer que seja sua origem (legal,
jurisprudencial, costumeira), compõem a Constituição, e prevalecem hierarquicamente sobre as demais
normas do ordenamento jurídico. A se adotar essa concepção, todas as Constituições possuem
supremacia, mesmo as flexíveis e as não-escritas.
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A supremacia formal, por sua vez, ignora totalmente o conteúdo específico da norma, decorrendo do
caráter escrito e rígido da Constituição. Dito de outro modo, a supremacia formal é atributo
exclusivo das Constituições escritas e rígidas, em função das características destas espécies de
Constituição, quais sejam, respectivamente, o fato de estarem reunidas em um único documento
(Constituições escritas) e serem passíveis de alteração somente por um procedimento especial, mais
dificultoso e solene que o instituído para a modificação da legislação ordinária (Constituições rígidas).
Na realidade, a doutrina comumente afirma que a supremacia formal de uma Constituição decorre de
sua rigidez, e esta, por sua vez, de seu caráter escrito. É uma forma de exposição lógica: a
superioridade decorre propriamente do fato de as normas da Constituição só poderem ser alteradas
pelo procedimento especial acima referido, mas este procedimento só pode existir se todas as normas
da Constituição estiverem agregadas em um único documento.
Acima mencionamos que essas duas modalidades de supremacia são admitidas em nível doutrinário.
Efetivamente, isto é correto. Contudo, em termos jurídicos, só é verdadeira supremacia a supremacia
formal, aquela que decorre da rigidez constitucional. É a partir da existência de dois processos
distintos de modificação normativa, um mais simples para as normas ordinárias, outro mais complexo
para as normas constitucionais, que juridicamente pode-se afirmar a superioridade hierárquica destas
normas sobre aquelas. Assim, a superioridade propriamente jurídica é a formal, e, daqui por diante,
quando mencionarmos apenas supremacia, é a ela que estaremos nos reportando.
Bem, deste caráter superior da Constituição é que decorre sua condição de ponto inicial do
ordenamento jurídico do Estado e parâmetro de validade de todas suas leis, pontos que serão
novamente enfatizados, respectivamente, quando do estudo da teoria da recepção e do controle de
constitucionalidade.
2) VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO
A Constituição só produz efeitos jurídicos após sua entrada em vigor, o que pode ocorrer na própria
data da publicação do seu ato de promulgação, como regra geral, ou após determinado período,
determinado na própria Constituição, caso em que temos a denominada vacacio constitucionis, isto é,
um período de tempo em que a Constituição, apesar de já publicada sua promulgação, ainda não
produz efeitos jurídicos.
Nossa atual Constituição Federal não adotou a vacacio constitutionis, nem trouxe qualquer previsão
genérica, aplicável à totalidade de suas normas, acerca do início da sua vigência. Todavia, diversos
dispositivos de seu texto, contidos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabeleceram
prazos especiais para o início da sua entrada em vigor. Desse modo, temos que esses dispositivos,
que trouxeram regramento específico acerca de sua vigência, adquiriram-na após transcorrido o prazo
neles definido, e os demais dispositivos constitucionais, à falta de previsão genérica na Constituição
sobre a matéria, entraram em vigor na data mesma da publicação do ato de promulgação de nossa
Constituição.
3) APLICABILIDADE IMEDIATA DA NOVA CONSTITUIÇÃO
Como já estudamos, a Constituição é produto do poder constituinte originário, um poder de cunho
político não sujeito a quaisquer limitações. Essa inexistência de limites ao poder constituinte originário
permite que sua obra, a Constituição, desconsidere totalmente os atos jurídicos praticados antes de
seu advento, podendo incidir até mesmo sobre o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa
julgada. Desse modo, nada impede, ao contrário, tudo autoriza, que a Constituição retroaja,
alcançando situações passadas, consolidadas sobre a égide da antiga Constituição.
Antes de tratarmos propriamente da aplicabilidade de Constituição às situações passadas, vamos tratar
dos diversos graus possíveis de retroatividade das normas jurídicas, apresentando os conceitos
de irretroatividade, retroatividade mínima, retroatividade média e retroatividade máxima.
Utilizaremos um exemplo para apresentar esses conceitos: João e Pedro celebram um contrato de
aluguel em 1980, com vigência por 10 anos. João, o locatário, pagará a Pedro um aluguel mensal de
R$ 500,00, e, em caso de atraso, multa de 20% do valor do aluguel e juros de 5% mensais. Em 1982,
João atrasa por seis meses o aluguel, o que leva Pedro a cobrar judicialmente a dívida. Em 1987
transita em julgado a decisão judicial, determinando que João pague os seis aluguéis em atraso nos
exatos termos definidos no contrato (não houve mais atrasos no pagamento durante todo o período de
tramitação do processo). Prosseguindo a locação, João novamente deixa de efetuar o pagamento do
aluguel, desta vez de agosto de 1988 a novembro de 1988. Pedro, frente a este novo atraso, obtém
judicialmente o despejo de João e a rescisão do contrato de locação, em dezembro, mas, por incrível
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
que pareça, em janeiro de 1989 celebra um novo contrato, adivinhem com quem? Com o João. No
meio de tudo isso, em outubro de 1988 entra em vigor a Lei “X”, determinando que a multa por atraso
no pagamento do aluguel não pode superar 10%, e a taxa de juros máxima é 2% ao mês.
Exposta a situação hipotética, vamos apresentar os conceitos de retroatividade mínima, média e
máxima, bem como de irretroatividade. A irretroatividade ocorre quando a nova lei só alcança os atos
jurídicos praticados após o início da sua vigência.
A retroatividade mínima ocorre quando a nova lei alcança os efeitos futuros de atos jurídicos
praticados no passado.
A retroatividade média ocorre quando a nova lei alcança os efeitos pendentes de atos jurídicos
praticados no passado.
E a retroatividade máxima ocorre quando a nova lei alcança o próprio ato praticado no passado, e,
conseqüentemente, todos os efeitos dele decorrentes, ainda que o ato esteja “protegido” pelo direito
adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.
Apresentados os diversos graus de retroatividade, bem como a irretroatividade, vamos aplicar esses
conceitos ao nosso exemplo. Nele, o ato jurídico é o contrato de locação, e os efeitos jurídicos que nos
importas são as prestações devidas por João a Pedro pelo uso do imóvel.
Se a Lei “X” for irretroativa, não tem qualquer aplicação com relação ao primeiro contrato de locação
celebrado entre Pedro e João, incidindo apenas sobre o segundo contrato. Isso porque a lei
irretroativa aplica-se somente a atos praticados após o início de sua vigência. Interessa, aqui, apenas a
data do ato (no nosso exemplo, do contrato), não de seus efeitos (no nosso exemplo, as prestações,
adimplidas ou não). Como o primeiro contrato foi celebrado antes e o segundo depois à sua entrada
em vigor, a lei só aplica-se a este.
Se a nova lei tiver retroatividade mínima, aplica-se aos aluguéis vencidos e não pagos a partir de
outubro de 1988, relativos ao primeiro contrato de locação (quando ao segundo, aplica-se na íntegra,
pois ele é posterior ao início da vigência da lei). Relembrando, a retroatividade mínima atinge os
efeitos futuros de atos passados. No nosso caso, os efeitos futuros são as prestações por João a
partir de outubro de 1988, e o fato passado é o contrato celebrado em 1980. Assim, se João
eventualmente atrasar os pagamentos devidos em outubro e novembro de 1988, a taxa de juros e a
multa serão determinadas pela Lei “X” (10% e 2%, respectivamente), e não pela lei anterior (20% e 5%,
respectivamente).
Prosseguindo, se a nova lei tiver retroatividade média, incide sobre os pagamentos em atraso desde
agosto de 1988, pois a retroatividade média alcança os efeitos pendentes de atos jurídicos praticados
no passado (bem como os efeitos futuros, que lhe são posteriores). No nosso exemplo, os efeitos
pendentes são as prestações vencidas e não pagas de agosto e setembro de 1988. Não há dúvida,
contudo, que a lei vai incidir também sobre as prestações vencidas e não pagas de outubro e
novembro de 1988, pois, quando afirmamos que a retroatividade média aplica-se aos efeitos pendentes
de atos jurídicos passados, não queremos dizer que ela se limita a eles, mas sim que ela se aplica a
partir deles. Desse modo, a retroatividade média vai atingir os efeitos pendentes e os efeitos futuros
de atos jurídicos passados, bem como os atos jurídicos que lhe sejam posteriores. Em termos
conceituais, contudo, deve-se adotar a definição antes apresentada (efeitos pendentes de atos
jurídicos passados).
Finalmente, se a nova lei tiver retroatividade máxima, vai se aplicar a todas as prestações vencidas e
não pagas por João, mesmo aquelas relativas aos seis meses de 1982, cujo valor ficou determinado
por decisão judicial transitada em julgado (coisa julgada). Isso se deve ao fato de que a
retroatividade máxima abrange o próprio ato praticado no passado, e, por via de consequência,
todos os efeitos dele oriundos, ainda que o próprio ato ou algum de seus efeitos estejam “protegidos”
pelo direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. No nosso exemplo, é como se o
contrato fosse novamente redigido, à luz da nova lei, e esta nova redação se aplicasse desde 1980.
Com a retroatividade máxima, todas as prestações vencidas e não pagas desde a celebração do
contrato devem ser adaptadas aos novos dispositivos legais.
Exposta matéria em termos conceituais, resta-nos agora considerá-la da perspectiva que nos importa,
a constitucional. Em outras palavras, qual será a aplicabilidade da Constituição?
Duas respostas são possíveis.
A primeira, se houver norma expressa na Constituição tratando desta matéria, caso em que não há
margem para dúvidas: como a norma é obra do poder constituinte originário, pode dispor sobre o
assunto sem quaisquer limitações, adotando a irretroatividade ou uma das três graduações de
retroatividade.
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Apostila 03
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A segunda, se não houver norma expressa no texto constitucional regulando genericamente a matéria,
que é o caso da nossa Constituição vigente. Nessa situação, devemos acatar a posição pacífica do
Supremo Tribunal Federal na matéria: a Constituição, salvo disposição expressa em sentido contrário,
tem aplicabilidade imediata, alcançado inclusive os efeitos futuros de fatos passados. Possui,
portanto, retroatividade mínima, salvo disposição específica em sentido diverso.
Voltando novamente ao nosso exemplo, se substituirmos a Lei “X”, de outubro de 1988, pela
Constituição Federal, cuja vigência se iniciou no mesmo período, temos que ela incide sobre as
prestações futuras do primeiro contrato de aluguel, ou seja, as prestações devidas por João a partir de
outubro de 1988. Os aluguéis em atraso a partir desse período, serão, portanto, acrescido de multa de
10% e juros de 2% a.m, desconsiderando-se os percentuais acordados quando da sua celebração em
1980.
Bem, esta é a regra geral: a Constituição possui aplicabilidade imediata, retroatividade mínima,
aplicando-se a todos os atos jurídicos que lhe são posteriores se aos efeitos futuros de atos passados.
Contudo, esta regra geral pode ser excepcionada pela própria Constituição. E esta efetivamente, o faz,
em alguns de seus dispositivos.
A título ilustrativo, trazemos um dos seus dispositivos que possui regra especial de aplicabilidade,
quebrando a regra geral da retroatividade mínima. Trata-se do art. 231, abaixo parcialmente transcrito:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições,
e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas
da ocupação de boa fé.
O § 6º do art. 231 contempla um caso de retroatividade máxima, desfazendo todos os atos cujo
objeto seja a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, exceto na hipótese que
aponta. Reforçando a retroatividade máxima, a parte final do dispositivo é taxativa quanto à
inexistência de direito à indenização, salvo quanto às benfeitorias decorrentes de ocupação de boa-fé.
Pois bem, no que toca à Constituição Federal a matéria esta definida. Mas, e quanto às Constituições
dos Estados, às Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal e à legislação ordinária?
O STF, analisando a matéria, asseverou que a retroatividade mínima aplica-se exclusivamente à
Constituição Federal, não sendo válida para as Constituições Estaduais, sujeitas ao art. 5º, XXXVI da
CF, que traz a regra da irretroatividade. Tal conclusão que pode ser ampliada para abranger as Leis
Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal e a legislação ordinária.
Temos então, que a Constituição Federal, e apenas ela, possui retroatividade mínima. As
Constituições dos Estados e as Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal são
irretroativas. E, por fim, a legislação ordinária também é irretroativa, ressalvadas algumas
hipóteses em que a Constituição admite a retroatividade, que analisaremos no capítulo referente aos
direitos e garantias individuais e coletivos.
4) CONSTITUIÇÃO NOVA,
INFRACONSTITUCIONAL
CONSTITUIÇÃO
ANTERIOR
E
LEGISLAÇÃO
A Constituição, ao iniciar sua vigência, inaugura uma nova era jurídica. Por ocupar o ápice do
ordenamento jurídico do Estado, por servir de parâmetro de validade de todas as demais normas dele
integrantes, devemos analisar as conseqüências de seu surgimento com relação à Constituição
anterior, à legislação ordinária pretérita e à legislação ordinária futura.
DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
4.1) CONSTITUIÇÃO NOVA X CONSTITUIÇÃO ANTERIOR
Iniciada a vigência da nova Constituição, a anterior automática e imediatamente perde sua eficácia.
Apesar de ser comum a afirmação de que a nova Constituição revoga a anterior, tecnicamente esta
não é a melhor forma de tratar a matéria, porque a revogação é fenômeno que ocorre dentro de um
determinado ordenamento jurídico, por força da aplicação das regras nele vigentes, e a perda da
eficácia da Constituição anterior se dá não pela aplicação de tais regras, mas por força da própria
Constituição (a nova).
Bem, de qualquer modo, os efeitos da nova Constituição sobre a anterior são absolutos: todos os
dispositivos da Constituição antiga têm cessada sua eficácia.
A nova Constituição derruba em bloco a anterior. Não há que se indagar sobre uma eventual
compatibilidade material entre as disposições constitucionais antigas e as vigentes, se existem ou não
existem normas da Constituição anterior em plena conformidade com as normas da nova Constituição.
Nada disso é necessário, o que torna a matéria bem simples: vigente a nova Constituição,
desaparece integralmente a anterior.
Essa é a posição de nossa doutrina predominante, sendo adotada de forma pacífica pelo Supremo
Tribunal Federal. É, portanto, a posição que devemos acatar. Há doutrinadores, entretanto, que
defendem um entendimento diverso, admitindo a permanência de disposições da Constituição anterior
sob a égide da Constituição nova.
Esse entendimento fundamenta-se na teoria da desconstitucionalização, segundo a qual as normas
da Constituição anterior que dispusessem sobre matérias não tratadas pela nova Constituição, não
seriam por esta revogadas: perderiam seu status constitucional e adquiririam nova vigência, com as
vestes de legislação ordinária. A Constituição vigente recepcionaria tais normas, retirando-lhes sua
força constitucional e, assim, permitindo sua inserção no ordenamento jurídico na condição de normas
ordinárias (passíveis, portanto, de alteração pela legislação ordinária). A este fenômeno simultâneo de
recepção e de rebaixamento hierárquico das normas da Constituição anterior, compatíveis com a
Constituição atual, denominou-se desconstitucionalização.
Apesar de autores de renome, a exemplo de Maria Helena Diniz e José Afonso da Silva, inclinarem-se
favoravelmente a essa teoria, ela não tem acolhida em nosso sistema constitucional, pois, como já
afirmado, a posição da doutrina majoritária e do STF é pela substituição integral da Constituição
pretérita. Faz-se apenas uma ressalva a essa negativa, admitindo-se a desconstitucionalização se
houver norma na Constituição vigente que a autorize.
Esse entendimento parte da compreensão de que não há continuidade entre a ordem
constitucional anterior e a atual, mas uma ruptura, de forma que a Constituição atual derruba
integralmente as disposições da Constituição antecedente, e assim inaugura uma ordem jurídica nova,
que tem em seu ápice apenas os preceitos nela dispostos, sem qualquer resquício do documento
constitucional anterior. Pode ocorrer, contudo, que haja na Constituição em vigor expressa disposição
no sentido de recepção das normas da Constituição passada, ou de algumas delas, na condição de
normas ordinárias. É essa é a única hipótese em que nossa corrente majoritária admite a
desconstitucionalização.
4.2) CONSTITUIÇÃO NOVA X LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA ANTERIOR
A análise da compatibilidade ou incompatibilidade da legislação anterior com a nova Constituição é
assunto abordado dentro da teoria da recepção.
A entrada em vigor de uma Constituição inaugura uma ordem jurídica absolutamente nova. Desfazemse todos os vínculos com a ordem anterior, e o sistema jurídico como um todo passa a ser analisado
sob as luzes da nova Carta Constitucional.
Isto não significa que a legislação infraconstitucional anterior à Constituição automaticamente
desapareça com a sua entrada em vigor. Ela passará por uma análise, quanto à sua compatibilidade
com a nova ordem constitucional: as normas com ela incompatíveis consideram-se revogadas pela
nova Carta, cessando assim a sua eficácia; as normas compatíveis são recepcionadas pela nova
Constituição.
Embora seja comum a afirmação de que as normas anteriores à Constituição e a ela ajustadas teriam
mantida sua eficácia, ou seja, permaneceriam produzindo seus efeitos jurídicos, na verdade tal
entendimento não se afigura tecnicamente correto. A entrada em vigor da Constituição causa uma
ruptura na ordem jurídica e, momentaneamente, paralisa a eficácia de toda a legislação ordinária então
existente e elaborada com base na Constituição anterior.
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
Apostila 03
Ocorre que as normas compatíveis com a Constituição atual recebem dela, imediatamente, um novo
suporte jurídico, e passam a compor o ordenamento a partir dos novos preceitos constitucionais.
Portanto, a legislação infraconstitucional não permanece em vigor, ela perde momentaneamente seu
suporte de validade, a Constituição anterior, e simultaneamente adquire um novo, a Constituição atual,
se em conformidade com ela. Não há permanência de eficácia, mas aquisição de uma nova eficácia,
com base no novo ordenamento constitucional.
A este processo automático pelo qual a nova Constituição confere à legislação ordinária a ela anterior
um novo suporte jurídico dá-se o nome de recepção, que nada mais é, deste modo, que um processo
abreviado de criação de normas jurídicas. As normas que não estiverem em conformidade com a
Constituição atual, diversamente, consideram-se por ela revogadas.
A recepção é processo que deve ser analisado em dois planos: no primeiro, o formal, pertinente ao
tipo de norma, à sua roupagem jurídica, a recepção é automática, sendo a norma imediatamente
adaptada ao tipo normativo previsto na nova Constituição para a matéria por ela regulada, e passando
a gozar do status jurídico próprio deste tipo normativo, sem que, entretanto, seja alterada a sua
denominação. Pouco importa o processo legislativo de produção da norma, se é idêntico, semelhante
ou totalmente diverso do determinado pela Constituição atual. Da mesma forma, é irrelevante sua
denominação formal (lei, decreto) ou mesmo se a espécie legislativa ainda é prevista pela atual
Constituição.
Por exemplo, um decreto-lei (espécie legislativa não prevista pela Constituição de 1988), datado de
1970, que trate da proteção ao trabalhador no caso de despedida arbitrária ou sem justa causa, se
compatível com a Constituição será, no aspecto formal, por ela recepcionado com seu nome anterior –
decreto-lei –, mas terá, a partir de seu recebimento, status jurídico de lei complementar, porque a
Constituição de 1988, em seu art. 7o, I, exige norma deste tipo para regular a matéria.
Até mesmo eventual modificação do ente político competente para a elaboração da norma é irrelevante
para fins de recepção. Se a norma infraconstitucional foi editada pela União, porque assim o exigia a
Constituição anterior, em função da matéria regulada, e a nova outorgou tal competência aos Estados,
a norma será recepcionada como norma estadual, cabendo a cada Estado-membro, a partir daí,
proceder às alterações que entender convenientes, ou mesmo revogar por inteiro a norma
recepcionada. Enfim, como há pouco afirmamos, no plano formal nada há a ser questionado,
ocorrendo a recepção de forma automática.
Já no plano material, com relação ao assunto regulado na norma, poderá ou não ser ela
recepcionada, de acordo com o tratamento dado ao tema pela Constituição em vigor. Se compatíveis
os preceitos constitucionais com a norma anterior, será ela recepcionada; do contrário, será tida por
revogada.
A seguir, listamos por tópicos mais algumas considerações sobre a matéria:
1º) a conclusão sobre a recepção de determinada norma (lei, decreto-lei ou outra espécie normativa)
leva em consideração tão somente a matéria da norma e o modo como ela foi tratada. A
denominação e o status jurídico da norma são irrelevantes;
2º) A recepção independe de qualquer previsão expressa na Constituição, e se dá no exato
instante em que a nova Constituição entra em vigor, mesmo que se chegue a tal constatação em
momento posterior. Dessa forma, decisão judicial que reconheça a recepção de norma anterior à
Constituição é declaratória, retroagindo seus efeitos à data do início da vigência da Carta. O mesmo
pode ser dito quanto à revogação, por incompatibilidade material, e eventual decisão judicial que a
proclame;
3º) se a norma for recepcionada, sua denominação não sofrerá qualquer transformação,
permanecendo ela com seu nome, número e data originais. Sua condição jurídica é que pode ser
modificada, conforme estabeleça a Constituição para a matéria nela disciplinada. Por exemplo, o
“Decreto-lei no 542, de 10/11/1973”, se recepcionado, o será com essa mesma denominação, mas
adquirirá a condição jurídica prevista na Constituição para a matéria sobre a qual verse, ou seja, terá o
status jurídico da espécie legislativa prevista para regular a matéria no texto constitucional atual (lei
ordinária, lei complementar, resolução etc.), a qual deverá necessariamente ser observada quando do
momento da alteração do decreto-lei;
4º) não devemos considerar que uma norma só admite recepção ou revogação total. É perfeitamente
possível que, digamos, uma lei ordinária com 50 artigos tenha 30 deles considerados materialmente
compatíveis com a Constituição, sendo os restantes tidos por incompatíveis. Nesse caso, a lei ordinária
será parcialmente recepcionada pela Constituição, no que toca aos 30 primeiros artigos. Na verdade,
um mesmo artigo poderá ser apenas parcialmente recepcionado, quando somente parcela de suas
disposições estiver em conformidade com a nova Constituição;
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
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5º) é possível também que os dispositivos de uma lei sejam recepcionados com status jurídico
diverso. Utilizando o exemplo anterior, digamos que, dos 30 artigos da lei recepcionados, 10 artigos
tratassem de normas gerais de direito tributário, 10 artigos tratassem do procedimento para a
desapropriação por interesse social, e 10 artigos tratassem do regimento interno da Câmara dos
Deputados. Pela Constituição atual, normas gerais de direito tributário é matéria reservada à lei
complementar; desapropriação por interesse social é assunto a ser regulado por lei ordinária; e regras
sobre o regimento interno da Câmara dos Deputados é assunto de trato exclusivo por resolução. Logo,
será este o novo status jurídico de cada grupo de artigos recepcionados. Eles formalmente
continuarão integrando a lei ordinária, mas seu status é definido pelo assunto específico que
disciplinam;
6º) os raciocínios aqui expostos aplicam-se não só ao texto original da Constituição, mas também a
emendas posteriores que venham a alterá-lo. Desse modo, promulgada uma emenda à Constituição,
as normas ordinárias anteriores, se com ela compatíveis devem ser matéria, até então disciplinada por
lei ordinária, permanecendo esta em conformidade material com a emenda, passará à condição jurídica
de lei complementar. Se a modificação for em sentido contrário, com a emenda passando a admitir
regramento por lei ordinária de matéria para a qual até então a Constituição exigia lei complementar,
esta lei complementar, se materialmente compatível com a emenda, é recebida com seu novo status
de lei ordinária;
7º) a recepção, parcial ou total, não significa que a norma permaneça vigente. Ela adquirirá uma nova
vigência, agora sob a égide da Constituição em vigor e por força desta;
8º) por fim, o fenômeno da recepção ou da revogação pressupõe normas que estejam vigentes no
momento da entrada em vigor da Constituição. Se a norma não é mais vigente não cabe se falar
em recepção ou revogação. No final deste tópico voltaremos ao assunto.
Acima declaramos que as normas anteriores materialmente incompatíveis com a Constituição nova
consideram-se por esta revogadas. Este entendimento, todavia, não é pacífico. Há doutrinadores que
consideram a revogação um fenômeno possível de ocorrer somente entre normas de mesma natureza
e hierarquia. Assim, a revogação de uma lei ordinária só poderia se dar por outra lei ordinária, a de
uma lei complementar apenas por outra lei complementar, e assim por diante. Diante de tal
entendimento, não poderia a Constituição revogar a legislação ordinária anterior, pois é diverso o nível
hierárquico desses diplomas jurídicos.
Para explicar esta perda de eficácia da legislação ordinária anterior à Constituição, em função da
desconformidade material, tais autores construíram a teoria da inconstitucionalidade superveniente.
A situação, então, seria a seguinte: a norma ordinária, no momento de sua produção, estava em plena
conformidade, formal e material, com a Constituição então em vigor. Ocorre que a nova Constituição
deu tratamento diverso à matéria objeto da norma ordinária, e este novo tratamento é incompatível com
suas disposições. A norma ordinária, compatível formal e materialmente com a antiga Constituição, é
incompatível materialmente com a nova Constituição, em função do novo regramento por esta
conferido à matéria. Devemos notar que a análise da consonância da norma ordinária anterior com a
nova Constituição limita-se ao plano material, pois, como já ressaltado, quanto à forma a recepção é
automática.
Bem, esta situação, em que o conteúdo da norma infraconstitucional pretérita não é comportado pela
nova Constituição, corresponde, segundo este entendimento doutrinário, à figura de
inconstitucionalidade superveniente.
O Supremo Tribunal Federal, frente às duas correntes - a da revogação e a da inconstitucionalidade
superveniente –, posicionou-se a favor da primeira, declarando, de forma peremptória, que uma norma
ordinária cujo conteúdo é incompatível com uma Constituição que a precede deve-se considerar por
esta revogada. Segundo a Corte, a análise da constitucionalidade de uma norma só pode ser feito
tendo por parâmetro a Constituição então em vigor no momento de sua publicação.
André Ramos Tavares, por sua vez, entende que, como a compatibilidade acarreta a recepção, e este
é um processo de criação de normas, a incompatibilidade causa o desaparecimento da norma,
situando a questão, portanto no plano da existência. Para ele, portanto, não é nem
inconstitucionalidade superveniente nem revogação, trata-se de não existência da norma.
Outro ponto deve ser aqui comentado. Partimos do pressuposto, até este momento, que a legislação
infraconstitucional encontrava-se vigente no momento em que a Constituição também entrou em vigor.
Mas, e que à legislação infraconstitucional que não mais vigorava neste instante? A Constituição
algum efeito tem sobre ela, no caso de haver compatibilidade entre seus dispositivos?
Imaginemos duas leis, a primeira, tratando da legislação tributária, foi revogada em 1985; a segunda,
que trazia regras sobre a ordem econômica, foi declarada inconstitucional, por desconformidade para
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Apostila 03
com a Constituição anterior, em 1986. Pois bem, entra em vigor a atual Constituição, como fica a
situação destas leis perante ela?
Não podemos aqui raciocinar em termos de recepção ou não recepção, pois tal fenômeno pressupõe
lei em vigor, o que não ocorre nesse caso. O caso aqui é de repristinação ou não da legislação não
mais vigente, entendo-se repristinação como um fenômeno pelo qual a Constituição restitui a vigência
destas leis.
A doutrina predominante, frente a uma situação como essa, entende que não existe a figura da
repristinação tácita, ou seja, a promulgação da Constituição nova não implica, por si só, a
restauração da vigência da legislação não mais vigente. Por outro lado, nada impede que a nova
Constituição traga dispositivo expresso determinando a repristinação de algumas destas leis
ordinárias, não mais vigentes, caso em que elas teriam restituída sua vigência pela Constituição. Enfim,
a doutrina majoritária não admita a repristinação tácita (quando a Constituição não traz comando
nenhum sobre a matéria), mas admite a repristinação expressa (quando a Constituição traz norma
determinando o restabelecimento da vigência).
Apenas para não deixar dúvidas, vamos voltar ao nosso exemplo, complementando-o. A primeira lei,
que traz regras sobre legislação tributária, foi revogada em 1985, por outra lei que trata da mesma
matéria.
E se esta segunda lei não foi recepcionada pela Constituição? Será que nem neste caso poderíamos
ter a repristinação tácita da lei anterior (a expressa sempre é possível, repita-se)?
A resposta é simples: não. Mesmo que eventualmente fique um vazio normativo quanto à matéria, o
reconhecimento da não-recepção da lei revogadora não traz como decorrência automática a restituição
da vigência da lei revogada. Aplicam-se aqui as mesmas conclusões anotadas acima: é admissível
somente a repristinação expressa, não a repristinação tácita.
Outra questão: e se é retirada da Constituição a norma-parâmetro que implicou a revogação da norma
anterior, pode-se entender que a norma anterior pode, agora, ser recepcionada? Simples: não, o juízo
de revogação por não recepção é definitivo.
Uma última questão: e se, na data de entrada em vigor da nova Constituição, há leis que apesar de já
existirem, não estão ainda em vigor, seja por não ter ocorrido sua promulgação e publicação, seja por a
lei estar dentro do seu período de vacatio legis?
A questão não é pacífica na doutrina, mas, em nosso entender, a questão não se afasta das
conclusões até aqui propostas: como se trata de lei não vigente, sua admissão pela Constituição atual
depende de previsão expressa.
André Ramos Tavares, enfrentando o tema, no primeiro caso traz lição de Jorge Miranda, segundo a
qual tal norma deve ser avaliada pelo órgão competente, e conforme o resultado da avaliação,
publicada ou não publicada. No segundo caso, traz lição de Elival da Silva Ramos, que entende que a
norma tem sua entrada em vigor impedida pela nova Constituição.
4.3) CONSTITUIÇÃO NOVA X LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL SUPERVENIENTE
Essa matéria será analisada quando estudarmos o controle de constitucionalidade. Apenas
apresentaremos neste tópico um ou dois conceitos elementares, para estabelecermos a diferença
básica desta hipótese com as hipóteses de recepção, revogação e repristinação.
Exige-se mais da legislação superveniente à Constituição nova, comparativamente à legislação
anterior. Enquanto desta exige-se somente conformidade material, daquela exige-se adequação formal
e material, ou seja, a legislação posterior à Constituição, para ser válida, tem que adequar-se tanto
material quanto formalmente à Constituição. Se houver tal adequação, a legislação superveniente é
constitucional, se não houver, será declarada inconstitucional. A matéria é simples assim.
Sintetizando as diferenças básicas deste tópico com o anterior, temos que:
1º) a análise da conformidade da legislação anterior à Constituição, em vigor no momento da sua
promulgação, restringe-se aos aspectos materiais, relativos ao conteúdo da norma, e o resultado é
pela sua recepção ou pela sua revogação;
2º) não cabe se falar em análise de compatibilidade da legislação anterior não vigente com a nova
Constituição. Em primeiro, porque não se admite a repristinação tácita, de modo que a legislação
“morta” não será ressuscitada só pelo fato da nova Constituição ter entrado em vigor (nesse caso,
evidentemente não há análise de coisa alguma). Em segundo, porque se houver a repristinação, ela
decorrerá de comando expresso da nova Constituição. Tal comando, por si só, restabelece a vigência
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DIREITO CONSTITUCIONAL I – Profa. Luciana Melo
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da legislação anterior, sem necessidade de qualquer análise de compatibilidade material ou formal, ou
melhor dizendo, sem possibilidade de tal análise, porque no Brasil não se admite a declaração de
inconstitucionalidade das normas estabelecidas pelo constituinte originário. Só haverá tal análise no
caso de uma repristinação determinada por emenda à Constituição;
3º) já a legislação posterior à nova Constituição deve apresentar-se com ela compatível sob os
aspectos material e formal. Se o resultado for positivo, a legislação é constitucional, se negativo,
inconstitucional.
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