DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Hermenêutica 1109 constitucional contemporânea e a concretização dos direitos fundamentais Lucio Feres da Silva Telles Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP) Introdução. 1. Hermenêutica jurídica. 1.1. Conceito e escolas. 1.2. O positivismo jurídico e sua superação. 2. Hermenêutica constitucional contemporânea. 2.1. A teoria constitucional pós-positivista de princípios e regras. 2.2. O princípio da dignidade humana no Estado Democrático de Direito. 3. Hermenêutica da Constituição e direitos fundamentais. 3.1. O método concretista da Constituição aberta. 3.2. A concretização dos direitos fundamentais pela via da interpretação constitucional. Conclusão. Referências. INTRODUÇÃO O mundo contemporâneo vem passando por transformações profundas, decorrentes de um processo histórico intenso que atingiu as sociedades ocidentais e a maior parte do globo. Este novo milênio não foge à regra de mudanças e questionamentos, dando continuidade a esse ritmo de intensas inovações que marcaram nosso passado recente, principalmente no campo político e jurídico, a partir do século 18. A fim de se compreender o papel da hermenêutica constitucional na concretização dos direitos constitucionais, mostra-se imprescindível que se observe a Constituição Federal pelo prisma do Estado Democrático de Direito, modelo oposto ao absolutismo monárquico que o antecedeu. Assim, é preciso analisar quais os princípios que se apresentam ao universo jurídico-constitucional como verdadeiras “vigas mestras” de nosso sistema jurídico, os quais, evidentemente, não são os mesmos dos modelos anteriores. Existem dois pilares sobre os quais se apoia o Estado Democrático de Direito: a Democracia e os Direitos Fundamentais. Desse modo, é imperativo que sejam considerados os princípios, valores e fundamentos inerentes ao Estado Democrático de Direito, a fim de se efetivar os direitos fundamentais. Nesse contexto, em sendo a Constituição um sistema aberto de regras e princípios, e estes últimos compreendidos pelo pensamento jurídico contemporâneo como normas que expressam valores e, por esse motivo, servem de fundamento para as regras que os densificam, a interpretação constitucional jamais poderá a eles se opor, por força dessa fundamentalidade. Com efeito, pelo caráter principiológico e axiológico dos direitos fundamentais, a teoria da concretização é a mais adequada para a interpretação das normas que tratam dos referidos direitos, não sendo mais suficiente a adoção da velha hermenêutica. O seu benefício é tentar estabelecer um meio-termo entre as teorias hermenêuticas clássicas e as demais teorias da hermenêutica contemporânea, dentre as quais se encontra o “Método Concretista da Constituição Aberta”, idealizado por Peter Haberle. Diante disso, somente uma nova hermenêutica constitucional será capaz de concretizar os direitos fundamentais. 1. HERMENÊUTICA JURÍDICA 1.1. Conceito e escolas Visando esclarecer o significado da hermenêutica jurídica, indispensável se faz tecer alguns comentários a respeito de seu conceito e de sua finalidade, bem como das escolas que se dedicaram à interpretação do Direito. O termo hermenêutica origina-se do latim hermeneuticus, oriundo, por sua vez, do grego hermeneuein. Tal vocábulo está vinculado à mitologia helênica, especificamente ao deus Hermes, 1110 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 que servia como instrumento de comunicação entre os demais deuses, habitantes do Monte Olimpo, e os homens, transmitindo a estes as mensagens e a vontade daqueles. Segundo os ensinamentos de Herkenhoff, para Heidegger, a hermenêutica pode ser entendida da seguinte forma:1 é o estudo do compreender. Compreender significa compreender a significação do mundo. O mundo consiste numa rede de relações, é a possibilidade de relações. Pode-se organizar o mundo matematicamente; pode-se conceber o mundo teologicamente; pode-se interpretar o mundo como linguagem, que é o que interessa ao hermeneuta. Então o mundo se torna dizível, o mundo é convertido na linguagem que nós utilizamos. Existe uma clara discordância entre os autores sobre o conceito de hermenêutica jurídica. Para alguns, ela deve ser entendida como sinônimo de interpretação jurídica, para outros, já há diferença entre ambas. Para os juristas adeptos da corrente que distingue hermenêutica de interpretação jurídica, a primeira fornece os instrumentos necessários para a correta atribuição de sentido à norma jurídica, ou seja, estabelece os mecanismos pelos quais se dará a interpretação da norma, motivo pelo qual a hermenêutica está situada numa etapa anterior à interpretação. Na linha da distinção entre ambos os fenômenos posiciona-se Carlos Maximiliano, ao afirmar que a hermenêutica jurídica “tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito”;2 por outro lado, a interpretação jurídica consiste na aplicação da hermenêutica. Já Machado Neto entende que a noção de hermenêutica emprestada por Maximiliano possui um sentido lato; pode-se dizer, entretanto, que existe um sentido estrito, segundo o qual a hermenêutica identifica-se com a interpretação, contemplando, nesse caso, a interpretação, a integração e até a própria aplicação do Direito.3 1. HERKENHOFF, 1986, p. 6. 2. MAXIMILIANO, 1981, p. 1. 3. MACHADO NETO, 1973, p. 216. A despeito da referida polêmica, de uma forma geral, os autores têm se preocupado tanto em expor os processos ou métodos de interpretação do Direito quanto em analisar as consequências da utilização destes, durante o ato interpretativo, com vistas à solução de casos concretos. Da mesma forma, preocupam-se os juristas com a questão das lacunas no Direito, a serem supridas pelo processo de integração. Com efeito, não há que se falar em hermenêutica jurídica desvinculada da interpretação. A primeira fornece os meios adequados à correta realização da segunda, a qual também não se esgota em si mesma, vez que sua razão existencial se destina à efetiva aplicação das normas jurídicas ante situações concretas decorrentes das relações intersubjetivas que se estabelecem no seio da sociedade. Em outras palavras, a finalidade precípua da hermenêutica consiste em fornecer os mecanismos viabilizadores da interpretação, entendida esta como busca de sentido, e da integração, compreendida como preenchimento de lacunas no Direito. Diante disso, pode-se dizer que a hermenêutica jurídica não se confunde com a interpretação, e estabelecer uma distinção entre ambas não implica separá-las, na medida em que tanto uma quanto a outra são partes vitais do processo de atribuição de sentido à norma para sua posterior aplicação a determinada situação concreta. Nesse contexto, no que diz respeito à construção dos métodos utilizados na interpretação, surgiram diversas escolas hermenêuticas, as quais, em razão de sua pluralidade, revelam as diversas concepções sobre o significado e o papel do próprio Direito enquanto fenômeno social, pois sua interpretação depende da pré-compreensão alusiva a seu conceito. Embora não seja o cerne deste trabalho refletir de forma aprofundada acerca das referidas escolas, e muito menos tentar desvendar um conceito de Direito, algumas considerações em torno daquelas mostram-se indispensáveis para DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES melhor registrar como vêm sendo elaborados os instrumentos dos quais se utilizam os hermeneutas na interpretação e compreensão do Direito. Desse modo, para demonstrar as diferentes atitudes dos intérpretes do Direito, de acordo com a corrente por ele seguida, cumpre situá-lo no contexto das seguintes escolas: Exegese, Histórica, Livre Pesquisa Científica e Escola do Direito Livre. A Escola da Exegese, movimento que marcou a teoria da interpretação do século 19, caracterizou-se, fundamentalmente, pelo culto ao texto, ou seja, o intérprete da lei deveria limitar-se ao que dizia a norma jurídica do ponto de vista estritamente gramatical, além de fundar-se, também, numa concepção rigidamente estatal do Direito, na interpretação da lei fundada na vontade do legislador, no respeito ao princípio da autoridade e na noção de Direito como sistema. Sobre a Escola da Exegese leciona Miguel Reale:4 Sob o nome de “Escola da Exegese” entende-se aquele grande movimento que, no transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de maneira especial no Código Civil, já se encontra a possibilidade de uma solução para todos os eventuais casos ou ocorrências da vida social. Tudo está em saber interpretar o Direito. Dizia, por exemplo, Demolombre que a Lei era tudo, de tal modo que a função do jurista não consistia senão em extrair e desenvolver o sentido pleno dos textos, para apreender-lhes o significado, ordenar as conclusões parciais e, afinal, atingir as grandes sistematizações. Como se vê, para a Escola da Exegese, o papel do intérprete limitava-se à interpretação meramente gramatical, lógica e sistemática do Direito, partindo-se da premissa de que este estava inteiramente contemplado no Código Civil de Napoleão, de 1804. Tal diploma, além de viger em toda a nação francesa, deveria servir de modelo às codificações de outros países, o que de fato ocorreu. Já na Escola Histórica não existe o fetichismo da lei escrita tal como pregado pela Escola da Exegese. O movimento historicista foi marcado 4. REALE, 1996, p. 274. 5. GUSMÃO, 1996, p. 396. 1111 por uma reação ao legalismo, vendo o Direito como resultado espontâneo causado pelo costume e aceito naturalmente pelo “espírito do povo”. Os adeptos do historicismo, dentre os quais se encontra Savigny, combateram energicamente a codificação das leis, tendo em vista que o Direito deveria acompanhar as transformações decorrentes da dinâmica social, adequando-se, de maneira constante, à conjuntura social de cada época. Refletindo sobre o tema, afirma Paulo Dourado de Gusmão:5 Para os que formaram a “Escola Histórica do Direito”, o direito é um fenômeno espontâneo da sociedade, manifestado primeiro como costume, que, para os seus corifeus, é sua fonte autêntica, por corresponder mais fielmente aos reais ideais e necessidades da sociedade em dado momento histórico e por acompanhar de perto as transformações dos demais fatos históricos (econômicos, éticos, políticos etc). Como costume, e não na forma de lei ou de código, dificultaria o descompasso entre o direito e a sociedade. Por isso, para essa escola o costume é a fonte principal do direito, devendo prevalecer sobre a lei. Opõe-se ao jusnaturalismo, imobilizando e colocando fora da história, ao menos em parte, o direito. Insurge-se contra a codificação, por petrificar o direito, interrompendo a sua evolução. A doutrina elaborada pela Escola Histórica acabou por não prevalecer à sua época, ante a forte resistência que oferecia à positivação do Direito; entretanto, legou à hermenêutica jurídica a ideia de que o fenômeno jurídico não pode ser visto de forma dissociada do contexto histórico-cultural em que foi concebido. A grande lição que a corrente historicista deixou ao intérprete contemporâneo consiste em manter o foco na realidade social da qual faz parte, pois sendo o Direito produto da cultura, sua interpretação há de estar em sintonia com os valores reconhecidos e aceitos, democraticamente, no aludido meio social. Por outro lado, a Escola da Livre Pesquisa Científica, fundada por François Geny, trouxe como marcante contribuição o reconhecimento da insuficiência das leis escritas e, especialmente, 1112 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 do Código Civil francês, para a correta solução de todas as questões jurídicas existentes. O tempo demonstrou estar à frente dos códigos e surgiram, com o seu passar, múltiplas situações não previstas pelo legislador e que, no entanto, exigiam uma solução a ser dada pelos aplicadores do Direito. A fim de resolver esse problema, Geny pregou a livre pesquisa científica do Direito para as hipóteses não contempladas pelo ordenamento escrito. Miguel Reale6 esclarece a doutrina idealizada pelo jurista francês: Segundo Geny, a lei só tem uma intenção, que é aquela que ditou seu aparecimento. Não se deve deformar a lei, mas ao contrário, reproduzir a intenção do legislador no momento de sua decisão. Uma vez verificado, porém, que a lei, na sua pureza originária, não corresponde mais aos fatos supervenientes, devemos ter a franqueza de reconhecer que existem lacunas na obra legislativa e procurar, por outros meios supri-las. Destarte, com sua doutrina hermenêutica, Geny enfrenta o problema das lacunas da lei, o que leva o jurista a valorizar não apenas o costume à jurisprudência, mas também os meios para suprir tais lacunas, bem como a realidade presente tanto em aspectos naturais quanto sociais do contexto no qual o operador do Direito irá pesquisar, na busca de uma solução jurídica. O mencionado contexto é um dado, cabendo ao intérprete o construído, ou seja, a regra adequada à situação fática, razão pela qual a obra de Geny afasta o jurista do legalismo e dogmatismo, tão presentes na Escola da Exegese, substituindo a figura do Juiz autônomo pelo Magistrado formado à luz da livre pesquisa. Por fim, almejando maior liberdade ao intérprete, a ponto de possibilitar-lhe inclusive decidir contra a lei, surgiu a Escola do Direito Livre. Trata-se de um movimento nascido na Alemanha, cujo início é identificado com a publicação da obra A luta pela ciência do direito, em 1906, de autoria de Hermann Kantorowicz, e pugnava que o Juiz ao aplicar a norma deveria verificar a realidade social, pois esta é mais rica e fecunda que a norma jurídica contra a qual poder-se-ia julgar se a solução por ela apresentada não levasse à decisão justa. 6. REALE, 1996, p. 280. 7. COELHO, 1981, p. 259. Nesse sentido, Kantorowicz propõe que a Escola do Direito Livre é norteada por quatro diretrizes fundamentais, conforme explicita Luiz Fernando Coelho:7 a) se o texto da lei é unívoco e sua aplicação não fere os sentimentos da comunidade, o juiz deve decidir de acordo com a lei; b) se o texto da lei não oferece solução pacífica, isto é, insusceptível de ser argüida de injusta, o texto da lei aplicado ao caso concreto conduz a uma solução que o próprio legislador do estado, ao elaborar a lei, não poderia querer; nesse caso deve o juiz ditar a sentença que, segundo a sua convicção, o legislador ditaria se tivesse pensado naquele caso concreto; c) se o juiz não pode formar uma convicção sobre como o legislador resolveria o caso concreto, deve o juiz se inspirar no direito livre, isto é, no sentimento da coletividade; d) quando, mesmo apelando para o sentimento da coletividade, o juiz não encontra a solução, deve então julgar discricionariamente. Tendo em vista a situação de grande insegurança jurídica gerada pela doutrina da Escola do Direito Livre, esta foi alvo de duras críticas; no entanto, é inegável que deixou ao campo da hermenêutica jurídica muitas contribuições positivas, como, por exemplo: o encorajamento da ação criativa do Juiz ante as lacunas do ordenamento jurídico valorizando seu papel na aplicação do Direito; enfatizou a ponderação da realidade e dos valores sociais na interpretação das normas jurídicas e abalou a suposta verdade jurídica sobre a qual se acreditava estar fundado o ordenamento positivo. Diante de todo o exposto, verifica-se a variabilidade da liberdade de atuação atribuída ao intérprete por cada uma das escolas hermenêuticas mencionadas, o que nos leva à reflexão sobre a relevância de suas contribuições na construção da teoria que versa sobre a hermenêutica jurídica. 1.2. O positivismo jurídico e sua superação Tecidos breves comentários atinentes ao conceito de hermenêutica jurídica e às escolas dedicadas ao estudo do tema, cumpre agora DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES r­ ealizar um retrospecto sobre positivismo jurídico, que predominou na teoria do Direito do século 19 e da primeira metade do século 20, e cujo representante mais ilustre foi o jurista Hans Kelsen, a fim de demonstrar que o enclausuramento do Direito em seu aspecto puramente normativo acaba por inviabilizar a concretização dos direitos constitucionais pela via da hermenêutica. A obra Teoria pura do direito, de autoria de Kelsen, foi elaborada na primeira metade do século 20, ocasião em que muitos questionamentos inquietavam os juristas acerca da ciência do Direito – perguntas sobre o seu objeto de estudo, como, por exemplo: o que seria o Direito? Seria o Direito uma ciência? O que distinguiria o Direito das demais ciências? Tais perguntas decorreram diretamente da crise vivida pela ciência jurídica no fim do século 19 e no início do século 20, momento em que o Direito parecia sucumbir ao predomínio de outras áreas do conhecimento, fundamentalmente porque inexistiam meios de se conhecer o Direito com uma metodologia que se pudesse considerar como sendo predominantemente jurídica, e não econômica ou sociológica. Foi nesse contexto que surgiu a Teoria pura do direito, que revolucionou a maneira de pensar e compreender o Direito. Kelsen protagonizou, assim, nas décadas de 1920 e 1930, uma revolução na teoria do Direito, e sua principal inovação, frise-se, foi principalmente no campo metodológico, na investigação do Direito. O pensador desenvolveu um modelo teórico que atribui ao Direito um elevadíssimo grau de autonomia, dissociando-o de questões metafísicas, libertando-o da crise que parecia insuperável ao fim do século 19 e começo do século 20. Com efeito, a Teoria pura do direito é uma tentativa de separar a ciência do Direito de toda e qualquer ideologia de natureza política, sociológica, psicológica, ética e econômica, bem como de outros elementos de ciência natural, para se ater, tão somente, ao estudo do seu objeto – no caso, as normas jurídicas. Cumpre enfatizar que o grande objetivo de Kelsen foi a construção de uma teoria que possibilitasse estudar o Direito sem o auxílio de instrumentos típicos de qualquer outra ciência. 1113 De fato, ao ser formulada a teoria, o Direito era estudado sem critério, sendo descrito e aplicado como instrumental das ciências políticas, econômicas e sociológicas. Dessa forma, verifica-se que a Teoria pura do direito foi consequência de uma lenta evolução jurídica e surgiu num contexto histórico de carência de uma metodologia que garantisse autonomia efetiva à ciência do Direito. Como dito alhures, para desenvolver uma teoria “pura”, que não utilizasse elementos de outras ciências, Kelsen precisou escolher um objeto que, segundo afirma, exclui a possibilidade de se contaminar a ciência jurídica com questões de cunho político e ideológico. Esse objeto é a norma jurídica. A norma dirá como é o Direito, nada mais. Todo e qualquer elemento que transcenda a norma jurídica e seu conteúdo é estranho ao Direito, devendo ser excluído da apreciação de uma ciência jurídica que se proponha a ser efetivamente pura. Nesse tocante, vale esclarecer que Kelsen não nega a conexão entre o Direito e outros ramos do conhecimento. Ao contrário, admite expressamente a sua existência, procurando apenas evitar um desnecessário e pernicioso sincretismo metodológico. Porém, repita-se, em benefício da clareza, quis Kelsen estudar o Direito apenas tendo como referencial a norma. Em outras palavras, a Teoria pura do direito é uma metalinguagem (observação de quem está de fora do Direito; reflexão de segundo grau) sobre o Direito – este, como veremos, compreendido como o conjunto de normas estatais de determinado ordenamento positivo. Assim, por meio de sua teoria, Kelsen define o Direito como sendo a atividade normativa e coercitiva do Estado, manifestada num sistema de normas formais, validamente sancionadas e vigentes, ou seja, o Direito caracteriza-se por ser uma ordem coercitiva emanada do Estado que implica um conjunto de normas jurídicas que conectam ilícito e sanção por meio de uma relação de imputação. No interior das normas jurídicas é estabelecida uma relação que conecta uma conduta ilícita a uma sanção, isto é, a uma conduta descrita como ilícita na norma corresponde uma sanção que deve ser aplicada. A esta relação Kelsen dá o nome de imputação. 1114 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 Dentro de um raciocínio analógico, pode-se dizer que a relação de imputação está para o Direito assim como a relação de causalidade está para as ciências naturais; entretanto, ambas não se confundem, pois a relação de causalidade implica a necessária ocorrência do efeito decorrente de uma mesma causa, enquanto no caso do Direito, em ocorrendo a conduta ilícita prevista na norma jurídica, deve ser aplicada a sanção a ela correspondente. Daí por que os fenômenos naturais pertencem ao mundo do ser e a relação segundo a qual a um ilícito imputa-se uma sanção pertence ao mundo do dever ser, na medida em que o Direito não garante que a sanção será de fato aplicada. Sobre o Direito como ordem normativa e coercitiva reguladora da conduta humana expõe Hans Kelsen:8 Costuma caracterizar-se o Direito como ordem coativa, dizendo que o Direito prescreve uma determinada conduta humana sob “cominação” de atos coercitivos, isto é, de determinados males, como a privação da vida, da liberdade, da propriedade e outros. Esta formulação, porém, ignora o sentido normativo com que os atos de coerção em geral e as sanções em particular são estatuídas pela ordem jurídica. O sentido de uma cominação é que um mal será aplicado sob determinados pressupostos; o sentido da ordem jurídica é que certos males devem, sob certos pressupostos, ser aplicados, que – numa fórmula mais genérica – determinados atos de coação devem, sob determinadas condições, ser executados. Este não é apenas o sentido subjetivo dos atos através dos quais o Direito é legislado, mas também o seu sentido objetivo. Precisamente pela circunstância de ser esse o sentido que lhes é atribuído, esses atos são reconhecidos como atos criadores de Direito, como atos produtores ou executores de normas. Nesse contexto, uma ciência pura do Direito deve se limitar à análise da relação estabelecida no interior das normas jurídicas, descrevendo-a, ou seja, Kelsen estabelece uma distinção entre a ciência jurídica e o Direito propriamente dito, sendo papel da primeira descrever por meio de proposições jurídicas as mencionadas relações referentes à conduta humana regulada pelas normas jurídicas. 8. KELSEN, 1998, p. 31. 9. Idem, ibidem, p. 51. Em outras palavras, o Direito é o verdadeiro objeto da ciência jurídica, e o papel desta última é elaborar uma análise descritiva das relações estabelecidas no interior das normas jurídicas. Assim, segundo a teoria de Kelsen, não há que se confundir o Direito, que se caracteriza por ser o conjunto formado pelas normas jurídicas, com a ciência jurídica, cujo papel fundamental é desenvolver um exame descritivo da conduta humana prescrita no interior das normas jurídicas. Vejamos o que diz Kelsen9 a este respeito: Na medida em que a ciência jurídica apenas apreende a conduta humana enquanto esta constitui conteúdo de normas jurídicas, isto é, enquanto é determinada por normas jurídicas, representa uma interpretação normativa destes fatos de conduta. Descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que hão de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, conseqüentemente, descreve as relações constituídas, através dessas normas jurídicas, entre os fatos por elas determinados. As proposições ou enunciados nos quais a ciência jurídica descreve estas relações devem, como proposições jurídicas, ser distinguidas das normas jurídicas que são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito. Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Esclarecido o caráter normativo do Direito, segundo o pensamento de Kelsen, pode-se dizer, a Teoria Pura do Direito divide-se em, basicamente, dois grandes ramos: a Estática Jurídica e a Dinâmica Jurídica. Aquela estuda os conceitos e normas jurídicas em seu significado específico, analisando institutos e a estrutura das normas. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Busca definir conceitos como direito, dever jurídico, pessoa física, pessoa jurídica, obrigação, permissão, ilícito e sanção. Já a dinâmica jurídica preocupa-se com as relações hierárquicas entre as normas (pirâmide normativa ou pirâmide de Kelsen) e a consequente criação de normas, compatíveis com as precedentes. Estuda, enfim, as formas de transformação de uma determinada ordem jurídica. Nesse contexto, pode-se dizer que a dinâmica jurídica é o Direito observado do ponto de vista de seu movimento, isto é, de sua criação e aplicação, sendo importante ressaltar que a aplicação do Direito também é um ato de criação, pois ao aplicar a norma abstrata oriunda da atividade legislativa ao caso concreto, por meio de uma sentença judicial, o Estado produz, também, uma norma jurídica que apenas é individualizada, sendo traço característico do Direito o fato de regular sua própria criação e aplicação, conforme explica Kelsen:10 Conforme o acento é posto sobre um ou sobre o outro elemento desta alternativa: as normas reguladoras da conduta humana ou a conduta humana regulada pelas normas, conforme o conhecimento é dirigido às normas jurídicas produzidas, a aplicar ou a observar por atos de conduta humana ou aos atos de produção, aplicação ou observância determinados por normas jurídicas, podemos distinguir uma teoria estática e uma teoria dinâmica do Direito. A primeira tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, o Direito no seu momento estático; a outra tem por objeto o processo jurídico em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento. Deve, no entanto, observar-se, a propósito, que este mesmo processo é, por sua vez, regulado pelo Direito. É, com efeito, uma característica muito significativa do Direito o ele regular a sua própria produção e aplicação. A produção das normas jurídicas gerais, isto é, o processo legislativo, é regulado pela Constituição, e as leis formais ou processuais, por seu turno, tomam à sua conta regular a aplicação das leis materiais pelos tribunais e autoridades administrativas. Por isso, os atos de produção e de aplicação (que, como veremos, também é ela própria produção) do Direito, que representam o processo jurídico, somente interessam ao conhecimento jurídico enquanto formam o conteúdo de normas jurídicas, enquanto são determinados por 10. KELSEN, 1998, p. 51. 11. BOBBIO, 1995, p. 58-59. 1115 normas jurídicas. Desta forma, também a teoria dinâmica do Direito é dirigida a normas jurídicas, a saber, àquelas normas que regulam a produção e a aplicação do Direito. Sendo assim, o autor desenvolve o raciocínio segundo o qual uma norma jurídica somente é válida se tiver sido elaborada de acordo com a norma que lhe é hierarquicamente superior, e, para tanto, cria um modelo piramidal, aceito até os dias de hoje pelos países ocidentais de tradição democrática, que organiza as normas jurídicas de forma escalonada até aquela que ocupa o topo desta pirâmide: a Constituição. Entretanto, o jurista se depara com a questão atinente a desvendar o que dá fundamento de validade a uma ordem normativa, ou seja, quem ou o que legitima a Constituição como topo da pirâmide normativa e impõe a sua observância. Para tanto, o autor estabeleceu a proposição básica de uma norma fundamental com o intuito de responder a todos os seus questionamentos quanto ao fundamento de validade da pluralidade das normas que regulam a conduta dos homens num determinado sistema, mas que não tenha sido editada por nenhum ato de autoridade; como também, o que estabeleceria a hierarquia existente entre essas normas. Destarte, ao se buscar o fundamento de validade de uma norma, há a necessidade de se estabelecer qual a mais elevada. Para isso, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, foi designada por Kelsen como norma hipotética fundamental. Sobre o tema leciona Norberto Bobbio:11 [...] dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas: essa norma é a norma fundamental. A norma fundamental, enquanto, por um lado, atribui aos órgãos constitucionais poder de fixar normas válidas, impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o dever de obedecê-las. É uma norma 1116 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 ao mesmo tempo atributiva e imperativa, segundo se considere do ponto de vista do poder ao qual dá origem ou da obrigação que dele nasce. Essa norma única não pode ser senão aquela que impõe obedecer ao poder originário do qual deriva a Constituição, que dá origem às leis ordinárias, que, por sua vez, dão origem aos regulamentos, decisões judiciais, etc. Se não postulássemos uma norma fundamental, não acharíamos o ubi consistam, ou seja, o ponto de apoio do sistema. E essa norma última não pode ser senão aquela de onde deriva o poder primeiro. Então, a norma fundamental, como condição da possibilidade do conhecimento dogmático do Direito (sua função gnosiológica), é, sintaticamente, proposição situada fora do sistema de Direito Positivo. Quando Kelsen diz, repetidamente, que não é norma posta (estatuída por uma autoridade ou pelo costume), mas pressuposta, podemos traduzir isso em termos de lógica moderna: a norma fundamental é uma proposição de metalinguagem; não está ao lado das outras proposições do Direito Positivo, não proveio de nenhuma fonte técnica; carece de conteúdo concreto e, relativamente à matéria das normas positivas, é forma condicionante delas (forma cognoscente, hipótese epistemológica). Portanto, a norma hipotética fundamental não pertence ao Direito Positivo, pois não foi estabelecida pelo órgão da comunidade jurídica. Não sendo prevista em nenhum código, por não estabelecer direitos nem obrigações, como também, pelo fato de não basear-se nos alicerces de normas anteriores, nem possuir fundamentos de nenhuma norma superior. Trata-se de uma norma idealizada pelo teórico do Direito com a prerrogativa indispensável para o conhecimento do Direito, logo, ao estabelecê-la, o pesquisador do Direito não estará usufruindo da autoridade de legislar. Pode-se concluir, portanto, da Teoria do Direito de Kelsen, que se trata esta última de uma teoria positivista-normativista, pois é preocupação central de Kelsen a questão da validade das normas jurídicas. Uma vez que a Teoria Pura do Direito descarta qualquer juízo de valor acerca das prescrições constantes das normas jurídicas, 12. KELSEN, 1998, p. 273. 13. HART, 1994, p. 91. ou seja, se são elas justas ou injustas, corretas ou incorretas, resta verificar-se se elas foram elaboradas corretamente. Tal afirmativa pode ser facilmente extraída de outra passagem da obra de Kelsen, donde se constata que, para o autor, numa teoria do Direito que se proponha a ser efetivamente pura não há lugar para valores considerados invioláveis, sem qualquer ressalva. Daí se infere, sem sombra de dúvida, que nem mesmo a dignidade humana mereceria qualquer exceção no bojo desse raciocínio normativista, sendo juridicamente possível converter qualquer conteúdo em norma válida, sem nenhuma preocupação com a justiça ou injustiça de tal c­ onteúdo normativo, desde que tenha sido observado o procedimento para a elaboração da norma, traçado na norma hierarquicamente superior:12 Uma norma jurídica não vale porque tem determinado conteúdo, quer dizer, porque seu conteúdo pode ser deduzido pela via do raciocínio lógico de uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente, por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. A validade desta não pode ser negada pelo facto de seu conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão. Vale relembrar, também, a teoria de Hart, outro grande representante do positivismo jurídico, segundo a qual o Direito seria um sistema de regras formado pela união de regras primárias e secundárias, as quais foram assim conceituadas:13 É verdade que a idéia de uma regra não é, de forma alguma, uma idéia simples [...] Por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, aos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas acções, quer queiram ou não. As regras de outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito às acções que envolvem movimento ou mudança físicos; as regras do segundo tipo tornam-se possíveis actos que conduzem não só a movimento ou mudança físicos, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações. Diante desse quadro, buscando a superação do positivismo jurídico, em razão da insuficiência de suas concepções para lidar com uma noção de Direito preocupada com valores, o pensamento jurídico ingressa em um novo momento, denominado de pós-positivismo. No âmbito deste, não se compreende mais o Direito apenas como um conjunto de normas com a estrutura lógica pensada tanto por Kelsen como por Dworkin,14 ao criticar o positivismo, passa a fazer uma distinção entre normas em forma de princípio e normas em forma de regras. Referida ideia, de um pós-positivismo, está vinculada a uma visão que vem buscando a aproximação entre Direito e Ética e Direito Constitucional e Filosofia do Direito, processo este denominado de constitucionalismo contemporâneo. A fusão de horizontes entre tais perspectivas vem produzindo uma teoria jurídica adequada a trabalhar com princípios e regras no Estado Democrático de Direito em permanente construção. O Direito que se pretende construir e estudar no âmbito da sociedade que busca a realização da democracia possui um caráter emancipatório, libertador dos grilhões que impedem a afirmação do indivíduo como pessoa dotada de dignidade e sujeito de direitos fundamentais que lhe garantam o efetivo respeito a esta dignidade. É esse o espírito que impulsiona a nova hermenêutica da Constituição. 2. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA 2.1. A teoria constitucional pós-positivista de princípios e regras Conforme explicitado no tópico anterior, o positivismo jurídico reduz o Direito apenas a seu aspecto normativo, esvaziando, por completo, 14. DWORKIN, 2002, p. 35-50. 15. BARROSO, 2005, p. 58. 1117 seu caráter axiológico. Entretanto, o Direito visto por uma perspectiva humanista nos remete à ideia de que, sem a presença de valores no campo jurídico, o Direito acaba por se resumir a um conjunto de normas emanadas do Estado passíveis de qualquer conteúdo, havendo, portanto, a possibilidade do advento de prescrições normativas contrárias à própria dignidade do homem. Além disso, mostra-se imprescindível verificar quais valores merecem ser juridicizados, ou seja, com quais valores o Direito deve se comprometer na busca da construção de uma sociedade justa. No caso do Estado Democrático de Direito tais valores estão contemplados na Constituição e, todos eles, segundo a consciência ético-jurídica que os escolheu, são tidos como fundamentais ao desenvolvimento pleno das potencialidades do homem. Nesse contexto doutrinário construtor de uma axiologia jurídica, importante se faz para o presente estudo tentar atribuir um conceito para o movimento pós-positivista, que, para Luís Roberto Barroso, pode ser assim compreendido:15 Pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípio e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e Ética. A estes elementos deve-se agregar, em um país como o Brasil, uma perspectiva do Direito que permita a superação da ideologia da desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à margem da civilização e do consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na prática jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a realidade. Da precisa conceituação do prof. Barroso verifica-se que, no bojo de uma concepção pós-positivista do Direito, os valores adentram no universo jurídico, ganhando força de norma jurídica, por meio dos chamados princípios, superando-se a noção positivista que enxergava o Direito como mero sistema de regras. Por isso, é de fundamental importância para a correta compreensão desse novo modelo estabelecer a distinção entre princípios e regras. 1118 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 Assim, os princípios podem ser entendidos como normas jurídicas dotadas de caráter axiológico, ou seja, não são disposições voltadas ao estabelecimento de condutas, autorizando-as ou proibindo-as, exercendo as funções de fundamento da ordem jurídica, orientadora da atividade interpretativa e fonte integrativa em caso de insuficiência da lei ou do costume. Dessa noção infere-se que os princípios são espécies de normas jurídicas assim como as regras também o são. Canotilho estabelece a distinção entre as duas espécies de normas, quais sejam, princípios e regras, afirmando que: (i) os princípios são normas com grau elevado de abstração, enquanto as regras possuem uma abstração relativamente reduzida; (ii) na aplicação ao caso concreto, os princípios, por serem vagos e indeterminados, necessitam de mediações concretizadoras, já as regras são de aplicação direta; (iii) os princípios ocupam um lugar fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema de fontes e seu papel estruturante dentro do sistema jurídico; (iv) os princípios aproximam-se da ideia de direito e justiça, enquanto as regras são normas de caráter vinculativo e cunho funcional; e (v) os princípios são fundamento das regras, ou seja, as regras jurídicas se apresentam como normas densificadoras de princípios, não podendo, portanto, conter disposições que os afrontem.16 Estabelece, também, o autor uma distinção qualitativa entre ambas as modalidades de normas jurídicas:17 os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regas são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida. Ante essa distinção, por serem os princípios normas abstratas de caráter geral que, em última análise, expressam valores em vez de determinar condutas, permite-se uma ponderação entre eles quando o caso concreto revelar um confronto 16. CANOTILHO, 1991, p. 172-173. 17. Idem, ibidem, p. 174. principiológico, por meio da harmonização entre as normas conflitantes. Por outro lado, as regras ou valem ou não valem, e por isso são excludentes, não sendo possível a coexistência no ordenamento de duas regras contrárias. Dito de outro modo, como os princípios contêm standards, valores a serem realizados, eventual conflito entre dois ou mais princípios ante uma situação concreta pode perfeitamente ser harmonizado de forma a que nenhum deles tenha sua normatividade completamente anulada. Já as regras, por versarem sobre condutas, não toleram eventual antinomia normativa. Com efeito, pode-se dizer que a Constituição se apresenta ao universo jurídico como sistema normativo composto de princípios e regras que projetam um ideário de futuro a ser buscado pela sociedade para a qual foi confeccionada, a fim de que sejam realizados certos valores tidos como fundamentais. Compreendendo-se, assim, o sentido da Constituição, verifica-se que seu papel civilizatório não se limita a inaugurar uma forma de convívio, mas, sobretudo, por meio da Carta Magna, almeja-se estimular, normativamente, que a referida convivência seja concretizadora dos valores e objetivos rumo aos quais a sociedade decidiu caminhar. 2.2. O princípio da dignidade humana no Estado Democrático de Direito Durante o longo caminho percorrido pelo Estado Moderno, pôde-se verificar a existência de três modelos de Estado, quais sejam: o Estado Absolutista, o Liberal e o Social. No primeiro modelo vigorou o que ficou conhecido como a fase do Direito Repressivo, no qual apenas se convertia em lei a vontade absoluta do Monarca soberano, ou seja, o poder político mantinha-se concentrado nas mãos da Coroa, sob o pretexto de que isso se fazia indispensável à garantia do bem-estar e segurança dos súditos, quando, na verdade, estes, privados de sua liberdade, eram coagidos a se submeter aos ditames do governante, sob pena DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES 1119 de repressão imediata contra qualquer ato ou manifestação que afrontasse a tirania do rei. tutelado tanto pela ordem jurídica interna dos países quanto pela ordem internacional. Num segundo momento, após o êxito da Revolução Francesa de 1789, instituiu-se o Estado Liberal, no qual vigorou o Direito Autônomo, isto é, implantou-se um modelo político-econômico fundado na ideia de que o Estado não deveria interferir na atividade econômica, atuando apenas como garantidor das regras de mercado e mediador da relação capital-trabalho. Durante esse período, os ideais de liberdade e igualdade, na prática, limitaram-se à garantia da liberdade negocial e à falsa percepção de que as pessoas estabeleciam relações contratuais em situação de igualdade, ou seja, não havia a noção de hipossuficiência nas relações privadas, o que levou à marginalização de quase todo o povo, ante um Estado omisso que se furtava de desenvolver mecanismos que viabilizassem o bem-estar de todos. Em suma, o Estado Liberal foi o Estado do cidadão proprietário, desprovido de qualquer consciência social ou coletiva. Após o holocausto, viu-se que o formalismo jurídico, preso a um normativismo levado às últimas consequências, quando não comprometido com valores éticos que respeitem a dignidade humana, pode se colocar a serviço de qualquer finalidade, inclusive do terror totalitário, tão presente na Alemanha de Hitler e no Estado Soviético. Por isso, não foi por acaso que, a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Direito Internacional Público aprimorou-se para transformar-se no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Todo o seu aparato teórico e institucional posicionou-se a serviço da proteção incondicional da dignidade do ser humano. As disposições constantes dos tratados e declarações internacionais evidenciam tal realidade. Por fim, em razão da falência do Estado Liberal, motivada pela desigualdade extremada decorrente da ausência da tutela jurídica de interesses de caráter coletivo, passou a vigorar, principalmente após a 1ª Guerra Mundial – momento em que a classe trabalhadora pôde se unir em razão da desorganização econômica que enfraqueceu a classe dominante –, a ideia de que o Estado deve responder aos anseios e necessidades da sociedade como um todo, intervindo na economia a fim de coibir práticas nocivas ao interesse coletivo. A esse modelo deu-se o nome de Estado Social, cujas aspirações foram positivadas em Constituições como a de Wieman e a Mexicana, revelando um novo modelo denominado de Direito Responsivo. Muito embora os direitos sociais, decorrentes do modelo instituído pelo Estado Social, já tivessem sido reconhecidos em grande parte dos países de tradição democrática na primeira metade do século 20, foi somente depois da barbárie perpetrada pelo nazismo na 2ª Guerra Mundial que as nações civilizadas passaram a considerar a dignidade humana como valor supremo a ser 18. TRINDADE, 2003, p. 447-448. A partir de então, todo ser humano foi alçado pelo Direito Internacional à condição de pessoa, e toda a pessoa é dotada de dignidade e sujeito dos direitos internacionalmente tutelados. Essa nova fase caracterizou um enorme avanço no processo de proteção dos direitos humanos, como nos explica Antônio Augusto Cançado Trindade:18 A cristalização da personalidade e capacidade jurídicas internacionais do ser humano constitui, em nosso entender, o legado mais precioso da ciência jurídica do século XX. Trata-se de uma notável conquista da civilização, lograda graças ao considerável desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao longo das cinco últimas décadas, a requerer uma atenção bem maior e mais cuidadosa do que a dispensada ao tema até o presente por grande parte da doutrina jurídica, aparentemente ainda apegada a posições dogmático-ideológicas do passado. Também no âmbito interno dos Estados, referido avanço foi uma realidade, principalmente na Alemanha do pós-guerra, traumatizada pelas atrocidades perpetradas pelo regime nazista. Tanto é assim que, na Constituição Alemã de 1949, a dignidade humana foi elevada a fundamento maior do Estado Democrático de Direito. Seguindo este exemplo, as Constituições originadas após 1945 também atribuíram ao referido princípio o status de fundamental, passando a 1120 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 ser a dignidade humana elemento justificador da própria existência do Estado. Refletindo sobre o princípio da dignidade humana, expõe Flávia Piovesan:19 Adotando-se a concepção de Ronald Dworkin, acredita-se que o ordenamento jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que incorporam as exigências da justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na medida em que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo extraído do próprio sistema constitucional. À luz dessa concepção, infere-se que o valor da dignidade da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Por tudo isso, não restam dúvidas de que a dignidade humana tornou-se para o pensamento jurídico-constitucional contemporâneo verdadeiro alicerce axiológico sobre o qual devem ser construídos os Estados na busca incessante da realização plena do ser humano. 3. HERMENÊUTICA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS 3.1. O método concretista da Constituição aberta Superada a demonstração da relevância do princípio da dignidade humana para o ordenamento jurídico, cumpre agora, tendo em vista a necessidade de se compreender de que forma a hermenêutica constitucional pode viabilizar a efetivação dos direitos fundamentais, a análise de um dos mais conhecidos métodos de interpretação presentes no constitucionalismo contemporâneo: “O Método Concretista da Constituição Aberta”. Referido método foi elaborado pelo professor alemão Peter Haberle, que possui forte influência da tópica em suas proposições, e sua construção 19. PIOVESAN, 2002, p. 56-57. teórica está fundada em três pontos principais, quais sejam: o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição; o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e a referência desse conceito à própria Constituição vista como realidade constituída e publicização. Haberle faz uma distinção entre interpretação constitucional em sentido amplo e sentido estrito, sendo a primeira aquela que oferece grande campo ao debate e à renovação, a qual foi renegada pela doutrina mais conservadora de tradição formalista, e a segunda aquela que se utiliza dos métodos tradicionais provenientes do Direito Civil (gramatical, lógico, histórico e sistemático). Para o autor, por ser a Constituição a própria sociedade constituída, ou seja, a ordem fundamental do Estado e da sociedade, sua interpretação precisa se dar por meio de um processo aberto. Sua compreensão há de ser a mais ampla possível, abrangendo todos os atores que participam ativa ou passivamente da comunidade política. Assim, somente a interpretação constitucional vista por essa ótica lata pode ser considerada interpretação de fato, pois realiza a conexão entre o cidadão, como intérprete, e o jurista, como hermeneuta profissional, o que torna juridicamente relevante a interpretação espontânea do cidadão diante daquela empreendida pelo profissional habilitado que a realiza de forma racional, consciente e personalizada. Nesse contexto, certo é que o Juiz ao interpretar em sentido estrito sofre a influência da interpretação em sentido lato que ele próprio, como cidadão, realiza com base na denominada pré-compreensão do intérprete; e sendo esta última o elemento de ligação entre as duas modalidades de intérpretes, podem unir-se de forma sistemática na mesma pessoa. Somente assim o regime democrático pluralista e os direitos fundamentais podem, de fato, ser observados. Com o método concretista, a atualização da Constituição somente é possível quando esta absorve as mudanças sociais por meio da interpretação em sentido amplo, ou seja, somente uma interpretação que parta da observância da realidade social e que permita a participação DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES nesse processo de todos aqueles que compõem a sociedade pode concretizar as normas constitucionais. A respeito do pensamento de Haberle comenta Paulo Bonavides:20 Demonstra o constitucionalista que o conjunto de processos sociais, nos quais o direito se insere como “direito em ação”, permanecem exteriores e “anteriores” à interpretação “jurídica”. Mas funcional, pessoal e materialmente são parte da mesma interpretação. A Mudança social, ao acarretar as mudanças constitucionais tácitas decorrentes do fator tempo, só se explica à luz de uma “interpretação da Constituição” em sentido amplo. Afirma ele, todavia, numa ressalva importantíssima, que a interpretação constitucional em sentido amplo não é sinônimo de “política”, embora o político, ele mesmo, seja um intérprete. Antes do advento dessa nova concepção hermenêutica, o processo de interpretação constitucional estava aprisionado num campo extremamente limitado, do qual somente participavam os intérpretes em sentido estrito, ou seja, os intérpretes profissionais do Estado. Contudo, pela nova metodologia proposta por Haberle, a interpretação é tarefa de cada indivíduo, e de todos ao mesmo tempo. Em outras palavras, a atribuição de sentido às normas constitucionais, até então, era vista como trabalho apenas do técnico do Direito, revelando-se como fenômeno inerente ao que o autor denomina “sociedade fechada”, enquanto o método concretista é coisa da “sociedade aberta”, vez que permite a participação de todos aqueles que a vivenciam materialmente. Daí por que se pode concluir que o método pregado por Haberle é o que mais se ajusta à sociedade democrática e pluralista. Por outro lado, a velha hermenêutica, pela sua feição estática, tendo em vista que enclausurada em métodos tradicionais monopolizados pelos intérpretes de profissão e que decorrem única e exclusivamente do pensamento lógico-dedutivo, revela-se como instrumento das ideologias conservadoras, avessas à plena participação democrática do povo no processo interpretativo. 20. BONAVIDES, 2005. 21. Idem, ibidem. 1121 Além disso, dentro desse contexto democrático, no qual se insere o método concretista, tem-se que a eficácia deste depende de uma sociedade altamente avançada do ponto de vista político, conforme assinala Paulo Bonavides:21 Demais, o método concretista da “Constituição aberta” demanda para uma eficaz aplicação a presença de sólido consenso democrático, base social estável, pressupostos institucionais firmes, cultura política bastante ampliada e desenvolvida, fatores sem dúvida difíceis de achar nos sistemas políticos e sociais de nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, circunstância essa importantíssima, porquanto logo invalida como terapêutica das crises aquela metodologia cuja flexibilidade engana à primeira vista. O Método Concretista da Constituição Aberta, portanto, ao superar os métodos tradicionais da velha hermenêutica, típicos da era positivista, tornou-se o método por excelência da Teoria Material da Constituição, ao trazer para o centro da discussão doutrinária o papel do hermeneuta na concretização dos direitos constitucionais e, em especial, dos direitos fundamentais. 3.2. A concretização dos direitos fundamentais pela via da interpretação constitucional A teoria concretista, acima esmiuçada, mostra-se a mais adequada para a interpretação das normas de direitos fundamentais, e sua maior contribuição é tentar estabelecer um meio-termo entre as teorias hermenêuticas tradicionais e as demais teorias da hermenêutica contemporânea. Nesse contexto, a jurisdição constitucional desempenha o papel de concretizar os direitos fundamentais. A concretização constitucional é um método e um processo. Método porque estabelece diversos parâmetros hermenêuticos para a interpretação da Constituição, e processo quando estabelece a utilização prática do método proposto. Os métodos concretistas de interpretação constitucional acabam por permitir uma aproximação entre a Constituição e a realidade social, à luz dos elementos axiológicos e teleológicos e dos direitos fundamentais. 1122 BDA – Boletim de Direito Administrativo – Outubro/2013 Sobre o tema leciona Paulo Bonavides 22 que pelo caráter principiológico e axiológico dos direitos fundamentais, estes não se interpretam, mas concretizam-se. Além de Haberle, cuja teoria hermenêutica foi explicitada acima, Konrad Hesse é um dos representantes dos métodos concretistas e contribuiu de forma decisiva para a hermenêutica material da Constituição. Para Hesse, interpretar a Constituição é concretizá-la, isto é, seu conteúdo deve ser extraído incorporando-se à realidade a ser organizada. Dessa forma, o processo interpretativo possui cunho criativo, pois o conteúdo das normas apenas se completa com sua interpretação, mas a atividade interpretativa deve vincular-se sempre à norma. Diz o jurista:23 Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem presentes, na ­consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Além disso, para Hesse, a interpretação constitucional pressupõe a compreensão do conteúdo da norma a concretizar e não deve se desvincular nem da pré-compreensão do intérprete nem do caso concreto a ser solucionado. Trata-se de um procedimento tópico que deve, portanto, partir do problema, contudo sempre norteado pela norma, que é capaz de produzir resultados seguros. Entretanto, o problema existente na interpretação dos direitos fundamentais é a definição do que seja uma concretização adequada, podendo ser esta considerada aquela que promova a má- 22. BONAVIDES, 2003, p. 572. 23. HESSE, 1991, p.19. 24. ALEXY, 1999, p. 61. xima eficácia normativa, tendo em vista a força normativa da Constituição professada por Hesse. Para tanto, além do material técnico-jurídico, é necessária uma postura ética e uma interdisciplinaridade com a ciência política, a sociologia, a filosofia e outros ramos do conhecimento relacionados ao processo de concretização da Constituição. Os direitos fundamentais têm um caráter moral e estão relacionados com o Direito. Por exemplo, o direito moral à vida implica um direito à proteção estatal daquele direito. Logo, surge um direito moral ao Direito Positivo, pois o respeito aos direitos fundamentais é uma condição legitimadora do Direito escrito. Ainda sobre o tema, Alexy24 sustenta que os direitos fundamentais cuidam de interesses cuja fundamentalidade justifica a necessidade de seu respeito ou proteção jurídica. Esse interesse é fundamental quando sua violação resulta em morte, sofrimento grave ou influência no núcleo essencial da autonomia, sendo compreendidos aqui não só os direitos liberais clássicos como também os direitos sociais que visam assegurar o mínimo de dignidade. Com efeito, uma hermenêutica que pretenda concretizar os direitos fundamentais invariavelmente necessita desvincular-se do constitucionalismo liberal, marcado pela defesa do indivíduo, avançando-se rumo ao constitucionalismo social, capaz de priorizar os valores da igualdade e da dignidade humana. Foi justamente com esse espírito transformador e inovador que se desenvolveu a teoria concretista da Constituição, como forma de viabilizar a efetivação de tais valores supremos tutelados juridicamente. Por tudo isso, tem-se que os direitos fundamentais presentes na Constituição foram legitimados pela comunidade, pois fazem parte da sua consciência ético-jurídica, dependendo a sua concretização de um método de interpretação que permita a participação político-jurídica, o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição no bojo de uma democracia plural. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Conclusão Vivemos um momento de superação do modelo positivista que limitou o universo jurídico ao seu aspecto puramente normativo e funcional, ao preocupar-se apenas com a questão da validade das normas jurídicas e da relação estabelecida em seu interior, para adentrarmos numa concepção de direito comprometida com valores entendidos como fundamentais pela comunidade política criadora da Constituição. Em razão dessa nova feição axiológica do Direito, necessário se fez o desenvolvimento de uma teoria hermenêutica que viabilizasse a concretização de tais valores, e tal conclusão decorreu da insuficiência dos métodos clássicos de interpretação elaborados no contexto histórico-jurídico positivista. Assim, nasceram os denominados métodos concretistas de interpretação constitucional, cujo objetivo é permitir a efetivação dos direitos constitucionais e em especial dos direitos fundamentais, por meio de uma aproximação entre as normas constitucionais estabelecidas e a realidade social na qual está inserido o caso concreto a ser solucionado. Para tanto, impositivo foi o reconhecimento de que todos os membros da comunidade política, e não apenas os técnicos do Direito, são genuínos intérpretes da Constituição e, portanto, que a interpretação é um fenômeno público. Logo, somente uma interpretação assim concebida é compatível com uma sociedade democrática e pluralista comprometida, acima de tudo, com a dignidade humana e sua efetiva observância na realidade social. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Tradução de Luís Afonso Heck. 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