1 Relações de gênero, feminismo e subjetividades – ST 33

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Relações de gênero, feminismo e subjetividades – ST 33
Giovana Ilka Jacinto Salvaro
Raquel Jaqueline Freiberger Testoni
UFSC
Palavras-chave: Subjetividades - trabalhadoras urbanas e rurais - gênero e maternidade
Gênero, maternidade, trabalho urbano e rural: subjetividades femininas em discussão
1. A temática e sua gênese
Ao longo dos nossos cursos de mestrado, vinculadas ao mesmo Programa de PósGraduação, Linha e Núcleo de Pesquisa, esboçamos e realizamos estudos sobre mulheres
trabalhadoras em contextos rural e urbano. No contexto rural, foram analisados os significados
produzidos por trabalhadoras/es rurais sobre a divisão sexual do trabalho em um assentamento
coletivo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em SC1. No urbano2, foram
analisados quais os sentidos de gênero constituídos nas trajetórias de vida de mulheres chefes de
famílias de um bairro de camada popular3, em uma cidade do litoral catarinense.
Seguidas às conclusões e defesas dos respectivos estudos, outras possibilidades
analíticas foram (re) desenhadas, por conta do interesse comum de prosseguir pesquisando sobre
temáticas que envolvem a constituição do sujeito, relações de gênero, entre outras interfaces. É
nessa perspectiva que se insere o presente texto, como possibilidade de promover uma discussão
acerca da constituição de subjetividades femininas, nas interfaces entre gênero, maternidade e
trabalho, no que concerne aos contextos rural e urbano.
2. Mulheres urbanas e rurais: (re) tomando algumas discussões
Propor uma reflexão sobre mulheres urbanas e rurais requer retomar algumas definições
conceituais, com o intuito de situar o lugar do qual se fala sobre gênero, maternidade e
subjetividade.
Heleieth Saffioti (2004) é convidativa ao declarar que “cada feminista enfatiza
determinado aspecto do gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a
construção social do masculino e do feminino” (p.45). A autora indica que se trata de um conceito
que não mobiliza definições que se colocam na diversidade das tramas teóricas. E, neste caso, o (re)
conhecimento da existência de uma diversidade conceitual se revela como fundamental aos que se
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dedicam aos estudos de gênero. Por ora, como parte das discussões que se estabelecem neste
campo, faremos referência ao que nos apresentam Joan Scott (1998), Judith Butler (2003) e
Françoise Hèritier (1996).
Scott (1998) refere-se ao gênero como o “discurso da diferença dos sexos” (p.115). Tal
definição, segundo a autora, não diz respeito “apenas às idéias, mas também às instituições, às
estruturas, às práticas quotidianas, como também aos rituais e a tudo que constitui as relações
sociais” (p.115). Na perspectiva anunciada, o gênero constrói o sentido da realidade biológica, de
modo a se contrapor aos modelos teóricos que se fundamentam nas noções de que a biologia
determina características psicológico-sociais que diferenciam homens e mulheres.
Sobre o gênero como construção social do sexo, Butler (2003) aponta para o fato de que
há aí questões que merecem ser (re) vistas. Segundo a autora, “o gênero não deve ser meramente
concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção
jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos
são estabelecidos” (p.25). Problematiza com isso, a concepção do sexo como não construído e
anterior à cultura, de modo que a diferença dos sexos, sobre a qual o gênero se constitui como
discurso, é também colocada na ordem do discurso.
Ao tematizar sobre a relação entre o feminino e o masculino, Hèritier (1996) vem
colaborar com o debate sobre as questões de gênero, elaborando uma análise desta relação, a qual
chamou de “valência diferencial dos sexos”. Herdeira do pensamento levistraussiano, a autora
sustenta a idéia de que o social é construído pela diferença, tal como a assimetria irredutível entre os
sexos, ou seja, parte do princípio de que é a partir da observação das diferenças sensíveis –
fisiológicas e morfológicas – que a humanidade constrói o seu pensamento. Desta forma, a
diferença entre os sexos é a base para a oposição idêntico e diferente, na qual todas as outras
categorias binárias irão se sustentar. O que ela problematiza, porém, é saber por que há hierarquia
no interior destas categorias, pois não há uma definição de masculino e feminino por natureza, e
sim, um valor diferenciado atribuído aos sexos – a qual comporta sempre uma qualificação superior,
e, portanto, melhor, ao masculino.
A maternidade, categoria também presente nas discussões acerca do “ser feminino” é
entendida aqui como uma construção social. Como tal, está diretamente associada às modificações
pela qual a família tem passado a partir de transformações que permitiram, entre outras questões, a
organização dos Estados modernos e a instalação da ordem econômica burguesa, principalmente do
século XVII em diante, em um movimento de constituição das chamadas sociedades disciplinares
(Deleuze, 1992).
Vários são os estudos acerca da instituição familiar4 , os quais elucidam e colocam em
questão a corrente naturalização de conceitos e práticas relacionadas à maternidade e aos cuidados
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maternos, operados e construídos no decorrer desse processo histórico.
Esteve relacionada à
concepção de maternidade a idéia subjacente de maternagem, como sendo esta uma função
feminina por excelência, concernente à natureza da mulher (Moura e Araújo, 2004). A exaltação ao
amor materno, sendo descrito como um vínculo “instintivo” e “natural” é um fato relativamente
recente na história da civilização ocidental. Sua construção, pelos discursos médico, filosófico e
político o tornou um “mito” (Badinter, 1985) e uma “função” da mulher.
Não se pode, contudo, ao pensar a contemporaneidade, deixar de considerar as “novas
maternidades”, presentes em especial, nas diferentes configurações familiares das camadas médias.
Porém, tanto nesses contextos, quanto – e principalmente – nos contextos rurais e urbanos
populares, revela-se uma realidade de práticas e discursos ainda marcados por permanências que
dizem respeito a toda uma construção histórica e cultural, fundadas, principalmente, pela regência
de uma nova norma, a “norma familiar burguesa” (Arend, 2006). Neste panorama, a concepção de
maternidade associa-se aos construtos sobre masculino e feminino, e, portanto, às questões de
gênero.
Diante do que anunciamos no título desse texto, “subjetividades femininas em
discussão”, cabe, portanto, a tentativa de apresentar uma possibilidade de conceituação. Sobre esse
aspecto, pensamos a temática da subjetividade a partir do que discute Michel Foucault. Como
esclarece Prado Filho (2005), ao tratar da tematização da subjetividade nas análises de Michel
Foucault, “(...) a questão da subjetividade é trabalhada de forma bem genealógica, como
multiplicidade de práticas sobre sujeitos concretos – sobre seus corpos (...)” (p.43).
Trata-se de pensar a subjetividade não como algo inerente aos sujeitos, mas em termos
de práticas sociais e discursivas. No caso das subjetividades femininas, implica pensar as práticas
sociais que as produzem e a partir das quais as mulheres passam a se anunciar.
Consideramos que os apontamentos acerca de algumas definições de gênero,
maternidade e subjetividade, possibilita-nos (re) tomar algumas das discussões que tramamos nas
pesquisas anteriormente citadas. Em primeiro lugar, importa destacar que compreendemos os
contextos urbano e rural, lócus das práticas sociais constitutivas das subjetividades das mulheres
estudadas, de acordo com o que discute Emma Siliprandi, como um “todo interligado, com relações
econômicas, políticas, sociais e culturais permeadas por relações de poder” (p.126). É essa condição
que nos permite pensar que o urbano e o rural não implicam modos de vida incomunicáveis entre si,
pois as relações acima citadas atravessam todo o tecido social. Podemos, é claro, designar relações
que se diferenciam por conta de práticas contextualizadas de trabalho, de produção e reprodução
familiar, entre outras. Mas eis aí um ponto que nos permite também identificar práticas sociais que
se reproduzem e extrapolam diferentes contextos e que, especificamente, constituem o nosso
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interesse e o esforço de estudo. Queremos, com isso, indagar a respeito de algumas das práticas
constitutivas de subjetividades femininas nos contextos urbanos e rurais.
Sobre práticas sociais e constituição de subjetividades femininas, no que diz respeito ao
assentamento rural coletivo estudado, ressaltamos que discussões sobre questões de gênero foram
incorporadas ao processo de organização/divisão do trabalho; de modo que, como prática
constitutiva de sujeitos integrantes de um movimento social, os cadernos de formação trazem
diretrizes que tratam, entre outras coisas, do fato de que “(...) a coordenação do núcleo5 deverá ser
necessariamente compartilhada em pé de igualdade por um homem e por uma mulher, escolhidos
por todos os membros do núcleo (...)” (MST, 2001, p. 84-85).
Como prática discursiva que se impõe ao cotidiano das relações sociais no
assentamento, algumas questões merecem ser considerados, dentre as quais as que mobilizam a
inserção das mulheres nos setores de trabalho, como forma de assegurar uma participação
igualitária, de modo a conciliar com atividades domésticas e, em especial, com o cuidado dos filhos.
Isto, com certeza, não se apresenta como estranho, pois como ressalta Woortmann (1995) “é
evidente que o trabalho da mulher é de tempo parcial porque, pela divisão sexual do trabalho,
ideologicamente engendrado, competem-lhes as tarefas domésticas” (p.35). E no que tange à
divisão sexual do trabalho, segundo Souza Lobo (1991), faz-se necessário considerar a relação
assimétrica entre produção de bens mercantis e reprodução dos seres humanos.
No que se refere ao contexto urbano estudado, marca-se a presença de “mulheres chefes
de família” 6, apresentadas por um conjunto outro de práticas sociais. No decurso de suas trajetórias
rompem com a união conjugal, assumindo, dessa forma, uma posição ativa diante da família e
perante a comunidade. Ao tomarem para si o comando de suas famílias, enquanto chefes quebram
com a permanência, mesmo que temporária, da clássica divisão de ‘papéis’, ou seja, da divisão
sexual do trabalho, que delega ao homem a função de provedor e à mulher a de dependência e
subjugação ao homem e às funções domésticas. Entretanto, quando a experiência do trabalho
remunerado e fora do lar acontece em suas trajetórias, esta é marcada pela condição da “ausência
masculina”, sendo que ocorre em outro ambiente doméstico e é delimitado, então, por atividades
consideradas “femininas”. Reforça-se assim, além dos aspectos citados, a permanência da dupla
jornada de trabalho na vida dessas mulheres.
Torna-se importante destacar, que em seus discursos, não foram nem na posição de
trabalhadoras, nem na posição de esposas – posições igualmente valoradas em seus universos
simbólicos - que se definiram enquanto ‘mulheres’. É justamente na posição da maternidade que
ancoraram subjetivamente o seu sentido generificado em ‘ser mulher’, revelando uma ambigüidade
de discursos coexistentes e disponíveis no contexto popular urbano.
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Diante do que apresentamos, queremos destacar que, mesmo não desconsiderando a
existência de diferenças que marcam universos simbólicos distintos, como o são os contextos rurais
e urbanos, há que se questionar acerca das semelhanças que emergem ao tratar-se de constituição de
subjetividades femininas. Podemos pensar então, que as mulheres se anunciam a partir de atividades
e posições demarcadas por práticas sociais e discursivas que se reproduzem e extrapolam os
diferentes contextos, não estando relacionadas a uma ordem “voluntária” dos sujeitos envolvidos ao
definir-se enquanto femininos ou masculinos, mas estabelecidas por uma outra ordem, a saber, uma
ordem discursiva. Assim, nos leva a refletir que isto que “extrapola” estas diferenças e revela,
portanto, semelhanças, justifica que o gênero, entendido por si só enquanto uma inscrição cultural
de significado sobre um sexo previamente dado, não dá conta de explicar estas semelhanças. É
preciso buscar, conforme sugere Butler (2003), por este “aparato mesmo” que produz e estabelece
também os sexos em uma ordem discursiva, o qual acaba por conformar as subjetividades
principalmente no que tange às questões de gênero, trabalho, maternidade e práticas discursivas a
elas correlatas.
Referências
AREND, Silvia M. F. Paradoxos do Direito de Família no Brasil: uma análise à luz da História
Social da Família. (no prelo)
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
BERQUÓ, Elza. Perfil demográfico das chefias femininas no Brasil. In: Bruschini, C. e Unbehaun
(orgs.). Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Carlos Chagas,
2002.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
GROSSI, Miriam P., HEILBORN, Maria Luiza, RIAL, Carmen. Entrevista com Joan W, Scott.
Revistas Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v.6, n.1, p-114-124, 1998.
HÈRITIER, Françoise. Masculino, feminino. O pensamento da diferença. Lisboa: Instituto Piaget,
1996.
PRADO FILHO, Kleber. Uma história crítica da subjetividade no pensamento de Michel Foucault.
In: SOUZA, Pedro de, FALCÃO, Luis Felipe (orgs). Michel Foucault: perspectivas. Rio de Janeiro:
Achiamé, 2005.
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SAFFIOTI, Heleieth I. S. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2004.
SALVARO, Giovana I. J. “Ainda precisamos avançar”: os sentidos produzidos por
trabalhadoras/es rurais sobre a divisão sexual do trabalho em um assentamento coletivo do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em SC. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 2004.
SILIPRANDI, Emma. Urbanas e rurais: a vida que se tem, a vida que se quer. In: VENTURI,
Gustavo, RECAMÁN, Marisol, OLIVEIRA, Suely (Orgs). A mulher brasileira nos espaços público
e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência.
São Paulo: Brasiliense, 1991.
TESTONI, Raquel Jaqueline Freiberger. Tecendo a urdidura comum com os fios específicos
sentidos de gênero em mulheres chefes de família das camadas populares. Dissertação (Mestrado
em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 2005.
WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec. Brasília: Edunb,
1995.
1
Salvaro (2004): estudo realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em psicologia da Universidade Federal de
Santa Catarina – Mestrado, na linha de pesquisa “Práticas sociais e constituição do sujeito”, sob a orientação da Profa.
Dra. Mara Coelho de Souza Lago.
2
Testoni (2005): estudo realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Santa Catarina – Mestrado, na linha “Práticas sociais e constituição do sujeito”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria
Juracy Filgueiras Tonelli.
3
O conceito de popular conforme Fonseca (1995, p. 15) “... designa um recorte analítico que enfoca grupos de baixa
renda. O conceito, tal como o empregamos, não implica nem homogeneidade nem isolamento dos sistemas simbólicos
deste universo social”. (Fonseca, Claudia. Caminhos da Adoção. São Paulo: Cortez. 1995).
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Ver, entre outros, Áries (1981), Badinter (1985), Chodorow (1990), Donzelot (1986).
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No caso estudado, os núcleos intermediavam as discussões entre os setores e entre os setores e a direção do
assentamento.
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Uma chefia feminina pode ter vários significados, conforme nos aponta Berquó (2002), mas o que se refere para o
presente trabalho são as mulheres chefes de famílias separadas ou viúvas, com filho, tendo ou não parentes e/ou
agregados em casa, morando no mesmo domicílio, marcados pela ausência, mesmo que temporária, de um
companheiro.
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