Causas de Exclusão da Ilicitude no Direito Penal de Macau e sua

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Causas de Exclusão da Ilicitude no Direito Penal de Macau e
sua Base Teórica
— Estudo Comparativo entre Estas e as Previstas no Direito
Penal
da China Continental*
Yang Xinpei**
Com a aproximação de 20 de Dezembro de 1999, o retorno de Macau à China
está a tornar-se uma realidade. Nos termos da Lei Básica da RAEM da RPC, depois
do retorno, aplicar-se-á em Macau o princípio fundamental de «um país, dois
sistemas», i.e., para além de ser mantido o actual regime capitalista em
Macau, quanto ao regime jurídico, aplicar-se-á também o regime actual.
Conformando-se com esta situação específica de desenvolvimento histórico,
o Governo de Macau publicou em 14 de Novembro de 1995 o Código Penal de Macau,
que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1996. Assim, dentro do âmbito de
soberania da China, forma-se o quarto sistema jurídico de direito penal
relativamente independente. «Em sociedades sujeitas a um forte impulso de
aceleração, os códigos penais continuam a ser leis destinadas a uma grande
estabilidade1». A elaboração e entrada em vigor do Código Penal de Macau é
um evento jurídico histórico para a RAEM, que dá por finda a história da
adaptação desde sempre do Código Penal português de 1886 a Macau, iniciando
uma nova era com um regime jurídico penal próprio de Macau. O capítulo III
do Título II do Código Penal de Macau regula especificamente o conteúdo
fundamental das causas que excluem a ilicitude e a culpa. Nesta altura de
aproximação do retorno de Macau à China, queria fazer um estudo específico
deste conteúdo tão importante do direito penal de Macau, analisando por
comparação
as
disposições
correspondentes
no
direito
penal
da
China
continental, favorecendo assim um intercâmbio e cooperação entre as teorias
de direito penal dos dois lugares e contribuindo para o enriquecimento da
teoria de direito penal de toda a China.
I — Disposições e atributo jurídico das causas de exclusão da
ilicitude no direito penal de Macau
Nos termos do artigo 30.º (exclusão da ilicitude) sobre as «causas que
excluem a ilicitude e a culpa» do Capítulo III do Título II do Código Penal
de Macau, «1. O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela
ordem jurídica considerada na sua totalidade. 2. Nomeadamente, não é ilícito
o facto praticado: a) Em legítima defesa; b) No exercício de um direito; c)
No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade;
ou d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado». Assim,
podemos ver que nestes termos de exclusão da ilicitude, o direito penal de
Macau consagra especificamente quatro causas de exclusão da ilicitude,
designadamente: a legítima defesa, o estado de necessidade, o cumprimento
de um dever ou de uma ordem e o acto consentido.
Segundo a teoria de direito penal ocidental, a exclusão da ilicitude
também é designada por exclusão da violação de lei ou descriminalização. A
teoria de direito penal de Taiwan, que também faz parte do sistema jurídico
continental ocidental, defende que: «A ilicitude e a ofensa provocadas pelo
acto são ambos requisitos para a constituição do crime mas têm natureza
diferente. A ofensa é o estado em que uma conduta ofende o interesse jurídico,
enquanto a ilicitude é o valor passivo que uma conduta manifesta, ou seja,
em relação às várias condutas puníveis que violam a ordem jurídica e que
ofendem os bens jurídicos públicos e privados, o direito penal elabora disposições
abstractas.
A
ciência
de
direito
penal
chama
a
isto
factos
constituintes do crime juridicamente previstos. Quanto ao seu conteúdo
objectivo, por um lado revela quais os vários bens jurídicos públicos e
privados ofendidos, é uma configuração no direito penal da ofensa dos bens
jurídicos; por outro lado revela as consequências de violação da ordem
jurídica, é uma configuração no direito penal de actos ilícitos. Portanto,
se o acto praticado configura uma ofensa a bens jurídicos, é ofensivo e se
também configura uma ilicitude, pode concluir-se que é ilícito2». Mas «os
actos ilícitos não só violam o direito escrito, na prática também violam a
ordem moral da sociedade; como o acto posterior não é aceitável pelo direito
escrito, é uma violação de lei em sentido material... O direito penal não
tem como princípio a censura de todos os actos ilícitos; geralmente os actos
considerados ilícitos pelo direito escrito não são todos considerados actos
puníveis pelo direito penal. Tendo avaliado os prós e os contras, o Estado
atribui os efeitos do direito penal apenas a certos actos ilícitos3». Assim,
dentro dos actos considerados ilícitos formalmente, alguns estão previstos
no direito penal como puníveis, e outros estão previstos no direito penal
como actos que excluem a criminalidade e não são puníveis. São estes actos
cuja
ilicitude
(criminalidade)
é
excluída.
Quando
um
acto
favorece
objectivamente o interesse geral da sociedade, mesmo que esse acto seja
formalmente ilícito, exclui-se a sua criminalidade desde que esta exclusão
esteja juridicamente prevista por disposições especiais. As disposições de
exclusão da ilicitude previstas no direito penal de Macau prevêem a
impunibilidade de tais factos e baseiam-se na consideração da ordem jurídica
na sua totalidade.
Conforme a teoria de direito penal no interior da China, os actos de
exclusão da ilicitude são designados actos que excluem a perigosidade social.
Ainda
que
esses
actos
sejam
considerados
como
actos
que
possuem
objectivamente características de actos que constituem crime, o agente actua
com o objectivo de salvaguardar os interesses sociais de legalidade, visando
excluir um acto existente com perigosidade social. Por isso, não existe
responsabilidade penal. No direito penal do interior da China, a natureza
jurídica dos actos que excluem o perigosidade social partem do objectivo
subjectivo do agente, chegando à conclusão de que os actos que excluem a
perigosidade social devem basear-se numa intenção benévola. Então no direito
de Macau, para definir a natureza jurídica dos actos que excluem a ilicitude,
deve partir-se primeiro do estado psicológico subjectivo do agente, ou dos
efeitos objectivos do acto? Conforme o artigo 30.º do Código Penal de Macau:
«O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica
considerada na sua totalidade», para definir se um acto ilícito é excluído
da criminalidade ou não, deve partir-se primeiro da ordem jurídica na sua
totalidade, realçando o interesse de tal facto para a ordem jurídica na sua
totalidade, e não se deve partir do estado psicológico subjectivo do agente.
Ele reconhece por um lado que os actos ilícitos têm elementos de facto ilícito
e por outro lado considera que os actos ilícitos desse facto são excluídos
pelas disposições legais como não criminalizados, porque esses actos são
tolerados objectivamente pela ordem jurídica na sua totalidade. No direito
penal de Macau, os factos que excluem a ilicitude não excluem o dolo na sua
forma aparente. Nos termos do artigo 13.º do Código Penal de Macau, «1. Age
com dolo quem, representando-se um facto que preenche um tipo de crime, actuar
com intenção de o realizar. 2. Age ainda com dolo quem se representar a
realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência
necessária da sua conduta. 3. Quando a realização de um facto que preenche
um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há
dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização». Por isso, é
indubitável que quando se pratica, sem erro de entendimento, um acto que
exclui a ilicitude, o agente tem dolo formal aparente previsto no direito
penal. Nos termos do artigo 12.º do Código Penal de Macau, é punível o facto
praticado com dolo. Mas perante o pressuposto de punir necessariamente o crime
cometido com dolo, o direito penal de Macau tem em consideração os efeitos
activos da legítima defesa e do estado de necessidade para toda a ordem
jurídica e exclui objectivamente a ilicitude da conduta do agente, não tendo
em conta se o agente actua subjectivamente ou não com dolo formal4. É
necessariamente por causa disto que o artigo 32.º do Código Penal de Macau
dispõe que «Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto
é ilícito», i.e., é crime. Esta norma parte da consideração, em termos de
efeitos objectivos que, se a conduta for favorável a toda a ordem jurídica
fica afastada a ilicitude. Quando a conduta ultrapassa os limites toleráveis
por toda a ordem jurídica, mesmo que o agente da legítima defesa actue
subjectivamente com boa intenção, o direito não exclui a sua ilicitude mas
a pena pode ser especialmente atenuada.
Quando comparamos o direito penal de Macau que reconhece a exclusão da
ilicitude e salienta a sua natureza objectiva, com o direito penal da China
continental que exclui o acto perigoso à sociedade e salienta a sua natureza
subjectiva, descobriremos que quando o direito de Macau exclui especialmente
os actos ilícitos, salienta à partida a relevância dada à ordem jurídica na
sua totalidade e tem um critério objectivo relativamente concreto e uma
operacionalidade relativamente definida. É que é sempre mais fácil qualificar
a não perigosidade objectiva do que a não culpabilidade subjectiva. A não
perigosidade objectiva em si já não preenche o requisito objectivo da
constituição do crime no direito penal moderno, por isso a não constituição
de crime com fundamento na falta de perigosidade objectiva já é aceite pela
teoria de direito penal moderna. É sobretudo por causa disto que é razoável
o reconhecimento subjectivo de actos tais como a legítima defesa como actos
que não preenchem requisitos constituintes do crime, mas quando fazemos uma
análise profunda desses actos, é fácil descobrir que, em termos subjectivos,
existem duas questões que ainda não foram atendidas e resolvidas:
Primeiro, a qualificação subjectiva segundo a qual os agentes de actos
praticados com legítima defesa não têm culpa, i.e., a legitimidade da intenção
da legítima defesa pode determinar a sua legalidade. No entanto, a própria
legítima defesa engloba duas situações: oportunidade de legítima defesa e
excesso de legítima defesa. Tanto a legítima defesa propriamente dita como
o excesso de legítima defesa estão sujeitos à determinação da intenção da
legítima defesa. Caso só se parta da legitimidade da intenção da defesa e
se considere a legítima defesa como uma exclusão do perigo social sem culpa,
para resolver o fundamento teórico da legítima defesa sem responsabilidade
penal, não se explica indubitavelmente o fundamento teórico do excesso de
legítima defesa, cuja intenção é da mesma natureza que a legítima defesa,
está sujeita à determinação da mesma intenção, constitui crime e está sujeita
à responsabilidade penal.
Segundo, partindo da avaliação política e social, considera-se que o acto
da legítima defesa não tem subjectivamente culpa nem perigosidade para a
pessoa, não tem objectivamente perigo social e é um acto favorável à
sociedade, considerando assim actos tais como a legítima defesa excluídos
da perigosidade social sem responsabilidade penal. No entanto, na vida
quotidiana da sociedade, os actos praticados com a intenção de defender o
interesse da sociedade não se limitam à legítima defesa e aos actos previstos
especialmente pela lei. Porque é que o direito penal só prevê certos actos
tais como a legítima defesa e não prevê especificamente muitos outros actos
claramente favoráveis à sociedade?
Então, onde fica o cerne da questão? Ao longo dos tempos, a análise da
natureza jurídica de actos, tais como a legítima defesa, reconhecidos como
actos com exclusão da ilicitude, partia da legitimidade da intenção e da
afirmação da avaliação sócio-política, revelando assim que o agente da
legítima defesa não constitui um perigo para a sociedade. Certo conteúdo da
actividade psicológica subjectiva determina a natureza do acto praticado sob
o controlo desta mesma actividade, a intencionalidade de actos como a legítima
defesa revela a vantagem desses actos, determinando assim a distinção
material entre esses actos adequados e o crime. No entanto, as características
aparentes dos actos como a legítima defesa aparecem sob a forma de dano à
pessoa e aos bens dos outros, dando objectivamente um aspecto aparente de
crime aos actos praticados em legítima defesa. Mas, na realidade, esses actos
com um aspecto aparente de crime impedem e excluem a perigosidade social,
ou visam defender interesses sociais mais importantes, portanto os actos em
si não têm perigo social. O perigo social é a característica mais importante
para a constituição dum crime. O crime no direito penal moderno fundamenta-se
no perigo social. A constituição do crime explica o perigo social do acto
com base na união entre a culpa subjectiva e o perigo objectivo. Os actos
como a legítima defesa, sendo actos que excluem o perigo social, são
favoráveis em si à sociedade. Como não têm o conteúdo material para a
constituição de crime que é a perigosidade social, desde que estejam no limite
adequado, naturalmente não constituem crime nem são puníveis.
Tendo actos como a legítima defesa uma característica aparente de crime
mas não tendo na realidade perigo social, o direito penal, que prevê
especificamente o crime, pode não abranger outros actos favoráveis à
sociedade, mas não pode deixar de ter disposições especiais para actos como
a legítima defesa e excluí-los do crime tendo em consideração a ordem jurídica
na sua globalidade. Partindo deste pressuposto, a teoria penal ocidental tem
razão quando considera actos, tais como a legítima defesa, como actos que
excluem a ilicitude penal. Han Zhong Mo, um estudioso de direito penal de
Taiwan, defende que: «O acto corresponde à intenção do agente, por isso não
se podem separar e ficar independentes. No entanto, para entender a situação
objectiva da ilicitude, a ciência analítica do direito tem que observar
isoladamente o acto separando-o da sua intenção. Por isso, a qualificação
da ilicitude tem como objecto principal actos que devem constituir crime em
termos jurídicos, o que evidentemente é
distinto da qualificação da
responsabilidade em que é preciso explorar a personalidade intrínseca do
agente e quando é que a sua actuação é criticável. Além disso, o direito é
constituído por normas objectivas e a determinação da responsabilidade
baseia-se no acto. Por isso, é razoável que no direito penal a qualificação
da ilicitude prevaleça sempre sobre a qualificação da responsabilidade5».
Na minha opinião, a determinação de actos tais como a legítima defesa como
actos excluídos da ilicitude social resulta da legitimidade da intenção e
da afirmação da avaliação sócio-política. Isto revela subjectivamente o
fundamento intrínseco da justiça social em que os actos tais como a legítima
defesa não devem dar origem a responsabilidade penal. Mas isto obviamente
não chega. Temos também de conhecer a natureza da exclusão jurídica da
ilicitude penal de actos como a legítima defesa, i.e., os actos tais como
a legítima defesa são também actos excluídos da ilicitude penal pelo direito.
Isto em relação ao interesse social e possibilidade de avaliação jurídica,
revelando objectivamente o fundamento jurídico extrínseco em que os actos
tais como a legítima defesa não têm responsabilidade penal. Neste sentido,
os actos tais como a legítima defesa constituem uma unificação da avaliação
sócio-política e da avaliação jurídica, possuindo também uma natureza de
exclusão do perigo social e de exclusão da ilicitude penal. Trata-se de uma
unificação na íntegra dos dois. Quando se diz que os actos tais como a legítima
defesa possuem uma natureza de exclusão do perigo social, estamos a fazer
uma afirmação da racionalização da natureza do acto perante a legitimidade
da intenção de actos tais como a legítima defesa, dando assim um fundamento
psicológico para a afirmação de que tais actos (a legítima defesa inclui a
legítima defesa propriamente dita e o excesso de legítima defesa) não são
praticados com a culpa subjectiva do dolo substancial. Quando se diz que os
actos tais como a legítima defesa possuem uma natureza de exclusão da
ilicitude penal, estamos a fazer uma afirmação da vantagem desta vertente
do acto quanto aos seus efeitos objectivos, dando assim um fundamento jurídico
para a afirmação de que tais actos não dão origem a responsabilidade penal
desde que não ultrapassem os limites necessários, não existindo assim excesso
ou actos inadequados.
Do mesmo modo, segundo a teoria penal moderna, o crime é uma unificação
da maldade subjectiva e do perigo objectivo. Não se constitui crime só com
a maldade subjectiva sem o perigo objectivo. Pelo contrário, também não se
constitui crime só com o dano objectivo sem a maldade subjectiva. No entanto,
a regra de harmonização da oposição entre o motivo e o efeito objectivo diz-nos
que, um bom motivo não produz necessariamente um bom efeito objectivo, podendo
causar às vezes um resultado objectivo que não corresponde ao motivo ou que
ultrapassa
o
resultado
pretendido.
Ao
mesmo
tempo
que
prevê
a
não
criminalização e não sujeição à punição penal de actos tais como a legítima
defesa, o direito penal moderno também prevê que o excesso que ultrapassa
certo limite ou o acto inadequado também constituem crime e estão sujeitos
à punição criminal. Isto revela que quando o direito penal moderno exclui
a ilicitude dum acto, surge um problema de critério objectivo, i.e.,
objectivamente tais actos não causam perigo social. Se tais actos no decurso
da sua prática causam danos indevidos que ultrapassam o limite necessário,
esta parte que ultrapassa não pode ser excluída pela lei. Todo o fundamento
teórico da lei sobre a exclusão da ilicitude reside aqui. É o que uma
qualificação, do ponto de vista apenas da legitimidade da intenção, segundo
a qual os actos tais como a legítima defesa têm uma natureza de exclusão da
ilicitude social, não consegue explicar.
O
crime
é
uma
manifestação
comportamental
da
unificação
entre
a
subjectividade e a objectividade. No entanto, quando existe contradição entre
a subjectividade e a objectividade, em que o motivo e os efeitos não se
harmonizam, deve ter-se em conta primeiro que a subjectividade ou a
objectividade são talvez uma «conjectura de Goldbach» no direito penal, cuja
racionalização aguarda o argumento da teoria penal. A teoria penal e as
disposições penais são diferentes em países diferentes. Porém, do ponto de
vista da operação fácil da prática judicial, é indubitável que a objectividade
é directa e mais segura. Neste sentido, deve admitir-se que o direito penal
de Macau tem razão quando determina que aos actos tais como a legítima defesa
é excluída a ilicitude.
II — O regime da legítima defesa no direito penal de Macau
O regime da legítima defesa é vulgar no direito penal moderno. O Código
Penal de Macau, que faz parte do direito penal moderno, também não é excepção.
O seu artigo 31.º tem um regime específico para a legítima defesa: «Constitui
legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão
actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de
terceiro». Esta disposição fornece o fundamento jurídico para o regime de
legítima defesa no direito penal de Macau.
A. Requisitos constitutivos da legítima defesa
É um princípio universal do direito penal moderno que a constituição da
legítima defesa tem que preencher certos requisitos. Através do artigo 31º
do Código Penal de Macau, podemos ver que a constituição da legítima defesa
exige os seguintes requisitos:
1. Existência de uma agressão ilícita
A agressão ilícita representa o acto com perigo social que viola os
interesses juridicamente protegidos. Este é o requisito primordial para a
constituição da legítima defesa. Quando um código prevê o regime da legítima
defesa e a exclui juridicamente como crime, é porque a legítima defesa em
si é um acto que exclui o perigo social. Sem a existência de uma agressão
ilícita, a legítima defesa torna-se uma seta sem alvo. No entanto, a forma
como se qualifica a natureza, âmbito, grau e estado da agressão ilícita é
uma grande questão para a qualificação correcta da legítima defesa e merece
um estudo.
1.1. Natureza da agressão ilícita
A existência de uma agressão ilícita é uma condição prévia para a legítima
defesa. Sem agressão ilícita, não há legítima defesa. No entanto, a agressão
ilícita em si é um conceito muito vago. Temos que determinar primeiro o que
é agressão ilícita para saber se houve ou não legítima defesa constituída
com base nela.
Quanto à agressão ilícita, a sua natureza reside na ilicitude, ilegalidade
e perigo social do seu acto. A prática de qualquer acto social tem que ter
relação com a sociedade, resultando numa reacção objectiva por parte da
sociedade. Na sociedade do sistema jurídico moderno, um acto social só é
qualificado como acto legal e protegido pela lei quando tem fundamento
jurídico bastante. Um acto de agressão ilícita reside primeiro na falta de
fundamento jurídico legal do próprio acto e tem uma característica jurídica
que
é
a
ilicitude.
Este
acto
não
pode
ser
consentido
ou
protegido
juridicamente. No entanto, na sociedade de sistema jurídico moderno, por mais
moderna e perfeita que seja a legislação, nunca é possível regulamentar todos
os actos sociais com disposições jurídicas, ficando sempre muitos actos
sociais
não
regulamentados.
Pode
dizer-se
que
todos
os
actos
não
regulamentados são actos sem fundamento jurídico. Mas isto não significa que
os actos não regulamentados sejam actos ilegais. Sob o ponto de vista do regime
jurídico moderno, a forma jurídica como regulamento comportamental pode
dividir-se em duas espécies: uma espécie são leis permissivas, que permitem,
encorajam as pessoas a fazer certos actos; outra espécie são leis proibitivas
que proibem as pessoas de praticar certos actos, punindo aquelas que
praticarem tais actos. Os actos de agressão ilícita não têm fundamento
jurídico, são sempre actos juridicamente proibidos e ilegais. Esta é a segunda
característica jurídica dos actos de agressão ilícita. Tendo em conta a ordem
jurídica na sua totalidade, os actos ilegais juridicamente proibidos
representam necessariamente um perigo social. Este perigo social pode
realizar-se com uma agressão ao próprio agente ou com uma agressão a uma
terceira pessoa; pode realizar-se com uma violação aos direitos pessoais ou
aos direitos patrimoniais da pessoa. Em suma, a natureza do acto de agressão
ilícita reside numa violação aos interesses legais juridicamente protegidos.
Por isso, a terceira característica jurídica necessária da agressão ilícita
é o perigo social que ela representa.
Mas devemos ter em conta que quando dizemos que a agressão ilícita tem
três características jurídicas, esta não é só uma conclusão obtida através
da observação da ordem jurídica na sua totalidade, mas é também uma conclusão
obtida através da avaliação da ordem jurídica. No entanto, quando já aconteceu
e existe um facto de agressão ilícita, a qualificação correcta desta agressão
exige não só que o agente tenha um bom conhecimento jurídico, mas também que
siga uma fórmula jurídica rigorosa, o que é impossível na realidade. Caso
isto fosse necessário, o agente perderia muitas vezes a oportunidade de
defesa. Por isso, quanto à condição prévia da legítima defesa, não podemos
esperar primeiro pela verificação da fórmula jurídica rigorosa e só depois
permitir que o agente pratique a legítima defesa. Sabemos que a sociedade
do sistema jurídico moderno, para além de indicar valores jurídicos claros
aos seus membros, também indica valores morais concretos. Neste sentido,
desde que o agente considere que os interesses juridicamente protegidos estão
a ser agredidos por actos ilícitos, pode realizar uma legítima defesa. Quanto
à questão de saber se esta legítima defesa pode constituir-se juridicamente
ou não e se o grau de defesa foi em excesso ou não, a resposta resulta de
uma avaliação jurídica. Não podemos com isto restringir o direito de execução
da legítima defesa pelo agente.
1.2. Âmbito da agressão ilícita
A característica jurídica da agressão ilícita revela o seu conteúdo. Mas
a forma como se define a extensão do âmbito da agressão ilícita, tem a ver
com a qualificação correcta da legítima defesa. Do ponto de vista jurídico,
a agressão ilícita pode dividir-se em crime e outros actos ilegais. Tanto
na teoria como na prática, a interpretação é uniforme quanto à possibilidade
do exercício da legítima defesa perante um crime grave. Achamos que não existe
uma barreira inultrapassável entre o acto ilegal e o crime. Não são imutáveis
mas são convertíveis. Na vida social quotidiana, através da legítima defesa,
destrói-se o acto ilegal no seu percurso, antes de este se transformar em
crime, defendendo mais os direitos e interesses legais juridicamente
protegidos. Quanto menor é o grau do crime, menor é o grau da defesa; quanto
maior é o grau do crime, maior é o grau da defesa. A intensidade da legítima
defesa é proporcional à intensidade do perigo do crime. Mas não temos
necessariamente de restringir o direito de legítima defesa do agente com o
fundamento de que o crime ainda está no seu percurso de desenvolvimento.
Senão, só se admitiria a legítima defesa quando o crime tivesse atingido um
elevado grau de gravidade ou atingisse o estado de consumação, e aí já seria
muito tarde.
1.3. Grau da agressão ilícita
A agressão ilícita representa sempre um perigo para a sociedade. No
entanto, no percurso de realização da agressão ilícita, a sua forma de
apresentação é muito complexa. Apesar de teoricamente podermos defender que
se admite o exercício da legítima defesa desde que haja um acto de agressão
com natureza ilícita, devemos ter em conta que a natureza da legítima defesa
determina que a mesma se concretize através do dano pessoal que se faz ao
agente de agressão ilícita. O agente da agressão ilícita deve ser repelido
pelo agente da legítima defesa e pela sociedade por causa da prática da
agressão ilícita, mas para além de ser repelido e sancionado por disposição
jurídica,
os
outros
direitos
que
lhe
são
devidos
são
protegidos
juridicamente. Da mesma maneira, a legítima defesa não é um meio de sanção
privado, mas é um meio suplementar quando a assistência posterior do poder
público não chegou a tempo de funcionar. Por isso, o exercício da legítima
defesa só é necessário quando o poder público nacional não chegou a tempo
de impedir a agressão ilícita. Neste sentido, a agressão ilícita só se torna
condição prévia para a legítima defesa quando há a possibilidade urgente duma
consequência perigosa.
1.4. Estado da agressão ilícita
Quanto ao estado de existência da agressão ilícita, este pode dividir-se
em: agressão passada, agressão actual e agressão iminente. Conforme a teoria
penal, a agressão ilícita já passada e a agressão ilícita que vai acontecer
só podem ser sancionadas ou prevenidas através de penas do Estado. É que caso
se pratique a legítima defesa também nestes estados da agressão ilícita, esta
será uma «defesa inadequada» que deve responsabilizar juridicamente o agente.
É precisamente por causa disso que o artigo 31.º do Código Penal de Macau
prevê explicitamente que só constitui legítima defesa o facto praticado para
repelir uma agressão actual e ilícita.
2. Protecção de direitos e interesses legais
Nos termos do artigo 31.º do Código Penal de Macau, a legítima defesa é
o facto praticado para repelir a agressão actual e ilícita de interesses
juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. A protecção de interesses
legais é pressuposto (objectivo) para a constituição da legítima defesa.
Falando ao nível estrutural da lógica jurídica, a protecção de interesses
legais tem como forma aparente actos que impedem a concretização da agressão
ilícita e que excluem o seu perigo social. Por isso, a protecção de interesses
legais é o núcleo do pressuposto (objectivo) da legítima defesa, e a exclusão
do perigo social e o impedimento da concretização da agressão ilícita são
a forma aparente da legítima defesa. Normalmente, quando o agente da legítima
defesa está a enfrentar uma agressão ilícita, para proteger os seus interesses
legais, pratica a legítima defesa. Na prática judicial, não existe problema
qualificativo em relação ao facto de a legítima defesa ser praticada para
proteger os próprios interesses legais, e quanto ao facto de existir uma
ligação estreita entre o pressuposto objectivo da legítima defesa e a
aparência da intenção de exclusão da perigosidade social e da repressão da
agressão ilícita. No entanto, queria apresentar aqui uma situação para
discussão: o agente tinha intenção de atacar outra pessoa; quando começa a
atacar, essa pessoa está a praticar uma agressão ilícita. Ou, quando o agente
está a praticar a legítima defesa para repelir a agressão ilícita doutrem,
descobre que essa pessoa é seu inimigo, por isso, ao mesmo tempo que pratica
a legítima defesa para repelir a agressão ilícita, concretiza a sua
necessidade psicológica de vingança. A teoria penal chama a isto «legítima
defesa aproveitada». Existem opiniões diferentes na teoria penal quanto à
questão de saber se tais actos com motivos diversificados podem ser
qualificados como actos que preenchem o pressuposto (objectivo) da legítima
defesa. Na nossa opinião, a exclusão jurídica da ilegalidade penal e a não
criminalização da legítima defesa não só reside na legitimidade do seu
elemento subjectivo, mas também na não perigosidade do acto objectivo. Quando
alguém pratica uma agressão ilícita, está a causar perigo à sociedade. Mesmo
que o agente da legítima defesa tenha motivos psicológicos complexos,
objectivamente o seu acto não só não causa perigo novo como exclui ainda um
perigo social. Um acto sem perigo social com certeza não constitui crime.
Mesmo que partamos do estado psicológico subjectivo do agente e determinemos
que o seu objectivo é complexo, não podemos excluir a parte legítima e legal
do seu objectivo. Além disso, é muito mais fácil determinar correctamente
que o acto não causou perigo social mas repeliu um perigo social duma agressão
ilícita, do que qualificar correctamente a complexidade do objectivo do
agente. Por isso, desde que o agente tenha a intenção de proteger interesses
legais e objectivamente o seu acto seja favorável à sociedade, este acto pode
ser qualificado como legítima defesa. Isto porque até certo ponto, o direito
penal não pode penalizar e proteger simultaneamente os casos especiais com
tendência criminal, por um lado, e a intenção de protecção por outro, para
proteger o interesse global da ordem jurídica da agressão ilícita e
concretizar determinados valores de justiça geral da sociedade. É preferível
adoptar o princípio jurídico segundo o qual é melhor escolher o maior
interesse e o menor dano, salientando assim o desinteresse das condutas de
agressão em geral e a sua avaliação jurídica negativa.
3. Meio adequado e necessário
Conforme o artigo 31.º do Código Penal, constitui-se legítima defesa só
quando esta é o meio necessário para o agente repelir a agressão ilícita.
Nos termos do artigo 32.º, se houver excesso dos meios empregados na legítima
defesa, o facto é ilícito. Estas disposições revelam que no direito penal
de Macau, diferenciam-se a legítima defesa e o excesso de legítima defesa.
A legítima defesa tem como requisito o meio adequado e necessário, tendo como
critério objectivo que não se provoque um perigo novo inadequado no percurso
da exclusão do perigo social e repressão da procedência da agressão ilícita.
Isto também é um fundamento jurídico importante para a exclusão da legítima
defesa como crime.
Os três requisitos necessários indicados em cima são reconhecidos pelo
direito penal de Macau como requisitos inter-dependentes e «sine qua non».
B. Meio necessário e limite adequado da legítima defesa
Nos termos do artigo 32.º do Código Penal de Macau, «Se houver excesso
dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito, mas a pena pode
ser especialmente atenuada». Na realidade, esta é uma disposição especial
para o excesso da legítima defesa. Constitui excesso de legítima defesa o
meio empregado que não é necessário, que ultrapassa o limite adequado e que
causa um perigo que não devia acontecer, resultando em responsabilidade penal
nos termos da lei. Esta disposição também revela que, considerando em termos
do interesse da ordem jurídica na sua totalidade, o direito penal de Macau
tem uma avaliação negativa relativamente ao excesso da legítima defesa na
moralidade social e na natureza jurídica.
Então, quais são os fundamentos de qualificação e o critério de avaliação
do meio necessário e limite adequado da legítima defesa? O direito penal de
Macau não tem disposição específica em relação a isto, estas qualificações
têm que ser feitas através da análise da situação em concreto pela prática
judicial. Mas a prática judicial não pode separar-se do fundamento jurídico.
Existem três pontos de vista fundamentais na teoria do direito penal quanto
ao meio necessário e limite adequado da legítima defesa. O primeiro é a
correspondência básica, o que quer dizer que o meio necessário e o limite
adequado implica que a natureza, o meio, a intensidade e o resultado do acto
correspondam em princípio à natureza, ao meio, à intensidade e ao resultado
provável da agressão ilícita. O segundo é a necessidade objectiva, que quer
dizer que o tal meio necessário e limite adequado são analisados com base
na objectividade do acto de legítima defesa e com base na necessidade daquele
acto para a repressão da procedência da agressão ilícita, isto é, que seja
difícil repelir a procedência da agressão ilícita sem este meio e limite.
O terceiro é a repressão eficaz, que quer dizer que o tal meio necessário
e limite adequado parte do objectivo subjectivo do agente, considerando que
todo o meio empregado para repelir eficazmente a procedência da agressão
ilícita é um meio necessário para a legítima defesa, ou seja, está dentro
do limite adequado para a legítima defesa. Na nossa opinião, todos os três
pontos de vista referidos em cima têm uma certa racionalidade, mas também
existe uma certa limitação. Sabemos que a agressão ilícita é um crime que
surge no percurso do desenvolvimento da acção. Quem exerce a agressão ilícita
não avisa. O objectivo do crime e o resultado que se pretende obter geralmente
existe na mente do agente. O encontro da legítima defesa e da agressão ilícita
implica a vitória de uma sobre outra. Se a agressão ilícita combate a legítima
defesa, é mais um crime. No entanto, se a legítima defesa combate a agressão
ilícita, o meio, a intensidade e o resultado causado pela legítima defesa
são mais fortes do que a agressão ilícita. Neste caso, se avaliarmos
simplesmente fazendo uma «correspondência básica», chegamos facilmente à
conclusão que houve excesso de legítima defesa. Se avaliarmos em termos de
«repressão eficaz», a legítima defesa só produz efeito quando consegue
repelir a agressão ilícita; assim já não existe excesso de legítima defesa.
Com base nesta análise, podemos ver que o primeiro ponto de vista é demasiado
rígido para o agente da legítima defesa e é desfavorável para o exercício
da legítima defesa. O segundo e o terceiro pontos de vista são demasiado
simplistas para o agente, o que resulta na existência falsa da disposição
jurídica do excesso de legítima defesa.
Na nossa opinião, o direito penal enuncia por um lado o regime da legítima
defesa e incentiva as pessoas a actuarem perante uma agressão ilícita; por
outro
lado,
dispõe
que
o
excesso
de
legítima
defesa
dá
origem
a
responsabilidade penal, limitando assim um abuso do regime de defesa e
prevenindo um novo perigo e um desequilíbrio de toda a ordem jurídica. Este
é o espírito jurídico do excesso de legítima defesa. Assim, a legítima defesa
deverá por um lado ter como fim repelir a agressão ilícita e, por outro lado,
o meio utilizado na legítima defesa deverá ser necessário e adequado para
repelir aquela agressão. Isto exige que o agente da legítima defesa, ao
praticar o acto, limite conscientemente a intensidade da defesa e tenha como
objectivo repelir a agressão ilícita, e não simplesmente ferir ou até matar
o agente dessa agressão. Quando um meio de defesa mais ou menos suave consegue
repelir uma agressão ilícita, não se admite ultrapassar esse meio e aplicar
directamente um meio mais violento. Naturalmente, como a agressão ilícita
em si é uma acção que pode variar livremente de nível de gravidade, isto exige
que o agente da legítima defesa tenha antes de mais um conhecimento claro
e uma avaliação correcta da agressão ilícita. Do mesmo modo, como a agressão
ilícita pode sempre variar, quando se conhece e avalia a agressão ilícita,
devemos permitir que o agente da legítima defesa tenha uma «hipótese razoável»
de repelir a agressão, regulando assim a intensidade da sua defesa. Quando
o agente conhece e avalia a agressão ilícita, se existir grande desvio, temos
que nos apoiar numa apreciação social para definir se a legítima defesa foi
inadequada ou ultrapassou o limite necessário.
Nos termos do artigo 32.º, n.º 2 do Código Penal de Macau, «O agente não
é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis».
Isto implica que nos casos expressamente previstos na lei, mesmo que exista
excesso de legítima defesa, a lei não os pune. Esta disposição do Código Penal
de Macau implica ainda que, sobre a questão de como se define o meio necessário
e o limite adequado da legítima defesa, se adopte um espírito legislativo
a favor do agente da defesa. Isto está plenamente conforme aos valores do
direito penal no mundo contemporâneo, que visa proteger a ordem jurídica na
sua totalidade, repelir o crime e proteger os direitos fundamentais dos
cidadãos.
C. Forma de Culpa do Excesso de Legítima Defesa
Quando o meio empregado na legítima defesa é excessivo, o facto é ilícito.
Apesar de a pena poder ser especialmente atenuada, é indubitável que o facto
já constitui um crime. O crime implica a existência duma culpa subjectiva.
No direito penal de Macau, a qualificação da forma de culpa no excesso de
legítima defesa merece ser estudada.
A maior parte dos países não têm disposição concreta relativamente à forma
de culpa do excesso de legítima defesa. Só alguns países referem esta questão.
As soluções previstas são diferentes. A primeira solução consiste em
qualificar o excesso de legítima defesa como um crime praticado com
negligência, por exemplo o artigo 21.º do Código Penal do Brasil dispõe que
quando o agente ultrapassa com negligência o limite da legítima defesa, se
o
acto
praticado
consubstancia
um
crime
de
negligência,
existe
responsabilidade penal. Além disso, o artigo 55.º do Código Penal da Itália
prevê expressamente o excesso de legítima defesa como um crime de negligência.
O segundo caso é prever o excesso de legítima defesa como crime de negligência
na parte especial. Por exemplo, o artigo 72.º do Código Penal da Mongólia
dispõe que é punido com cinco anos de privação da liberdade o homicídio
negligente e o excesso de legítima defesa. O artigo 74.º daquele código também
prevê os casos de ofensa grave negligente e de ofensa grave em excesso de
legítima defesa. O terceiro caso é prever separadamente na parte especial
o crime de homicídio e o crime de ofensa à integridade física em excesso de
legítima defesa. Apesar de neste terceiro caso os artigos não preverem
expressamente a forma de culpa dessas condutas de excesso de legítima defesa,
analisando do ponto de vista do espírito legislativo, deverá tratar-se de
um crime cometido com negligência. Por exemplo, nos termos do artigo 105.º
do Código Penal da extinta República Socialista da União Soviética revisto
em 1978, o crime de homicídio em excesso de legítima defesa é punido com a
privação da liberdade até dois anos ou o trabalho forçado até um ano. O artigo
106.º daquele código prevê a pena de privação de liberdade até três anos ou
de trabalho forçado até um ano para os casos gerais de homicídio negligente.
Isto implica que a pena para o crime de homicídio em excesso de legítima defesa
seja ainda menos grave do que a pena para o homicídio negligente em geral.
É indubitável que a sua forma de culpa é a negligência. O quarto caso é prever
separadamente na parte especial o excesso de legítima defesa como crime
praticado com dolo. Por exemplo nos termos do artigo 153.º do Código Penal
da Albânia, é punido com uma pena de prisão até três anos o excesso de legítima
defesa que ofenda gravemente com dolo o corpo de outrem.
O direito penal de Macau não prevê concretamente a forma de culpa do
excesso de legítima defesa. Do ponto de vista da forma de previsão jurídica,
a forma de culpa do excesso de legítima defesa tanto pode ser negligência
como pode ser dolo. Nos termos do artigo 13.º (dolo) do Código Penal de Macau,
«1. Age com dolo quem, representando-se um facto que preenche um tipo de crime,
actuar com intenção de o realizar. 2. Age ainda com dolo quem se representar
a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência
necessária da sua conduta. 3. Quando a realização de um facto que preenche
um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há
dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização». O artigo 14.º
(negligência) prevê: «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado
a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a)
Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de
crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer
a representar a possibilidade de realização de um facto que preenche um tipo
de crime». Dado a complexidade do excesso de legítima defesa, esta pode
preencher as disposições no direito penal de Macau sobre o dolo e sobre a
negligência. Podemos dizer que no direito penal de Macau, a forma de culpa
do excesso de legítima defesa não exclui expressamente o dolo, também não
exclui expressamente a negligência. No entanto, se penetrarmos no espírito
legislativo do direito penal de Macau, descobriremos que o excesso de legítima
defesa no Código Penal de Macau está subordinado ao Capítulo III do Título
II sobre as causas que excluem a ilicitude e a culpa. Só se houver excesso
dos meios empregados pelo agente de legítima defesa, i.e., se o resultado
conseguido ultrapassar o limite necessário à repressão da ofensa, o facto
é
ilícito.
O
excesso
dos
meios
utilizados
na
legítima
defesa
ou
a
ultrapassagem do limite do resultado não nega a legitimidade da intenção da
defesa e a legalidade do acto de defesa. Neste sentido, a disposição sobre
a intenção subjectiva do excesso de legítima defesa já é muito diferente da
disposição sobre o dolo em que o agente actua com intenção, praticando um
acto que preenche um tipo de crime. Por isso, é difícil que a forma de culpa
do excesso de legítima defesa no direito penal de Macau seja incluída na culpa
com dolo. Se fizermos uma abordagem mais profunda, achamos que existe uma
ligação intrínseca entre a razão para o excesso dos meios empregados ou a
ultrapassagem do limite necessário para a obtenção daquele resultado e o erro
pelo agente da legítima defesa quanto à compreensão e avaliação da agressão
ilícita. Como é que se qualifica o erro de compreensão sobre o facto? Nos
termos do artigo 15.º do Código Penal de Macau (erro sobre as circunstâncias
do facto), «1. O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de
crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável
para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o
dolo. 2. O disposto no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas
que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente. 3. Fica
ressalvada a punibilidade da negligência, nos termos gerais». Esta disposição
indica expressamente que a lei exclui o dolo quando o agente tem erro de
compreensão sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime. Mas
a negligência é punível nos termos gerais (Conforme o que entendo, os termos
gerais referem-se ao disposto sobre o tipo de crime em concreto cometido pelo
excesso de legítima defesa). É precisamente por causa disso que, nos termos
do artigo 32.º, n.º 2 do Código Penal de Macau, «O agente não é punido se
o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis». Por isso,
a partir do espírito da lei e da estrutura lógica das disposições actuais,
podemos concluir que a forma de culpa do excesso de legítima defesa no Código
Penal de Macau só se limita à negligência e não inclui o dolo.
D. Estudo comparativo com o regime de legítima defesa no direito penal
da China continental
O regime da legítima defesa também tem um conteúdo importante no direito
penal da China continental. Nos termos do artigo 20.º (legítima defesa) do
Código Penal da RPC revisto em 14 de Março de 1997: “o acto praticado para
repelir uma agressão actual e ilícita do interesse nacional e público e dos
direitos pessoais, patrimoniais e outros do agente ou de terceiro, é legítima
defesa e não dá origem a responsabilidade penal. Quando a legítima defesa
ultrapassa obviamente o limite necessário e resulta num dano grave, o agente
da legítima defesa está sujeito à responsabilidade penal mas a pena deve ser
atenuada ou isenta. Não se constitui excesso de legítima defesa nem existe
responsabilidade penal quando a defesa é praticada contra a violência, o
homicídio, o roubo, a violação, o rapto e outros crimes de violência
qualificados que põem em causa a segurança pessoal e que resultam em ofensa
corporal ou morte do agente da agressão ilícita”. Esta disposição constitui
o fundamento jurídico para o regime de legítima defesa no direito penal da
China continental.
O espírito da lei, os requisitos constituintes e as consequências
jurídicas contidas nas disposições do direito penal de Macau e no direito
penal da China continental sobre o regime da legítima defesa são basicamente
semelhantes. Mas quanto ao seu conteúdo concreto, as formas de representação
são diferentes e cada um tem as suas vantagens. A seguir vou fazer uma
comparação sucinta entre os dois regimes jurídicos quanto ao conteúdo e quanto
à forma.
1. No âmbito do objectivo da defesa, o direito penal da China continental
coloca a defesa dos interesses nacionais e públicos à frente dos interesses
do próprio agente ou de terceiro; isto revela que o direito penal da China
continental tem a sociedade como base legislativa do regime de legítima
defesa. O direito penal de Macau, por seu turno, só dá ênfase aos interesses
juridicamente protegidos do agente ou de terceiro como base legislativa do
regime de legítima defesa; isto revela que o direito penal de Macau dá mais
importância à pessoa. Esta norma legislativa diferente revela que os valores
são diferentes nas diferentes culturas jurídicas oriental e ocidental.
2. No âmbito da protecção dos bens jurídicos, o direito penal da China
continental prevê expressamente que esses incluem os interesses públicos
nacionais e sociais e os direitos pessoais, patrimoniais e outros do agente
e de terceiro. O seu conteúdo é vasto e concreto. O direito penal de Macau
prevê mais sucintamente a defesa dos interesses juridicamente protegidos do
agente ou de terceiro. Comparado com as disposições do direito penal da China
continental, é mais restrito e abstracto. A diferente previsão legal revela
a diferença na forma de representação global entre o direito penal dos dois
locais. Além disso, o território da China continental é mais vasto e populoso,
o desenvolvimento da política, economia e cultura das diferentes regiões é
desequilibrado, resultando na complexidade relativa dos casos de agressão
ilícita e legítima defesa. Se o direito penal não faz uma previsão ampla e
expressa, é difícil obter uma delimitação exacta na prática judicial.
3. No âmbito do excesso de legítima defesa, nos termos do Código Penal
da China continental, existe excesso de legítima defesa só quando a legítima
defesa ultrapassa claramente o limite necessário e resulta em dano grave.
O Código Penal de Macau, por seu turno, salienta que se forem excessivos os
meios empregados na legítima defesa, existe excesso de legítima defesa.
Comparando os dois, os requisitos para a constituição do excesso de legítima
defesa são mais rigorosos no direito penal da China continental, revelando
assim uma atitude mais generosa por parte do legislador do direito penal
perante o agente da legítima defesa, nomeadamente no direito penal revisto
acrescentou-se o regime de legítima defesa ilimitada. Isto é, o acto de defesa
praticado para repelir o crime violento que põe gravemente em perigo a
segurança pessoal, mesmo que resulte em dano ou morte do agente da agressão
ilícita, não constitui excesso de legítima defesa. No meu entender, esta
disposição excepcional do direito penal da China continental tem uma relação
íntima com a ideologia legislativa que tem a sociedade como núcleo da defesa
social.
4. No âmbito da forma de culpa do excesso de legítima defesa, tanto o
direito penal da China continental como o de Macau não a previram. No entanto,
como o Código Penal de Macau prevê expressamente que o erro sobre as
circunstâncias do facto exclui o dolo (artigo 15º), podemos concluir, através
da estrutura lógica da disposição do direito penal de Macau, que a forma de
culpa do excesso de legítima defesa no direito penal de Macau se limita à
negligência. O direito penal da China continental não tem disposições
semelhantes. Apesar de existirem na China continental teorias de direito
penal que salientam que a forma de culpa do excesso de legítima defesa se
limita à negligência, como não têm suporte jurídico, as discussões sobre a
forma de culpa do excesso de legítima defesa ainda são violentas e existem
várias opiniões diferentes.
5. Relativamente à qualificação da legítima defesa, o Código Penal da
China
continental
prevê
a
legítima
defesa
na
secção
I
(Crime
e
Responsabilidade Penal), do capítulo II (Crime). A lei não tem disposição
concreta sobre a sua qualificação, o que resulta em discussões na teoria penal
sobre se estamos perante a exclusão do perigo social, a exclusão da
criminalidade ou a exclusão da ilegalidade. O Código Penal de Macau coloca
a legítima defesa no capítulo III sobre as Causas de Exclusão da Ilicitude
e da Culpa, revelando claramente que o acto praticado em legítima defesa tem
uma aparência de crime no sentido objectivo, mas juridicamente não constitui
crime. Desta forma, confirma-se juridicamente a qualificação da legítima
defesa como uma exclusão da ilicitude penal, evitando assim discussões
teóricas desnecessárias.
III — O Regime do Estado de Necessidade no Direito Penal de Macau
O estado de necessidade é também um regime vulgar no direito penal
contemporâneo; é um regime em que o acto adoptado como meio necessário sem
responsabilidade penal visa afastar de um perigo actual interesses públicos
sociais, direitos pessoais, patrimoniais ou outros, do agente ou de terceiro.
Nos termos do artigo 33.º (direito de necessidade) do Código Penal de Macau,
«Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo
actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de
terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos: a) Não ter sido
voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se
de proteger o interesse de terceiro; b) Haver sensível superioridade do
interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e c) Ser
razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza
ou ao valor do interesse ameaçado». De acordo com este preceito jurídico,
podemos concluir que para a constituição do estado de necessidade no direito
penal de Macau é preciso preencher três condições:
A. Existência dum perigo que ameace interesses juridicamente protegidos
O perigo implica o estado urgente da ocorrência possível dum resultado
prejudicial. Na vida social, a origem do perigo é variável. Ele pode provir
da natureza, e.g., incêndio, inundação, desabamento de terra, terramoto,
etc., ou pode provir da acção humana, e.g., os actos criminosos e ilegais
de outrem. No estado de necessidade, o perigo tem que ser uma ameaça directa
aos interesses juridicamente protegidos, só assim é que constitui um
pressuposto para o estado de necessidade. Conforme o direito penal de Macau,
é necessário que este perigo exista realmente. Se existir erro de cognição
por parte do agente, que considera um perigo inexistente como perigo e pratica
actos de estado de necessidade, estes fenómenos de «necessidade imaginária»
têm de ser resolvidos, conforme as teorias e disposições penais, com base
no princípio de erro sobre as circunstâncias do facto. Além disso, este perigo
tem que ser actual. Se o perigo não se formou ainda ou já é passado, mas o
agente cai no erro de considerar que o perigo é actual, a teoria chama a isto
«necessidade inoportuna» que deve ser resolvido conforme a disposição de erro
sobre as circunstâncias do facto.
B. Salvaguarda dos interesses juridicamente protegidos
Este é um pressuposto do estado de necessidade. Como o estado de
necessidade é praticado através do prejuízo dos interesses legais de
terceiro, o motivo deste deve ter um conteúdo superior de salvaguarda de
interesses legais maiores. É que, no sentido geral da ordem jurídica, a
sociedade de regime jurídico moderno não permite que os seus membros
sacrifiquem os interesses legais de outrem em troca dos próprios interesses
do agente do estado de necessidade. Só partindo da consideração dos efeitos
especiais da ordem jurídica na sua totalidade é que se pode permitir
condicionalmente o sacrifício dos interesses parciais para salvaguardar os
interesses globais maiores da sociedade. Este é o fundamento moral e jurídico
quanto
aos
pressupostos
da
legitimidade
e
legalidade
do
estado
de
necessidade. A fim de assegurar a concretização da legitimidade e legalidade
do estado de necessidade, o direito penal de Macau prevê que o perigo não
pode ser criado voluntariamente pelo agente, salvo tratando-se de proteger
o interesse de terceiro.
C. Adopção do meio necessário e adequado
Este é um requisito para o estado de necessidade. Só através da adopção
de um meio necessário e adequado é que se podem salvaguardar ao máximo os
interesses juridicamente protegidos, prejudicando o menos possível outros
interesses
susceptíveis
da
protecção
jurídica
e
que
não
devem
ser
prejudicados. Nos termos do direito penal de Macau, existem três requisitos
concretos para considerar um meio necessário e adequado: 1. Haver sensível
superioridade
do
interesse
a
salvaguardar
relativamente
ao
interesse
sacrificado; 2. Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse
em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado; 3. Ao defender o
interesse legalmente protegido, não ser possível evitar o prejuízo desse
interesse empregando outro meio; e de acordo com as circunstâncias do caso,
é de esperar que a prática de outro acto não seja razoável. Em suma, o agente
não tem outra alternativa. O meio adoptado no estado de necessidade tem que
ser necessário e adequado. Estes são também sinais notórios de distinção entre
o estado de necessidade adequado e o excesso do estado de necessidade. No
entanto, no direito penal de Macau, quem praticar um facto ilícito adequado
a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida,
a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando
segundo as circunstâncias do caso, não for razoável exigir comportamento
diferente, o seu acto não é culposo e não constitui excesso do estado de
necessidade.
O regime do estado de necessidade também está previsto expressamente no
Código Penal da China continental. Nos termos do artigo 21.º do Código Penal
da RPC: «o acto praticado em estado de necessidade, indispensável para afastar
um perigo actual para o interesse nacional e público e para os direitos
pessoais, patrimoniais e outros do agente ou de terceiro, mesmo que cause
dano, não dá origem a responsabilidade penal. Quando o estado de necessidade
ultrapassa o limite necessário e resulta em dano indevido, o agente incorre
em responsabilidade penal, mas a pena deve ser atenuada ou isenta. O disposto
no n.º 1 sobre o afastamento do perigo pessoal não se aplica às pessoas com
responsabilidades específicas que decorrem da sua actividade profissional».
Apesar de existirem divergências, em termos formais, nas disposições
jurídicas sobre o estado de necessidade do Código Penal de Macau e no da China
continental, quando se compara concretamente o espírito legislativo dos dois,
ambos realizam as exigências básicas de protecção da ordem jurídica na sua
totalidade, de salvaguarda do maior interesse legal com o mínimo sacrifício
e também a ideologia do sistema jurídico contemporâneo em que se procura um
certo objectivo efectivo depois de avaliar os interesses. No meu entender,
o direito penal da China continental, relativamente ao regime do estado de
necessidade baseado no perigo do agente, não salvaguarda as pessoas com
responsabilidades específicas decorrentes da sua profissão, o que revela,
obviamente, que a sociedade ocupa uma posição fulcral no espírito legislativo
do direito penal da China continental e em concreto no seu regime sobre o
estado de necessidade.
IV — O Cumprimento de Deveres e de Ordens no Direito Penal de Macau
O cumprimento de deveres abrange os actos praticados pelo agente no âmbito
da profissão que exerce ou conforme disposição legal. O cumprimento de ordens
refere-se ao acto praticado conforme uma ordem emitida pela autoridade. Na
vida social, o cumprimento de deveres devidos e de ordens de autoridade não
têm geralmente aparência de crime. Por isso, actualmente alguns países não
têm disposições específicas no direito penal sobre esta matéria, prevendo-a
apenas em regulamentos profissionais ou em regulamentos administrativos. No
entanto, em certos casos podem surgir conflitos entre o cumprimento de deveres
e de ordens e os interesses sociais, o que, aparentemente, vai dar origem
a um prejuízo para a sociedade em termos objectivos. Tendo em conta o interesse
global da ordem jurídica e para que o cumprimento de deveres e de ordens tenha
uma qualificação juridicamente correcta, o Código Penal de Macau prevê, no
seu artigo 35.º (conflito de deveres), que: «1. Não é ilícito o facto de quem,
em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas
da autoridade, satisfaz dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever
ou ordem que sacrifica. 2. O dever de obediência hierárquica cessa quando
conduz à pratica de um crime». Assim, podemos concluir que para existir um
conflito entre o cumprimento de deveres e de ordens que não seja considerado
crime no direito penal de Macau, é preciso preencher os seguintes requisitos:
A. Os deveres e as ordens devem ter um fundamento legítimo, legal e
efectivo
A sociedade moderna é, fundamentalmente, uma sociedade de sistema
jurídico pleno, e também uma sociedade altamente organizada. Os diversos
regimes jurídicos e normas jurídicas dispõem expressamente quais são os actos
que os membros da sociedade devem fazer e quais são os que não devem fazer.
Numa associação ou organismo social altamente organizados, o organismo
hierarquicamente inferior deve obedecer ao superior. Por isso, desde que a
função seja definida expressamente pela lei, os membros da sociedade estão
obrigados a desempenhá-la, salvo disposições jurídicas excepcionais. Desde
que a ordem provenha de um superior hierárquico com legitimidade, o organismo
ou membro hierarquicamente inferior deve cumpri-la. Caso contrário, o não
cumprimento em si é um acto ilegal de omissão. Desde que a circunstância da
omissão seja grave e que daí resulte um dano grave, o agente pratica um crime
e incorre em responsabilidade penal.
B. O cumprimento de deveres e de ordens são exigências da função
desempenhada pelo agente
Os deveres jurídicos e as ordens da autoridade podem dividir-se em deveres
e ordens gerais e deveres e ordens específicos. Para o agente, têm de ter
vinculação directa, i.e., ele tem que os cumprir, senão este incumprimento
constitui um acto ilegal de omissão.
C. Conhecimento sobre a legitimidade e legalidade dos deveres e das ordens
As obrigações previstas na lei são sempre legais, mas as ordens da
autoridade podem ser legais ou ilegais. O cumprimento das ordens da autoridade
é um princípio do trabalhor na sociedade moderna, mas considerando a ordem
jurídica na sua totalidade, a defesa desta é também um dever nobre dos membros
da sociedade. Por isso, o agente só pode cumprir as ordens quando conhece
plenamente a sua legitimidade e legalidade. Senão, o dever de obediência
hierárquica cessa quando conduz à prática de um crime (artigo 35.º, n.º 2
do Código Penal de Macau). Claro, às vezes é muito complicado para o
funcionário hierarquicamente inferior conhecer plenamente a legitimidade e
legalidade das ordens antes de as cumprir, isto seria uma exigência não
razoável. Por isso, nos termos do artigo 36.º do Código Penal de Macau
(Obediência indevida desculpante): «Age sem culpa o funcionário que cumpre
uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, se isso não for
evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas». Isto significa
que, quanto a esta questão, o direito penal de Macau tem plenamente em conta
tanto o interesse social na sua totalidade como os direitos e interesses
pessoais legítimos.
D. Igualdade ou superioridade do valor dos deveres e ordens cumpridos em
relação àqueles não cumpridos
É uma condição de peso a escolha de valores. O valor social dos deveres
previstos na lei e nas ordens legítimas da autoridade são indubitáveis para
a sociedade em geral. No entanto, dada a complexidade da vida social moderna,
os valores sociais subjacentes aos deveres previstos na lei e nas ordens
legítimas da autoridade nem sempre são absolutos perante circunstâncias
específicas. Partindo do ponto de vista dos interesses sociais na sua
totalidade, quando surge conflito de valores, o direito penal de Macau atribui
ao agente o direito de escolha de acordo com a lei. Isto tem um interesse
positivo para o desenvolvimento da sociedade de regime jurídico moderno. Esta
condição implica que só quando o valor dos deveres cumpridos é igual ou
superior aos sacrificados e não cumpridos é que a lei exclui a ilicitude dos
actos praticados, senão, estaremos perante um facto ilícito.
O direito penal da RPC não tem disposições concretas relativas ao
cumprimento dos deveres e das ordens. Na minha opinião, a falta de previsão
legal sobre esta matéria tem a ver, principalmente, com três causas: 1.
Geralmente, os actos praticados de acordo com os deveres previstos na lei
e com as ordens legítimas da autoridade não têm aspecto de crime - isto é
relativamente evidente. Mesmo que haja actos deste tipo em casos especiais,
por exemplo o polícia executa um criminoso condenado à morte de acordo com
a ordem de pena capital, não se produz um mau entendimento entre a escolha
dos interesses sociais e os conhecimentos sociais. 2. Numa sociedade de regime
jurídico, as diversas normas jurídicas constituem um sistema jurídico global.
Em todo o sistema jurídico, o direito penal ocupa o lugar de direito de
garantia, constituindo uma última solução para resolver os conflitos. Só
quando outras leis não têm remédio para os actos ilegais é que o Estado recorre
ao direito penal, aplicando as penas para sancionar os actos ilegais mais
graves. Por isso, quando há conflito de valores, originado pelo cumprimento
de deveres e de ordens, que podem ser resolvidos eficazmente através de outras
normas jurídicas, não se aplica facilmente o direito penal. 3. A China
continental enfrenta actualmente uma época de reforma e reorganização social.
Por isso, quando surgem fenómenos de conflitos de valores decorrentes do
cumprimento de deveres e de ordens, é necessário analisar pormenorizadamente
a concretização desses valores e definir cuidadosamente a sua posição perante
os mesmos. Considerando as características de prestígio e de estabilidade
do direito penal em si, ainda não é tarde para aguardar a maturidade da
situação e fazer depois disposições concretas. Claro que, as disposições do
Código Penal de Macau sobre o conflito de deveres decorrente do cumprimento
de deveres e de ordens podem, considerando o fenómeno no âmbito da cultura
jurídica, servir como exemplo e como consulta úteis para a compatibilização
da cultura jurídica e para o estudo da teoria do direito penal na China
continental.
V — O Acto Consentido no Direito Penal de Macau
Na teoria de direito penal, o acto consentido também designado acto
permitido pelo titular do direito, é o acto praticado com o consentimento
da pessoa com direito de disposição de certos direitos e interesses. Estes
actos também podem ser definidos como actos que embora praticados com o
consentimento da vítima, causam certo «resultado prejudicial». O acto
consentido desenvolve-se a partir do princípio antigo do direito romano
segundo o qual: «os actos consentidos não são imputáveis». Por exemplo, para
fazer uma experimentação científica, a vítima consente que outra pessoa faça
uma experiência no seu corpo através de um meio que ofende a sua integridade
física. Este acto é, aparentemente, uma ofensa no direito penal, mas
analisando substancialmente, é um acto favorável à sociedade. Na vida social,
além do acto consentido ser um conceito muito amplo, a sua forma e o seu
conteúdo são muito complicados. Alguns actos consentidos são autorizados pela
lei, outros são proibidos. Alguns actos consentidos são válidos, outros são
nulos. Para dar um posicionamento jurídico claro ao acto consentido, e para
que este tipo de actos sejam tratados correctamente na prática judicial,
actualmente em muitos países e territórios eles estão previstos no direito
penal. O direito penal de Macau não é uma excepção.
Nos termos do artigo 37.º do Código Penal de Macau (Consentimento), «1.
Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a
ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente
disponíveis e o facto não ofender os bons costumes. 2. O consentimento pode
ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e
esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido e pode ser
livremente revogado até à execução do facto. 3. O consentimento só é eficaz
se for prestado por maior de 14 anos que possua o discernimento necessário
para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta. 4. Se o
consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável
à tentativa». De acordo com este artigo, podemos ver que o acto consentido
no direito penal de Macau tem que preencher os seguintes requisitos para não
ser ilícito:
A.
O
consentimento
tem que
ser
um acto do
titular
do
interesse
juridicamente protegido
Sendo um acto jurídico, o consentimento é juridicamente, antes de mais,
uma questão de fundamento do direito. Em relação a esta questão, o direito
penal de Macau prevê expressamente que só o titular do interesse juridicamente
protegido é que pode prestar o consentimento. Para proteger ao máximo o
interesse juridicamente protegido da pessoa que presta o consentimento e para
que o consentimento revele o mais possível a vontade real desta pessoa, o
direito penal de Macau prevê expressamente que o consentimento só é eficaz
se for prestado por um maior de 14 anos que possua o discernimento necessário
para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.
B. O consentimento tem que consistir na declaração de vontade real do
titular do interesse juridicamente protegido
Sendo um acto jurídico, o consentimento é também juridicamente um acto
civil. Nos termos do direito civil, o consentimento só é um acto eficaz se
revelar efectivamente a vontade livre de quem o presta. Por isso, nos termos
do direito penal de Macau, o consentimento tem que revelar uma vontade séria,
livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido.
C. O conteúdo de disposição do consentimento tem que ser constituído por
interesses jurídicos que podem ser livremente disponíveis nos termos da lei
O Homem é um ser social. Na sociedade moderna, existem relações delicadas
entre os interesses pessoais dos membros sociais e os interesses colectivos
da sociedade. A fim de harmonizar melhor os interesses pessoais dos membros
socais e os interesses colectivos da sociedade, geralmente, na sociedade
moderna, o direito prevê expressamente que certos interesses pessoais são
livremente disponíveis pelos membros sociais, enquanto outros não o são. Para
evitar que a disposição dos interesses pessoais pelos próprios membros
sociais afecte os interesses colectivos da sociedade, o direito penal de Macau
dispõe que os interesses jurídicos afectados pelo acto consentido têm que
estar dentro do alcance da disponibilidade livre prevista na lei.
D. O consentimento não pode ofender os bons costumes
O consentimento é um acto pessoal, mas este acto pessoal e o acto
consentido
praticado
por
outrem
que
surge
com
o
acto
pessoal
têm
necessariamente relações com a sociedade. Para evitar que este acto, com
natureza social, afecte toda a ordem jurídica e os critérios morais da
sociedade, o direito penal de Macau prevê expressamente que o conteúdo do
consentimento não pode ofender os bons costumes da sociedade.
E. O consentimento tem que ser válido no momento da execução do acto
consentido
O consentimento é um acto de direito de quem o presta. Como é um acto de
direito, a pessoa tem o direito de consentir, de não consentir e ainda de
anular o consentimento que prestou. Para proteger plenamente a pessoa cujo
interesse é juridicamente protegido, o direito penal de Macau prevê
expressamente que o consentimento pode ser livremente revogado até à execução
do facto. Isto revela que o consentimento só pode servir como fundamento
jurídico do acto consentido quando ele é eficaz no momento em que este acto
é executado.
O que merece atenção é que, apesar do direito penal de Macau prever que
o consentimento pode ser expresso por qualquer meio, não é considerado
consentimento aquele que não for expresso. Mas as formas de expressar o
consentimento são várias. Por isso, o seu artigo 38.º (consentimento
presumido)
prevê
que:
«1.
Ao
consentimento
efectivo
é
equiparado
o
consentimento presumido. 2. Há consentimento presumido quando a situação em
que o agente actua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse
juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto se conhecesse
as circunstâncias em que este é praticado». No meu entender, a razão desta
disposição do direito penal de Macau é que qualquer pessoa está interessada
nos seus próprios interesses jurídicos. Quando o acto de uma pessoa afecta
directamente os interesses jurídicos da outra e esta não exprime qualquer
vontade de oposição, aquela tem razão em acreditar que o acto que pratica
foi aceite pelo titular do interesse. Creio que a prática judicial sobre a
matéria penal de Macau fará uma conclusão convincente quanto aos efeitos
negativos do consentimento presumido que possam surgir na realidade social.
O direito penal da China continental não tem disposição concreta sobre
o acto consentido, mas este é praticado muitas vezes na China continental.
O sector teórico sobre o direito penal da China continental está a fazer um
debate animado sobre a necessidade ou não de incluir o acto consentido no
direito penal da China continental.
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