A PSICOSSOMÁTICA NA PRÁTICA MÉDICA O MÉDICO DIANTE DO PACIENTE CRÔNICO E DA MORTE Dr. Amaury Queiroz (Médico psicanalista, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, Prof. Titular do Setor de Psicossomática da 4ª Disciplina de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ) "A dificuldade não é evitar a morte, mas evitar que seja injusta". Sócrates Os problemas a serem tratados neste trabalho são dos mais difíceis para o médico enfrentar, pois lidar com o doente, que não consegue se curar, e com a morte, são os aspectos mais dolorosos e frustradores de sua profissão. Estar cronicamente doente é, via de regra, algo muito incômodo para o paciente, pelo sofrimento, limitações e sensação de impotência que a enfermidade por tempo inde terminado impõe. A ocorrência de uma doença sempre determina reações naquele que é atingido, diferindo em grau, tipo e intensidade, conforme suas características de personalidade. Existe o conhecimento realístico da doença, acompanhado de idéias fantasiosas que o indivíduo cria paralelamente. A dificuldade em aceitar a condição de doente crônico gera revolta contra si mesmo, contra os outros, contra o mundo e sentimentos de inveja diante daqueles que conservam a saúde. As reações são mais intensas quanto ma is imaturo é o indivíduo, isto é, tão maior será a sua dificuldade em aceitar as imposições da realidade diante daquela situação ideal que deseja manter: ter saúde integral, nunca ficar doente, atingir a cura total, etc. Outro acréscimo de ansiedade deve-se à concepção de que doença crônica é igual à invalidez. É o caso, por exemplo, de um hipertenso que não é capaz de imaginar que sua vida, obedecidas determinadas prescrições médicas, será semelhante a de qualquer pessoa normal. Se a angústia que acompanha a conscientização deste "estar doente" é muito intensa, o indivíduo apela para comportamentos "regressivos", adotando atitudes do tipo infantil e deixando de usar suas mais nobres qualidades psiquícas, como o raciocínio e o juízo crítico. Contra tais angústias vários mecanismos psicológicos de defesa passam a ser utilizados mais ou menos adequadamente; destes, o mais lesivo é o da negação. O paciente simplesmente nega que tem uma doença crônica, que necessita de assistência médica permanente, perdendo desta forma toda a oportunidade de controlar o curso da enfermidade. São os doentes que freqüentemente adotam atitudes desafiadoras, praticando digressões dietéticas, quebrando recomendações de repouso, faltando às consultas médicas, recusando medicamentos, in terrompendo tratamentos ou até mesmo nunca chegando a procurá-los. Os indivíduos de personalidade melhor estruturada tendem a enfrentar tais limitações e normas de maneira mais adequada. São menos carregados de revolta e ansiedade, muito embora estes sentimentos estejam sempre presentes, consciente ou inconscientemente, sejam ou não expressados pelo paciente. Como vemos, a aceitação ou não do fato da enfermidade conduz a atitudes que podem ser predominantemente autodestrutivas ou autopreservativas. Daí já podemos concluir que uma das tarefas básicas do médico diante do primeiro tipo de paciente descrito é saber como ajudá -lo a aceitar sua condição de enfermo, "ensinando-o" a conviver com sua enfermidade do melhor modo possível. Outro ponto de importância é o chamado "benefício secundário da doença". Estar cronicamente enfermo pode significar para alguns abandonar responsabilidades, ficar entregue aos cuidados de outros, numa condição que acentua os traços regressivos que existem potencialmente em cada um de nós. Este conflito entre as forças que impelem para a recuperação e aquelas que convidam o indivíduo para a fuga das responsabilidades, ocorre em todos os doentes, principalmente quando se trata de um crônico. Quando predomina o medo de viver, de lutar, de ter responsabilidade, o indivíduo aproveita-se da sua doença e passa a alimentá-la, sabotando o trabalho do médico. É importante, todavia, acentuar que tais forças atuam basicamente sob a égide do inconsciente, pois ninguém, em plena saúde mental, desejaria permanecer doente. É preciso que o médico saiba disso para que ao invés de simplesmente reprimir ou condenar esta utilização, possa compreender as razões profundas que o levam a isso. Sem dúvida, dificuldades sócio econômicas em muito contribuem para a efetivação deste estado, porém é preciso frisar a importância dos aspectos psicológicos, pois se assim não fosse, pessoas de bom "status" econômico não entrariam em situações semelhantes. Da mesma maneira que é frustrador para o paciente a cronicidade de sua doença, também o médico se vê atingido, sente-se limitado em sua atuação, podendo reagir de forma inadequada e mostrar-se irritado, desesperançado, muitas vezes desinteressando-se do caso. A capacidade de lidar com estas limitações depende da estruturação psíquica do médico que, à semelhança do paciente, decorre de interjogo de seus aspectos mais amadurecidos e daqueles que permaneceram infantis, onipotentes, incapazes de tolerar as frustrações impostas pela realidade. Como exemplo da problemática do doente crônico, podemos citar o caso de um paciente de 15 anos, diabético, que residia numa cidade vizinha e só recorria ao hospital quando em franca descompensação, sendo então internado, o que ocorreu por 8 vezes num período de 3 anos. Numa dessas internações, como se achasse muito agitado e rebelde ao cumprimento da normas médicas, foi solicitada a colaboração de um dos autores deste trabalho. Chamou-nos logo a atenção o fato de ter sido atendido por diferentes médicos durante cada internação. Por essa razão nunca pôde ser beneficiado por uma relação médico-paciente estável. Na entrevista com o mesmo, notamos que, ao lado das dificuldades comumente encontradas em adolescentes, sentia muita inveja de um primo da mesma idade que gozava saúde e representava o ideal de adolescente que desejava ser. Sentia-se também muito controlado pelos pais, em função de sua condição. Essas vivências de inferioridade e revolta levavam-no a atitudes de teor autodestrutivo, recusando-se a fazer dieta e tomar a medicação, gerando episódios de ceto-acidose. Tal estado de coisas era também mantido pelas dificuldades inconscientes dos médicos em estabelecerem um vínculo mais duradouro com paciente tão difícil. Com uma conduta baseada em contato com os pais, a fim de diminuírem o excessivo controle exercido, e através de entrevista com o paciente e à equipe que o assistia, conseguimos obter a colaboração da família e a anuência de um médico em ficar responsável pelo caso. A partir desse trabalho e principalmente da possibilidade de ajuda rmos o paciente, durante várias entrevistas, a admitir menos conflituosamente a sua condição de doente, este pôde passar a ser acompanhado ambulatorialmente, vindo às consultas sozinho, não mais necessitando de novas internações e até mesmo iniciando e per manecendo pela primeira vez num curso de profissionalização. O paciente crônico torna-se um problema ainda mais difícil para o médico quando o curso de sua doença se agrava. Nestas condições, este é frequentemente internado, o que traz uma série de novas interferências no manuseio do caso. Paradoxalmente, nestes momentos, é freqüente que o médico se afaste ainda mais, deixando-o apenas sob os cuidados da equipe técnico-hospitalar, basicamente da enfermagem, limitando-se a breve visitas, quando praticamente não dialoga com o enfermo, simplesmente verificando se suas prescrições estão sendo cumpridas. Esta situação atinge seu máximo de intensidade nos Centros de Terapia Intensiva. Num trabalho de autores nacionais, muito rico em observações a este respeito, Tr otto e col, lembram que é neste "super-hospital" que o médico se sente em sua máxima onipotência, graças a sofisticada tecnologia de que pode dispor e, ao mesmo tempo, no seu maior grau de fragilidade diante da impossibilidade de resolver casos tão graves, nos quais a morte é cerca de 5 vezes mais freqüente que no hospital geral. Também se referem à necessidade da equipe dividir cada paciente por todos, pois nenhum médico suportaria sozinho as sobrecargas psíquicas e físicas inerentes a este tipo de trabalh o. Se este clima, por um lado, favorece a aproximação e a solidariedade entre os integrantes da equipe, por outro costuma incrementar a tendência a deixar o doente grave carente de assistência psicológica. É comum os pacientes ali internados assistirem a freqüentes mortes e entrarem em pânico, deixando este fato de ser percebido pela equipe. É importante que o médico possa captar tais ocorrências e, entrando em contato com o paciente, aliviá-lo e ajudá-lo, de forma adequada, a transpor esses momentos de grande ameaça, o que pode se feito através de um diálogo simples e direto, mas pleno de calor humano. Entretanto, o maior desafio que o médico tem que enfrentar é o doente grave ou terminal que se mantém lúcido. Agora ele está sozinho; diante de um paciente que sente a aproximação da morte. Tal ocorre com o doente "desenganado", cujos recursos quanto à cura se esgotaram, mas cuja "vida" em estado de agonia pode ser mantida artificialmente por longo tempo. O paciente canceroso é o protótipo desta situação. O diagnóstico de câncer, como nos diz Lily Bleger, deixa o homem sem futuro e isso modifica toda a estrutura da sua personalidade, seus contatos com o mundo e seus valores. Assim, o câncer não é apenas uma ameaça à vida física, mas também ao próprio sentimento de identidade, que nos permite a sensação de continuarmos sendo o mesmo ao longo dos anos. Esta autora também aborda o problema do câncer ou do diagnóstico de doenças fatais em geral ser vivido como má sorte, um castigo do destino e que, nessa situação, o indivíduo sente-se a mais perseguida da criaturas, pois na realidade a saúde e a felicidade são bens que todos nós nos sentimos com direito de ter, e a idéia da morte, mesmo que conhecida intelectualmente, é algo muito difícil de ser aceito emocionalmente. Esta é, em última instância, a mais difícil problemática humana, raiz de múltiplas angústias existenciais e sua aceitação requer um enorme grau de resignação, humildade e tolerância, que só um desenvolvimento emocional harmônico, apanágio de poucos, permite alcançar. Inclusive a negação da morte e a fantasia de eliminá-la através da medicina é uma das motivações inconscientes da busca da nossa profissão, já intensamente demonstrada. Aceitarmos a morte significa também estarmos satisfeitos com a nossas realizações existenciais, podermos nos sentir continuados através de nossa obra e, inclusive, elaborarmos o problema do tempo perdido, das realizações não cumpridas, tema abordado por um de nós em outro trabalho. Ali dizemos que viver significa fazer uma sucessão de lutos aceitar uma série de perdas por imposições da própria vida e não podermos fazer o luto final, por nós mesmos... Eliott Jacques mostra-nos, a esse respeito, que a perspectiva de enfrentar a idéia da velhice e da morte leva o homem, inclusive, à chamada "crise do meio da vida", expressão que designa a fase que geralmente ocorre no período dos 30 aos 50 anos, em que o indivíduo já não mais consegue negar a aproximação dessas realidades inexoráveis. Esta crise, que pode inclusive expressar-se por manifestações psicossomáticas, é, como afirmamos naquele trabalho, um problema cada dia mais freqüente no mundo atual, explicando muitas regressões a um comportamento de adolescente em plena vida madura. Fazemos tais considerações para mostrar a magnitude deste problema no doente "desenganado", em geral, e nos jovens e nos pouco ajustados emocionalmente, em particular. Por tudo isto o médico precisa estar consciente dessas implicações, para poder atuar o melhor possível em situações tão difíceis. Um primeiro problema diz respeito ao que, como e quando comunicar ao paciente e seus familiares. Diz-nos L. Bleger a esse respeito: "A informação, que os pacientes podem receber flutua, é variável, no campo de experiência de cada um, e difere na opinião desde um extremo ao outro. De início não se deve dizer nada até ter a evidência do diagnóstico definitivo; depois serão decididos os passos a seguir. Deve-se informar e descrever algumas alternativas sobre seu tratamento. Tampouco deve ser informado mais do que deseja conhecer". Ela também expressa a opinião que praticamente todo paciente capta seu diagnóstico, geralmente de forma inconsciente, embora possa negá-lo conscientemente. Nossa experiência mostra que a negação da doença é a regra. Qual de nós não se deparou com colegas de maior capacitação que, acometidos de câncer, "perdem" todos seus conhecimentos e passam a agir como leigos diante de realidades insofismáveis? Talvez, em outras culturas, estes fatos possam ser diferentes. Os médicos americanos, por exemplo, costumam dizer a verdade a seus pacientes. Será que maior "frieza" por parte do doente, mais própria dos anglos-saxônicos, possibilitaria um maior contato com a realidade? Ou seria a "frieza" do médico que não lhe possibilitaria captar a enorme dose de angústia "inoculada" no seu doente? O temor de poder ser acionado legalmente por erro diagnóstico ou omissão não poderá também funcionar como outra causa deste tipo de atitude? Reações de isolamento e crises depressivas são respostas comuns à percepção da realidade pelo paciente. Por isso, quando o medo é muito intenso, este pode mesmo refugiar-se numa reação psicótica para não defrontar-se com a verdade última. Tal ocorreu com uma paciente, acompanhada por um de nós, que, diante de um quadro final entrou num estado psicótico, perdendo os nexos com a realidade e assim permanecendo sem que tentássemos tirá-la desse estado, fazendo apenas uma sedação adequada até o final. Outro aspecto de grande importância prática é o relacionamento com a família do paciente canceroso, pr incipalmente quanto à forma de comunicar o que está ocorrendo. É fundamental que o médico saiba eleger o parente adequado para saber a verdade, o que só é possível através do conhecimento da estruturação familiar. Um exemplo da delicadeza desta situação ocorreu quando um acadêmico, sem maior experiência, transmitiu ao esposo de uma paciente internada que esta, por ter um tumor maligno, necessitaria fazer a amputação de um membro. Este, incontinenti, foi a ela (que ainda não conhecia a extensão de sua enfermidade) e, desesperado, aos prantos, transmitiu-lhe o que tinha acabado de saber, desencadeando uma situação caótica: na realidade ele sempre foi um homem inseguro e dependente da esposa e daí tal comportamento. O médico também deve avaliar se a família tem condições emocionais de abrigar o paciente moribundo ou, ao contrário, se está indicada a internação hospitalar. Aliás, a norma de internar sistematicamente o doente terminal faz, hoje em dia, com que muitos morram no ambiente frio de um hospital, longe do calor das famílias, tão necessário nestas horas finais. Muito poderia ser dito sobre o tema da eutanásia. Todavia, queremos enfocar apenas um aspecto deste complexo problema. Referimo-nos à pressão que a família pode exercer nesse sentido, por várias razões, principalmente pela dificuldade de tolerar o sofrimento intrínseco a uma situação terminal. Do mesmo modo o médico também pode ficar tentado a utilizar tal recurso como forma de livrar-se de suas próprias ansiedades. Aliás, tudo o que foi dito sobre as dificuldades e reações do médico, à doença crônica e grave, deve ser visto com lente de aumento diante da situação do paciente moribundo. Isolamento, frieza afetiva, contato apenas indireto com o paciente, tudo isto infelizmente é bastante freqüente quando o médico esgota seus recursos técnicos e resta apenas o lidar pessoa-pessoa com o ente que morre. Luchina assim o diz, ao citar as palavras de um paciente em estado grave e observador, a respeito dos médicos que o assistiam: "É necessário não desesperançá-los, pois senão afastam-se e desinteressam-se". Todavia, quanto conforto recebe o paciente quando o médico consegue manter-se próximo, valorizando-o com sua ação de presença, permanecendo junto sem às vezes mesmo trocar palavras. Eissler comenta que o conhecimento da morte é necessário para que possamos buscar o amadurecimento e a evolução psíquica. Entretanto, a elaboração de nossa própria morte é algo sempre em aberto e passível de mobilização através do contato com a morte de outros. Assim, a perda de um paciente recorda ao médico a possibilidade de sua própria morte e pode gerar ansiedade, culpa, depressão e outros dolorosos sentimentos. Do mesmo modo que alguns conseguem ter uma morte tranqüila, em outros o sofrimento diante desta realidade que se aproxima é imenso. Nesses casos cabe distinguir aqueles que podem ser ajudados dentro da assistência médica habitual dos que necessitam de uma ajuda psicoterápica paralela, a ser feita pelo especialista. Nesta tarefa, que na experiência dos autores, é das ma is difíceis de ser cumprida; não há normas rígidas. Ao contrário, exige uma grande flexibilidade de relacionamento humano e enorme capacidade de doação, onde os critérios técnicos são substituídos pela força da ligação afetiva. Como exemplo podemos citar o caso de uma mulher jovem que havia sido operada de câncer e foi acompanhada psicoterapicamente por um de nós. Estava em pânico por saber das conseqüências de sua doença e bastante deprimida, deixando de cuidar-se, abandonando seu trabalho e afastando-se de contatos sociais. Estabelecemos com ela um corajoso diálogo, até onde ela o suportou e quis, no qual, inclusive, referindo-se à sua doença, dizia: "meu câncer". Como resultado, voltou a preocupar-se com sua aparência, retornou ao trabalho e à sua vida social. Apesar da evolução inexorável da doença, pôde manter-se com grande firmeza até seus momentos finais, não recusando visitas, morrendo enfim de forma digna e cercada por parentes e amigos. Cabe enfatizar que é o médico assistente que deve, preferenteme nte, cumprir esta difícil tarefa frente ao doente e sua família. Marie Langer, como poucas, foi ao âmago deste problema ao sintetizá-lo no pensamento: "Assim como, em princípio, devemos respeitar a maneira de viver de cada um, sempre que não prejudique à sociedade, também devemos respeitar sua maneira de morrer..." 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