Resenha do capítulo1 – Kleinman Lígia Lorandi Ferreira Carneiro O significado dos sintomas e das doenças A diferença entre os termos “illness” e “disease”, na língua inglesa, ilustra bem as diferenças de ponto de vista ao se considerar uma doença. “Illness” é a experiência humana dos sintomas e do sofrimento, refere-se a como a pessoa doente e sua família, incluindo a rede social mais ampla, percebem, convivem com e respondem aos problemas que a doença cria. “Disease” é o problema do ponto de vista médico, ou seja, a doença reconfigurada somente como uma alteração na estrutura biológica e no seu funcionamento. Em Português não existe essa diferença fundamental entre termos, mas nem por isso as doenças deixam de serem restritas pelos médicos a uma simples “disease”, processo no qual a experiência é perdida, deixa de ser legitimada como alvo de preocupação clínica e não recebe intervenção alguma. As doenças (a partir daqui no sentido do termo “illness”) possuem um significado. As doenças crônicas são muito mais do que a soma de eventos particulares que ocorrem durante seu curso. A trajetória de uma doença crônica se assemelha a um curso de vida, contribuindo tanto para a história do indivíduo que acaba por se tornar parte inseparável dela. Já há muitas evidências de que as oscilações, períodos de exacerbação e de melhora no curso da doença, estão intimamente relacionadas a fatores psicológicos e sociais, bem mais do que a biológicos. No entanto, não indagamos rotineiramente o significado da doença para nossos pacientes. Examinando os significados particulares de uma doença é possível quebrar os círculos viciosos que a amplificam . O diagnóstico médico decorre de uma atividade semiótica: analisar um símbolo e decodificá-lo em outro. As queixas também são agrupadas em síndromes, conjuntos de sintomas com nexo que apontam para algumas doenças. O viés interpretativo ao diagnóstico clínico significa que a interação entre o médico e o paciente se organiza como uma interrogação. O que o paciente fala é traduzido para uma linguagem médica. Os médicos saem das faculdades como “realistas ingênuos”, aprendem que os sintomas são pistas para as doenças, evidências de um processo “natural”, uma entidade física a ser revelada. Raramente se dão conta de que processos biológicos são conhecidos por meio de categorias socialmente construídas que determinam a experiência de estar ou ser doente. O significados dos sintomas e das doenças também varia de acordo com a cultura em diferentes épocas e sociedades. Ainda hoje o termo “lepra” carrega um enorme estigma, apesar de poucas pessoas terem visto um caso. A modificação do nome para hanseníase ilustra bem a importância do problema e a estratégia adotada para desmistificá-lo. No fim da Idade Média a peste bubônica dizimou grande parte da população da Europa, tornando-se um símbolo do mal e de terror. 1 Hoje em dia o termo “peste” tornou-se inócuo, exemplificando bem a transformação de significado de uma época para outra. As doenças que, em nossa época, carregam maior conteúdo simbólico são câncer, doenças cardiovasculares e AIDS/DST. O câncer, enquanto doença rara, de distribuição ocasional e largamente não controlada é uma ameaça direta aos valores da sociedade ocidental contemporânea. O câncer nos confronta com nossa falta de controle sobre nossa própria morte e a dos outros, aponta para nosso fracasso em explicar e dominar muito do mundo, simboliza nossa necessidade de criar um sentido moral para o “por que eu?”, pergunta para a qual as explicações científicas não oferecem resposta. Ao contrário do que se pensava, quanto mais aprendemos sobre o meio ambiente, mais ameaçador ele se torna. As doenças cardiovasculares, fruto de nosso estilo de vida, apontam para a economia frenética apoiada em avanços tecnológicos cada vez mais rápidos associada a uma fisiologia desordenada. A resposta da sociedade a esse problema é medicalizá-lo, sem levar em conta a estrutura social que o suporta, culpando a vítima na ideologia da “mudança de estilo de vida”. Evitamos as questões difíceis relacionadas a valores morais, referentes à saúde pública e fumo, exposição a carcinógenos e práticas sexuais promíscuas. As doenças venéreas permanecem estigmatizantes para os portadores, com a transição de sífilis e gonorréia (os grandes males de outrora) para AIDS e herpes. A resposta da sociedade sugere que a imagem sexual comercializada pela mídia encobre duas facetas contraditórias: a promiscuidade amoral baseada nos direitos individuais e nos valores de consumo e a condenação altamente moral e hipócrita do resultado infeccioso resultante. Apesar de menos dramático, o significado da hipertensão arterial esclarece muito de sua dificuldade de tratamento. A “hiper-tensão” sinaliza no imaginário um estado de muita tensão, não necessariamente altos níveis de pressão arterial. Quando os paciente se sentem “hiper-tensos”, acreditam estar sofrendo da doença e tomam seu remédio. Quando não se sentem mais tensos, negam a hipertensão e abandonam os comprimidos. Nos EUA, as queixas de menopausa são preocupações de mulheres brancas de classe média na meia idade. A maior parte das mulheres de outras culturas atravessa a menopausa sem queixas sérias e sem a concepção dessa transição como um problema de saúde. A menopausa chegou à mídia e à profissão médica por razões também econômicas. Entrou na cultura americana como um marco da temida transição para a velhice e assexualidade numa sociedade comercialmente centrada no culto ao jovem e à atração sexual. As queixas de síndrome pré-menstrual são vistas por médicos de outras culturas como outro exemplo do desejo das classes médias ocidentais de abolir toda dor e sofrimento, não importa o quão restrita e previsível essa dor seja. Impotência e alopécia entre homens de meia idade, acne e baixa estatura entre adolescentes homens, preocupações alimentares (anorexia e bulimia) entre mulheres jovens são condições culturalmente marcadas que expressam a preocupação narcísica da sociedade. A redefinição do 2 alcoolismo e do abuso sexual de crianças como uma patologia familiar são outros exemplos do amplo processo de medicalização da sociedade, onde problemas antes vistos como morais, religiosos ou criminais são redefinidos como doenças e abordados com a tecnologia terapêutica disponível. Há maneiras legítimas e maneiras ilegítimas de adoecer. Os sistemas culturais locais estabelecem o comportamento ritual que transforma a aflição individual em uma forma simbólica sancionada pelo grupo. No ocidente, a doença confronta a pessoa doente com sua natureza dividida: cada um é um corpo e tem, “experimenta”, um corpo. Nessa formulação, cada pessoa é o corpo doente e reconhece que possui um corpo doente distinto de si mesma, observando seu próprio corpo como se fosse de outro, processo que provoca uma alienação da doença. A resposta dos médicos ao reconhecer o sofrimento e a inadequação do jargão científico para dar conta dos dilemas de seus pacientes é importar sistemas de valores para a prática clínica. Entretanto, tal sistema pode e freqüentemente cria mais conflitos ainda, uma vez que os valores do paciente podem não ser os mesmos do médico e uma visão estreita, tanto moral como religiosa, pode alienar e não ajudar a família. A qualidade de vida é hoje inferida a partir de inúmeros questionários que silenciam sobre o sofrimento. A informação obtida é cientificamente replicável, mas ontologicamente inválida, tem significado estatístico, não epistemológico. Para se avaliar o sofrimento, é necessário uma diferente abordagem na forma de obter informações, as narrativas precisam ser ouvidas. 3