E D I T O R I A L Para além do diagnóstico ANTÓNIO SIMÕES LOPES Bastonário. O ano cujo termo se aproxima decorreu em ambiente de recessão a que, de forma algo consensual, se associam três ideias: – uma deficiente geração e gestão política de expectativas (o discurso da "tanga") cujos efeitos haviam de prolongar-se; – a prioridade às finanças (défice orçamental) e a pelo menos aparente e pelo menos relativa marginalização da economia; – o défice continuado de projecto e de estratégia de longo prazo. Associado a isso, especialmente à ausência de estratégia e ao vazio de projecto, acrescem algumas angustiantes "inversões" ou "incongruências" metodológicas: – dos fins, "desenvolvimento", não se fala nem sequer se esboça o desenho; insiste-se em tomar desenvolvimento por crescimento; – os meios quase se impõem como objectivos; as finanças, que sempre foram apenas um instrumento da economia, como a economia e o seu crescimento foram sempre instrumentais do desenvolvimento, as finanças assumem o comando da política económica; e, no entanto, elas e o controlo do défice que as domina, compreendido embora o carácter prioritário que lhe é atribuído, necessitam também de estratégia minimamente consistente que permita o controlo e assegure a sustentabilidade do equilíbrio orçamental; – do próprio crescimento económico, objectivo que só pode ser meramente instrumental, é nebulosa a estratégia; tem pelo menos muito de passiva, quando um quase fatalismo parece instalar-se ao assumir-se que a economia e o seu crescimento tenham de esperar pelo crescimento das economias dos "outros". Anuário da Economia Portuguesa 3 Como não há processo económico que não deva ficar, e não tenha de ficar, na dependência do processo político, seria bom que os políticos que elegemos se entendessem quanto à explicitação do nosso “projecto de futuro”. Sem uma clara definição e imposição dos fins (o projecto de sociedade), por sua natureza de longo prazo, porque só com base neles se pode assegurar consistência às estratégias, continuaremos a viver o curto prazo sem perspectivas bem definidas, sendo certo que o processo político que temos, para que não se encontrou ainda alternativa de interesse, alicia precisamente para a vivência do curto prazo, em ciclos que até acabam durando menos de uma legislatura, visto metade da duração dela ser utilizada para criar condições "mais vantajosas" para a pugna eleitoral seguinte. A possibilidade de definir e institucionalizar objectivos e estratégias de longo prazo tem-se confrontado com a incapacidade política – que é também irresponsabilidade política – para estabelecer de modo inequívoco os princípios fundamentais do projecto de sociedade que queremos. E, aqui, todos somos responsáveis. Como não há processo económico – seja ele de "crescimento", apenas, ou de "desenvolvimento"– que não deva ficar e não tenha de ficar na dependência do processo político, seria bom que os políticos que elegemos se entendessem quanto à explicitação do nosso "projecto de futuro". Só nesse quadro, moldura dos valores humanos e sociais que nos regem, teremos bases seguras para a inserção coerente das políticas de médio e de curto prazos, que têm objectivamente que radicar na base espacial concreta do País que somos. Só nesse quadro poderemos seguramente evitar confundir objectivos "últimos" e objectivos "instrumentais", fins e meios, por mais determinante que seja – e é-o sempre – a gestão dos meios, dos instrumentos. As contribuições que conseguimos reunir neste Anuário são relevantes para defender a urgência do desenho da metodologia da política, para que já Tinbergen nos alertava. É que, além do mais, trata-se de contribuições que vão generalizadamente para além do diagnóstico (em que somos tradicionalmente férteis) e do comentário crítico que, sério e construtivo, deve ser acolhido e desejado, até porque atinge quase sempre o carácter de sugestões orientadoras das políticas. Respigar "ideias" é exercício sempre delicado, não só e não tanto por poder ferir susceptibilidades e por poder afastar as "ideias" do "contexto", mas sobretudo pela dose elevada de susceptibilidade de que o respigo nunca se liberta. No entanto, a consonância quanto aos riscos de a estratégia ausente poder decorrer do vazio de projecto fica implícita ou é mesmo explicitada em muitas das contribuições que se expõem. Anotem-se as preocupações de David Justino (que se admite extravasarem a educação) quanto à necessidade de um entendimento alargado entre as forças partidárias sobre questões-chave do desenvolvimento e sobre uma plataforma de convergência mínima dos objectivos estratégicos de longo prazo; e, ainda, o seu alerta para o facto de a pretensão de obter resultados de extensão considerável no curto prazo ser ilusão que limita a sustentabilidade do processo de mudança. Bem como, de Almeida Serra, a asserção de que 4 Anuário da Economia Portuguesa as agendas políticas de curto prazo terão de ceder perante os valores e interesses de longo prazo. E, de Teodora Cardoso, a denúncia de que as instituições fundamentais da democracia não asseguram a estabilidade essencial para que diferentes visões políticas possam desenvolver-se num quadro que acolha uma verdadeira alternância política e não apenas a gestão sucessiva de fases de abundância e de crise; também, o alerta quanto à dificuldade em definir e explicitar uma estratégia de inserção europeia e global do País; e ainda o seu enfoque conclusivo na "essencialidade" da estratégia (e da regulação) em área tão fundamental como a dos investimentos públicos. Anotem-se, na esfera mais específica das finanças, do défice orçamental, da despesa, novas questões de método que para Fernando Pacheco justificam a chamada de atenção para que o controlo da despesa não seja confundido com o respeito das metas orçamentais porque, além do mais, controlar a despesa pública significa avaliar com rigor os efeitos sobre orçamentos futuros das decisões presentes em matéria orçamental, havendo que avançar para a programação financeira plurianual no quadro do Orçamento do Estado. E a interrogação de Almeida Serra sobre como acompanhar o exercício orçamental de um adequado enquadramento macroeconómico e sua inserção num programa coerente de política económica a médio prazo, com uma clara definição de prioridades políticas e de articulação de objectivos estratégicos e operacionais. Atente-se na necessidade de pensar a economia, para que ainda Almeida Serra alerta ao apontar o défice de medidas com vista a aumentar o ritmo de transformações estruturais, principalmente no que respeita à modificação do perfil produtivo e à competitividade, e para modificar, em particular, a dinâmica do processo de integração; bem como as preocupações que temos de nos impor quanto à falta de interesse dos empresários nacionais pelas indústrias transformadoras e quanto ao agravamento concomitante do défice da balança de bens e serviços com o exterior. E não se menosprezem as análises e as observações de Silva Lopes, sempre fundamentadas e ajustadas: não se conte com novos milagres vindos do exterior para trazer um grande empurrão à procura interna e tenha-se em conta que não são de prever choques virtuosos da competitividade externa portuguesa que permitam encontrar na balança externa uma saída rápida para a crise actual. Que este Anuário dos Economistas possa contribuir, além do mais, para chamar a atenção para matérias básicas que estão bem a montante das análises correntes e do desenho de perspectivas futuras, como o são o projecto da sociedade que queremos e o horizonte da política; as estratégias de médio e longo prazos e a metodologia da política. Até para que não tenha justificação falar-se de ausência de estratégia e de vazio de projecto. [.] Para além do diagnóstico 5