Na Trilha da Neurotecnologia Mirella Lopez Martini Fernandes Paiva † e Fernando Fernandes Paiva ‡ A área denominada neurotecnologia inclui todo o tipo de tecnologia que de alguma forma contribui para o avanço do conhecimento relacionado ao cérebro. A neurotecnologia está altamente presente no dia a dia da população. De medicamentos para depressão, por exemplo, à realização de exames de imagem, a neurotecnologia afeta praticamente todas as pessoas, direta ou indiretamente, muito embora nem sempre se tenha consciência da sua presença e dos impactos que exerce na vida dos indivíduos. Apesar da neurotecnologia ser relativamente antiga, seus avanços mais significativos ocorreram nos últimos 30 anos. Os anos 90, inclusive, foram proclamados pelo governo norteamericano como a “Década do Cérebro”. Grande parte da responsabilidade por esse avanço exacerbado se deve ao advento e popularização das técnicas de imagens cerebrais, incluindo Ressonância Magnética, Tomografia Computadorizada, PET (do inglês Positron Emission Tomography), entre outras. Com os avanços tecnológicos, algumas destas técnicas que, num primeiro momento, forneciam apenas informações estruturais do cérebro, passaram a permitir estudos da dinâmica cerebral. Atualmente, é possível verificar as respostas cerebrais dos indivíduos em função de diferentes condições estimuladoras como, por exemplo, a identificação de estados cognitivos e afetivos associados à visualização de estímulos com conteúdo moral. Em particular, as imagens funcionais por Ressonância Magnética (fMRI) ocupam uma posição privilegiada no rol de neurotecnologias, por permitir que essas informações sobre o funcionamento cerebral sejam obtidas de forma completamente não invasiva1. Desta forma, a ciência moderna atingiu um patamar no qual é possível a obtenção de imagens de praticamente todos os aspectos do cérebro (anatômicos e funcionais), além de permitir, em certo grau, inclusive, o controle das funções cerebrais. Atualmente, por exemplo, já é possível treinar pacientes para que assumam o controle sobre a atividade cerebral de regiões específicas do cérebro, graças a possibilidade de se adquirir dados sobre o funcionamento cerebral, por meio da fMRI, e processá-los praticamente em tempo real. Essas † Doutora em Psicologia. Especialista Visitante do projeto Ética e Realidade Atual: o que podemos saber, o que devemos fazer e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. Apoio financeiro CNPq/FINEP. ‡ Doutor em Física, Pesquisador associado do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino informações são utilizadas para ensinar ao paciente quais são as regiões cerebrais responsáveis por um determinado comportamento e, assim, ser capaz de aprender a controlar essas áreas e acompanhar a evolução do treinamento. Essa estratégia, denominada neurofeedback, já tem sido aplicada com sucesso no controle da percepção da dor, apresentando resultados importantes no tratamento da dor crônica2. O processamento dos dados obtidos por fMRI em tempo real, como um recurso para compreender e até mesmo para controlar o cérebro, despertou, também, o interesse de diferentes áreas. Dentre elas, está a possibilidade de se utilizar essa tecnologia na detecção de mentiras3. Algumas empresas, inclusive, já oferecem este tipo de serviço, denominado por eles de tecnologia da verificação da verdade, àqueles que buscam provar sua inocência e tenham a possibilidade de adquiri-lo por um valor nada simbólico: US$10.000,00 (No Lie MRI - www.noliemri.com). Do mesmo modo, a neuroimagem despertou o interesse dos profissionais de neuromarketing, que já se mostram curiosos sobre a realização de estudos capazes de identificar as razões subconscientes que motivam a compra de produtos preferidos pelo cérebro4. Além dessas aplicações, acredita-se que essas técnicas podem ser úteis para se detectar se um indivíduo possui maior propensão para o desenvolvimento de problemas mentais, comportamento violento, futuro acidente vascular cerebral entre outros. Provavelmente, essas técnicas evoluam a ponto de permitir a determinação de preferências sexuais, habilidades pessoais, empatia, persistência e até mesmo a inteligência de uma determinada pessoa. O grande risco está no fato de que imagens cerebrais são frequentemente vistas como mais precisas e objetivas do que em alguns casos elas realmente são. Diferentes níveis de processamento de sinais, análises estatísticas e interpretação separam traços psicológicos e seus estados inferidos das imagens de atividade cerebral. Existe, portanto, o perigo de que o público em geral, incluindo empregadores, seguradores, juízes e júris entre outros, ignore toda essa complexidade e adote o resultado das imagens cerebrais como uma verdade absoluta. Além disso, existem outras questões éticas que permeiam as discussões sobre neurotecnologia. Já se sabe, por exemplo, que é possível estimular ou mesmo bloquear estímulos elétricos de determinadas áreas do cérebro para que atividades anômalas sejam controladas. Esta tecnologia, denominada estimulação cerebral profunda (do inglês deep brain stimulation), tem sido utilizada com sucesso no tratamento de doença de Parkinson5. Este mesmo tipo de tecnologia pode evoluir, no futuro, para aplicações diversas. Seria, então, apropriado utilizar implantes cerebrais para inibir a agressividade em criminosos violentos em troca de redução de pena? Ou, então, implantar eletrodos em pessoas saudáveis para melhorar suas habilidades cognitivas? No caso de tratamento de doenças, que tipo de controle sobre a manutenção ou não do dispositivo o paciente teria?6 Com o avanço das denominadas neurociências e das neurotecnologias, estas questões podem estar mais próximas e são mais reais do que se imagina, como também é real a urgência de que essas questões façam parte dos debates entre os profissionais das áreas da Saúde, Educação, Filosofia, Direito, Marketing, Comunicação Social, entre tantas outras áreas envolvidas. Referências Bibliográficas: Belliveau, J. W. et al., Functional cerebral imaging by susceptibility-contrast NMR. Magn. Reson. Med. 14 (3), 538 (1990); Ogawa, S., Lee, T. M., Kay, A. R., and Tank, D. 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