ernst cassirer como historiador da ciência - HCTE

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ERNST CASSIRER COMO HISTORIADOR DA CIÊNCIA
André Campos da Rocha
Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro/HCTE-UFRJ – Programa de
Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia
[email protected]
Ricardo Mariella
Historiador e pesquisador autônomo
Bacharel e Licenciado em História (UFRJ – Universidade Federal do Rio de
Janeiro)/Mestre em História (PUC-Rio – Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro)
[email protected]
RESUMO
Neste trabalho, queremos discutir a relevância do papel de historiador da ciência de
Ernst Cassirer (1874-1945). O filósofo alemão, vinculado ao neokantismo da escola
de Marburgo, encarava a abordagem histórica dos fatos científicos como
fundamental para a compreensão da própria ciência. No entanto, a dimensão de
historiador da ciência de Cassirer, é mais mencionada como um dado biográfico do
que como um elemento constitutivo de seu modo de filosofar. Podemos observar
​
que, mesmo em sua obra sistemática mais importante, que é ​A filosofia das formas
simbólicas, a história cumpre um papel de suma importância. Mas, além disso,
queremos responder a uma indagação fundamental: ainda faz sentido voltar a
Cassirer, como historiador da ciência moderna e contemporânea? Passado mais de
um século, da publicação de ​O problema do conhecimento (Das Erkenntnisproblem
in der Philosophie und Wissenshaft der neueren Zeit), podemos ainda ver em
Cassirer um historiador da ciência o qual devemos necessariamente consultar?
Palavras-chave:​ Cassirer – História da Ciência - Neokantismo
1. Colocação do problema: Cassirer, como historiador da ciência, ainda possui
relevância?
Em 1906, o filósofo vinculado ao neokantismo, Ernst Cassirer, fazia vir a
público o primeiro volume de ​Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und
1
Wissenshaft der neueren Zeit . Após mais de um século, queremos discutir a
relevância da dimensão de historiador da ciência do autor alemão. A pergunta que
pretendemos responder é a que se segue: ainda faz sentido voltar a Cassirer, como
historiador da ciência moderna e contemporânea?
Como historiador da filosofia, Cassirer ainda é tomado como referência, dado
que algumas de suas investigações de caráter histórico, primordialmente as que
versam sobre as filosofias do Renascimento (​Indivíduo e Cosmos na filosofia do
Renascimento)
​
e do Iluminismo (​A filosofia do Iluminismo) são fartamente citadas.
Resta-nos saber, se ainda há alguma valência para os seus estudos históricos sobre
a ciência.
Na verdade, para respondermos ao nosso questionamento específico,
precisaríamos encontrar resposta para perguntas de caráter mais geral, tais como:
a) a concepção de história de Ernst Cassirer ainda pode ser levada em conta? b) a
reconstrução simbólica da realidade, de fato seria a tarefa que caracterizaria o
historiador?
2. A história, segundo Cassirer
Em primeiro lugar, para Cassirer, embora a história comece com fatos tanto
quanto a física, a natureza do fato para essas disciplinas se distingue radicalmente.
Em ​Ensaio sobre o homem, nosso autor afirma que:
O que faz a diferença entre um fato físico e um fato histórico? Ambos são
vistos como partes de uma realidade empírica; a ambos atribuímos uma
verdade objetiva. Mas, se quisermos estabelecer a natureza dessa verdade,
procederemos de modos diferentes. Um fato físico é determinado por
observação e experimentação. (CASSIRER, 2012, p. 284)
1
​O problema do conhecimento na filosofia e ciência modernas.
Além do mais, o autor defende que um fato físico pode sempre ser reduzido a
uma linguagem específica: a dos números. Todo fenômeno que pode ser descrito
exclusivamente na linguagem matemática é um fato do nosso mundo físico.
Portanto, a mensuração é o ponto central de um fato físico.
Para o historiador, as coisas se dão de modo bem diferente. Os fatos, com os
quais este lida, são do passado e não podem mais retornar; eles persistem apenas
na memória. Sendo assim, os fatos históricos só podem ser reconstruídos. Isso
implica em dar uma existência ideal para eles: “A reconstrução ideal, e não a
observação empírica, constitui o primeiro passo na direção do conhecimento
histórico.” (CASSIRER, 2012, p. 285).
Temos que, neste ponto, salientar que para Cassirer a história não se
enquadraria como ciência. No próprio dizer do autor, um fato científico “é sempre a
resposta para uma questão científica que formulamos anteriormente. Mas a que
pode o historiador dirigir essa pergunta? (CASSIRER, 2012, p. 285). Obviamente, tal
asserção fere a sensibilidade do historiador profissional do presente. Basta que
lembremos Le Goff: “A melhor prova de que a história é e deve ser uma ciência é
constituída pelo fato de que necessita de técnicas, de métodos, e é ensinada. (LE
GOFF, 2000, p. 100). Nesse aspecto, poderíamos argumentar que, sendo assim, a
ourivesaria ou a panificação também seriam ciências, já que possuem ​técnicas,
métodos e são ​ensinadas. Mas não temos por escopo desenvolver tal discussão
neste trabalho.
Retornando ao nosso autor, identificamos em que consiste a tarefa do
historiador, na seguinte passagem:
O historiador, como o físico, vive em um mundo material. No entanto, o que
ele encontra logo no início de sua investigação não é um mundo de objetos
físicos, mas um universo simbólico – um mundo de símbolos. Antes de mais
nada, ele precisa aprender a ler esses símbolos. Qualquer fato histórico, por
mais simples que possa parecer, só pode ser determinado e entendido por
uma tal análise prévia dos símbolos. Os objetos primeiros e imediatos do
nosso conhecimento histórico não são coisas ou eventos, mas documentos ou
monumentos. (CASSIRER, 2012, p.285 )
Percebemos que o ​historiador Cassirer não existiria sem o ​filósofo da história
que ele mesmo era. Isso já torna o historiador Cassirer numa espécie de anomalia
para os historiadores profissionais. Como afirma Le Goff, filosofia e história seriam
“dois espíritos irredutíveis” (LE GOFF, 2000, p.73).
Devemos nos lembrar que Cassirer ​faleceu de ataque cardíaco, em 13 de
abril de 1945 no campus da Universidade de Columbia, quando se dirigia para o
Columbia University Faculty Chess Club. Portanto, não teve contato com as
transformações que a história viria a passar na segunda metade do século XX:
Escola dos Annales, história do imaginário etc. Entretanto, não há como negar que a
noção principal de Cassirer (​forma simbólica), viria a se incorporar no seio dessas
novas configurações da historiografia do pós-guerra. Obviamente que, de forma
ampliada e reinterpretada. Nesse sentido, a maior contribuição que Cassirer deu
para o historiador de ofício, foi a ampliação do vocabulário histórico.
A grande figura da historiografia, ao tempo de Cassirer, era Ranke. Esse foi o
tipo de história que ele teve que combater, com a introdução do elemento simbólico
na lida com o fato. Cassirer, certamente contribuiu para que afirmações tais como a
do Cônego Januário da Cunha Barbosa (o historiador como dissecador), em seu
discurso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que foi fundado em 1838, sob
os auspícios de Sua Majestade Imperial, D. Pedro II, fossem se tornando sem
sentido. Tal instituição, nasce em um ambiente historiográfico, que tendia a se
profissionalizar, marcado pelo pensamento positivista e com a presença tardia de
alguns traços do Iluminismo. No discurso de abertura, proferido pelo Cônego, faz-se
menção a uma imagem que pode ser utilizada para que se entenda o que era fazer
história. Nele, o orador salienta, que o historiador é como um dissecador de corpos,
ele vai a um fato, assim como o dissecador vai a um corpo morto. Portanto, assim
como o corpo está morto, o fato deve ser tratado como se cadáver fosse e, nessa
dissecação, só é possível que se fale daquilo que é inanimado, que já foi e não é
mais. A história, construída segundo tais cânones, não permite qualquer exercício
simbólico; é uma historiografia típica do século XIX. Cassirer, nesse sentido, deve
ser apontado como um dos teóricos responsáveis por inserir o simbólico na lida com
o fato. O fato não é tratado mais como inanimado, como aquilo que se foi e está
morto. Um novo vigor é dado a ele, por meio da interpretação das formas simbólicas.
Não é por meio da lida com o inanimado (do fato como algo morto) que se poderá
explicar o homem agindo no tempo.
Para o filósofo neokantiano, o filosofar seria um exercício sobre o vazio sem a
necessária conexão com os fatos históricos. Como afirma Randall: “Na obra de Ernst
Cassirer, estudos históricos e sistemáticos, não foram apenas colocados lado a lado,
2
eles foram tecidos em conjunto e foram utilizados para iluminar um ao outro” ​.
Partindo de Randall, podemos ter uma compreensão mínima da opção de
Cassirer por fazer história da filosofia e da ciência em sua obra ​O problema do
conhecimento. Mas um aprofundamento técnico se faz necessário (a respeito do
método transcendental), para que se compreenda rigorosamente o papel que a
história cumpre para o Neokantismo.
3. Cassirer e a história da ciência
Os compromissos firmados por Cassirer, com o Neokantismo – no caso dele,
com
a Escola
de Marburgo
– jamais
se
tornaram ausentes de seus
empreendimentos intelectuais. E foi em Berlim, acompanhando os cursos de George
Simmel sobre Kant, que Cassirer tomou contato com a obra de Hermann Cohen.
Cassirer estudou intensamente os escritos de Cohen por dois anos e mudou-se para
a Universidade de Marburgo, para tornar-se aluno dele. Cohen foi um estudioso de
Kant e, segundo Simmel, os melhores trabalhos já escritos sobre o filósofo de
Königsberg eram exatamente os de Cohen.
Enfim,
em Marburgo, Cassirer
tornou-se logo o melhor aluno de Cohen.
Como afirma Massimo Ferrari: “Cassirer sempre permaneceu fiel, ao menos à
premissa metodológica essencial, do neokantismo tal como formulado por Cohen e
Natorp.” (FERRARI, 2015, p.12).
Portanto, a colocação de um problema filosófico-científico, dependerá de
contextualização histórica. Ainda, segundo Ferrari:
De acordo com Cohen, cujo livro de 1871 ​Teoria da Experiência de Kant é,
sem dúvida, a "bíblia" da Escola de Marburgo, a filosofia transcendental
repousa sobre o 'Faktum' da ciência matemática da natureza. Este "fato",
como Cohen sugere, é historicamente determinado e se encontra em
​RANDALL, John Herman, Jr. ​“​Cassirer's Theory of History as Illustrated in His Treatment of
Renaissance Thought”. ​in The Philosophy of Ernst Cassirer, org. Arthur Schilpp. Illinois: The Library of
Living Philosophers, 1949.
2
constante mudança, e exige uma análise que revele as condições de sua
possibilidade, descobrindo assim os princípios sintéticos e fundamentos
epistemológicos da própria ciência matemática. (FERRARI, 2015, p.12)
Precisamos entender, precisamente, o que Cohen, principal representando do
neokantismo da Escola de Marburgo, define como “método transcendental”. Sendo
assim, há que se ressaltar que a filosofia transcendental não se ocupa nem com o
problema da constituição do sujeito humano, nem com a sua capacidade de
conhecer. Tal método filosófico estabelece como necessária a reflexão filosófica e
epistemológica sobre as condições ​a priori do conhecimento científico. Desse modo,
‘a crítica do conhecimento’ – que é uma extensão da ideia de teoria do
conhecimento ou epistemologia – tem como objetivo, descobrir os pressupostos ​a
priori e fundamentos do pensamento científico. Isso se opera, a partir de um “fato”
da ciência natural, que é sempre historicamente determinado. Entretanto, há que se
salientar: Cassirer foi o pioneiro na compreensão do verdadeiro significado do papel
da história num programa epistemológico de estirpe kantiana. Ao fazê-lo, ele acaba
por vincular mais profundamente do que seus antecessores da Escola de Marburgo,
o destino da filosofia crítica, com o desenvolvimento das ciências exatas.
Fazendo essa leitura, entendemos por qual razão o autor fez a opção
metodológica de tratar historicamente tanto da filosofia quanto da ciência moderna e
contemporânea, no ​Problema do conhecimento. Nessa ambiciosa obra, em quatro
volumes, o autor afirma que o problema fundamental, sobre o qual a reflexão
filosófica deve se ocupar, é o do conhecimento. Nas palavras do nosso autor, ​O
problema do conhecimento se propõe a: “iluminar e esclarecer as origens e o
desenvolvimento histórico do problema fundamental da filosofia moderna: o
problema do conhecimento.” (CASSIRER, 1999, p.7) E tal problema fundamental
não pode ser tratado sem uma necessária articulação com o desenvolvimento, na
modernidade, das ciências exatas. Em outra passagem, encontramos vemos que:
A formulação geral do problema exigia que o estudo empreendido não se
limitasse a examinar os distintos sistemas filosóficos em sua sucessão, mas
também sempre estiveram presentes, ao mesmo tempo, as correntes e as
formas da cultura do espírito em geral, e sobretudo o nascimento e o
desenvolvimento da ciência exata”. (CASSIRER, 1998, p. 10)
Como afirmamos anteriormente, não há como se admitir o Cassirer historiador
sem o Cassirer filósofo. Portanto, a única forma de se apontar que a sua história da
ciência deve ser vista como superada, seria fazer o mesmo juízo de sua filosofia.
Mas, tal empreendimento soaria ousado, para dizer o mínimo, se levarmos em
consideração o arco de influência da noção de forma simbólica.
4. Á guisa de conclusão
Cassirer é um historiador peculiar, ousamos dizer, menor mesmo. Mas o vigor
de sua filosofia sempre dependeu dessa sua capacidade, que é menosprezada
pelos historiadores de ofício. A sua destreza para enquadrar um fato científico,
segundo a perspectiva histórica, não pode ser diminuída. A história que Cassirer fez
das
ciências moderna
e
contemporânea, deve ser
encarada
como
um
empreendimento em comum com a sua filosofia. Seu interesse pela história dos
fatos científicos encontra-se em consonância com a sua orientação neokantiana.
Mas, para além desse seu vínculo, não podemos deixar de admitir que a tese
filosófica que move o seu projeto histórico possui ainda relevância: a evolução do
conceito de relação para o de função, será responsável por toda a transformação
que o pensamento científico passará na Modernidade.
Por último, ressaltamos que mesmo os seus textos sistemáticos, como
Substanzbegriff und Funktionsbegriff ou a sua obra mor Philosophie der
symbolischen
Formen,
se
constituem
segundo
uma
rigorosa
ordenação
histórica. Portanto, para se admitir Cassirer como historiador, há que se refugar a
tão proclamada irredutibilidade dos espíritos histórico e filosófico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CASSIRER, Ernst. ​Ensaio sobre o Homem: Introdução a uma filosofia da
cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
_______________. ​El problema del Conocimiento en la Filosofía y en la Ciencia
Modernas. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. 4v. V.1.
LE GOFF, Jacques. ​História e Memória. Lisboa: Edições 70, 2000. 2v. V.2
FERRARI, Massimo. Ernst Cassirer and the History of Science. In: FRIEDMAN, J
Tyler & LUFT, Sebastian, Ed. ​The Philosophy of Ernst Cassirer: A Novel Assesment.
Berlim: Walter de Gruyter, 2015. pp. 11-29
RANDALL, JOHN HERMAN, JR.: Cassirer's Theory of History as Illustrated in His
Treatment of Renaissance Thought. In: Schilpp, Paul A. Ed. ​The Philosophy of Ernst
Cassirer. LaSalle, Illinois: Open Court Publishing Company, 1958, pp. 689-728.
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