Educação para a cidadania: considerações e possibilidades Education for citizenship: considerations and possibilities Resumo Este artigo tem por objetivo exibir reflexões a respeito da relação entre educação e cidadania no Brasil. Educar para a cidadania continua entendido como meio principal para resolver as questões sociais, formar ou produzir um cidadão é depositar na educação a esperança de resolução de problemas sociais. Desse modo, o estudo tematiza, a partir de um enfoque crítico, as possibilidades de uma educação para a cidadania. Não obstante, o presente trabalho procura, num primeiro momento, delimitar o conceito de cidadania, perpassando a construção histórica da cidadania, dando ênfase à ruptura que o conceito sofreu, isto é, entre aquilo que a cidadania deveria ser e o modo de como ela é tomada hodiernamente. Posteriormente, fazemos a análise da relação entre a educação para a cidadania, perpassando pelos seus problemas e possibilidades, a partir de uma leitura arendtiana. Palavras-chave: Educação; Cidadania; Política. Abstract This article aims to present reflections on the relationship between education and citizenship in Brazil. Educating for citizenship is still understood as the primary means to solve social issues, forming or producing a citizen is to place in education the hope to solve social problems. Thus, the study addresses, from a critical focus, the possibilities of an education for citizenship. Nevertheless, this work aims at first to define the concept of citizenship, from the historical construction of citizenship, emphasizing the break that the concept has suffered, that is, between what citizenship should be and the way how it is taken in our times. Subsequently, we analyze the relationship between education for citizenship, passing by its problems and possibilities from the thought of Hannah Arendt. Key-words: Education; Citizenship; Policy. Introdução Nunca na história brasileira se falou tanto a respeito de cidadania como nas últimas décadas. O termo cidadania nos remete à sua gênese, à cidadania grega, na qual o homem pode encontrar Jenerton Arlan Schütz Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), Ijuí/RS – Brasil a sua emancipação nas cidades-Estado,1 que têm por objetivo a participação política dos cidadãos. Apesar de não possuir uma essência única imanente ao conceito de cidadania, observa-se que a participação e a ação para criar o seu próprio destino são ideias inerentes ao conceito. Assim, como podemos pensar a cidadania no âmbito educacional? Ademais, pensar a cidadania no âmbito educacional remete pensar sobre as relações sociais. A história brasileira é marcada por escravidão, elitismo, exclusão, corrupção, ditadura e, durante os anos 70 e 80 a cidadania virou foco ainda de diferentes instâncias sociais como: partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação e movimentos sociais. Não obstante, o motivo pelo seu constante uso eclodiu, principalmente, com o processo de redemocratização da sociedade brasileira, que perpassou todo o período da ditadura – que a meu ver mutilou a cidadania – e, durante esse processo, a educação (década de 70 e 80) ficou centralizada em educar essencialmente aqueles que foram excluídos da sociedade, isto é, uma educação para a cidadania que precisa educar um cidadão formado e também um cidadão que foi e é excluído. “Fertilizou-se”, desse modo, a escola como um ambiente no qual é possível construir sujeitos que estivessem “engajados” em lutar pelos direitos dos cidadãos. Nessa direção, falar em uma escola-cidadã ou ainda em um aluno-cidadão é referir-se especificamente aos: excluídos, oprimidos e desfavorecidos do âmbito político, social e cultural. Desse modo, os educadores populares dos anos 70 e 80 mostraram-se preocu O termo “não se refere ao que hoje entendemos por ‘cidade’, mas a um território agrícola composto por uma ou mais planícies camponesas [...] de modo geral podemos dizer que as cidades-estados formavam associações de proprietários privados de terra [...] os conflitos internos [eram intensos e crescentes] não podiam ser resolvidos no âmbito das relações de linhagem [...] tinham que ser resolvidos comunitariamente, por mecanismos políticos, abertos ao conjunto dos proprietários” (GUARINELLO, 2003, p. 32). Reside aqui, a origem mais remota da política, como instrumento de decisões coletivas e de resolução de conflitos. 1 88 pados em educar os excluídos da sociedade, compreendendo aqueles a serem educados como um cidadão em ato e, ao mesmo tempo, um excluído. O que percebemos é a ênfase na necessidade de formarmos cidadãos e, ao mesmo tempo, é visível a descrença das novas gerações na participação e elaboração de projetos comuns/coletivos. Essa descrença nasce, segundo Arendt, pelo abandono e descrédito de uma ação que esteja realmente comprometida com o nascer para a vida política, na qual o educador assume a responsabilidade de preparar com antecedência as crianças para a renovação de um mundo comum (ARENDT, 2013). Para tanto, para que o propósito fosse alcançado, é fundamental, primeiramente, compreender a construção histórica da cidadania, a fim de considerar a ruptura que o conceito sofreu, isto é, entre aquilo que a cidadania deveria ser e o modo de como ela é tomada hodiernamente. Posteriormente, apresentaremos uma análise da relação direta, na perspectiva de Hannah Arendt, entre educação e cidadania no contexto brasileiro, perpassando pelos seus problemas e possibilidades. A cidadania antiga: grega e romana O termo cidadania nos remete à sua gênese, à cidadania grega. Mesmo que, não se possa falar de um regime verdadeiramente democrático, é fundamental fazer referência aos exercícios democráticos que eram desenvolvidos pelos cidadãos atenienses, os mesmos, se reuniam na praça pública – Ágora – para decidir de modo direto acerca das normas, leis e assuntos de interesse comum. A polis surge entre os séculos VIII e VII a.C., para resolver conflitos existentes nas comunidades gregas, decorrentes da crise administrativa. A dificuldade de resolver os problemas e concentrar o poder nas mãos de um único ser configurou uma situação totalmente nova, para a qual os gregos conseguiram uma resposta inédita para o seu tempo. Segundo Vernant (2006, p. 48), “[...] novos problemas surgem: [...] a ordem pode surgir dos Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 conflitos entre grupos rivais, do choque das prerrogativas e das funções opostas? Como uma vida comum pode apoiar-se em elementos discordantes?” Desse modo, o poder da política deve ser gerado a partir da união entre os homens. Cada polis tinha um espaço delimitado, uma identidade a partir de sua fronteira física e legal. Benvenuti (2010, p. 14) afirma que, “[os] muros [da polis] forneciam o contorno de seu território; suas leis, suas regras, seu temperamento”. Ganha desse modo uma nova forma, não mais em torno de um palácio, mas sim, centralizada na praça pública, organizada ao seu entorno. Era nesse centro que os cidadãos livres – homens que possuíam as necessidades da vida e também do lar já atendidas – se reuniam para desempenhar a atividade política, isto é, a verdadeira cidadania. A Ágora era o espaço destinado para o encontro mediado somente pela palavra, discutiam sobre a cidade e o convívio dos homens. Para Arendt (2004, p. 47), “o que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. [...] Ser-livre e viver-numa-polis eram, num certo sentido, a mesma coisa”. A Ágora era, portanto, o espaço destinado para os assuntos públicos. Cabe lembrar que o espaço público e privado estava muito bem distinguido para os gregos, enquanto no âmbito privado cada homem livre era o senhor, todas definições eram por ele delegadas, pois a palavra e a autoridade do patriarca estavam imbuídas pelo lugar que ele ocupava. Enquanto adentrava na Ágora, a posição de autoridade era abandonada, nela todos se relacionavam entre iguais. Em seu livro A Política, Aristóteles (2007, p. 22), caracteriza ambas as situações da autoridade nos dois âmbitos da vida, “A autoridade doméstica é uma monarquia, [...] toda família é governada por um só: a autoridade civil ou política é aquela que governa homens livres e iguais”. Na condição de igualdade, surgia na Ágora o debate, os homens uniam-se em torno de alguma causa e faziam o uso da palavra com a intenção de persuadir. Não era esse es- paço um lugar de violência, mesmo que houvesse o conflito de ideias, o discurso baseava-se na união de opiniões. Porém, não eram todos os indivíduos da sociedade que tinham o privilégio de poder influir nos debates, pois o debate da cidadania2 é privilégio de poucos. Segundo Machado (1998, p. 1-3), “[...] apenas 6 ou 7% dos habitantes da polis eram cidadãos, [praticamente] 60% eram escravos”. Cabe ressaltar que mulheres, crianças e estrangeiros não eram considerados cidadãos. Portanto, apenas uma pequena parcela da sociedade grega estava apta a decidir por todos os demais. É importante ressaltar que além de ter vínculo com a sua cidade, era necessário o cidadão grego ser homem, livre, e que participasse em prol dos interesses da polis. Era cidadão o indivíduo pertencente, por laços de sangue, à classe dos cidadãos. Neste âmbito, o reconhecimento acontecia independente do fato do indivíduo ser fruto ou não de uma relação legítima. A transmissão da cidadania acontecia, ainda, mesmo que o pai tivesse sido considerado traidor ou desertor, e, portanto não mais cidadão. Neste caso, seria, em particular, necessário que a mãe do indivíduo não fosse estrangeira. Em nenhuma hipótese era determinada a cidadania pelo critério jus soli. O reconhecimento da cidadania se dava oficialmente quando o jovem completava dezoito anos. Este era apresentado à Assembleia do Demo que, em base a sua ascendência, o reconhecia ou não como cidadão. Caso positivo, este viria a ser inscrito no registro do Demo (DAL RI JÚNIOR, 2002, p. 28-29). Etimologicamente, cidadania vem de cidade, e, cidade vem de civitas, para os antigos romanos, significava a sociedade política. Assim, cidadania é a ação que torna “alguém” civil, habitante de uma cidade, seguidamente, passa a fazer parte de uma civilização. Para os antigos gregos, o conceito de cidadania estava ligado intimamente ao de cidade. 2 Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 89 Aqueles que eram considerados cidadãos, necessariamente deveriam ser livres. Desse modo, Arendt (2004, p. 47) adverte que “[...] o homem precisava ser livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado pela necessidade da vida era o sentido original do grego schole ou do romano otium, o ócio, como dizemos hoje”. Essa libertação, diferente de liberdade, deveria ser atingida por alguns meios, ou seja, o modelo escravagista era o meio decisivo, pois, outros eram forçados a assumir a preocupação com a vida diária. Diferente do sistema atual, isto é, da exploração capitalista, que visa objetivos econômicos, a exploração do trabalho escravo na Antiguidade serviu para liberar os senhores para poder exercer a liberdade da coisa política. Destarte, Aristóteles (2007, p. 20-22) afirma que, os escravos “[...] ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades quotidianas” e, desse modo, “[...] existe um interesse comum e uma amizade recíproca entre o senhor e o escravo, quando é a própria natureza que os julga dignos um do outro”. Assim, o sentido da coisa política “é os homens terem relações entre si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio. Iguais com iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra, davam ordens e obedeciam uns aos outros” (ARENDT, 2004, p. 48). Não obstante, a coisa política está centrada em torno da liberdade, compreendida como não ser dominado e não dominar, sendo um espaço que deve ser realizado por muitos e onde todos estão entre iguais. A liberação é condição essencial para a cidadania, porém não basta para que os homens sejam realmente livres, pois a liberdade só se configura como algo real, quando ocorre a união entre os iguais na praça pública. Como já apontamos, as relações desiguais só deixam possibilidades para a dominação de uns sobre os outros, ou seja, o oposto da liberdade. Em Aristóteles (1999), não basta ser apenas um homem livre; é necessário ter qualidades que variam conforme as diversas exigências da Constituição da cidade. Para um governante 90 ser bom ele necessita ter a virtude da prudência prática (phronesis), a partir da qual atinge o bem comum. Desse modo, tal exigência é difícil de ser encontrada em um homem comum, “Por isso priva da cidadania a classe dos artesãos, comerciantes e trabalhadores em geral” (p. 221). Pois, estes não possuem tempo livre para participar do governo. Percebe-se a ideia expressa de Aristóteles, desprezando o trabalho manual, que “embruteceria a alma”, tornando o indivíduo incapaz de exercer deliberações. Ademais, a liberdade existia apenas para a polis, sendo que a subjetividade do ser não decorria da condição humana, mas sim pelo fato de pertencer à coletividade. Para os gregos, a liberdade era um fenômeno, pois a polis possibilitava a união dos cidadãos que eram capazes de trazer e/ou gerar algo novo e ainda imprevisto, condição proveniente da igualdade. Segundo Arendt (2010), dois termos se destacam nos fatos experienciados na política: o termo archein e o termo agere. O termo archein significa a capacidade de iniciar ou criar algo totalmente novo, e o termo agere quer dizer colocar algo em andamento. É justamente nesse significado que a liberdade carrega consigo que devemos considerar ser o sentido da política. É importante ressaltar que, no momento que existe dominação e sujeição, isto é, uma relação entre dominadores e dominados, isto nada tem a ver com política, pois o que permitia a experiência de liberdade aos cidadãos gregos era o encontro na Ágora, encontro esse que acontecia entre iguais. O problema hoje reside no fato de vincularmos “à igualdade o conceito de justiça e não o de liberdade e, desse modo, compreendemos mal a expressão grega para uma constituição livre, a isonomia, em nosso sentido de igualdade perante a lei” (ARENDT, 2004, p. 49). Porém, a isonomia não se refere à igualdade de todos perante a lei, nem que a lei seja igual para todos, mas sim, “que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade na polis era de preferência uma atividade da conversa mútua” (ARENDT, 2004, p. 49). Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 Por isso, a isonomia refere-se à liberdade de dialogar. Nesse sentido, quando os gregos diziam que os escravos e os bárbaros era aneu logou, isto é, não tinham o domínio da palavra, significava dizer que os mesmos estavam impossibilitados da conversa livre. [...] Na mesma situação encontra-se o déspota que só conhece o ordenar; para poder conversar, ele precisava de outros de categoria igual à dele. Portanto, para a liberdade não se precisava de uma democracia igualitária no sentido moderno, mas sim de uma esfera limitada de maneira estreitamente oligárquica ou aristocrática, na qual pelo menos os poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre iguais. Claro que essa igualdade não tem a mínima coisa a ver com justiça (ARENDT, 2004, p. 49, grifos do autor). perante a lei. Desse modo, deixam como legado para a civilização o princípio primado da lei e também as bases do Direito Público Moderno (democracia representativa), que inclusive é referencial para o homem contemporâneo. Já em Roma, cabe aos reis e não a um regime democrático a autonomia para decidir e também executar leis. O cidadão romano – traduzido por pólitas para cives – era aquele que detinha o ius civitatis, distinguindo um romano de um não romano. Diferente da Grécia, podemos observar a privatização do espaço público3 com a nomeação, na qual funcionários diziam o Direito e também decidiam os rumos da vida pública romana. Em Roma, havia várias assembleias populares, entre elas o comício centurial é o mais relevante. Deste, participavam: [...] todos os cidadãos, se bem que com diferente peso político, conforme as classes de censo e de idade; cabiam-lhes a eleição dos mais altos magistrados da cidade e a votação de leis, (embora não muito abundante legislação de tipo privado, seja, em grande parte, obra da assembleia da plebe (BOBBIO, 1995, p. 1.112). Não obstante, as bases da democracia grega segundo Glotz (1980, p. 108): Orgulhosos de serem cidadãos livres, os atenienses talvez ainda sintam mais orgulhos de serem cidadãos iguais. A igualdade é mesmo, para eles, a condição da liberdade; é exatamente por serem todos irmãos nascidos de uma mãe comum que não podem ser nem escravos nem senhores uns dos outros. As únicas palavras que, na sua língua, servem para distinguir o regime republicano dos outros regimes são isonomia, igualdade perante a lei, e isegoria, direito igual de falar (grifos do autor). Portanto, a experiência da democracia direta dos gregos, uma maneira atenuada de oligarquia, sendo que apenas os cidadãos – que eram uma pequena parcela da população – podiam usufruir dos privilégios da igualdade Dessa forma, diferente do que ocorria em Atenas – participação direta –, em Roma o voto era um privilégio das centúrias que possuíam pesos diferentes nas votações. Portanto, a participação do povo romano é inferior ao do povo ateniense. Mas, na Grécia e em Roma, “[...] a reação mental e a divisão social [...] privaram o mundo antigo do poder de conservar sua civilização, ou de defendê-la “Os nobres [...] distinguiam mal as funções políticas e dignidade privada, finanças públicas e bolsa pessoal. A grandeza [romana] era a propriedade coletiva da classe governante e do grupo senatorial dirigente, do mesmo modo as cidades autônomas que formavam o Império eram coisa dos notáveis locais. As funções públicas eram tratadas como dignidades privadas, cujo acesso passava por um elo de fidelidade privada” (ARIÉS; DUBY, 1991, p. 103). 3 Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 91 contra a dissolução interna e a invasão externa da barbárie” (ROSTOVTZEFF, 1967, p. 302). Observa-se que também em Roma existia a ideia de cidadania como direito de participação, um status de homem livre, em oposição ao não cidadão – escravos e estrangeiros. Cretella Júnior (1995, p. 101) ensina que a liberdade era o ideal máximo aspirado pela [...] necessária revisão do conceito de cidadania todo habitante romano e, possuindo essa, a cidadania (civitas) era a situação ambicionada. Somente quem possuía o status libertatis poderia adquirir o status civitatis, eis que aquele era condição sine qua non para esse. Perdendo-se a condição de status libertatis (por exílio, deportação ou por tornar-se membro de uma cidade estrangeira), perdia-se também a condição de status civitatis. Assim, a cidadania romana continha o pressuposto normativo básico da condição civil moderna, isto é, reconhecer o pertencimento do indivíduo à comunidade – pela relação de direito entre o cidadão e o Estado –, sendo excludente no momento em que se diferenciava politicamente aos cidadãos do não cidadão e, inclusiva no momento em que convivia com as identidades coletivas que participavam da comunidade civil, e não deviam ser necessariamente identidades universalistas. Portanto, cidadão significava ser romano, homem e livre, destarte, com direitos do Estado e com deveres para com ele. A cidadania na idade média “Um peso colossal de estupidez esmagou o espírito humano. A pavorosa aventura da Idade Média, essa interrupção de mil anos na história da civilização, vem menos dos bárbaros do que do triunfo do espírito dogmático das massas” (Ernest Renan). 92 A Idade Média corresponde a um período extenso de mil anos (de 476 até 1455), a partir da queda do Império Romano e a tomada da Constantinopla pelos turcos, temos a ascensão do Estado e principalmente da igreja. A igreja passa a legitimar o poder do Estado, conferindo-lhe uma causa ou origem divina. Assim, esta assume a propriedade privada, o casamento, o governo, o direito e a servidão. Por causa do sistema feudal – a partir do século XI – o Estado passa a enfraquecer-se. Enquanto na Antiguidade, o Estado tinha função de integrar e também realizar as necessidades dos indivíduos, na Idade Média temos uma concepção negativa de Estado, pois para este cabe a função de intimidar e vigiar a população, a fim de que, os indivíduos agissem de forma correta. Não obstante, a igreja cumpria o mesmo papel, ou seja, ela agia com o objetivo de salvar a alma dos indivíduos, dessa maneira, era com a igreja que se deveria manter relações. Grosso modo, frente às práticas políticas que se estabeleceram, com relações de vassalagem, talha, domínio do senhor feudal, não foi possível o indivíduo exercer sua liberdade política que corresponde ao projeto da cidadania. O fato de sobressair relações de suserania e de vassalagem, muitas vezes em razão do contrato de vassalagem, muitos senhores – proprietários rurais – tinham a condição de governantes locais. Assim, constata-se que: [...] com a decadência e o desaparecimento da civilização greco-romana, o mundo ocidental atravessou vários séculos de supressão da cidadania. O ‘status civitais’ foi substituído por um complexo de relações hierárquicas de dominação privada. O renascimento da vida política fundada na liberdade entre iguais deu-se apenas a partir do século XI, nas cidades-Estados da península itálica, [...] com características muito semelhantes às da cidadania antiga: o grupo dos que tinham direitos políticos era composto de uma minoria bur- Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 guesa, [...] sob a qual labutava toda uma população de servos e trabalhadores manuais, destituídos de cidadania (COMPARATO, 1989, p. 24). Percebe-se que a relação política, na Idade Média, era dada por meio da hereditariedade e também pela religião à qual pertencia o indivíduo na sociedade. Ser proprietário de terras significava exercer a autoridade pública e religiosa, além de determinar o “status” e os privilégios que possuíam por natureza. Desse modo, eram excluídas das atividades em assuntos públicos todas as classes inferiores. Dessa forma, Marshall (1967, p. 64) sintetiza que: Na sociedade feudal, o ‘status’ era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. Não havia nenhum código uniforme de direitos e deveres com os quais todos os homens – nobres, plebeus, livres e servos- eram investidos em virtude da sua participação na sociedade. Não havia, nesse sentido, nenhum princípio sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio de desigualdade de classes. Ainda nessa perspectiva, Bobbio (1986, p. 58) aponta que a sociedade feudal é: [...] o exemplo historicamente mais convincente de uma sociedade constituída por vários centros de poder, com frequência concorrentes entre si, e por um poder central muito débil que hesitaríamos em chamar de estado no sentido moderno da palavra, isto é, no sentido de que o termo ‘estado’ está referido aos estados territoriais que nascem exatamente da dissolução da sociedade medieval. A sociedade feudal é uma sociedade pluralista, mas não é uma sociedade democrática: é um conjunto de várias oligarquias. Assim, nessa sociedade há a predominância entre a relação de domínio e desigualdade. Apenas o grupo que detinha direitos políticos era entendido como cidadão. Fato este, encontramos na obra A República de Platão, na qual Platão (1975, p. 113) afirma que: Na cidade sois todos irmãos, dir-lhe-emos, prosseguindo nesta ficção; mas o deus que vos formou misturou outro na composição daqueles de entre vós que são capazes de comandar: por isso são os mais preciosos. Misturou prata na composição dos auxiliares; ferro e bronze na dos lavradores e dos outros artesãos. O trecho anterior, presente na Grécia, perpassa também toda a era medieval, e só perde coerência a partir da inauguração das ideias políticas dos séculos XVII e XVIII. Assim, as relações presentes na Idade Média são particulares, sedimentadas no espaço privado dos senhores feudais, deixando evidente a supressão da cidadania que a Idade Média encerrou. Portanto, nota-se a ausência de unidade de governo, e a presença de diferentes tipos de poder. Porém, diante do fracionamento do poder, por sua vez, existia uma aspiração à unidade, isto é, o cristianismo torna-se uma base de aspiração à universalidade, sendo uma espécie de farol num período sem unidade política. A cidadania moderna As fundamentações do Estado moderno são decorrentes, desde a sua constituição, da Idade Média. Como já dito, a ausência de uma unidade de governo, uma doutrina fundamentada na igreja,4 com o passar dos tempos mostra-se insuficiente e necessita de alterações. Dessa forma, a igreja encontra em Santo 4 O agostinismo, baseado nas ideias de Platão, priorizava a fé sobre a razão e o conhecimento. Porém, no decorrer do tempo, essa teoria mostra-se insuficiente, e a igreja deveria adaptar a sua ideologia ao modo de como desempenhava o seu papel político. Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 93 Tomás de Aquino5 uma ideia que deriva da origem divina do poder, desse modo, todos os reis deveriam submeter-se a um papa. Assim, os senhores feudais perdem grande parcela do poder político para o rei, e que só se legitima com a chancela do papa – representante de Deus na Terra – provedor da igreja e também da nobreza. A centralização do poder, e a instauração da sociedade moderna, requer várias transformações econômicas e políticas que ocorrem nos séculos XVII e XVIII. A partir da reforma protestante, que divide a Igreja Católica, passa-se a questionar também a realidade, tendo como principal precursor Descartes. Não obstante, valoriza-se a razão em detrimento da fé, ou seja, as questões não são mais explicadas a partir da vontade divina e sim pela razão. Para Bobbio (1992), o poder do soberano é visto como resultante da vontade popular, além disso, o direito natural é visto como um resultado ou produto da razão. Desse modo, os Direitos Humanos são todos produtos do homem e direitos históricos. Nos séculos XV e XVI, a burguesia busca uma maior participação política, a fim de conquistar espaços que antes eram monopolizados pela nobreza. Esse fato rompe com o estabelecido e projeta uma nova ordem. Bendix (1996, p. 109-110) tematiza da seguinte forma: [...] cada cidadão encontra-se em uma relação direta com a autoridade soberana do país, em contraste com o Estado Medieval, no qual essa relação direta é desfrutada apenas pelos grandes homens do reino. Por conseguinte, um elemento essencial [...] é a codificação dos direitos e deveres de todos os adultos que são classificados como cida5 A cristandade busca projetar-se no âmbito político, a fim de exigir a limitação do poder, que é derivante de Deus. A distinção entre lei divina e lei humana, ou entre lei eterna, lei natural e lei humana, a Escolástica com Santo Tomás de Aquino (Summa Teológica), segundo Miranda (1977, p. 60), “[...] viria para enfrentar o problema da lei injusta e a admitir o direito de resistência em certas condições”. 94 dãos. A questão é o quão exclusiva ou inclusivamente o cidadão é definido (grifos do autor). Esse mundo burguês foi inaugurado a partir de ideias de vários intelectuais, assim, as ideias eram incompatíveis com as ideias que se mantinham no mundo medieval, ou seja, as ideias desses intelectuais contrapõem a uma compreensão de estado natural, onde todos nascem livres e com direitos. Entre esses intelectuais, podemos destacar Locke, Rousseau e Hobbes, que assumem posições de destaque no que se refere à supremacia do indivíduo. Nesse momento, apresentamos as ideias de Hobbes, com sua concepção da supremacia do homem, onde ele previa que: [...] somente a autoridade e a razão refreariam o impulso agressivo, insaciável e egoísta do homem em seu estado natural, e, em assim sendo, imperiosa seria a organização política de uma sociedade em que o governo, visando à segurança e ao bem-estar do todo, não encontraria limites de poder (WOLKMER, 1989, p. 58). Cabe ressaltar que Hobbes foi teórico do Absolutismo, onde o soberano detinha poderes absolutos, obrigando apenas os súditos, visto que o soberano não era parte do contrato. Assim, é inevitável para Hobbes o homem abdicar de suas liberdades individuais em favor do Leviatã. Desse modo, diante do fortalecimento da burguesia, que buscava consolidar o poder, além de dominar as demais classes e, construir um Estado próprio, aparece como uma nova classe hegemônica. Nesse momento, faz-se necessário apresentar as ideias de outro intelectual importante, John Locke (1632-1704), que tem sua doutrina baseada no Estado Constitucional Inglês – formado após a Revolução de 1688. As ideias de Locke partem do estado natural e também do contra- Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 to original, isto é, o estado de natureza está regulamentado pela razão, assim sendo, os direitos naturais substituem-se para estabelecer a liberdade, não podendo ser objeto de renúncia por parte do contrato original, pois, devem permanecer no estado de sociedade. A sociedade é essencial aos homens, o que implica direitos e obrigações, grosso modo, o governo só deve conciliar. O que significa que o homem não deve ser privado dessa condição natural e ser submetido pelo poder de outro sem ter a sua própria aceitação. Não obstante, pertencem ao homem em seu estado natural, direitos como: a propriedade privada, o capital e os instrumentos, que, segundo Locke, seriam extensões naturais da livre disposição que o homem possui sobre o seu corpo e também o seu trabalho. Assim, de acordo com Châtelet (1997, p. 59), os proprietários “[...] reúnem-se e entram em acordo para definir o poder público encarregado de realizar o direito natural. Este poder é soberano, no sentido de que os que o instituíram, e na medida em que ele atue segundo seu fim, são obrigados a obedecer-lhe e a lhe prestar apoio”. Assim, para Locke a sociedade deve ser organizada de forma harmônica, não necessitando recorrer à ordem política, pois, o Estado surge somente quando os direitos naturais não possuem mais força para vingarem. Nesse sentido, é necessário constituir um poder que os enuncie, formalize e também garanta, ao modo de que: [...] o princípio-Estado é necessário – com seu aparelho legislativo, judiciários, policial e militar –, mas é uma forma vazia. Os cidadãos [proprietários] decidem sobre a natureza do corpo legislativo e do governo e sobre quais são os que, dentre eles, merecem confiança para realizar suas tarefas (CHÂTELET, 1997, p. 60). Não obstante isso, Châtelet (1997, p. 60) ressalta que, caso o Estado “[...] fosse fracassar em sua missão e contrariasse os direitos naturais, seria um dever dos cidadãos desencadear a ‘instrução sagrada’ e formar governos decididos a fazer do Estado um poder ao serviço das liberdades inscritas em cada indivíduo”. Enquanto na teoria de Locke, o indivíduo é dono/proprietário daquilo que ele consegue conquistar com o seu esforço, ou seja, com a sua força de trabalho. Portanto, a riqueza de cada indivíduo é proveniente do seu trabalho e não um resultado da expropriação de uma propriedade alheia. Não obstante, percebe-se a influência exercida por Locke sobre os demais intelectuais do período, por exemplo: Montesquieu formula a separação dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), influência presente ainda na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, além disso, está presente também na Declaração de Direitos da França, perpassando até os nossos dias. Passados setenta anos após Locke, Rousseau (1712) retoma as ideias em sua obra Do Contrato Social (1757). Assim, “Nenhum homem tem autoridade natural sobre o seu semelhante [...] a força não produz nenhum direito” (ROUSSEAU, 1987, p. 27). Do mesmo modo, o Estado irá assegurar aos cidadãos os direitos que já possuem por natureza, transformando os direitos considerados naturais em direitos civis. Para Rousseau (1987), a concepção de cidadania não pode desvincular-se da noção de liberdade e de igualdade, pois, nenhum homem deve comprar outro pelo fato de ser rico, ou se vender por ser pobre. Dessa maneira, o indivíduo deve ser dono de si mesmo e também da sua própria vida e não deve ser senhor de ninguém. Para tornar o Contrato Social legítimo, é necessário o consentimento de todos os indivíduos. A partir do contrato, o indivíduo abdica de sua liberdade natural para conquistar a liberdade convencional, que irá proteger a todos – cada um abdica de sua liberdade em favor da comunidade. É importante ressaltar que o contrato não faz que o povo perca sua soberania, pois o Estado não é desvinculado do povo. Por isso, soberano, para Rousseau (1987) é o coletivo que expressa, por meio das leis, a sua vontade geral. Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 95 Observa-se, desse modo, que a doutrina de Rousseau é indivisível e também inalienável, lembra-se que ela não pode ser delegada, nem representada. Decorre assim a rejeição da representação, ou ainda a forma de monarquia absoluta, pois, uma vez que o poder é confiado a um monarca ou a representantes, o poder soberano passa a ser particularizado, e não existe mais a vontade geral, e sim vontades particulares. O povo não deve manter uma relação de dependência com o governo instituído, uma vez que os depositários do poder não devem ser senhores do povo, mas, seus auxiliares, caso não cumprirem a função de serem oficiais do povo, podem ser destituídos. Para Rousseau (1987), a democracia deve ser direta ou participativa, funcionando com assembleias integradas por todos os cidadãos. Assim, o cidadão é aquele que faz a lei e obedece a ela. Desse modo, o soberano – povo – dita a vontade geral que se expressa na lei. É de suma importância, distinguir a vontade geral da vontade de todos, pois a soma dos interesses privados pode não ser do interesse comum. Portanto, o interesse comum não é o interesse de todos. Assim, o interesse de todos e também de cada um deve ser componente do corpo coletivo. Do mesmo modo, se prevalece o interesse da maioria em determinada ocasião, não significa necessariamente que se está atendendo ao interesse comum. Com as mudanças, que ocorrem a partir das revoluções norte-americana e francesa, surgem as Constituições, primeiramente nesses países e posteriormente em várias nações do mundo. Assim, nascem as cartas constitucionais, que declaravam as liberdades e os direitos, além de se fixar os limites do poder político. Cabe ressaltar que, com o constitucionalismo, cria-se o Estado de Direito, que passa a caracterizar-se pela formalização e está centrado na administração subordinada à regra de Direito, e não necessariamente ao povo. Nessas mudanças, a soberania popular é operada via cidadania. Segundo Andrade (1993, p. 114), “[...] tal demarcação é fundamental para o funcionamento do Estado moderno, ao mesmo tempo em que ‘poten- 96 cializa’ a cidadania política”. Para completar, Bonavides (1972) destaca que, a partir dessas revoluções apresentadas, consagram-se os princípios liberais políticos e econômicos, vencendo assim o liberalismo e não a democracia. A cidadania passa a ser vinculada ao Estado-nação, que é seu único emissor. É possível observar na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (26/08/1789) o discurso liberal de cidadania. No Art. 1º. – Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, as distinções sociais somente podem ser fundadas no bem comum. No Art. 2º. – O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem, esses direitos são a liberdade, a propriedade e a resistência à opressão. Enquanto no Art. 3º. – O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação, nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. É compreensível que a Declaração não concebe os direitos naturais, que são inalienáveis e sagrados do homem enquanto fora do corpo social, porém é perceptível que a Declaração destina a todos os indivíduos do corpo social os seus direitos e também deveres. Kristeva (1994, p. 157) observa que: [...] Assim, baseando-se numa natureza humana universal que o Iluminismo aprendeu a conceber e a respeitar, a Declaração desliza da noção universal de ‘os homens’ para de ‘associações políticas’, que devem conservar os seus direitos e encontrar a realidade histórica da ‘associação política essencial’ que é... a nação. A Declaração Francesa transfere a soberania popular para a Assembleia, assim, os direitos de cidadania de cunho nacionalista, seriam exercidos somente por nacionais ou considerados naturalizados e não por estrangeiros que residem no país. O homem considerado “natural” é um ser político e Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 nacional, o que, posteriormente, pode gerar indagações, a respeito da situação de povos apátridas, ou seja, que tiveram seus Estados destruídos, ou ainda, de povos sem governo algum que possa defendê-los. Nesse sentido, Kristeva (1994, p. 159), invocando de certo modo Hannah Arendt, reflete: [...] somos homens, temos direito aos ‘direitos do homem’ quando não somos cidadãos? Se o corpo político nacional deve agir para todos, [...] dá-nos o significado de que a expansão das ideias da Revolução Francesa sobre o continente desencadeou a reivindicação dos direitos nacionais dos povos, não o da universalidade dos homens. cidadania e o povo, para obter consenso. São justamente essas mediações que permitem o Estado de se apresentar como defensor dos interesses gerais. Ademais, é importante referir também T. H. Marshall, que, em sua obra, Cidadania, classe social e status, publicado em 1950, passa a analisar a sociedade e fazer a divisão dos direitos de cidadania em três, são eles: Direitos Civis, Direitos Políticos e Direitos Sociais.6 Desse modo, nas palavras de Marshall (1967, p. 76): [...] a cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida. A insistência em seguir o caminho assim determinado equivale a uma insistência por medida afetiva de igualdade, um enriquecimento da matéria-prima do status e um aumento no número daqueles a quem é conferido o status. A classe social, por outro lado, é um sistema de desigualdade. E esta também, como a cidadania, pode estar baseada num conjunto de ideias, crenças e valo- Ainda, conforme as palavras de Andrade (1993, p. 59), ele afirma que: A cidadania é a criação do direito racional formal, atendendo a exigências específicas do modo capitalista de produção. [...] o primeiro movimento possibilitado pela cidadania, [...] é o de converter indivíduos atomizados em sujeitos jurídicos, livre e iguais, capazes de contratar livremente. Se pressuposto é a igualdade abstrata dos sujeitos, prescindindo de qualquer propriedade, que não seja sua força de trabalho. Dessa forma, a exploração, realizada através das relações capitalistas de produção, é ocultada sob uma dupla aparência: a da igualdade das partes e a da livre vontade com que as mesmas podem ou não ingressar na relação contratual. A formatação do conceito de cidadania não para por aqui, em seu significado moderno, tem origem no Estado liberal-constitucional, que busca mediações como a nação, a Para Marshall (1967), os Direitos Civis – base da cidadania – referem-se aos direitos individuais, como: direitos à vida, à liberdade de expressão, à propriedade e à igualdade frente à lei. Enquanto os Direitos Políticos consistem em participar das questões do poder político, de modo que é possível votar e ser votado – encontrando assim, a essência no voto. Por sua vez, os Direitos Sociais, garantem direitos à educação, trabalho, saúde, moradia, enfim, baseados na ideia de justiça social. 6 Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 97 res. É, portanto, compreensível que se espere que o impacto da cidadania sobre a classe social tomasse a forma de conflito entre princípios opostos (grifos do autor). Nesse sentido, buscar tentativas de igualar os indivíduos, por intermédio da cidadania, torna-se mais importante do que a igualdade em rendimentos. Pois, segundo Marshall (1967), é por meio da educação que a cidadania operou como um instrumento de estratificação social, devendo-se ter a consciência de suas consequências. Assim, na perspectiva de Marshall, uma vez alcançados os direitos de cidadania, tem-se uma cidadania plena. Além de não fazer menção à sociedade civil como construtora da cidadania, porém, é o Estado – e não o povo –, o titular ou o construtor da cidadania. Parece que Marshall desconsidera que a construção da cidadania ocorre por meio dos conflitos entre o Estado e a Sociedade Civil, sendo que a cidadania cresce pela mediação entre os dois. Sua visão linear de sociedade também evidencia a relação entre a concepção de cidadania e o liberalismo, presa ainda pelos princípios de individualismo e a livre iniciativa – caminhando para uma versão capitalista –, privilegiando o consenso que provém de uma relação onde o Estado mínimo não é colocado para toda a sociedade, só ela é capaz de mostrar a cidadania como uma concessão ampliada para aqueles que queiram – e estejam capacitados – adquiri-la, com as migalhas que o estado de bem-estar lhes oferece. Educação e cidadania: uma leitura arendtiana As menções à educação feitas por Arendt ao longo de sua obra são raras. O sentido da prática educativa é o objeto central de apenas um de seus textos, o ensaio A Crise na Educação, presente na obra Entre o Passado e o Futuro, Arendt apresenta reflexões sobre a crise da educação nos Estados Unidos da América durante a década de 50, que passou a se tornar “um problema político de primeira 98 grandeza” (ARENDT, 2013, p. 221). Porém, a autora constata que não é um assunto apenas local ou isolado e, não pode ser resolvido com a ajuda de uma nova metodologia. Nesse sentido, “certamente, há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler” (ARENDT, 2013, p. 222), para Arendt, os problemas educacionais são reflexos de uma crise que acomete o mundo moderno. As reflexões provocadas por Arendt são fruto das experiências políticas de seu tempo. Compreender o sentido da presença dos homens no mundo, a relação entre eles e consigo mesmo, é, segundo Arendt (2002, p. 39), uma “atividade interminável, por meio da qual [nós] aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo”. Nesse sentido, compreender é encontrar sentido por meio da atividade do pensar.7 A tentativa de Arendt para compreender o mal-estar educacional da década de 50 nos Estados Unidos resultou no artigo Reflexões sobre Little Rock,8 no qual a autora aborda o tema da segregação racial. A Suprema Corte Norte-americana passa a garantir o direito de estudantes negros a frequentar as mesmas escolas com estudantes brancos, começando o processo de segregação no ano de 1957. Porém, em clima hostil, cartazes agressivos e algumas agressões por parte de brancos, são sofridas pelos negros na Little Rock Central High School. O acontecimento foi noticiado nos jornais do país. Arendt fica indignada com a foto de uma estudante negra sendo protegida por um adulto branco (amigo do pai) e ouvindo gritos e hostilidades. O fato de ainda serem crianças, são obrigados a enfrentar questões políticas que não foram resolvidas pelos adultos no espaço pú “O pensar, [...] não age, nem tem algum efeito direto sobre nosso agir; [...], no entanto, é o único caminho para atribuirmos algum sentido àquilo que se passa no mundo, sendo nisso que consiste sua relevância” (ALMEIDA, 2011, p. 147). 8 O artigo estava pronto, em 1957, por causa de desentendimentos é publicado somente em 1959. A última versão de “A Crise na Educação”, de 1961, omite esse trecho. 7 Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 blico. Assim, “Chegamos ao ponto em que se solicita às crianças que mudem e melhorem o mundo? E pretendemos [que] as nossas batalhas políticas [sejam] travadas nos pátios das escolas?” (ARENDT, 2004, p. 272). As crianças não deveriam ser expostas a situações de luta pela efetivação da igualdade constitucional, esta deveria ser resolvida e travada politicamente entre os adultos. A manifestação de Arendt não é contra a criação de políticas de integração, ela é contra a delegação feita pela Suprema Corte Norte-americana, confiando às crianças a solução de uma questão a ser discutida e solucionada entre os adultos.9 O espaço de solução dos problemas e questões sociais é a esfera pública, um espaço de liberdade. Contudo, as crianças ainda não podem exercer sua liberdade na esfera pública, sendo livres apenas pelo nascimento, necessitando da proteção do âmbito privado, para que não sejam expostas aos problemas do domínio público. Assim, são crianças e em fase de crescimento, precisam do resguardo, pois não estão prontas para fazer parte do âmbito público, onde tudo está sujeito a se tornar visível. Ademais, a integração racial é responsabilidade do âmbito político e não pode ser atribuída a outro âmbito. A tentativa de estabelecer alguma realidade de mundo a partir da educação, seja ela qual for, pode apontar para um problema, isto é: realmente separadas de seus pais e criadas em instituições do Estado, ou doutrinadas na escola [...]. É o que acontece nas tiranias (ARENDT, 2004, p. 265). Para Arendt, a tentativa de estabelecer mudanças políticas por meio da educação pode ter consequências nefastas. Tornar o âmbito educacional um meio para fins do âmbito político só pode significar instrumentalizar a educação como se os seus resultados pudessem ser totalmente previsíveis. A respeito disso a autora escreve: O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, a partir dos tempos antigos, mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos. No que toca à política, isso implica obviamente um grave equívoco: ao invés de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse. [...] a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feitio tirânico que, ao chegarem ao poder, subtraem as crianças a seus pais10 e simplesmente as doutrinam. A educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão A ideia de que se pode mudar o mundo educando as crianças no espírito do futuro, tem sido uma das marcas registradas das utopias políticas desde a Antiguidade. O problema [...] tem sido sempre o mesmo: só pode dar certo se as crianças são “A política baseia-se no fato da pluralidade humana. Deus criou o homem, mas os homens são um produto humano e terreno, o produto da natureza humana. [...] O que é política? [...] para a totalidade do pensamento científico, existe somente o homem – na biologia, ou na psicologia, do mesmo modo que na filosofia e na teologia, e justamente do mesmo modo na zoologia existe apenas o leão. Só os leões se poderiam preocupar com os leões” (ARENDT, 2007, p. 83). 9 A crítica dirigia-se principalmente à proposta de educação soviética. Porém, atualmente as crianças estão sendo tiradas dos pais, pela dinâmica competitiva do mercado de trabalho, colocam seus filhos em turno integral em escolas desde os primeiros meses de vida da criança. Caberia aqui a mesma crítica? 10 Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 99 educados (ARENDT 2013, p. 225, grifos do autor). cesso educativo, seja em relação ao mundo (ALMEIDA, 2011, p. 38). A passagem citada é paradigmática para compreendermos a distinção entre educação e política. Para Arendt, a política é o campo onde os homens estão entre iguais, com diferentes opiniões e ausência de hierarquias, tomam decisões coletivas diante dos problemas públicos. É a esfera da liberdade11 pública, isto é, da isonomia,12 onde, em princípio, todos possuem direitos iguais à atividade política, além de partilharem as mesmas responsabilidades pelo mundo comum, preservando-o ou fazendo as mudanças necessárias. Os conceitos arendtianos de privado e público remontam à polis, onde essas duas esferas estavam claramente separadas. Na Antiguidade, anteceder a esfera privada em relação à esfera pública ocorria na medida em que a primeira precisava estar garantida para que a segunda pudesse surgir e se manter. Portanto, se a esfera pública é o espaço da política, ela precisa da esfera privada, que é designada por Arendt como pré-política, para continuar existindo. O exercício da liberdade no espaço público era, portanto, considerável na medida em que o necessário era confinado à esfera privada. Assim, enquanto no âmbito público estamos entre iguais: Desse modo, Arendt (2013, p. 225) afirma que “a palavra educação soa mal em política” e educar na política só pode significar a pretensão de se “agir como guardião na tentativa de impedir a atividade política”. A educação, embora tenha um compromisso com o mundo, e ainda que busque a possibilidade de uma futura participação nos assuntos públicos, “não é o espaço da própria ação política” (ALMEIDA, 2011, p. 93). Assim, a educação14 deve apresentar aos alunos como o mundo é, e não como ele deveria ser,15 o que supõe que os educadores saibam como ele é, não do ponto de vista individual, mas ao mundo comum, do qual são representantes. Arendt (2013, p. 245-246), já nos alertava em 1950 para o impasse na educação, o fato de, por sua natureza, “não poder [...] abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, [...] a caminhar num mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição”. Num mundo que se encontra extremamente instável, onde cada um quer antes de tudo sobreviver, pois ninguém garante que ele possa ser substituído por outro a qualquer momento, qualquer responsabilidade que não esteja ligada ao bem-estar individual é uma exigência inaceitável. Podemos considerar ainda as poucas possibilidades de A relação pedagógica se caracteriza por desigualdade entre os alunos e professores – baseada não somente nos conhecimentos desiguais, mas também, na responsabilidade desigual,13 seja frente ao próprio pro A liberdade é “como um dom supremo que somente o homem, dentre todas as criaturas terrenas, parece ter recebido, e cujos sinais e vestígios podemos encontrar em quase todas as suas atividades, mas que, não obstante, só se desenvolve com plenitude onde a ação tiver criado seu próprio espaço concreto onde possa, por assim dizer, sair do seu esconderijo e fazer sua aparição” (ARENDT, 2013, p. 218). 12 Ver Arendt (2006, p. 48-49). 13 Os jovens não assumem na escola a responsabilidade pelo mundo, ou seja, não exercem o seu papel de cidadãos na escola. A escola transmite conhecimentos e cultiva princípios que vão favorecer a futura participação dos alunos na esfera pública. 11 100 Em “A crise na educação”, Arendt explica que a esfera educacional não é parte nem da vida privada, nem da vida pública, mas constitui uma espécie de esfera intermediária. A escola é “a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo” (ARENDT, 2013, p. 238). 15 “[...] a função da escola é ensinar às 14 crianças o mundo como ele é, e não instruílas na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente” (ARENDT, 2013, p. 246). Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 participação política e as raras oportunidades de se tornar visível em espaços comuns, a fim de, “buscar a felicidade”, para que, de fato, a ação do cidadão possa fazer diferença. No livro Sobre a revolução, Arendt (2011, p. 173) chama a atenção para o interesse dos franceses e também estadunidenses, em que ambos sabiam que “não poderiam ser totalmente ‘felizes’ se sua felicidade se situasse [...] apenas na vida privada”. Concordavam ainda que a esfera pública consistia em participação em todas as atividades ligadas às questões, que lhes proporcionava “[...] um sentimento de felicidade que não iriam encontrar em nenhum outro lugar” e ainda, “iam às assembleias de suas cidades [...] acima de tudo porque gostavam de discutir, de deliberar e de tomar decisões” (ARENDT, 2011, p. 163). Na medida em que essa busca pela felicidade não teve seu caráter público claramente definido, passa a funcionar desde o início como uma forma de confusão entre a felicidade pública e bem-estar privado, entre direitos privados e felicidade pública, e ainda entre a busca pelo bem-estar e ser participante nos assuntos públicos. Não obstante, a busca pela felicidade logo se desfez e se passou a transferir “a liberdade pública para a liberdade civil, a participação nos assuntos públicos em favor da felicidade pública para a garantia de que a busca pela felicidade privada seria protegida e incentivada pelo poder público” (ARENDT, 2011, p. 181). Assim, aparece no cenário pedagógico brasileiro a expressão “cidadania”, uma “expressão xamânica de apelo encantatório” (BRAYNER, 2008, p. 35), como se essa palavra pudesse agora resolver todas as nossas apostas sociais e políticas, que não tiveram ênfase durante algumas décadas. Para Arendt, a ideia de uma educação para a cidadania pode ter consequências drásticas, por exemplo, o doutrinamento político-ideológico das crianças e ainda a intervenção arbitrária da sociedade. Ademais, na realidade brasileira, Flávio Brayner (2008) chama a atenção para o fato de que tal ideia desempenhou um importan- te papel nas doutrinas político-pedagógicas de esquerda. Desse modo, educar para essas correntes adquiria geralmente: O sentido de uma formação da consciência (e não é por acaso que a expressão freireana conscientização tenha obtido tanto sucesso entre nós e, muitas vezes, erroneamente entendida como politização), visando o objetivo último de transformação das relações sociais (BRAYNER, 2008, p. 36). Sendo assim, a “consciência histórica e, ambas, com consciência utópica” (BRAYNER, 2008, p. 36), Arendt considera arriscada toda ação educativa que propõe a formar para a consciência ou ainda para a emancipação. Tais noções carregam um denso conteúdo ético-político-ideológico, e o que acaba ocorrendo frequentemente é a transformação da educação em instrumento de alguns grupos ou movimentos. O problema na relação entre a educação e cidadania,16 observado por Brayner (2008, p. 44), é “quando a educação se transforma em mero epifenômeno da luta de classes e da política em geral”. Arendt diria que não podemos determinar as ações dos jovens por meio da educação, nem buscar fornecer diretrizes para a futura ação política. Não podemos atribuir à educação uma função “demiúrgica”, como comenta Brayner (2008, p. 50) a partir de Arendt: A escola não produz o cidadão. A escola não ‘produz’ nada! O ‘produto’ final da escola não é algo que podemos identificar como dotado de características que, desde o início, seguiria um plano de execução ou de manufaturação e que chegaria A cidadania aparece aqui como um dos principais direitos que deve ser propiciado à comunidade a partir da política, seus problemas não podem ser resolvidos em sala de aula, espaço onde a relação ocorre de forma vertical e também hierárquica entre professor-aluno. 16 Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 101 a uma terminalidade chamada, por exemplo ‘cidadão’.17 Para Arendt (2013, p. 242), a educação deve possuir uma dimensão conservadora,18 [...] em política, a atitude conservadora – que aceita o mundo [...] como ele é, procurando somente preservar o status quo – só pode levar à destruição. E isto porque o mundo está irrevogavelmente condenado à ação destrutiva do tempo, a menos que os humanos estejam determinados a intervir, a alterar, a criar o novo. Nesse sentido, nossa esperança “reside [...] na novidade que cada nova geração traz consigo” (ARENDT, 2013, p. 243) e, uma educação que pretende fabricar comportamentos políticos, estaria justamente aniquilando esse potencial. Mesmo no caso em que se pretendem educar as crianças para virem a ser cidadãos de um amanhã utópico, o que efetivamente se passa é que se lhes está a negar o seu papel futuro no corpo político, pois que, do ponto de vista dos novos, por mais novidades que o mundo adulto lhes possa propor, elas serão sempre mais velhas que eles próprios. Preparar uma nova geração para “Cidadão é, verdadeiramente, o que participa na vida política, através de funções deliberativas ou judiciais. [...] os cidadãos livres e iguais [...] deveriam constituir o grupo predominante na vida política” (ARISTÓTELES, 2001, p. 19-20). 18 “A fim de evitar mal entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo. Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo que é aí assumido implica, é claro em uma atitude conservadora” (ARENDT, 2013, p. 242). 17 102 um mundo novo, só pode significar que se deseja recusar àqueles que chegam de novo a sua própria possibilidade de inovar (ARENDT, 2013, p. 225-226). Não obstante, a educação deve oferecer competências, pré-requisitos e os alicerces necessários à “visibilidade dos indivíduos no espaço público comum”, referentes “à participação nos debates que decidem suas vidas” (BRAYNER, 2008, p. 23-24). No mesmo sentido, a escola republicana poderia contribuir para que os indivíduos consigam constituir sua opinião singular frente ao mundo, fornecendo competências mínimas para que os jovens possam futuramente interessar-se e participar das decisões públicas. Seria uma escola onde o falar, o pensar e o julgar permitiriam, a cada indivíduo, aparecer no espaço público com palavras e responsabilidade de ação. Tais competências se situariam, em primeiro lugar, numa relação com o mundo da cultura, que permitiria entender as diferentes sensibilidades, concepções, entendimentos que ao longo das gerações constituíram um mundo comum. Em segundo lugar, uma competência que franqueie o acesso a uma intersubjetividade responsável entre interlocutores dispostos a participar do debate público. Em terceiro lugar, uma competência que permita a compreensão e a inserção qualificada num mundo de vertiginosos avanços e mudanças tecnológicas. E, por último, uma competência capaz de interrogar os próprios fundamentos de nossas certezas sociais (BRAYNER, 2008, p. 110-111). Na compreensão diacrônica entre a relação educação e cidadania, Brayner (2008, p.118-119) afirma que: Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 [...] embora a [cidadania] não dependa exclusivamente da [educação] e nenhuma garantia possa ser fornecida neste sentido (já que o ‘cidadão’ não preexiste à sua aparição na Cidade), o cidadão seria algo que viria depois, ulterior a um tempo de entrada no mundo (natalidade) e para o que a educação poderia auxiliar. Portanto, o alerta de Arendt, de que a educação nunca deve cercear a espontaneidade – seja na instrumentalização político-ideológico ou ainda na submissão às exigências do mercado – permanece atualíssimo. Considerações finais Após o estudo efetuado, baseando-se em vários autores, é possível apresentar algumas ideias sobre a relação entre educação e cidadania, primeiramente, cidadania está vinculada à prática e também à teoria política grega, na qual apenas cidadãos – minoria – discutiam as questões políticas da cidade, deliberando de forma direta. Em Roma, os reis tinham enorme influência para decidir e também executar leis, mas delegavam esse poder a uma Assembleia, que era formada por cidadãos em idade militar. Já na percepção medieval, dissolve-se a ideia de Estado, não há mais uma relação direta entre o poder influenciador dos reis e entre os súditos, poderíamos dizer que a cidadania, nesse período, inexiste, pois quase toda a população era formada por servos, predominando assim uma situação de dominação e desigualdade. A partir da Revolução Francesa, surgem as Cartas Constitucionais e também as Declarações de direitos. Assim, as leis traduzem a vontade geral. Por um lado, temos um homem com direitos individuais, e por outro, um cidadão que possui direitos políticos. Marshal define o conceito de cidadania em três elementos que a constituem: Direitos Civis, Direitos Políticos e Direitos Sociais. Sabe-se que no Brasil a construção da cidadania sempre partiu de “cima para baixo”, prevalecendo os ideais da elite brasileira. E nesse contexto, aparecem hoje várias apostas em educar um cidadão, ou educar para a cidadania. Entendemos que a relação entre educação e cidadania – ou a promessa de educar para a cidadania –, que segue o modelo de fabricação (político-ideológico), contraria a condição humana, pois, de certo modo, busca controlar um dos lados dessa relação, privando-o da liberdade de ação, arrancando-lhe a possibilidade do novo. Porém, para que essa relação seja harmoniosa, é necessário que não ocorra o apagamento das identidades que permitem essa relação, e que nós (adultos) resolvemos os problemas desse mundo, pois é esse o mundo que deixaremos para as próximas gerações, por isso, somos nós que devemos cuidá-lo e não apostar “nossas fichas” na formação de cidadãos que por si só é um projeto acabado. Poderíamos dizer ainda que devemos apostar em elementos que possibilitam a cada um, por meio da palavra e da ação, a visibilidade (quando adultos) no espaço comum (público), pois, tornar-se alguém só ocorre no aparecimento dos homens no espaço público. Entendemos que é de nossa responsabilidade (Estado, educadores, pais, instituições escolares...), nos diferentes lugares e escolhas, responsabilidade “[...] para com os princípios republicanos e democráticos da igualdade, da liberdade, da pluralidade” (GARCIA, 2009, p. 199), oferecer às novas gerações “[...] as condições materiais e espirituais para que possam, quando adultas, assumir e desenvolver seus pendores e talentos particulares, bem como suas responsabilidades e iniciativas cidadãs (IBID.)”. Por fim, entendemos que a cidadania, ou o exercício da cidadania, por sua vez, só se consolida quando os cidadãos aparecem no espaço público, entre iguais, e nele interferem, por meio da palavra e ação. Desse modo, compreendemos que a promessa de transformação social, conscientização, emancipação e educar para a cidadania, seguindo o modelo de fabricação (político-ideológico), contraria a promessa de felicidade (da condição humana), uma vez Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 103 que busca “controlar” e “transformar” um dos lados dessa importante relação, privando a liberdade de agir, impossibilitando o novo. Significa assim, pensar a respeito das possibilidades, mas também, sobre as limitações da cidadania, exatamente para não torná-la apenas um dogma, afinal, a relação sempre guarda um grau indeterminado, o que exatamente distingue o processo educacional de uma simples domesticação. As crianças necessitam da educação, por esse fato, ainda não são adultos e não fazem a política, pois na política lidamos com aqueles que já foram educados.19 Nessa perspectiva, por acreditar no potencial elucidativo desta abordagem, reconhecendo, muitas vezes, a incomensurabilidade com os conceitos dos autores estudados, na educação (pré-política) não se faz política, mas é nela que se manifesta a aspiração e se faz a “contribuição” para a vida política, uma vez que somente os já educados fazem política. No campo político, todos são iguais perante a lei, todos podem defender seus pontos de vista, o que não acontece na educação, pois é na educação que existe a autoridade do professor que conduz e passa a orientar aqueles que ainda não têm condições de fazer uso público da ação/razão. A dimensão política da educação fica comprometida quando entra em vigor um governo totalitário ou tirânico. Como vimos, a separação entre a educação e a política deve permanecer para que seja admissível a abertura para a possibilidade da ação futura dos jovens, imprevisível e também livre, no momento em que estes finalizam o seu processo de formação. Assim, uma educação que é direcionada para uma realidade que se preten “[...] a linha traçada entre crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras [...]. É impossível determinar mediante uma regra geral onde a linha limítrofe entre a infância e a condição adulta recai, em cada caso. Ela muda frequentemente, com respeito à idade, de país para país, de uma civilização para outra e também de indivíduo para indivíduo. A educação, contudo, ao contrário da aprendizagem, precisa ter um final previsível. Em nossa civilização esse final coincide provavelmente com o diploma colegial [...]” (ARENDT, 2013, p. 246). 19 104 de ou se determina alcançar, como se fosse uma atividade de fabricação, ela perde sua condição de assunto político. O fato de Arendt propor a separação entre os dois âmbitos, evidentemente, justifica-se para evitar que as crianças se envolvam com/em questões que ainda não lhes dizem respeito, além de querer evitar também qualquer possibilidade de doutrinação e eliminação da possibilidade de pensar e, logicamente, no futuro, de agir. Desse modo, se do ponto de vista do adulto (já educado), a educação antecede necessariamente sua participação política, do ponto de vista da educação, a política também passa a anteceder a educação de forma necessária. Logo, educar para a cidadania pode ter consequências drásticas, por exemplo, fazer da escola o palco político para a resolução dos problemas que nós adultos não fomos capazes de resolver. Sendo ainda, uma forma de lhes negar o futuro papel no corpo político, pois, querer preparar uma geração – alunos –, para um amanhã utópico, é recusar a própria possibilidade de inovação que está contida em cada aluno, em cada geração. Por fim, os cidadãos se constituem quando aparecem no espaço público (política) – espaço de visibilidade e constituídos entre iguais –, e nele interferem, por meio da palavra e também de sua ação, buscando tratar de assuntos de interesse comum, o que não acontece na educação (pré-política) – espaço de autoridade do professor que é representante do mundo e de relações desiguais em relação ao conhecimento e à responsabilidade assumida – onde necessitam ser educados por não serem adultos e não assumirem sua condição de cidadão. Nessa direção, podemos concluir que o projeto de “formar cidadãos” não nos parece adequado, pois apostar que isso possa ser garantido nos limites de um processo educativo pode ser excessivo e mesmo não desejável. Nas conclusões de Arendt, esta seria uma dimensão do agir político, transportar isso para a esfera educacional é “arrancar”, de certo modo, a oportunidade do novo em cada aluno, uma Impulso, Piracicaba • 26(66), 87-106, maio-ago. 2016 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 vez que já se delineou um modelo de cidadão/ sociedade que se quer. É lícito prometer algo que não se pode garantir por antecipação? Es- taria, segundo Brayner (2008), parafraseando Laurence Cornu, transferindo para as crianças a realização das utopias dos adultos. Referências ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo, São Paulo: Cortez, 2011. ANDRADE, Vera Regina Pereira. Cidadania: do Direito aos direitos humanos, São Paulo: Acadêmica, 1993. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Revisão e apresentação de Adriano Correia, 11. ed. rev., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. ______. Entre o passado e o futuro. 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