TÓPICO DE MICROBACTERIOLOGIA: Infecções Novas e Emergentes no Trato Respiratório de Pessoas com Fibrose Cística Tom Coenye, PhD INTRODUÇÃO Na fibrose cística, mutações no gene CFTR levam a alterações bioquímicas no trato respiratório que, de algum modo, parecem predispor os pulmões a infecções bacterianas. Este artigo aborda quatro questões: (i) Que bactérias incomuns podem ser encontradas nos pulmões de pessoas com FC, (ii) Qual a prevalência e a relevância clínica destes organismos, (iii) Qual o impacto potencial destes organismos na comunidade FC, e (iv) Como estas bactérias afetarão o tratamento e manutenção futura dos pacientes de FC? Infecções do Trato Respiratório na FC As infecções das vias respiratórias em pessoas com FC (PWCF – sigla em inglês para ‘people with CF’) são caracterizadas por exacerbações intercorrentes e agudas, com febre, perda de peso, tosse aumentada, alteração do volume, cor e aparência do escarro, taxa respiratória aumentada e surgimento de infiltrações nas radiografias de peito. Tipicamente, períodos de relativo bem estar são seguidos por episódios destas exacerbações pulmonares, que resultam em uma progressiva deterioração da função pulmonar. Ainda que a média de sobrevida dos pacientes de FC tenha dobrado de 14 para 28 anos entre 1969 e 1990 (em grande parte devido aos avanços da terapia antimicrobiana), a infecção pulmonar crônica é ainda um dos mais importantes fatores causadores de óbito. Patógenos bacterianos comuns em crianças pequenas com FC são o Staphylococcus aureus e o Haemophilus influenzae. Durante a adolescência a infecção por Pseudomonas aeruginosa tornar-se comum. A porcentagem global de colonização por P. aeruginosa em pacientes de FC nos EUA é de aproximadamente 60%, variando de aproximadamente 20% em crianças com menos de 1 ano, a mais de 80% em pacientes com idade igual ou superior a 26. Novas Bactérias 1. O Complexo Burkholderia cepacia ___________________________________________________________ “…a ‘síndrome cepacia’ é caracterizada por pneumonia e sepsia …” ____________________________________________________________ A Burkholderia cepacia é originalmente conhecida como o agente causador do apodrecimento de cebolas (ver Figura 1). Os primeiros relatos de infecção de pacientes de FC pela B. cepacia surgiram no final dos anos 70, início dos anos 80. Em 1984 a crescente prevalência da infecção por B. cepacia entre pacientes recebendo cuidados no centro de FC de Toronto (Canadá) e a ocorrência de uma deterioração de rápida progressão na função respiratória de alguns pacientes foi descrita. Esta assim chamada ‘síndrome cepacia’ é caracterizada por pneumonia e sepsia, e foi observada em 20% dos pacientes infectados. Aumentos similares da infecção do trato respiratório pela B. cepacia foram subsequentemente percebidos em outros centros de tratamento da FC na América do Norte e na Europa. Os estudos iniciais (realizado a partir do início dos anos 90) mostraram que havia uma diversidade considerável entre os isolados presumidos de B. cepacia. Durante os últimos anos vários estudos de taxinomia (taxinomia é o campo da biologia que enseja classificar todos os organismos vivos em grupos, com base nas similaridades) indicaram que cepas (‘indivíduos’ específicos dentro da população total de espécies de bactérias) inicialmente identificadas como B. cepacia representavam, na verdade, um complexo de várias espécies intimamente relacionadas. Este grupo, referido coletivamente como o complexo B. cepacia, consiste atualmente de nove espécies. Algumas destas espécies receberam nomes próprios, enquanto outras ainda esperam por uma nomenclatura formal, sendo ainda designadas como B. cepacia ‘genomovars’ (ver Tabela). Tabela: Distribuição de espécies entre os isolados de complexo B. cepacia encontrados em pessoas com FC nos Estados Unidos, Canadá e Itália (em %) Novo nome Formal Gv I Gv II Gv III Gv IV Gv V Gv VI Gv VII EUA 2.6 37.8 50.0 Burkholderia stabilis 0.2 Burkholderia vietnamiensis 5.1 2.0 Burkholderia ambifaria 0.7 Burkholderia multivorans Canadá Itália 0.2 9.3 80.0 3.8 1.6 - 4.1 5.4 86.5 4.1 - Outras 1.6 1.8 - O agrupamento de novos casos em alguns centros e a diminuição da colonização de novos pacientes depois da segregação de pacientes colonizados e não colonizados em outros centros sugeriram que as cepas do complexo B. cepacia poderiam ser transmitidas entre pacientes de FC; estudos subsequentes (com uso de ferramentas epidemiológicas de primeira linha) mostraram as cepas do complexo B. cepacia podem se espalhar entre pacientes de FC através do contato social ou convívio no ambiente hospitalar. Como resultado destes achados novas instruções foram emitidas para a redução de risco da aquisição do complexo B. cepacia. Elas incluíam o fim do apoio e patrocínio aos acampamentos de verão para pacientes de FC, e o isolamento de pacientes colonizados. ___________________________________________________________________ “…medidas de controle da infecção têm um grande impacto sobre a vida das pessoas com FC …” ___________________________________________________________________ Estas medidas de controle da infecção têm um grande impacto sobre a vida das pessoas com FC, e não são aceitas por todos os pacientes de FC ou profissionais de saúde. Observações recentes (incluindo a observação de que medidas estritas de controle da infecção reduziram mas não eliminaram novas infecções) sugeriram que novas cepas do complexo B. cepacia podem ser adquiridas do ambiente; subsequentemente, vários estudos mostraram que o complexo B. cepacia pode certamente ser encontrado em alguns solos de agricultura. Figura 1: Isolados de B. cepacia infectando cebolas. Todas as nove espécies do complexo B. cepacia foram identificadas em culturas de escarro de FC, mas a distribuição destas espécies entre os pacientes de FC é bastante desproporcional (ver Tabela). Está claro que os B. cepacia genomovars III e II (renomeados Burkholderia multivorans) são os mais frequentemente encontrados em pacientes de FC ao redor do mundo. Em estudos de epidemiologia molecular também ficou claro que algumas poucas cepas específicas (ex.: o clone ET12 e o clone PHDC) do B. cepacia genomovar III foram identificadas como responsáveis pela infecção de um grande número de pacientes. Se isso indica que o B. cepacia genomovar III (ou cepas específicas do B. cepacia genomovar III) são per se mais virulentas ainda não foi comprovado, uma vez que ainda não foram realizadas comparações rigorosas entre os resultados clínicos de pessoas infectadas com diferentes espécies do complexo B. cepacia e cepas específicas. Até o momento, os dados sugerem apenas uma aumentada capacidade de infecção humana por cepas específicas do B. cepacia genomovar III, de formas que a base biológica permanece, no momento, desconhecida. 2. Outras espécies Burkholderia A Burkholderia gladioli é um patógeno-planta bem conhecido, e tradicionalmente isolado a partir de gladíolos e do arroz. Contudo, os pacientes de FC parecer ser especialmente propensos a infecções por este organismo. Ainda assim, comparada à B. cepacia, a prevalência da infecção por B. gladioli na população CF é bastante reduzida. Ocasionalmente, outras espécies de Burkholderia também podem ser encontradas em pacientes de FC. Elas incluem a Burkholderia pseudomallei (o agente causador da doença tropical melioidose) e a Burkholderia fungorum (uma bactéria do solo ocasionalmente também encontrada em amostrar clínicas humanas). Infecções por B. pseudomallei em pacientes de FC parecem ser em sua maior parte associadas a viagens, uma vez que as infecções por este organismo são normalmente associadas a viagens ao sudeste da Ásia, uma área onde a B. pseudomallei é frequentemente encontrada. 3. Espécies Ralstonia e Pandoraea As bactérias pertencentes aos gêneros Ralstonia (particularmente Ralstonia pickettii e Ralstonia mannitolilytica) e Pandoraea (particularmente P. apista) também podem ser encontradas em pacientes de FC. Suas ocorrências e comportamentos clínicos ainda não foram sistematicamente investigados, e os dados iniciais parecem sugerir que suas prevalências seja, atualmente, realmente baixa (ex.: 1,1% de todos os pacientes de CF canadenses está colonizado por Ralstonia pickettii; uma porcentagem igual está colonizada por espécies pertencentes ao gênero Pandoraea). Figura 2: Um isolado de Pandoraea crescendo em meio de base agar contendo antibióticos e contrastes específicos. 4. O Achromobacter xylosoxidans (anteriormente chamada de Alcaligenes xylosoxidans) é um patógeno humano oportunista, capaz de causar uma ampla variedade de infecções. O A. xylosoxidans também é capaz de causar infecção persistente do trato respiratório de pessoas com FC, mas seu papel específico no declínio das funções pulmonares ainda não foi esclarecido. Esta espécie é bastante prevalente em FC (infectando aproximadamente 9% de todos os pacientes nos EUA). Atualmente há poucas evidências de que este organismo seja adquirido por infecção cruzada de paciente para paciente. 5. O Stenotrophomonas maltophilia está cada vez mais sendo reconhecido como uma importante causa de infecções hospitalares em indivíduos debilitados e imunosuprimidos. Este organismo é resistente a muitos dos agentes antimicrobianos atualmente disponíveis. Este organismo foi isolado pela primeira vez em pacientes de FC no meio dos anos 70, e sua prevalência vem crescendo desde então. Há grandes diferenças regionais na prevalência deste organismo, com a prevalência na América do Norte (1.8 –10.3%) sendo menor que aquela percebida na maior parte dos países europeus (até 25%). A duração do período de hospitalização, ventilação mecânica, uso de nebulisadores e a quantidade de antibióticos recebida parecem ser importantes fatores de risco para a aquisição de S. maltophilia. Até agora há bem poucos relatos documentando a disseminação de paciente para paciente, e uma vez que este organismo está bem disseminado no ambiente, a aquisição ambiental parece provável. O papel exato desta bactéria na doença respiratória ainda não está claro, já que diferentes estudos mostraram diferentes resultados clínicos. 6. Bacilos Entéricos Membros da família de bactérias Enterobacteriaceae (ex.: Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae e Serratia marcescens) também podem ocasionalmente ser encontrados nos pulmões de pessoas com CF. Eles são normalmente colonizadores transientes e, modo geral, não são associados a uma doença severa. 7. Micobactérias ______________________________________________________ “…cada vez mais sendo recuperadas do trato respiratório …” ______________________________________________________ Micobactérias não-tuberculosas vêm cada vez mais sendo recuperadas do trato respiratório de pessoas com FC. As espécies mais prevalentes são Mycobacterium chelonae, Mycobacterium abscessus e Mycobacterium fortuitum, ainda que outras espécies também tenham sido encontradas. Apesar disso, infecções por micobactérias não-tuberculosas ainda são raras na FC. Além disso, estudos mostraram que seu impacto clínico parece ser mínimo. Deve ser notado, contudo, que a recuperação destes organismos de crescimento desacelerado não é direta, já que eles usualmente são suplantados em crescimento por outros organismos presentes no escarro FC – sendo assim, sua prevalência e impacto clínico podem ter sido subestimados. Ocasionalmente o Mycobacterium tuberculosis (o agente causador da tuberculose) também é retirado do escarro de pacientes de FC. Ainda precisa ser determinado se as pessoas com FC são mais suscetíveis à tuberculose que as pessoas que não apresentam FC. 8. Outros Organismos Vários estudos recentes identificaram uma ampla gama de bactérias adicionais que podem colonizar o trato respiratório de pessoas com FC. Inclui-se aqui Inquilinus limosus, várias espécies Acinetobacter, Bordetella hinzii, Comamonas testosteroni, Moraxella osloensis e outras. A maior parte destes organismos são encontrados apenas ocasionalmente, e não são geralmente considerados perigosos para indivíduos saudáveis. O papel clínico destas e de outras bactérias incomuns (ainda não identificadas) na doença pulmonar FC não está claro, ainda que pareça que ao menos alguns destes organismos sejam capazes de uma prolongada colonização ou disseminação entre pacientes de FC. IMPLICAÇÕES PRÁTICAS O achado destas tão incomuns bactérias nos pulmões de pessoas com FC mostra que ainda há muito o que ser aprendido a respeito da micro flora respiratória destes pacientes. Os dados apresentados em vários estudos recentes sugerem que o pulmão de FC parece ser um nicho ecológico apropriado para o crescimento de uma ampla variedade de bactérias normalmente não associadas a doenças em humanos. Os fatores que contam a favor da associação entre as espécies tipicamente não patogênicas e o trato respiratório de pacientes de FC são desconhecidos, mas a elucidação destes fatores deve fornecer importantes insights sobre o estudo da patofisiologia da infecção FC. Este seria um importante primeiro passo na direção do desenvolvimento de terapias efetivas. _______________________________________________________________________ “…o erro de identificação como complexo B. cepacia pode ter um importante impacto médico, social e psicológico …” _______________________________________________________________________ Outro dado importante é que a maioria das bactérias mencionadas acima representam um desafio para os laboratórios de microbiologia clínica. A maior parte destas bactérias foram descritas apenas recentemente, podendo tanto não serem identificadas pelo laboratório ou ainda ter uma identificação incorreta como complexo B. cepacia. Este erro de identificação como complexo B. cepacia pode Ter um importante impacto médico, social e psicológico, devendo, deste modo, ser evitado a todo custo. Uma identificação precisa destes organismos incomuns também é importante para que se identifique seu estabelecimento ou para avaliar seu impacto clínico. Recentemente muito trabalho tem sido feito para melhorar as metodologias existentes e para ‘inventar’ novos métodos para que se evite tais erros de identificação. Inclui-se aqui o uso de ferramentas de biologia molecular de ponta, incluindo a Reação em Cadeia de Polimerase (PCR). Contudo, estes novos métodos não estão (ainda) disponíveis em todos os laboratórios de microbiologia clínica; sendo assim, isolados incomuns retirados de espécimes FC devem ser enviados a laboratórios de referência, capazes de oferecer uma análise mais aprofundada de tais isolados. Exemples de tais laboratórios incluem: (i) (ii) (iii) o CFF Burkholderia cepacia Research Laboratory and Repository, na University of Michigan, Ann Arbor, MI, EUA; o B. cepacia complex Research and Referral Repository for Canadian CF Clinics, na University of British Columbia, Vancouver, BC, Canadá, e o Edinburgh Cystic Fibrosis Microbiology Laboratory and Repository, na University of Edinburgh, Escócia, Reino Unido. Perceba que vários outros laboratórios oferecem a identificação de isolados de FC. Mais informações podem ser obtidas nas organizações nacionais de caridade voltadas à FC. Ainda que estudos sistemáticos a respeito da resistência antimicrobiana tenham sido realizados apenas com membros do complexo B. cepacia e com o S. maltophilia, fica óbvio pelos dados relativos a observações que ao menos algumas cepas da maior parte dos organismos mencionados acima sejam altamente resistentes a vários antibióticos. Uma vez que os padrões de resistência das diferentes cepas e espécies podem variar, testes de susceptibilidade podem ser úteis no desenho de estratégias de tratamento. O uso combinado de múltiplos antibióticos pode demonstrar uma atividade aumentada; sendo, assim, interessante que se teste várias combinações de antibióticos. (‘teste de sinergia’). Para ajudar no teste de susceptibilidade e estudos de sinergia de múltiplos organismos resistentes isalados de pacientes FC, o CF Referral Center for Susceptibility and Synergy Studies of Resistant Organisms (Centro de Referência FC para Estudos de Susceptibilidade e Sinergia de Organismos Resistentes, da Columbia University, New York, NY, EUA) foi fundado. A erradicação dos organismos do complexo B. cepacia do trato respiratório inferior parece ser virtualmente impossível, mas a terapia antibiótica pode levar a uma diminuição da densidade bacteriana e da produção de virulência bacteriana e, deste modo, a uma diminuição da inflamação, com melhora clínica. Exemplos de combinações antimicrobianas que mostraram-se capazes de sinergia incluem ciprofloxacina/piperacilina, tobramicina/piperacilina e trimetoprima/ceftazidime. A maior parte das cepas de S. maltophilia parece ser suscetível a trimetoprima-sulfametoxazol (sozinho ou em combinação com ticarcilina-clavulanato ou um grande espectro de cefalosporina). Além disso, novos antibióticos quinolones (como a esparfloxacina) podem ser úteis também no tratamento da infecção por S. maltophilia. Ainda não está claro qual impacto tais organismos terão durante práticas de transplante de pulmão. Vários centros de tratamento consideram a infecção pelo complexo B. cepacia uma contraindicação absoluta ao transplante de pulmão mas, como declarado acima, estudos adicionais serão necessários para que se defina melhor os riscos relativos associados a cada uma das espécies do complexo B. cepacia. No momento, nenhum dado está disponível sobre o resultado de transplantes de pulmão envolvendo pacientes colonizados por qualquer dos organismos discutidos acima. OBSERVAÇÕES FINAIS ______________________________ “…ainda há muito que se aprender …” ______________________________ Deve estar claro que ainda há muito que se aprender sobre as infecções do trato respiratório em pessoas com FC. Apesar disso, deve também ficar claro que um progresso significativo foi obtido durante os últimos 15 anos. Podemos esperar qu tais avanços na compreensão da biodiversidade dos agentes responsáveis pelas infecções respiratórias eventualmente nos levará a uma melhora na qualidade de vida das pessoas afetadas pela FC. Tom Coenye, PhD Laboratorium voor Microbiologie Universiteit Gent K.L. Ledeganckstraat 35 B-9000 Gent Bélgica [email protected] Nota do Editor: Para saber mais, entre em contato e receba uma lista de indicação de leitura: [email protected]