A FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO: UM ESTILO DE UNIR A FINALIDADE LEGAL À PRÁTICA DOCENTE. Artur Bezzi Günther1 EIXO TEMÁTICO: Estudos curriculares e discussões sobre conteúdos básicos INTRODUÇÃO A educação de filosofia no ensino médio possui uma finalidade legal. Contudo, não é evidente a decorrência dessa finalidade legal a partir meramente do ensino de um currículo de filosofia. Isso porque existem diversas propostas metodológicas as quais podem não alcançar o objetivo em questão, fazendo-se necessário, portanto, avaliá-las. Também, não é evidente a eficácia do ensino em sala de aula de um currículo idealizado tendo em vista o seu fim, desse modo, cabe buscar um modo pelo qual a aprendizagem seja facilitada. O texto parte de uma concepção de filosofia a qual é aproximada a uma proposta de currículo. A partir disso, são examinadas duas dificuldades a serem enfrentadas: a correspondência com a legislação brasileira referente ao ensino de filosofia e a sua efetividade em sala de aula. Por fim, é defendida uma proposta baseada na aplicabilidade da filosofia que visa dar conta de tais dificuldades. DESENVOLVIMENTO SINTÉTICO Os PCN2 apresentam uma concepção de filosofia que, grosso modo, diz que apesar da existência de diversas correntes filosóficas, há uma essência comum entre elas correspondente à sua natureza reflexiva. Essa natureza da filosofia se constitui em parte pelo exame analítico e em parte pela sua postura crítica. No mesmo documento é apontada a existência do universo da cultura filosófica onde o sujeito toma contato com os conceitos, temas, problemas e métodos da tradição filosófica. Esse entendimento do que é filosofia parece estar de acordo com aquele apresentado no livro de Desidério Murcho A Natureza da Filosofia e o seu Ensino onde é proposta uma concepção do que é filosofia e, mais precisamente, é proposta uma concepção de como ela deve ser ensinada. 1 Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Subprojeto de Filosofia. 2 Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. “O dever do professor é sempre o mesmo: dar ao estudante os instrumentos que lhe permitam exercer a liberdade de avaliar criticamente essas idéias, e não impedir essa liberdade lecionando as idéias dos filósofos como coleções de frases e palavras para enfeitar o discurso. Conseqüentemente, ainda que não possamos definir claramente a filosofia como uma atividade crítica, a disciplina de filosofia só pode ser ensinada criticamente.” (MURCHO, p.24). A disciplina de filosofia, portanto, deve ser trabalhada de forma crítica. Para isso, ela deve ser abordada a partir dos problemas filosóficos. Nesse contexto, as teorias filosóficas funcionam como possíveis respostas e, desse modo, se tornam passíveis de serem avaliadas e examinadas analiticamente o que estimula o pensamento crítico e a autonomia do estudante. Se a teoria não for avaliada e examinada, então, o estudante não estará adquirindo os benefícios que a filosofia é capaz de fornecer. Isso por que o estudante estará meramente decorando o funcionamento interno de certo sistema filosófico e, então, não estará desenvolvendo as habilidades de avaliação e exame analítico e, tampouco, estará desenvolvendo sua criticidade e autonomia. “Uma correta compreensão da natureza da filosofia obriga a que o seu ensino procure o seguinte: o estudante terá de compreender claramente os problemas, teorias e os argumentos da filosofia e terá de formar a sua opinião abalizada sobre eles; o estudante deverá ser estimulado a desenvolver o seu pensamento autônomo sobre os problemas, as teorias e os argumentos da filosofia. Deverá ser capaz de traçar distinções relevantes, terá de saber defender as suas idéias e terá de saber responder-lhes de forma adequada e responsável.” (MURCHO, p.28). Em resumo, a filosofia deve ser ensinada através de uma maneira particular de abordagem dos problemas filosóficos. Nessa situação, as teorias são avaliadas e confrontadas frente aos problemas filosóficos o que exige competências analíticas, interpretativas e avaliativas do estudante e, por conseguinte, sua criticidade e autonomia são desenvolvidas de uma maneira peculiar proporcionada pela filosofia. Essas aptidões se mostram proveitosas frente à legislação brasileira que reza: “ao final do ensino médio os educandos devem demonstrar domínio dos conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania” como consta na LDB. Deve-se considerar para isso que a autonomia e a criticidade são virtudes necessárias para o exercício da cidadania que a filosofia pode promover. Sobre isso Murcho diz o seguinte. “Quando o ensino da filosofia é de qualidade, o que infelizmente raramente é, o estudante sai da disciplina a saber pensar com mais clareza, a saber avalizar opiniões opostas e a tomar decisões informadas e refletidas. Como é evidente, isto é de importância fundamental para a vida pública e cultural de qualquer sociedade civilizada.” (MURCHO, p.27). Essa concepção de filosofia, portanto, é compatível com o compromisso legal da disciplina de filosofia. Assim, ela servirá como um intermediário confiável entre o ensino na sala de aula e a finalidade legal da disciplina de filosofia na educação. Até o momento, de acordo com essa concepção frente à LDB, se tem o seguinte: primeiro, que a filosofia deve ser trabalhada através dos problemas filosóficos o que exige certas habilidades; segundo, que a filosofia deve desenvolver a criticidade e a autonomia do educando; terceiro, que a disciplina de filosofia possui um como compromisso legal, a saber, o ensino dos conhecimentos necessários para o exercício da cidadania. Como já foi visto, o primeiro ponto, quando abordado de maneira adequada, implica o segundo. Também, se observou que o segundo ponto é conveniente ao terceiro. A questão que se coloca agora é a de como se pode aplicar isso em sala de aula? Bom, deve-se trabalhar com os problemas filosóficos explicando-os e confrontando as teorias que visam respondê-los. Certo, porém como explicar e apresentar esses elementos de uma maneira suficientemente agradável para que desperte o interesse dos alunos? Murcho diz o seguinte. “A tarefa de um bom professor perante estudantes desmotivados é motiválos. E se o professor abandonar o discurso cinzento da filosofia de cordel, se estudar filosofia e transmitir as melhores idéias, argumentos e problemas da filosofia, verá como isso desperta os estudantes de seu torpor.” (MURCHO, p.18). A citação acima não é descabida, entretanto, ela merece diversos esclarecimentos e qualificações que não são feitas ao longo do texto em que se insere. Ora, não há uma ligação necessária entre “estudar filosofia e transmitir as melhores idéias, argumentos e problemas” com “despertar os estudantes de seu torpor”. Pelo contrário, é um fato relativamente fácil de constatar em sala de aula que mesmo com a efetivação do antecedente, o conseqüente não se aplica. Isso até em situações “normais” onde não há nenhuma grande dificuldade na sala de aula como uma grande falta de disciplina ou interesse. O trabalho com argumentação sobre os problemas filosóficos não é necessariamente atrativo, pelo contrário, ele pode ser deveras penoso, é provável que todo estudante de filosofia da graduação tenha passado por isso. Ainda, no ensino médio, uma das maiores dificuldades dos estudantes com relação à disciplina de filosofia é o seu nível de abstração. Os alunos estão acostumados a lidar com estudos sobre fatos concretos. Também, há certo problema com relação ao aspecto conceitual da atividade filosófica, em contraposição às ciências empíricas. É importante considerar, além disso, que o aluno pode simplesmente não gostar do assunto. Tal circunstância é uma possível explicação do desinteresse dos estudantes com relação à disciplina ou, além disso, pode explicar a frustração daqueles que possuem outras expectativas com relação à filosofia. Esse é um fato empírico constatado em situações recorrentes. Esse estado de coisas, portanto, não converge com a idéia de aplicar diretamente um modelo de currículo baseado exclusivamente na argumentação sobre problemas filosóficos gerais, tal como a identificação de premissas e conclusões de argumentos a respeito de forma e matéria. Esse modelo garante apenas nominalmente o objetivo político do ensino de filosofia. Contudo, na prática ele não é efetivo em sala de aula. Isso porque é provável que o trabalho de análise de argumentos seja fatídico e o conteúdo não seja atrativo. Tentar incentivar os alunos dizendo que a argumentação será útil futuramente, ou que o estudo dos problemas filosóficos é importante para a humanidade, surtirá pouco ou nenhum efeito sobre eles. Isso porque esse modelo se tornará, na melhor das hipóteses, algo que é importante e útil, porém consideravelmente enfadonho. O mesmo ocorre em outras disciplinas. Assim, alguma maneira alternativa deve ser encontrada para a eficácia em sala de aula do ensino de um currículo baseado na argumentação sobre problemas filosóficos. O livro de Ronai Rocha Ensino de Filosofia e Currículo pode fornecer um rumo ao assunto. “No processo de consolidação de nossa estrutura noética apresentam-se naturalmente certas curiosidades e perguntas para as quais o lugar correto de debate é a aula de filosofia.” (ROCHA, p.43). Nesse ponto, faz-se necessária uma empresa de persuasão dos estudantes, não de que a filosofia é útil ou importante, mas sim de que ela é em si interessante. Isso pode ser feito mostrando ao aluno na prática como a atividade filosófica pode funcionar: como o melhor local para encontrar respostas a certo tipo de perguntas inerentes ao ser humano. Desse modo, as aulas devem ser ministradas de uma forma tal que o aluno primeiramente se interesse pela disciplina e secundariamente perceba como ela é útil e importante. Porém, como pode isso ser feito? Um dos caminhos consiste em aproveitar qualquer elemento ligado à realidade do aluno do qual se possa extrair alguma relevância filosófica. Assim, surgem como possíveis aliados nessa situação: temáticas ligadas ao cotidiano ou a assuntos em voga como aborto e drogas, recursos áudios visuais como filmes e seriados, formas de discussão como debates e apresentação de dilemas, etc. Cabe ainda ressaltar que os elementos atrativos para os alunos são variáveis de acordo com o contexto onde vivem e de pessoa para pessoa. Desse modo, é preciso um esforço de pesquisa e investigação para identificar esses elementos. Após a abordagem inicial do conteúdo através da apresentação de algum recurso que desperte o interesse do educando, se faz necessária a extração da relevância filosófica desse recurso. Ela deverá encaminhar a aula para o modelo visto anteriormente de argumentação sobre os problemas filosóficos. Entretanto, agora, o aluno tomará contato com esse conteúdo partindo de um olhar interessado adquirido anteriormente. Assim, basta ao professor manter o interesse do aluno, conservando um vínculo apropriado do conteúdo que será trabalhado com o recurso pelo qual este foi introduzido. Nesse contexto, também, as teorias filosóficas ficam “vivas”, elas se tornam mais claras e acessíveis aos educandos levando adiante a investigação do assunto em pauta. “O professor de filosofia no nível médio parte de uma situação pedagógica na qual os problemas filosóficos se apresentam nas mais variadas formas e situações. Os problemas da filosofia se apresentam sempre que na cultura há uma situação que nos permite reavaliar nossos critérios, nossos conceitos e limites mais fundamentais. Filmes, poemas, romances, situações do cotidiano podem conter e apresentar problemas e situações filosóficas. Afinal, por que haveria algum espaço exclusivo para essas práticas de acerto de contas da gente com a gente mesmo? Quando temos isso claro esses recursos podem e devem entrar para a aula de filosofia, pois ali se discute um tipo de autoconhecimento que, em um sentido preciso, não trata de busca de fatos novos acerca de cada um de nós, mas de uma prática que sempre tem fundo moral, que consiste no acerto de contas de cada um consigo mesmo e com a comunidade em que vive. Nesse sentido, a filosofia é, para os jovens, uma discussão da vida adulta, da vida adulta que os adultos teimam em esquecer.” (ROCHA, p.127). Uma prática dessa metodologia foi realizada na forma de uma oficina em outubro de 2010, organizada pelos bolsistas do PIBID Filosofia da UFRGS3. A oficina foi destinada a um grupo de alunos do Ensino Médio da Escola Ernesto Dornelles, localizada em Porto Alegre - RS. No começo da oficina foi apresentado o episódio O Tirano na integra (40 minutos). Em seguida, foi realizada uma série de perguntas de interpretação a respeito do episódio. Os alunos participaram com avidez, dado que gostavam da série House M.D. Então, foram sugeridas diversas teses éticas que funcionariam como possíveis posicionamentos frente à trama do episódio. Essas teses 3 Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. foram distribuídas individualmente a pequenos grupos que seriam responsáveis por argumentar em favor da sua tese e apresentar as implicações dela com relação ao episódio. Os alunos defenderam suas teses de maneira interessada, procurando desqualificar as teses dos outros grupos. Também, verificaram que a adoção de uma determinada teoria ética produz implicações práticas significativas. Em suma, perceberam que a filosofia pode fornecer esclarecimentos a um assunto que lhes agrada e, além disso, perceberam que tal tarefa foi realizada a partir desse assunto, numa situação onde a filosofia foi requisitada. CONCLUSÃO A utilização de meios atraentes para a apresentação do currículo em sala de aula é apenas uma sugestão ao professor. Ela não garante necessariamente uma boa aula. Contudo, essa prática ameniza de fato uma grande dificuldade, se não a maior delas, que o professor terá de lidar em sala de aula, a saber, a falta de interesse e conseqüente desatenção dos alunos. Desse modo, ela contribui com a efetivação da aprendizagem do currículo e, conseqüentemente, como foi visto, a obtenção do objetivo legal da educação de filosofia no ensino médio. Para a realização de uma boa aula é preciso cobrir um campo de elementos bastante grande, muitos deles são variáveis, outros tantos são independentes da atividade do professor. De acordo com isso, foram abordados ao longo do texto apenas alguns desses elementos os quais não se buscou dar uma resposta única e definitiva. No entanto, foi defendido o que se pretendeu ser uma boa postura frente ao problema em questão. No artigo foi construída a ponte que uni a finalidade política da educação de filosofia no ensino médio à atividade do professor em sala de aula. Essa tarefa foi possível, por um lado, ligando uma proposta de currículo baseada na promoção do pensamento crítico e da autonomia ao exercício da cidadania e, por outro, ligando essa proposta de currículo à prática docente em sala de aula através da aplicabilidade da filosofia. REFERÊNCIAS: LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96), artigo 36, § 1º, inciso III. MURCHO, D. A Natureza da Filosofia e o seu Ensino. 1ª Ed. Lisboa: Plátano, 2002. PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. MEC, 1999. ROCHA, R. Ensino de Filosofia e Currículo. 1ª Ed. Vozes: RJ, 2008.