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O papel e a função de uma
classificação hierárquica de quadriláteros
MICHAEL DE VILLIERS
Introdução
Uma distinção bem conhecida e útil entre diferentes tipos de compreensão em matemática é a
que distingue entre compreensão instrumental, relacional e lógica [e.g. Skemp, 1976; Byers &
Herscovics, 1977]. Enquanto “compreensão” instrumental (o autor prefere o termo
“proficiência”) se refere à capacidade de um indivíduo manipular correcta e eficientemente
conteúdos matemáticos (e.g. usando algoritmos, regras e definições), compreensão relacional e
lógica referem-se respectivamente à compreensão da relação conceptual entre conteúdos e à
lógica subjacente em que essas relações se baseiam.
Um defeito importante neste modelo é que não contempla a compreensão funcional, por outras
palavras, a compreensão do papel, função ou valor de um conteúdo matemático específico ou
um processo particular [comparar com Human, 1989]. Experiências alargadas com crianças em
contextos de entrevista e de sala de aula parecem indicar que muitos dos seus problemas com
processos e conteúdos matemáticos não se prendem tanto com uma fraca proficiência
instrumental, nem com uma compreensão relacional ou lógica inadequada, mas sim com a falta
de compreensão da sua utilidade ou função. Deveria ser notado que esta funcionalidade não se
restringe apenas às aplicações do mundo real fora da matemática, mas também aos valores e
funções relativos a conteúdos e processos dentro da matemática.
Em grande medida, parece que a ausência, presença ou nível de compreensão funcional
individual determina a sua motivação para o estudo e aprendizagem da matemática. Sem
compreensão funcional, a matemática simplesmente degenera num assunto inútil, sem
significado e arbitrário, desmotivando o estudante a tentar aprendê-la e a explorá-la. O
desenvolvimento adequado da compreensão funcional é, por isso, um importante critério para
avaliar qualquer abordagem de ensino.
Neste artigo serão abordados diferentes tipos de classificação, bem como será feita a análise
teórica do papel e função da classificação hierárquica em matemática. Por fim, far-se-ão alguns
comentários breves relativamente ao ensino de uma classificação hierárquica dos quadriláteros.
-1-
Interlúdio
O extracto seguinte é um exemplo razoavelmente típico de várias entrevistas e experiências com
crianças do Nível 7 ao Nível 10 (Graus 9 a 12) ao longo dos últimos anos [ver De Villiers, 1987,
1990]:
P: Se definirmos um paralelogramo como um quadrilátero com lados opostos paralelos, podemos
dizer que um rectângulo é um paralelogramo?
A: Sim, … porque um rectângulo também tem lados opostos paralelos… Mas eu não gosto dessa
definição de paralelogramo … Eu sei que nos ensinaram essa definição na escola e que quadrados
e rectângulos são paralelogramos (cara franzida), mas não gosto …
P: Então como definirias paralelogramo?
A: Como qualquer quadrilátero com lados opostos paralelos mas sem todos os
ângulos iguais.
P: Então e quanto ao losango? … Dirias que o losango é um paralelogramo?
A: Hum … de acordo com a minha definição, sim… mas também não gosto disso… preferiria antes
dizer que um paralelogramo é um quadrilátero com lados opostos paralelos, mas sem os lados ou
os ângulos todos iguais.
Claramente que este aluno não tem problema em tirar conclusões correctas das definições nem
em fazer classes inclusivas hierárquicas, mas prefere não o fazer. Além disso, este aluno revela
claramente ter a capacidade de formular uma definição. De igual modo, Clements & Battista
[1992, 63] reportaram o caso de dois alunos capazes de seguir a lógica de uma classificação
hierárquica de quadrados e rectângulos mas com dificuldades em a aceitar. Por isso, o problema
parece não ser tanto a falta de compreensão relacional ou lógica, ou mesmo de proficiência em
definir, mas antes a falta de compreensão funcional (i.e. qual é a função ou valor da
classificação hierárquica de quadriláteros).
Classificação por partição e hierárquica
Por classificação hierárquica entende-se a classificação de um conjunto de conceitos de tal
forma que os mais particulares formam subconjuntos dos mais gerais. Vários exemplos podem
ser apresentados, como a classificação de números reais ou a classificação de várias geometrias
segundo a perspectiva de transformação (programa Erlangen) mas, para o propósito deste artigo,
focar-nos-emos principalmente na classificação de quadriláteros.
Em contraste com a classificação hierárquica, também existe a possibilidade de uma
classificação dos conceitos por partição. Contudo, numa tal classificação, os vários
subconjuntos de conceitos são disjuntos uns dos outros. Por exemplo, na figura 1, uma
classificação hierárquica de paralelogramos, rectângulos, losangos e quadrados é posta em
contraste com uma classificação por partição. (São mostrados dois diferentes tipos de
representação para cada classificação.) Na classificação hierárquica podemos ver claramente
que os rectângulos e os losangos são subconjuntos dos paralelogramos, com os quadrados como
intersecção dos rectângulos com os losangos. Pelo contrário, na classificação por partição, os
-2-
quadrados não são rectângulos, nem losangos, nem os rectângulos e os losangos são
paralelogramos.
Paralelogramos
Paralelogramos
Quadrados
Quadrados
Rectângulos
Losangos
Losangos
Re ctângulos
Quadriláteros
Paralelogramos
Rectângulos
Losangos
Paralelogramos
Losangos
Rectângulos
Quadrados
Quadrados
Por Partição
Hierárquica
Figura 1
Relação entre classificar e definir
A classificação de qualquer conjunto de conceitos não tem lugar independentemente do
processo de definição. Por exemplo, para classificar hierarquicamente um paralelogramo como
um trapézio, requer definir trapézio como “um quadrilátero com pelo menos um par de lados
opostos paralelo”. Se, por outro lado, quisermos excluir os paralelogramos dos trapézios
(classificação por partição), precisamos de definir trapézio como “um quadrilátero com apenas
um par de lados opostos paralelos”.
Além disso, deve ser inequivocamente sublinhado que uma definição (e classificação) por
partição não é matematicamente “errada “simplesmente por ser por partição (desde que
contenha, claro, informação suficiente para assegurar que todos os não exemplos são excluídos).
Por exemplo, a definição por partição de paralelogramo dada anteriormente pelo aluno (i.e. um
quadrilátero com lados opostos paralelos, mas sem que os lados e ângulos sejam todos iguais)
pode ser pouco convencional, mas não é uma definição errada. De facto, é uma definição
economicamente correcta pois contém apenas propriedades necessárias e suficientes. Claro que,
assim como há alunos que dão muitas vezes definições hierárquicas que são correctas, mas não
económicas, (i.e. contêm informação supérflua) o autor também tem encontrado,
-3-
frequentemente, alunos que dão definições por partição correctas e não económicas, como a
seguinte:
Um paralelogramo é um quadrilátero com lados opostos iguais e paralelos, ângulos opostos iguais,
diagonais de comprimento diferente que se cortam ao meio, mas não perpendicularmente.
(Talvez seja necessário referir que mesmo os matemáticos nem sempre aderem completamente à
economia das definições e axiomas. Por exemplo, na definição de grupo só o inverso à esquerda
é realmente necessário, já que o inverso à direita está implícito, mas normalmente dizemos
apenas que deve haver inversos para todos os elementos. A razão para isto é a da conveniência,
i.e., evitar uma demonstração extra e algo complicada. De igual modo, é habitual o uso de cinco
axiomas para a Álgebra de Boole, embora, de facto, sejam necessários apenas três.)
Quadriláteros
Quadriláteros fechados simples
Convexo
Quadrláteros cruzados
Côncavo
Figura 2
Por vezes, a classificação por partição e as suas correspondentes definições são úteis e
necessárias para distinguir claramente os conceitos. Por exemplo, considere-se a classificação
de quadriláteros por partição em convexo, côncavo e cruzado, mostrados na figura 2, com as
seguintes definições possíveis:
Um quadrilátero é qualquer figura plana de 4 lados, fechada e com 4 vértices.
Um quadrilátero fechado simples é um quadrilátero cujos lados se encontram apenas nos
vértices.
Um quadrilátero cruzado é um quadrilátero com dois dos lados cruzando-se num ponto
que não é vértice.
Quadrilátero convexo é um quadrilátero fechado simples sem qualquer ângulo reflexo1.
Quadrilátero côncavo é um quadrilátero fechado simples com um dos seus ângulos reflexo.
De modo análogo, é útil e necessário dividir os papagaios em convexos e côncavos. Além disso,
quando classificamos um dado quadrilátero, a partição é uma estratégia espontânea e natural.
Por exemplo, quando temos um quadrado à nossa frente, nós não diríamos normalmente: aha!
temos aqui um rectângulo. Em vez disso, naturalmente, chamaríamos ao quadrado um
1
NT: ângulo reflexo: entre 180º e 360º
-4-
“quadrado” e reservaríamos o termo “rectângulo” apenas para um rectângulo não quadrado (ou
rectângulo propriamente dito). Do mesmo modo, empregaríamos normalmente o termo
“losango” apenas quando se tratasse de um losango não quadrado. Precisamente, da mesma
maneira, Dennis [1978] fez uso da partição para especificar um programa informático de
classificação de quadriláteros (de acordo com dadas coordenadas).
De facto, a partição é um método matemático geralmente aceite em muitas áreas de matemática,
mas particularmente aceite no estudo de superfícies e espaços topológicos, em que o problema
fundamental é a subdivisão destas superfícies e espaços em subconjuntos disjuntos [Patterson,
1956]. Além disso, uma vez que a classificação e correspondentes definições são arbitrárias e
não absolutas, deveríamos reconhecer que a escolha entre uma classificação hierárquica e uma
por partição é, muitas vezes, uma questão pessoal e de conveniência. Por exemplo,
recentemente, o autor encontrou a seguinte definição por partição num antigo livro de geometria
de Wentworth [1881:58] que era muito usado nas escolas e universidades americanas no século
passado: Um losango é um paralelogramo que tem os lados iguais mas ângulos oblíquos 2.
A pergunta fundamental, abordada mais tarde neste artigo, é portanto: Por que é que
convencionalmente preferimos a classificação hierárquica dos vários quadriláteros convexos à
classificação por partição. Ou, dito de maneira diferente, que vantagens tem a classificação
hierárquica, neste caso, sobre a classificação por partição?
Classificação descritiva e construtiva
Analogamente ao que acontece nos processos de axiomatização e definição [ver Krygowska,
1971; Human, 1978; De Villiers, 1986] é também possível distinguir entre dois tipos diferentes
de classificação, chamadas descritiva (a posteriori) ou construtiva (a priori), podendo ser, tanto
uma como outra, hierárquica ou por partição.
Por classificação a priori, entende-se aqui o processo matemático de generalização e
particularização utilizados deliberadamente para produzir novos conceitos que são
imediatamente colocados, quer numa relação hierárquica, quer numa relação por partição, com
outros conceitos existentes. Uma generalização ocorre quando um novo e mais geral conceito B
é construído a partir de um conceito A ao desprezar certas propriedades (condicionantes) ou ao
substituir algumas por outras mais gerais. Contudo, durante a particularização, é construído a
partir de A um novo conceito B mais específico adicionando propriedades (condicionantes) ou
substituindo algumas delas por outras mais específicas.
Naturalmente, a generalização ou a particularização não resultam necessariamente de apenas um
conceito, mas podem envolver dois ou mais. Por exemplo, um novo conceito C pode ser
generalizado a partir de 2 ou mais conceitos, seleccionando uma ou mais propriedades
(condicionantes) comuns a esses conceitos. Do mesmo modo, um novo conceito C pode ser
particularizado a partir dois ou mais, exigindo-se que combine todas as propriedades
(condicionantes) desses conceitos. Em geral, a função mais importante de uma classificação a
priori é, portanto, claramente a descoberta/criação de novos conceitos.
Olhemos, brevemente para alguns exemplos de classificações a priori e a posteriori, tendo em
vista os quadriláteros.
Uma classificação a posteriori poderia ocorrer, por exemplo, considerando a classificação de
quadrados e rectângulos, depois de eles serem conhecidos durante algum tempo e as suas
propriedades terem sido exaustivamente examinadas.
Por outro lado, com uma classificação a priori poderíamos começar com o conceito mais
específico, um quadrado e generalizar o rectângulo e o paralelogramo consecutivamente como
2
NT: ângulo oblíquo = ângulo não recto
-5-
novos conceitos como se mostra na figura 3. Por exemplo, o rectângulo pode ser generalizado
do quadrado desprezando o requisito de que todos os lados têm que ser iguais, mas mantendo a
propriedade de ângulos iguais. Do mesmo modo, o paralelogramo pode ser generalizado a partir
do rectângulo desprezando o requisito de que todos os ângulos têm de ser iguais, mas mantendo
a propriedade de lados opostos paralelos. Analogamente, podemos generalizar do losango para o
paralelogramo.
Quadrado
Generalização
Generalização
Particularização
. todos
OU
todos
. todos
. lados
. todos os lados =
. todos os ângulos 90º
Particularização
. lados opostos //
os lados podem ser = (hierárquica)
os lados não = (partitiva)
os ângulos 90º
opostos //
Rectângulo
Losango
. todos os lados =
. ângulos podem ser 90º (hierárquica)
OU
não podem ser 90º (partitiva)
. lados opostos //
Particularização Particularização
Generalização
Generalização
Paralelogramo
. todos
OU
todos
. todos
OU
todos
. lados
os lados podem ser = (hierárquica)
os lados não são = (partitiva)
os ângulos podem ser = (hierárquica)
os ângulos não são = (partitiva)
opostos //
Figura 3
Reciprocamente, partindo do conceito, mais geral, paralelogramo, podemos particularizar
impondo mais e mais propriedades para, finalmente, chegarmos ao quadrado. Por exemplo, o
losango pode ser particularizado a partir do paralelogramo, requerendo a propriedade adicional
de “lados iguais”. Analogamente, o quadrado pode ser particularizado do losango requerendo a
propriedade adicional de ângulos iguais (por outras palavras, combinando todas as propriedades
dos rectângulos e losangos). É, no entanto, importante voltar a chamar a atenção de que a
generalização e a particularização não têm que ser feitas necessariamente em contexto
hierárquico, podendo ser feitas teoricamente em contexto de partição (embora na prática esta
possa ser mais a excepção do que a regra).
Analogamente, podemos generalizar o conceito de papagaio para um novo conceito, por
exemplo, de quadrilátero perpendicular, desprezando as condições de que dois lados adjacentes
têm de ser iguais, mas retendo a perpendicularidade das diagonais (figura 4). (Note-se que
também podemos ter quadriláteros perpendiculares côncavos ou cruzados). Uma interessante
propriedade dos quadriláteros perpendiculares é que se ligarmos os pontos médios de lados
adjacentes obtemos um rectângulo). Uma definição hierárquica de quadrilátero perpendicular
poderia, agora, ser simplesmente um quadrilátero com diagonais perpendiculares. Em contraste,
uma classificação por partição de quadrilátero perpendicular, teria de excluir os papagaios,
acrescentando que não pode haver dois pares de lados adjacentes iguais.
-6-
Papagaio
Quadrilátero perpendicular
Figura 4
Podemos também particularizar os conceitos de quadrilátero cíclico e papagaio (convexo) para
produzir um novo conceito, digamos, um papagaio recto, requerendo que seja a intersecção dos
dois (i.e. tem as propriedades de ambos) (fig5).
Como anteriormente, teríamos de juntar mais condições aos quadriláteros cíclicos (i..e. não
podem ter dois pares de lados adjacentes iguais) e aos papagaios (i.e. não podem ser cíclicos) se
se pretender excluir os papagaios rectos dos quadriláteros cíclicos e dos papagaios.
Papagaio
Papagaio recto
Quadrilátero cíclico
Figura 5
Algumas funções importantes da classificação hierárquica
Isto traz-nos, finalmente, à questão principal deste documento, nomeadamente, qual é o valor ou
função da classificação hierárquica? Algumas das funções mais importantes são:
•
•
•
•
•
Conduz a definições de conceitos e a formulações de teoremas mais económicas
Simplifica a sistematização dedutiva e conduz ao aparecimento de propriedades de
conceitos mais específicos
Proporciona muitas vezes um esquema conceptual durante a resolução de problemas
Sugere, algumas vezes, definições alternativas e novas proposições
Proporciona uma perspectiva global muito útil
Cada uma delas será discutida em maior detalhe.
-7-
Definições económicas e formulação de teoremas
A economia nas definições e na formulação de teoremas é, provavelmente, uma das mais
importantes vantagens da classificação hierárquica. Como já anteriormente vimos com a
classificação de paralelogramos, uma definição hierárquica é mais curta do que uma definição
por partição, a qual tem de incluir propriedades adicionais para excluir os losangos, quadrados e
rectângulos. Para outro exemplo, considere-se a definição por partição para o trapézio isósceles.
(ver Figura 6).
A
A
D
D
B
C
Convexo
C
B
Cruzado
Figura 6
Uma definição hierárquica que inclua os rectângulos (quadrados) como casos especiais seria,
por exemplo, dizer que um trapézio isósceles é um qualquer quadrilátero com um eixo de
simetria que corta (pelo menos) um par de lados opostos. (Note-se que é então necessário
subdividir os trapézios isósceles em convexos e cruzados). Uma definição por partição, por
outro lado, que exclua os rectângulos e os quadrados, teria de ter a condição adicional de não
poder ter ângulos rectos.
A classificação por partição torna também, muitas vezes, complicada e ineficiente a formulação
de certos teoremas. Considere-se, por exemplo, as seguintes duas formulações de resultados
bem conhecidos de um ponto de vista partitivo:
Se ligarmos consecutivamente os pontos médios E, F, G e H dos lados de um quadrilátero
ABCD, então EFGH é um paralelogramo, um rectângulo, um losango ou um quadrado.
O ângulo externo de um quadrilátero cíclico, trapézio isósceles, papagaio recto, rectângulo ou
quadrado é igual ao ângulo interno oposto.
Simplificação da sistematização dedutiva
Ao classificar (definir) o conceito A como subconjunto (caso especial) do conceito B, torna-se
desnecessário repetir qualquer das demonstrações das propriedades do conceito B para o
conceito A, já que estão automaticamente implícitas para A, dada a inclusão hierárquica. Por
exemplo, ao classificar um losango como um papagaio, todos os teoremas anteriormente
demonstrados para os papagaios podem ser imediatamente aplicados aos losangos (ou aos
quadrados). Por outras palavras, não é necessário demonstrar, por exemplo, que as diagonais de
um losango (ou quadrado) são perpendiculares, uma vez que é uma propriedade dos papagaios
facilmente demonstrável.
-8-
Por outro lado, se os losangos (e os quadrados) tivessem sido excluídos dos papagaios, teríamos
de provar de novo, a partir da definição utilizada, seja ela qual for, que essa propriedade era
também verdadeira para os losangos (e para os quadrados), Para além da economia de definição
ou de formulação, a classificação hierárquica resulta também num sistema dedutivo económico.
H
E
G
F
Figura 7
Um esquema conceptual útil na resolução de problemas
A inclusão de classes hierárquicas é, muitas vezes, útil na resolução de problemas; em particular
para demonstrações adicionais. Por exemplo, suponhamos que queremos provar que um
papagaio com um par de lados opostos paralelos é um losango. Usando a perspectiva
hierárquica que o losango é a intersecção de papagaios e paralelogramos, é então suficiente
demonstrar que a figura é um paralelogramo, uma vez que qualquer papagaio com os dois pares
de lados opostos paralelos tem de ser um losango.
Um outro exemplo, particularmente elucidativo, envolve um caso particular do teorema de Von
Aubel. O teorema de Von Aubel estabelece que se construirmos quadrados nos lados de um
qualquer quadrilátero, então os segmentos de recta que ligam os centros dos quadrados opostos
são iguais e perpendiculares. [A demonstração está feita em Yaglon, 1962: 95-96] Um caso
especialmente interessante é o de, se construirmos quadrados nos lados de um paralelogramo,
então os centros desses quadrados formam também um quadrado (ver Figura 7). Embora haja
muitas formas diferentes de provar este caso especial, uma maneira elegante que utiliza a
classificação hierárquica, é simplesmente mostrar que o quadrilátero EFGH é um paralelogramo,
uma vez que o quadrado é o único paralelogramo com as diagonais iguais e perpendiculares (a
última resulta de Von Aubel directamente).
Definições alternativas e novas proposições
A relação hierárquica entre conceitos pode, por vezes, sugerir definições alternativas e novas
proposições. Se, por exemplo, o conceito A é a intersecção de dois outros conceitos B e C, então
tem de possuir todas as propriedades de ambos os conceitos B e C. Considerando agora vários
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subconjuntos do conjunto total das propriedades do conceito A, podem ser sugeridas definições
alternativas, ou novas proposições.
Por exemplo, uma vez que qualquer trapézio isósceles é cíclico, o trapézio isósceles pode ser
considerado a intersecção entre o trapézio e os quadriláteros cíclicos. Isso sugere imediatamente
que um quadrilátero cíclico com pelo menos um par de lados opostos paralelos é um trapézio
isósceles (ver Figura 8a).
Figura 8
Analogamente, uma vez que as diagonais de um trapézio isósceles são iguais, sugere-se a
seguinte definição (ou proposição) alternativa:
Um trapézio isósceles é um quadrilátero cíclico com diagonais iguais (ver Figura 8b).
Ter presente a classificação hierárquica, pode, por vezes, permitir a generalização de certos
resultados. Suponha, por exemplo, que descobríamos acidentalmente por experimentação que,
se unirmos os centros dos quadrados sobre os lados de qualquer triângulo ao vértice oposto do
triângulo, os segmentos de recta obtidos são concorrentes (ver Figura 9a). Uma vez que todos os
quadrados são semelhantes, e rectângulos especiais, poderíamos conjecturar que o mesmo se
verificaria para rectângulos semelhantes, como na Figura 9b. (A demonstração em que se
baseia e a sua generalização é feita em De Villiers, [1989].) Analogamente, na Figura 7, unindo
os centros (ou outros pontos correspondentes) de (quaisquer) figuras semelhantes desenhadas
sobre os lados de um paralelogramo base, obtém-se um paralelogramo.
A
F
F
A
D
D
B
C
B
C
E
E
Figura 9
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Uma perspectiva global útil
A classificação hierárquica dá uma perspectiva global útil que pode conduzir a uma perspectiva
mais coesa ao sublinhar as relações entre conceitos, e por isso também uma melhor retenção.
Além disso, é esteticamente mais agradável e mais perceptivo ver como as várias intercepções
entre conceitos mais gerais produzem as propriedades dos conceitos mais específicos.
Por exemplo, uma vez que os losangos são a intersecção entre os papagaios e os paralelogramos,
resulta imediatamente das propriedades das diagonais dos papagaios e paralelogramos que as
diagonais do losango são perpendiculares e se cortam ao meio. Analogamente, uma vez que os
rectângulos são a intersecção entre os paralelogramos e os trapézios isósceles, segue-se
imediatamente que o rectângulo deve ter ângulos opostos iguais (propriedade do paralelogramo)
assim como ângulos adjacentes iguais (propriedade do trapézio isósceles), dos quais se obtém a
propriedade, que nos é tão familiar, de que todos os seus ângulos são iguais. Do mesmo modo, o
rectângulo herda diagonais iguais, do trapézio isósceles, assim como diagonais que se bisectam,
dos paralelogramos.
Alguns comentários breves sobre o ensino da classificação hierárquica dos quadriláteros
Infelizmente, muitos professores e autores de livros de texto ainda parecem manter a perspectiva
de que só a classificação hierárquica é matematicamente aceitável, enquanto a classificação por
partição é matematicamente ilógica e, por conseguinte, inaceitável. Contudo, como foi
acentuado neste documento, a classificação por partição é igualmente aceitável e
frequentemente aplicável em métodos matemáticos. A única razão para a preferência
convencional pela classificação hierárquica dos quadriláteros reside na sua maior funcionalidade,
como evidenciado anteriormente. A maioria dos livros e dos professores, contudo, ignoram
completamente a discussão deste aspecto fundamental, impondo simplesmente a classificação
hierárquica e as suas definições aos alunos, para as quais os alunos têm pouca ou nenhuma
compreensão funcional.
Muitos estudos da teoria de Van Hiele nos últimos anos mostraram claramente que muitos
estudantes têm problemas com a classificação hierárquica dos quadriláteros [e.g. Mayberry,
1981; Usiskin, 1982; Burger and Shaughnessy, 1986, Fuys, Geddes & Tischler, 1988].
Pesquisas do autor e de alguns dos seus alunos [e.g. Malan, 1986; De Villiers & Njisane, 1987;
Smith, 1989; De Villiers, 1987, 1990] indicaram ainda que algumas das dificuldades das
crianças com a inclusão da classe hierárquica (especialmente crianças mais velhas) não reside
necessariamente na lógica da inclusão enquanto tal, mas frequentemente com o significado da
actividade, quer linguística, quer funcional; linguística no sentido da interpretação correcta da
linguagem usada para a inclusão na classe, e funcional no sentido de perceber por que é mais
útil do que a classificação por partição.
Nos Nível 1 (Visualização) e Nível 2 (Exploração) de Van Hiele o uso dos micro-mundos
computacionais tais como Logo Geometry [e.g. ver Battista & Clements, 1992], ou software
dinâmico tais como o Cabri ou o Sketchpad, oferecem grande potencial por permitirem a
muitas crianças ver e aceitar a possibilidade de inclusões hierárquicas (por exemplo, deixando
que construam um quadrado com o procedimento de construção do rectângulo no Logo, ou
deixando-as arrastar os vértices de um paralelogramo dinâmico no Cabri ou no Sketchpad para
o transformar num rectângulo, losango ou quadrado).
Para que uma classificação hierárquica de quadriláteros tenha sentido para os alunos no Nível 3
de Van Hiele (ordenação) é também essencial que uma negociação apropriada do significado
linguístico já tivesse tido lugar anteriormente. A partir de entrevistas individuais das crianças e
- 11 -
no contexto da sala de aula, o autor verificou que muitos tinham dificuldade com o significado
da palavra “é ” numa frase como “o quadrado é um rectângulo”. Pareciam interpretá-lo como
significando que o quadrado “é equivalente a” ou “o mesmo que” um rectângulo, e portanto
(correctamente) rejeitando a afirmação como ridícula ou falsa. Usando o adjectivo “especial”
por exemplo, “o quadrado é um rectângulo especial”, ajudou muitos alunos a compreender que
o que realmente se pretende dizer é que um é subconjunto do outro. Fazer referência a situações
análogas do dia-a-dia, onde um objecto pode ser visto como um conjunto particular de um
conjunto mais vasto e, por conseguinte, tendo dois diferentes “nomes” ( e.g. “um mamífero é um
vertebrado” e “um cavalo é um mamífero e um vertebrado”) foi também útil.
Em segundo lugar, é absolutamente vital no Nível 3 de Van Hiele que a negociação de um
significado funcional tenha também lugar; isto é, devem ser dadas oportunidades suficientes e
actividades adequadas para a discussão do valor ou função da classificação hierárquica. Por
exemplo, o autor achou muito útil permitir aos alunos formular, comparar e escolher primeiro as
suas próprias definições e classificações dos quadrados, rectângulos e losangos; muitos deles,
espontaneamente, preferiram a partição. Desafiando estes alunos a continuar a formular
definições por partição para quadriláteros cada vez mais gerais, e comparando-as com as
alternativas hierárquicas, em breve começaram a compreender e apreciar a economia desta
última. Insistindo simultaneamente que demonstrassem todas as propriedades dos quadriláteros
classificados por partição, e pedindo-lhes para comparar criticamente o seu sistema de
definições com um sistema dedutivo baseado numa classificação hierárquica, a maior parte dos
alunos viram a conveniência da inclusão hierárquica e fizeram a mudança para ela.
A ideia que aos alunos não devem ser dadas definições e classificações já prontas, mas que
devem participar activamente no processo de definir e classificar, e comparar criticamente
alternativas, é fortemente apoiada pela epistemologia e teoria da aprendizagem construtivista.
Em vez de simplesmente ignorar ou rejeitar a classificação por partição dos quadriláteros feita
pelas crianças, deveríamos abordar a questão com muito mais empatia e reconhecer que a sua
abordagem é uma tentativa racional e com significado que faz sentido. É bastante alarmante ver
tantos professores e até pesquisadores que defendem o construtivismo apenas de boca (i.e.
proclamam a autonomia da criança na aprendizagem e construção da matemática, mas quando
se trata da classificação dos quadriláteros em nada a aplicam).
Nota
[1] Este documento foi apresentado na PME 17, Universidade de Tsukuba, Japão, 18-23 de
Julho de 1993. A participação nesta conferência foi possível com o patrocínio do Fundo para
Pesquisa e Desenvolvimento (FDR) do Conselho de Pesquisa de Recursos Humanos (HSRC),
Pretória, África do Sul. Os pontos de vista expressos neste documento são do autor e não
necessariamente do HSC.
Referências
References
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