gênero gramatical e gênero sexual na linguagem inclusiva

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HÁ LÓGICA NA LINGUAGEM INCLUSIVA?
Erica Reviglio Iliovitz1
Cleto Brasileiro Miranda Neto2
RESUMO
Este artigo discute -- e questiona -- o sentido e uso da chamada linguagem inclusiva,
dando-se ênfase a uma análise das categorias de gênero gramatical e gênero
sexual em sua estrutura. Pode-se pensar em linguagem inclusiva como uma
proposta de inclusão de ambos os sexos no discurso. Argumentamos que a idéia de
que a linguagem pode mudar a sociedade, bem como o pressuposto de que gênero
gramatical e gênero sexual estão diretamente relacionados, não são totalmente
apropriados. A perspectiva teórica adotada segue a desenvolvida pelo lingüista
brasileiro Mattoso Câmara Jr.
PALAVRAS-CHAVE: linguagem inclusiva, gênero gramatical, lingüística.
ABSTRACT:
This paper discusses -- and refuses -- the sense and use of the so-called inclusive
language, giving emphasis to an analysis of the grammatical gender and sexual
genre categories in its structure. Inclusive language may be thought of as a kind of
proposal of inclusion of both sexes into the speech. We argue that the idea that
language can change society, as well as the assumption that grammatical gender
and sexual genre are directly related, are not entirely appropriate. The theoretical
perspective adopted follows the one developed by the Brazilian linguist Mattoso
Câmara Jr.
KEY WORDS: inclusive language, grammatical gender, linguistics.
1
Professora Adjunto I da Universidade Federal de Pernambuco, Campus do Agreste (UFPE/CAA).
Doutora em Lingüística pela UNICAMP.
2
Professor Adjunto I da Universidade Federal de Pernambuco, Campus do Agreste (UFPE/CAA).
Doutor em Matemática pela UFPE.
1. INTRODUÇÃO
“Olá a todos e a todas”.
Expressões como essa, que apresentam a articulação de uma mesma
palavra em ambos os gêneros (masculino e feminino) – ao contrário da construção
típica, em que o masculino é automaticamente utilizado em caráter unificador e de
forma não-restritiva --, têm sido usadas com alguma freqüência. Elas exemplificam
a proposta da linguagem inclusiva, que – inclusive – já se tornou até projeto de lei.
De fato, ao escrever a respeito do projeto da deputada Iara Bernardi (PTSP), que exclui, dos documentos oficiais, os termos “homem” e “mulher” -- e
determina o uso da linguagem inclusiva --, Ligia Martins de Almeida, no artigo
“Linguagem inclusiva: mudar a lei muda a cabeça?”, propõe o seguinte:
“(...) a mídia poderia (...) convocar estudiosos de linguagem para mostrar
se tem razão a deputada ao dizer que ‘a reconstrução da linguagem é
inevitável para gerar uma nova consciência na população’". (ALMEIDA,
2006)
Embora não tenhamos sido convocados pela mídia, pretendemos discutir
brevemente nesse texto a afirmação da deputada e dos defensores da linguagem
inclusiva em geral: a de que o gênero gramatical e o gênero sexual estão
diretamente relacionados na linguagem e na sociedade.
Estaria então, hoje, a expressão “olá a todos” obsoleta? Seria
Inadequada? Preconceituosa? Machista? Defendemos que não – desde, claro, que
esteja devidamente subentendido o aspecto global e democrático do tratamento. O
processo da “evolução lingüística” não se dá automaticamente: ele requer cautela, e
não deve ser confundido com qualquer semente de “modernidade”, com suas
promessas de igualdade ou qualquer tipo de “libertação” – ao menos enquanto não
houver uma demonstração incontestável de seus fundamentos, de sua lógica, que
parece inexistir quando se trata da linguagem inclusiva.
Freqüentemente, “modismos” surgem, ou ressurgem, ou resistem,
incessantemente, permeando e “contaminando” a norma culta da língua, como se já
não bastasse o turbilhão lingüístico que se multiplica nos contextos coloquiais – o
que é, por um lado, relativamente aceitável e justifica a face dinâmica de uma
estrutura idiomática. É preciso critério – e finalidade – diante de qualquer proposta
de mudança lingüística.
Exemplifiquemos: propor que a língua portuguesa falada no Brasil se
adapte à língua falada em Portugal é, mesmo sendo uma tentativa inevitavelmente
polêmica, algo fundamentado. Uma finalidade ou justificativa está sendo
apresentada: a unificação (da grafia, por exemplo) e os conseqüentes benefícios
que ela supostamente traria às nações e povos envolvidos. Por outro lado, acusar
subitamente expressões como “olá a todos” de machista, simplesmente porque
alguns (no exercício de sua “influência”) assim as julgaram, seria, em nossos
parâmetros, uma arbitrariedade.
Quando, ao fim de um discurso, diz-se “obrigado a todos pela atenção”, a
sensação/resposta natural é a de que todos – homens e mulheres! – sintam-se
merecedores da gratidão do orador. Esse bom-senso – que aqui queremos
preservar – vê-se atualmente ameaçado pela linguagem inclusiva.
E que este ponto de vista, defendido com sinceridade pelos presentes
autores, não seja injustamente confundido com conservadorismo! Trata-se, isto sim,
do que debateremos na próxima seção.
2. SOBRE ALGUNS CONCEITOS, UM ARGUMENTO E UMA
PROPOSTA
Antes da discussão propriamente dita, faz-se necessário
esclarecimento sobre conceitos como linguagem inclusiva e gênero.
algum
Comecemos com a linguagem inclusiva:
“A linguagem inclusiva é um dos campos de estudos que vem sendo
desenvolvido dentro da concepção de gênero, diz respeito à inclusão do
feminino na elaboração lingüística. Propõe a utilização dos termos
masculino e feminino na construção da linguagem como, por exemplo:
"Sala dos professores e das professoras"; "Casa da cidadania", em vez de
"Casa do cidadão"; "O ser humano", em vez de "O homem"; "Os alunos e
as alunas" etc.” (CABRAL, 2006)
Portanto, linguagem inclusiva é, basicamente, incluir o “feminino” nos
enunciados da linguagem.
Já o termo “gênero” pode ter diferentes definições, dependendo do campo
de estudos no qual ele está inserido.
Para a nossa discussão, convém apresentar o conceito de “gênero” nos
estudos sociais e nos estudos gramaticais.
Nos estudos sociais, o “gênero”
“(...) nasce a partir dos estudos feministas para demonstrar que as relações
de subordinação e desigualdades existentes entre homens e mulheres na
sociedade não são coisas naturais como as diferenças biológicas, mas são
relações construídas historicamente a partir do poder e da cultura de
superioridade masculina existentes na história da humanidade”. (CABRAL,
2006)
Assim, gênero se refere aos papéis sociais dos sexos masculino e
feminino.
Já nos estudos gramaticais, “(...) o gênero é uma distribuição em classes
mórficas, para os nomes, da mesma sorte que o são as conjugações para os verbos.
(...)”(MATTOSO CÂMARA JR. 2004, p.88).
Em outras palavras, o conceito de gênero, na linguagem, é um critério de
distribuição gramatical.
Apresentadas as definições de linguagem inclusiva e de gênero, a
pergunta que surge naturalmente é:
Mas afinal, por que a linguagem inclusiva foi criada?
A fim de justificar a criação do conceito de linguagem inclusiva, o principal
argumento usado é o de que linguagem e sociedade estão relacionadas e uma
interfere na outra:
“A linguagem reflete padrões de interação social. Mais do que isso: a
linguagem não só reflete, mas também participa na manutenção e
reprodução de certas idéias e práticas culturais”. (Breve comentário sobre
linguagem e sexismo)
Nesse sentido, em relação ao uso do gênero masculino para representar
os sexos masculino e feminino na linguagem, os defensores da linguagem inclusiva
afirmam que se trata de um mecanismo lingüístico que “esconde” as mulheres e,
simultaneamente, dá maior visibilidade aos homens:
A forma não-marcada “homem” pode se referir a homens ou a seres
humanos no geral. A forma marcada é restrita às mulheres. Assim, as
mulheres são, efetivamente, escondidas atrás da terminologia “genérica”
(masculina). E “homem” também não é uma terminologia realmente
genérica. A neutralidade da categoria é duvidosa. Existe uma tendência a
se pensar, realmente, nos homens, mesmo quando estamos falando no
plural. Ao promover o uso do masculino e o desuso do feminino, claramente
se apóia e se dá visibilidade e primazia para os homens. (Breve comentário
sobre linguagem e sexismo)
Diante disso, a proposta dos defensores da linguagem inclusiva é a de
que é possível
“(...) igualar a visibilidade entre homens e mulheres substituindo expressões
como “homens” por “pessoas” ou “seres humanos”, ou utilizar formas mais
criativas: @s ativistas, trabalhadorxs...” (Breve comentário sobre linguagem
e sexismo)
Assim, o principal argumento usado pelos defensores da linguagem
inclusiva é o de que mudar a forma de organização da linguagem (no caso, evitar o
uso do gênero masculino como uma categoria genérica para se referir a homens e
mulheres) pode contribuir para mudar a sociedade (ou seja, pode servir para
combater a exclusão social das mulheres). Vê-se também que foi feita uma proposta
de substituição de algumas expressões, sob a (precipitada) alegação de que esta
seria uma forma de combate à mencionada exclusão.
Diante de tal panorama, o presente texto pretende demonstrar que, de
uma perspectiva lingüística, o argumento e a proposta dos defensores da linguagem
inclusiva são pouco consistentes para justificar a criação e uso dessa linguagem.
Para isso, organizaremos o texto da seguinte forma: em primeiro lugar, o
referido argumento será questionado; em seguida, discutiremos o pressuposto da
linguagem inclusiva, que é o de relacionar, de forma direta, o gênero gramatical ao
gênero sexual; finalmente, debateremos a (im)pertinência da proposta dos
defensores da linguagem inclusiva.
3. A INTERFERÊNCIA DA LINGUAGEM NA SOCIEDADE
É fato que linguagem e sociedade estão relacionadas. Os provérbios, dos
populares aos de forte teor histórico-filosófico, podem revelar ou denunciar esse fato
de forma simples e nítida. Eis um dos princípios básicos da linguagem: uma mesma
mensagem pode ser transmitida de duas formas socialmente e culturalmente
diferentes na forma, porém equivalentes no conteúdo.
Um exemplo aparentemente banal é a mensagem que diz: “as posses dos
outros são melhores do que as minhas”.
Em português, essa mensagem pode ser vinculada através do dito popular
“a galinha do vizinho é mais gorda”. Em inglês, a mesma mensagem é transmitida
no enunciado “the green is greener on the other side”, ou seja, “a grama é mais
verde do outro lado” (da cerca).
Dessa forma, enquanto os brasileiros, por questões culturais, históricas e
sociais, ficam “de olho na galinha do vizinho”, os norte-americanos conferem “a
grama do quintal alheio”. Isto revela, pois, a natureza mutante e ao mesmo tempo
insistente a respeito do que, aqui, apenas começamos a questionar. O lado
“camaleão” da linguagem é mais complexo, dinâmico e intrigante do que podem
sugerir mnemonicamente os lentos movimentos de tal réptil – exceto por sua
inquestionável eficiência no exato instante da caça, o que de fato mais lhe interessa!
Dessa mesma maneira, a linguagem, apesar de dinâmica, também não se
dá a modificações sem que alguma meta ou necessidade (a fome do camaleão)
tenha se manifestado naturalmente, tenha sido percebida ou até mesmo imposta em
prol de alguma espécie de bem-comum.
Mas, analogias à parte, retomemos a discussão.
Ligia Martins de Almeida, no já mencionado artigo, coloca, com
propriedade, as seguintes questões:
“Será que o fato de nos Estados Unidos os negros serem chamados de
afro-americanos acabou com o preconceito? Será que os jogadores de
futebol, na Copa deste ano, ao mostrarem uma faixa apelando para o fim do
preconceito racial vão mudar a forma como imigrantes são tratados na
Europa? Será que o fato de o presidente Lula assinar uma lei determinando
que não haja discriminação contra mulheres vai apagar a famosa frase por
ele proferida, segundo a qual "as mulheres estão muito ousadas"?
“Não há dúvida de que é preciso alertar constantemente sobre os
preconceitos de que as mulheres ainda são vítimas, e fazer o impossível
para mudar a mentalidade da população”. (ALMEIDA, 2006)
De fato, a chance de superar preconceitos raciais apenas através da
substituição do substantivo “negro” por “afro-descendente” é mínima, senão nula. O
mesmo acontece, por exemplo, com a substituição de expressões como “deficiente”
por “portador de necessidades especiais”.
O que ocorre nesses casos é uma espécie de eufemismo, figura de
linguagem que, segundo o Dicionário Aurélio Século XXI, visa “suavizar a expressão
de uma idéia substituindo a palavra ou expressão própria por outra mais agradável,
mais polida”.
O objetivo do uso dessas substituições, portanto, é amenizar impactos
potencialmente negativos causados pelo uso de determinadas palavras ou
expressões, já que a linguagem revela, de forma consciente ou não, concepções
ideológicas referentes à discriminação.
De qualquer forma, reafirmamos aqui a colocação de Ligia de que os
preconceitos em geral – os preconceitos contra as mulheres, em particular – podem
e devem ser severamente combatidos. É fundamental trabalhar conscientemente,
das mais diversas formas, sempre lícitas e coerentes, com o fim de mudar a
mentalidade da população, ajustando-a e fortificando sua identidade e
personalidade, com base em preceitos morais e éticos.
Defendemos que não é através da mera substituição de algumas
expressões nem através do uso da linguagem inclusiva que a sociedade vai mudar.
Esta idéia seria extremamente ingênua e superficial, senão ilusória. A mudança
social vem através da educação, da conscientização e do respeito às diferenças.
Esse respeito certamente pode estar presente na linguagem, mas não basta. É
preciso ir além. Trata-se, então, de todo um processo social – como tal, entretanto,
não se processa instantaneamente; requer uma “paciência coletiva”, algo como
tolerância em massa, a menos que a própria massa o desconheça, uma vez que se
trata de um aspecto de caráter intelectual, e é exatamente isto que, infelizmente,
percebe-se na sociedade. As “ilhas” de conhecimento (por exemplo, as
universidades) não dão conta, nesse sentido, de tal tarefa, ao menos em curto
prazo.
Mas o que ocorreria, ou deveria ocorrer, a médio ou longo prazo? A
resposta a essa questão, de uma maneira verdadeiramente satisfatória, talvez não
esteja escrita em lugar algum. Sem dúvida, há quem a considere pura utopia, ou
mais atrevidamente, mera justificativa para qualquer espécie de fomento a
atividades parcialmente ou totalmente imperceptíveis à sociedade comum. Essa é
uma questão de extrema sutileza, e requer uma análise aprofundada que aqui não
será tratada, mas que, de certa forma, já tem suas sementes plantadas, tanto no
presente quanto em diversos outros “solos” – adubá-los é, ou deveria ser, uma
missão periódica, vigiada e assistida.
Retomemos a discussão acerca da (ir)relevância da criação e do uso da
linguagem inclusiva. Reforçamos que o nosso objetivo não é criticar meramente
alguma proposta anterior relativa ao tema, mas, uma vez tendo-a detectado,
questioná-la com coerência, e refutá-la (se for o caso, como, a propósito, será)
mediante a apresentação de uma argumentação adequada. Tudo isso, tanto a favor
do bom-senso geral, quanto pela preservação e manutenção “saudável” – dentro
das normas regentes da linguagem ou, ao menos, de modo que não as agrida – das
linhas específicas de raciocínio já mencionadas, e que continuarão a ser detalhadas
nas seções seguintes. Passaremos, então, a uma seção onde atacamos o cerne da
questão: a associação direta – e agora polêmica – entre gênero e sexo.
4. GÊNERO GRAMATICAL E GÊNERO SEXUAL
Os defensores da linguagem inclusiva dizem que é preciso
“(...) desafiar regras gramaticais que instituem o uso do masculino para
significar o genérico e reforçam a invisibilidade de, pelo menos, metade da
população que se identifica com o gênero feminino. A opção por essa
linguagem sexista reflete mentalidades e moralidades que vêem o homem
como padrão, digno de representar as mulheres e a humanidade como um
todo”. (Linguagem inclusiva)
Nesse trecho, fica pressuposto que a categoria de gênero é diretamente
ligada à de sexo. Mas não é.
Enquanto a categoria de sexo é real, presente na sociedade, a categoria
de gênero, na linguagem, é uma categoria simbólica.
A língua portuguesa apresenta as categorias simbólicas de gênero
masculino e gênero feminino. A partir daí, os defensores da linguagem inclusiva
estabeleceram uma relação direta entre “gênero masculino” e “sexo masculino”, bem
como entre “gênero feminino” e “sexo feminino”.
Essa relação equivocada não é recente e já foi abordada/questionada há
várias décadas por um dos criadores dos estudos da linguagem e lingüística no
Brasil, que pode ser considerado o pai da Lingüística no país: Joaquim Mattoso
Câmara Jr.
Ao tratar do mecanismo da flexão de gênero, MATTOSO CÂMARA JR.
(2004) afirma que existe uma “incompreensão semântica”:
“[a flexão de gênero] costuma ser associada intimamente ao sexo dos
seres. Ora, contra essa interpretação falam duas considerações
fundamentais. Uma é que o gênero abrange todos os nomes substantivos
portugueses, quer se refiram a seres animais, providos de sexo, quer
designem apenas ‘coisas’, como casa, ponte, andaiá, femininos, ou palácio,
pente, sofá, masculinos. (...) Depois, mesmo em substantivos referentes a
animais ou pessoas há discrepância entre gênero e sexo, não poucas
vezes. Assim, testemunha é sempre feminino, quer se trate de homem ou
mulher, e cônjuge, sempre masculino, aplica-se ao esposo e à esposa. Para
os animais, temos os chamados substantivos epicenos, como cobra,
sempre feminino, e tigre, sempre masculino”. (MATTOSO CÂMARA JR.
2004, p.88)
Portanto, todos os substantivos da língua portuguesa, tenham eles sexo
ou não, são ou do gênero masculino ou do gênero feminino.
Também é importante lembrar que, em alguns casos, como em
substantivos que designam animais ou seres humanos, nem sempre há total
coincidência entre gênero e sexo, pois há alguns substantivos que têm gênero
sempre masculino ou sempre feminino independentemente de se referirem a seres
do sexo masculino ou feminino.
Ainda segundo o autor,
“Desde o velho Bopp3 há o afã de equiparar a categoria de gênero com a
distinção dos sexos no reino animal. Não há dúvida que nos nomes
referentes a animais e pessoas existe uma certa correlação entre as duas
noções, coincidindo aí frequentemente o gênero masculino com o sexo
masculino, e o gênero feminino com o sexo feminino. Mas mesmo no reino
animal tal coincidência está longe de ser absoluta. Em português, por
exemplo, há nomes com um gênero único para animais (epicenos) e
pessoas (sobrecomuns), independentemente do sexo; hajam vista – (a)
cobra, (a) testemunha, (a) criança; (o) tigre, (o) cônjuge. Por outro lado,
todos os nomes substantivos têm um gênero e, para nomes de coisas, ele
não pode evidentemente se explicar pelo sexo (a flor, o mar, a cadeira, o
sofá e assim por diante)”. (MATTOSO CÂMARA JR 2002, p.61-62)
Além disso,
“(...) do ponto de vista semântico, (...) o [gênero] masculino é uma forma
geral, não-marcada, e o feminino indica uma especialização qualquer (jarra
é uma espécie de “jarro”, barca um tipo especial de “barco”, como ursa é a
fêmea do animal chamado urso, e menina uma mulher em crescimento na
idade dos seres humanos denominados como a de “menino”). (MATTOSO
CÂMARA JR 2002, p.61-62)
Os defensores da linguagem inclusiva criticam a suposta “neutralidade” do
gênero masculino como forma genérica. Porém, essa crítica é decorrente da
associação – inadequada, como vimos – entre gênero e sexo.
Ora, na língua portuguesa existem apenas dois gêneros: o masculino e o
feminino. Não existe um gênero neutro (como na língua alemã, por exemplo). Além
disso, o gênero é simplesmente um critério de distribuição gramatical dos nomes, da
mesma forma que as conjugações são para os verbos.
Dessa maneira, estabelecer uma associação entre o uso do gênero
masculino como forma genérica e a predominância do sexo masculino na sociedade
patriarcal em detrimento das mulheres é, embora minimamente compreensível,
totalmente inadequado.
A inadequação é decorrente da tentativa de estabelecimento de relação
direta entre gênero gramatical (definido como um critério de distribuição gramatical)
3
Franz Bopp (Mogúncia, 1791 — Berlim, 1867) foi um lingüista alemão e professor de filologia e
sânscrito na Universidade de Berlim (disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Bopp).
e gênero sexual (apresentado como referente aos papéis sociais dos sexos
masculino e feminino).
Discutiremos, a seguir, a (im)pertinência da proposta dos defensores da
linguagem inclusiva.
5. SOBRE A SUBSTITUIÇÃO DE ALGUMAS EXPRESSÕES
Defensores da linguagem inclusiva propõem que seja feita a substituição
de algumas expressões, como “homens” por “pessoas” ou “seres humanos”, ou que
sejam utilizadas “formas mais criativas” como “@s ativistas”, “trabalhadorxs”, etc.
Diante desse quadro, tornam-se inevitáveis alguns questionamentos a
respeito.
Em primeiro lugar, a substituição da palavra “homem” por “pessoas”
significa simplesmente que, ao invés de usar uma palavra do gênero masculino, será
usada uma do gênero feminino. Ou seja, passamos de um extremo a outro, o que
certamente não deveria conduzir a semelhante questionamento, e sim a uma
sensação de compensação, dada a “dívida histórica” do sexo masculino em relação
ao feminino, por tê-lo subestimado, a menos de raríssimas exceções de lugar e
época, desde que a humanidade é humanidade. Mas, da mesma forma, haveria por
simetria, uma injustiça lingüística. Além disso, no uso do termo “homem” não há
contradição lógica, no sentido estrito do termo, já que todo “homem” é “pessoa”; no
máximo, uma (imatura) idéia de restrição poderia vir à tona, mas esta seria
dissolvida de forma natural e automática, mediante simplesmente uma definição
adequada e generalista (além de prática) do termo “homem” – já que, em essência,
nada se perde, de acordo com o que argumentamos aqui.
No caso da substituição da palavra “homem” por “seres humanos”, o
gênero masculino é mantido, embora, nesse caso, as mulheres sejam incluídas na
categoria de “humanidade de seres humanos”.
Quanto ao uso do “arroba” (@) antes de palavras comuns de dois gêneros
(como “ativistas”) e o uso da letra “x” para substituir a marca de gênero no plural de
palavras como “trabalhadores” e “trabalhadoras”, a questão que fica é: se na escrita
a questão do gênero aparentemente foi solucionada, como essas palavras serão
pronunciadas? Além disso, que regras irão reger a justaposição/aglutinação de
símbolos – a exemplo do @ – que não constam no alfabeto da língua portuguesa?
Em outras palavras, ao permitir o uso de tais composições (gerando o que
poderíamos batizar de “símbolos vocabulares” ou “pseudo-vocábulos”), uma
violação grave do método de formação de palavras permitido pela norma culta da
língua estaria ocorrendo. Seria como inventar e acrescer ao baralho um novo naipe,
dando-lhe propriedades semelhantes às tradicionais, ou pior, por vezes proferindolhes poderes de substituição. A rigor, um baralho adulterado deixa de ser um
baralho, uma vez que qualquer modificação excessivamente “criativa” pode sugerir
uma outra, e assim por diante, de modo que o “jogo” resultante seria uma mutação
do primeiro e, portanto, deveria ser considerado um novo jogo.
Aparentemente, num primeiro momento, pode-se pensar que nossa
proposta apresenta o mesmo equívoco do argumento dos defensores da linguagem
inclusiva: considerar que gênero gramatical e gênero sexual são sinônimos.
Contudo, a diferença crucial é que a presente proposta diz respeito à Semântica e
não a adultera – apela apenas para a sensatez da interpretação – enquanto que
aquela aqui questionada está fortemente relacionada à Sintaxe e a agride,
definitivamente, uma vez que as gramáticas, manuais e dicionários de Língua
Portuguesa em nada devem se influenciar com esta nova (tentativa de) “safra
simbólica pseudo-vocabular”.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, vimos que o principal argumento usado pelos defensores da
linguagem inclusiva apresenta um pressuposto equivocado.
Em outras palavras, argumentar que o uso do gênero masculino como
uma categoria genérica é uma forma de exclusão social das mulheres pressupõe,
erroneamente, que gênero gramatical e gênero sexual estariam diretamente
relacionados.
Vimos também que a proposta de substituição de algumas expressões
como forma de combate à exclusão das mulheres na sociedade é, no mínimo, de
pouca utilidade.
Diante do exposto, concluímos que os motivos ideológicos que levam
algumas pessoas a usarem a linguagem inclusiva não apresentam embasamento
teórico sob qualquer perspectiva lingüística coerente.
Dessa forma, com convicção defendemos que, se por um lado devemos
(sim!) lutar contra preconceitos e exclusão das mulheres na sociedade, por outro
devemos nos defender (e defender nossa Língua Portuguesa) de propostas
“politicamente corretas” e efetivamente inócuas.
É bom finalizar enfatizando que a categoria dos “homens” deve ser
encarada como a dos membros componentes da humanidade – nas linhas do que
defende o renomado lingüista Mattoso Câmara Jr. – sem que isto signifique exclusão
social de qualquer tipo.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Ligia Martins de. Linguagem Inclusiva: mudar a lei muda a cabeça?
Observatório de Imprensa. Ano 12, nº 388, 4/7/2006. Disponível em:
<http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=388CID003>. Acesso
em 16 de agosto de 2007.
Wikipedia: Franz Bopp. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Bopp>.
Acesso em 29 de agosto de 2007.
Breve comentário sobre a linguagem e sexismo. 17 de fevereiro de 2004.
Disponível em:<http://docs.indymedia.org/view/Local/CmiBrasilLinguagemInclusiva>.
Acesso em: 16 de agosto de 2007.
CABRAL, Assunta Maria Fiel. Linguagem Inclusiva de Gênero: algumas reflexões.
3 de julho de 2006. Disponível em:
http://www.ptceara.org.br/artigos/texto.asp?id=326>. Acesso em 16 de agosto de
2007.
Dicionário Aurélio Século XXI. CD-ROM.
MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. Problemas de Lingüística Descritiva.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2004.
Proposta para Rede Brasil: linguagem inclusiva. 04 de setembro de 2005.
Disponível
em:
<http://docs.indymedia.org/view/Local/CmiBrasilLinguagemInclusiva>. Acesso em:
16 de agosto de 2007.
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