Baixar este arquivo PDF - link de acesso aos sistemas internos

Propaganda
53
Musicalização para Surdos:
contextualização e possibilidades de abordagem
Ivo Vieira Gomes1
Laysa Maria Akeho2
Resumo
Este artigo busca oferecer ao educador musical uma breve visão sobre a realidade da
musicalização de surdos nos dias atuais, seus desafios e especificidades. Sob a ótica da
educação inclusiva e das consequências da Lei 11.769, de 18 de Agosto de 2008, que traz a
música de volta à grade curricular das escolas, é feito um breve relato sobre o processo de
estabelecimento da educação regular para os surdos. Em seguida é apresentado o valor da
música para o desenvolvimento do ser humano. A terceira parte do artigo aborda a relação
entre o surdo e o processo de educação musical, apresentando alternativas para a compreensão
musical, que sejam significativas a ele. Por fim, faz-se uma reflexão sobre a realidade
educacional inclusiva e a importância de estabelecermos novas abordagens e metodologias
para a educação musical.
Palavras-chave: Surdo. Educação musical.
Musicalization for the Deaf: background and approach possibilities
Abstract
This article attempts to provide the music educator a brief insight into the reality of deaf’s
music education in our present days, their challenges and specificities. Under the perspective
of inclusive education and the consequences of the Law 11769 of August 18, 2008, bringing
the music back to the curriculum of schools, is made a brief report on the process of
establishment of regular education for the deaf. Then it’s showed the value of music for the
human development. The third part of the article addresses the relationship between the deaf
and the process of musical education, presenting alternatives to musical understanding, which
are significant to him. Finally, there are a reflection over the reality of inclusive education and
the importance of establishing new methodologies and approaches to music education.
Keywords: Deaf. Music education.
Introdução
O meu interesse pela educação musical de pessoas surdas surgiu logo ao início do
curso de Licenciatura em Música, no início de 2009. Já havia mantido contato com alguns
1
Licenciado em Música pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). E-mail:
[email protected]
2
Mestre Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário UNA (UNA), especialista
em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMINAS) e graduada em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É professora do Centro Universitário
Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). E-mail: [email protected]
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
54
surdos, tendo aprendido o básico para manter uma comunicação simples e superficial
(alfabeto e alguns sinais mais utilizados no dia a dia), mas foi ao estudar a Língua Brasileira
de Sinais (LIBRAS), no primeiro período do curso, que me deparei com a questão: “seria
possível para uma pessoa com comprometimento auditivo, experimentar a musicalização?”. E
antes mesmo de aprender os conceitos e valores do universo musical, seria possível que eles
usufruíssem de qualquer experiência, passiva ou ativa, com a música? Essas questões, aliadas
ao grande desafio que esta proposta define, motivaram esta pesquisa.
A música está ao nosso redor, nos mais variados ambientes. Mesmo quando estamos
despercebidos ou focados em outro assunto, ela se manifesta através de um som ambiente, um
fundo musical, um comercial, ou até mesmo por meio do contato com elementos físicos do
som presentes em eventos não propriamente musicais: as vibrações sentidas no corpo ao
contato direto com uma fonte sonora, o pulsar do nosso coração e sistema circulatório.
“Somos seres musicais por natureza” (GRANJA, 2006) e precisamos nos expressar, nos
manifestar musicalmente. Gardner (1995) destaca em seu estudo sobre inteligências múltiplas
a existência de uma “inteligência musical”, competência do ser humano capaz de entender e
produzir alguma manifestação musical. Se pensarmos que essa habilidade é inerente a cada
indivíduo, que nascemos com ela, para proporcionarmos uma educação eficiente e abrangente
é preciso proporcionar o contato e o aprendizado também dentro das competências musicais
de nossos alunos.
Ainda pensando no que compete à educação, temos vivido e experimentado a chamada
Educação Inclusiva. Este tipo de educação busca oferecer às pessoas com deficiência a
oportunidade de acesso à educação, mas uma que seja o mais próxima à que têm acesso os
demais indivíduos, uma vez que a verdadeira educação é aquela que é para todos, de acordo
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (1990). Para tanto, metodologias, recursos pedagógicos, pesquisas e
produções científicas têm sido desenvolvidos e adaptados para melhor atender esse público
específico.
A educação musical se insere neste contexto, à medida que busca desenvolver a
potencialidade musical não só de um grupo específico de indivíduos, mas explorar esse
potencial em todo e qualquer indivíduo. Por muito tempo, entendeu-se que a realização
musical era privilégio de poucos, dotados de talento, e que os demais podiam apenas ouvi-la,
ainda que sem entendê-la. As pessoas com deficiência eram excluídas de atividades comuns,
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
55
por serem consideradas ineducáveis (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003), e em relação à
música, os surdos, especificamente, representavam, e ainda hoje representam para muitos,
uma parcela da população que não pode vivenciá-la. Sua exclusão na educação se devia à
concepção de que somente é “língua” a que possui uma representação e/ou realização
fonética, com sons articulados. Como a maioria dos surdos não consegue conversar falando,
não sendo, portanto oralizados, e não fazem leitura labial, a comunicação através da
vocalização fica comprometida (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003). Durante séculos, isto
fez com que essas pessoas ficassem à margem da sociedade.
Até o início do século XVI, os surdos tiveram seus direitos usurpados, sob o pretexto
de não serem “humanos” (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003). Durante esse período, o que
se entendia é que somente as pessoas que possuíam os cinco sentidos preservados eram seres
humanos, para quem valia os direitos e privilégios da sociedade. Somente nos meados do
século XVI, a educação para os surdos dá seus primeiros passos. Nomes como Girolamo
Cardano (1501-1576) Pedro Ponce de León (1510-1584), Juan Pablo Bonet (1579-1626) e
Charles-Michel de L’Epée foram os grandes responsáveis pela estruturação e consolidação da
educação para os surdos e pela instituição da Língua de Sinais como a língua destes
indivíduos (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003).
Assim, com o passar dos anos, discorrendo mais especificamente na sociedade
moderna, a partir de posicionamentos e reposicionamentos de educadores, lideres e da
comunidade surda, travou-se um longo processo de luta pela garantia dos direitos dos surdos.
E esse processo, que perdura até os dias de hoje, foi responsável por inserir a pessoa surda na
sociedade ouvinte, respeitando a sua diferença, tirando o foco de sua deficiência
(HAGUIARA-CERVELLINE, 2003). Ele passa a ser, perante a lei, um cidadão comum,
reconhecido em sua diferença sem negar sua deficiência, com todas as suas possibilidades e
aptidões, incluindo o direito à educação e à língua própria (HAGUIARA-CERVELLINE,
2003).
No contexto de inserção ou da participação do surdo na sociedade e do respeito aos
seus direitos como cidadão, pode-se também repensar o entendimento geral sobre a música.
Uma vez que estas pessoas têm direito a usufruir dos mesmos recursos e privilégios que os
ouvintes, como eles podem experimentar a música e serem musicalizados, a partir de um
processo que legitime a sua diferença? Será que o que entendemos sobre “música” pode ter
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
56
algum sentido que não aquele estritamente ligado à audição e que faça sentido ao indivíduo
surdo?
O objetivo desta pesquisa não é esgotar as possibilidades ou definir uma metodologia
para a educação musical de surdos, mas proporcionar uma reflexão sobre as formas como
pensamos e entendemos a música, o surdo e a educação. O outro objetivo deste trabalho é
ressaltar as especificidades da educação musical pensada para esses indivíduos, buscando com
isso proporcionar a ambos, ouvintes e surdos, novas possibilidades de viver e fazer música. O
propósito não é buscar uma forma de fazer o surdo “ouvir” a música ou vivenciá-la como se
fosse ouvinte, pois a visão adotada neste trabalho não nega a surdez, ignorando a falta do
sentido auditivo, ou tentando um meio de corrigi-la, tratá-la. O que se deseja é proporcionar
aos alunos novas abordagens e formas de vivenciar e experimentar a música.
Para tanto, foram utilizadas nessa pesquisa as contribuições de educadores musicais
como GRANJA (2006), que lida com os conhecimentos musicais e o aprendizado através da
prática, bem como educadores como Silva (2008), Sá (2008) e Haguiara-Cervellini (2003),
que possuem experiência na educação musical de surdos de todas as idades.
Cabe aqui ainda uma explicação sobre alguns dos termos usados nesse trabalho, como
a palavra “surdo”. Para muitos de nós, a palavra reflete preconceito e discriminação, mas os
indivíduos que possuem algum tipo de deficiência auditiva preferem “surdo” a “deficiente”,
por questões culturais e sociológicas, que serão abordadas nos próximos tópicos do texto.
Além disso, falamos de “musicalização”, como o processo de tornar um indivíduo conhecedor
dos conceitos e valores musicais, permitindo o seu envolvimento ativo com o fazer musical.
Não está focado aqui o “virtuosismo”, o desenvolvimento técnico em instrumentos e
habilidades específicas musicais, como regência ou composição.
O surdo e a educação: breve histórico reflexivo e contextualização crítica
“A surdez sempre esteve presente na história da vida humana” (HAGUIARACERVELLINI, 2003, p.29). Embora tenham sido negligenciados pelos registros históricos,
que sempre trazem uma versão e valor vigente, os surdos sempre participaram da construção
da sociedade. Infere-se que a incidência da surdez adquirida3 tenha sido maior nos primeiros
3
Quanto à procedência ou etiologia da surdez, atualmente ela se divide em duas: a surdez hereditária e a surdez
adquirida. A primeira é proveniente de pais ou avós surdos, com problemas auditivos, ou não (é o caso de
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
57
anos da humanidade, uma vez que nos tempos atuais possuímos formas mais avançadas de
diagnóstico e tratamento de enfermidades e distúrbios. Assim também nas primeiras culturas e
sociedades, a surdez era bastante ocorrente, seja por questões hereditárias, muitas delas
causadas por relacionamentos consanguíneos, seja pela precariedade do sistema de saúde e
identificação dos distúrbios e doenças (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
Na antiguidade, o surdo era considerado um ser não-humano (SILVA, 2008) e nãoeducável. Aristóteles acreditava que, uma vez que estes indivíduos eram incapazes de se
comunicar com os ouvintes e entre si, eles eram incapazes de receber qualquer instrução, já
que para aquela sociedade o meio de instrução era a palavra articulada, falada. Nesse período
era comum que tais indivíduos fossem sacrificados em rituais religiosos, abandonados,
vivessem marginalizados, ou simplesmente mortos sem motivos aparentes (HAGUIARACERVELLINI, 2003).
Essa visão do surdo como ser irracional perdurou até a Idade Média, quando os
indivíduos que apresentavam esta deficiência eram privados de direitos civis, sociais e
religiosos. “[O surdo] não tinha direito à herança, sofria restrições religiosas e não podia se
casar, a não ser que obtivesse uma dispensa do papa” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003,
p.30). A situação só começou a mudar a partir do século XVI, com o médico italiano
Girolamo Cardano (1501-1576). Embora nunca tenha se engajado na educação de algum
surdo, ele foi o responsável pelo rompimento com o pensamento de que estes indivíduos eram
ineducáveis. Pai de um filho surdo, Cardano interessou-se por estudar a forma de
comunicação destas pessoas. Para ele, a surdez e a mudez4 não podiam ser impedimento para
a educação. “É um crime não instruir um surdo” (VELOSO; FILHO, 2009 apud PONCHIO,
2009). Cardano defendia que o surdo precisava aprender a ler e escrever, mas que o uso das
palavras faladas não era indispensável para a comunicação efetiva deles.
casamentos consanguíneos, por exemplo), que transmitem à criança alguma característica genética, algum
problema que as impede de ouvir. A segunda ocorre após o nascimento ou durante a gestação, devido a doenças,
distúrbios ou acidentes, onde o indivíduo acaba perdendo a sua audição. Estima-se que de 30 a 50% dos casos de
surdez são hereditários, sendo que 10% das pessoas surdas possuem pais surdos (COLL; MARCHESI;
PALÁCIOS, 2004, apud SILVA, 2008). Mas também é importante observar que em aproximadamente um terço
das pessoas surdas não foi possível identificar a origem da surdez (SILVA, 2008).
4
A mudez é aqui citada a fim de promover uma contextualização histórica. Atualmente, sabe-se que esta
deficiência não possui relação direta com a surdez. O termo surdo-mudo foi equivocadamente utilizado por anos
para definir os surdos, pois se acreditava que, por alguns não serem oralizados, ou seja, não terem aprendido a se
comunicar na língua falada, através de sons articulados, estes indivíduos eram também mudos. A mudez é a
incapacidade, comprovada clinicamente, de emitir sons, uma deficiência na oralização. O surdo somente será
mudo se possuir as duas deficiências distintas, atestadas por especialistas. Assim, muitos surdos podem nunca
emitir sons orais, por não terem sido ensinados ou oralizados, mas não serão mudos por este fato (GESSER,
2009).
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
58
Na Idade Moderna, durante o período das reformas humanísticas como o
Renascimento e a Reforma protestante, a educação geral sofreu mudanças, passando a ser
popular, nos idiomas regionais, e tal fato abriu a possibilidade para que o surdo fosse
educado. Pedro Ponce de León (1510-1584), monge beneditino, é considerado o primeiro
professor de surdos da história e Francisco Velasco, herdeiro do Marquesado de Berlanga5,
filho mais velho da Casa de Tudor, seu primeiro aluno. Este último, graças aos esforços de
León, acabou por aprender a falar e escrever, podendo assim recuperar seus direitos legais à
herança. A partir disso, devido aos interesses econômicos da nobreza, a educação dos surdos
sofreu um grande avanço (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
Outros grandes educadores se dedicaram a educação de surdos em várias regiões do
mundo, fundamentando práticas de ensino que se tornaram marcos importantes na história da
educação. Charles-Michel de L’Epée, um dos grandes nomes a se destacar com esta postura
inovadora, foi responsável pela fundação da primeira escola pública para surdos, em Paris
(1755), o Instituto Nacional de Surdos-Mudos (SILVA, 2008), e por inferir a Língua de Sinais
como a língua natural do surdo (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.32). Embora os surdos
já utilizassem a Língua de Sinais desde a antiguidade, o Oralismo, a “arte de ensinar o surdo a
falar”, como alguns educadores se referiam a ele, era o meio para obter os fins da educação
até então6 (BOTELHO, 1998). Com o trabalho do abade de L’Epée, começa a ganhar
visibilidade uma outra forma de compreender o surdo e sua língua. A sociedade,
gradualmente, passa a perceber o surdo como um indivíduo capaz de adquirir conhecimento,
sem a necessidade da fala. Foi o início da ampla utilização da Língua de Sinais
(HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
Na segunda metade do século XIX, entretanto, há um retrocesso e a Língua de Sinais
passa a ser questionada. O Congresso de Milão (1880) foi responsável por estabelecer o
Método Oralista como o padrão para a educação dos surdos, recriminando o uso da Língua de
5
Durante este período, como na pré-história, era comum ocorrer casamentos e envolvimentos consanguíneos
entre os membros da realeza por interesses econômicos, como a posse de terras. Tais envolvimentos foram
responsáveis por um alto índice de indivíduos surdos por hereditariedade na nobreza (HAGUIARACERVELLINI, 2003).
6
Isto se devia à mentalidade de que só podia ser humano e capaz de se comunicar, o indivíduo que possuía a
capacidade de fala. O índice da incidência da surdez, apesar de variar bastante conforme o passar da história,
sempre foi menor que o índice de pessoas ouvintes. Por serem minoria, entendia-se que os surdos não eram
“normais”, devendo se adequar ao mundo dos ouvintes para gozarem algum de seus direitos. Ou seja: o surdo
precisava saber falar para se comunicar. Por isso que no início da educação para o surdos, os professores
desempenharam grande esforço em ensinar o surdo a falar, sendo esse o principal fim da educação destes
indivíduos naquela época.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
59
Sinais, sob o argumento de que a fala é “incontestavelmente superior” (HAGUIARACERVELLINI, 2003, p.33) aos sinais e que a utilização destes, associado à fala, acabaria
prejudicando o desenvolvimento da fala e da leitura labial, em relação à precisão das ideias
que se poderia expressar. (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.33). Sobre o jogo de poder
que envolve essa questão, Moura et al (1997) afirma:
A supremacia do Oralismo sobre a Língua de Sinais é considerada [...] como uma
forma de dominação em que os surdos, pertencendo a uma classe minoritária, têm de
se submeter aos desejos da maioria ouvinte e igualar-se a estes a qualquer custo.
(MOURA; LODI; HARRISON, 1997 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003,
p.34)
No século XX podemos perceber algumas mudanças. A primeira, favorecendo o
Oralismo, foi representada pelos avanços tecnológicos, que promoveram condições melhores
de diagnóstico e mecanismos de amplificação do som, a serem utilizados pelos indivíduos
surdos que possuam “resíduos auditivos7” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.34). Porém,
a dificuldade em articular o som falado, especialmente para aqueles indivíduos com surdez
pré-linguística, “que não têm lembranças dos parâmetros exatos do som” (SILVA, 2008,
p.13), fez do Oralismo um meio de frustração para os surdos, que acabavam vivendo
marginalizados, em miséria, ou até mesmo considerados mudos e/ou doentes mentais
(SILVA, 2008). Por outro lado, com a eclosão das reformas e revoluções humanísticas, houve
uma crescente preocupação com o respeito aos direitos humanos e a valorização de cada
indivíduo como ser. Neste contexto os surdos passaram a ter seus direitos defendidos e
reivindicados. Nos Estados Unidos, na década de 1980, teve início o movimento conhecido
como Deaf Power (Poder Surdo), que garantiu o “direito a uma língua própria” e reivindicou
o “direito de ser tratado como ‘diferente’, pelo ouvinte, em vez de ‘deficiente’”
(HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.15). Com o fortalecimento do posicionamento da
comunidade surda, desde então, a questão da Língua de Sinais como língua natural do surdo
ganha contornos políticos, manifestos também na esfera da educação.
A educação do surdo hoje é também assunto que gera polêmica dentro da chamada
“educação inclusiva”. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n. 4.024 de 1961, que tratou de
“garantir a matrícula de crianças ‘excepcionais8’ no sistema geral de educação”, com o intuito
7
Resíduo auditivo é todo nível de som que a pessoa surda ainda consegue ouvir.
“Excepcional” era o termo utilizado na Lei. O termo causa polêmica, assim como outros utilizados para definir
os indivíduos incluídos na especificidade da educação especial ao decorrer da história. Atualmente têm sido
utilizadas expressões como “indivíduos com necessidades educacionais especiais” ou “portadores de
necessidades especiais”, mas ainda há bastante discussão quanto à ética na utilização destes também (KASSAR,
2007).
8
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
60
de “integrá-los na comunidade” (KASSAR, 2007, p.47) contempla também o indivíduo surdo,
devido à especificidade de sua condição de comunicação, por conta do seu comprometimento
auditivo. Antes da lei, há relatos de escolas que acolhiam alunos surdos, a fim de permitir sua
participação na sociedade e garantir sua educação, mas apenas em casos isolados pelo país.
Após a LDB, no entanto, essa modalidade de educação (inclusiva) alcança todo o território
brasileiro. O surdo, como todo educando com necessidade educacional especial, passa a ter
direitos perante a lei, podendo, respaldado por ela, interagir e participar ativamente do seu
dia-a-dia, tendo suas diferenças respeitadas. Porém, o que se percebe na realidade educacional
hoje é uma prática inclusiva longe do ideal proposto pelo MEC9 e que acentua a distância
entre surdos e ouvintes, ao invés de amenizá-las (STUMPF, 2008).
Quando pensamos na exigência dos surdos em serem tratados como “diferentes”, ao
invés de “deficientes”, como foi defendido pelo movimento Deaf Power nos Estados Unidos,
entramos em uma discussão que reflete valores sociais e antropológicos, bem como
paradigmas impostos pela sociedade sobre o conceito de “normalidade”. Por muito tempo,
tendo sido tratado apenas como um deficiente, o surdo viveu à margem da sociedade, incapaz
de usufruir do pleno gozo de sua cidadania. Essa visão, como já abordado acima, está
embasada num “discurso da falta”, onde o indivíduo é denominado e categorizado pelo que
não tem. Nessa linha, está inserida a visão clínica (BOTELHO, 1998), pela qual a surdez é
considerada uma patologia a ser tratada. É sob esse mesmo discurso que a educação para os
surdos teve como objetivo esforços no sentido de “normalização”, ou seja, tornar o surdo um
“ouvinte”, compensando seu déficit por meio de um treino sistemático da audição, da fala, da
leitura labial, do uso de próteses, de implantes, de cirurgias, de audiometrias, de exercícios
respiratórios, dentre outros (LULKIN, 1998 apud SKLIAR, 1998).
A “normalidade”, como foi defendida e imposta por vários séculos desde a
antiguidade, passa inevitavelmente por uma concepção de o que é ser humano. Para muitas
sociedades, humano era aquele que detinha os cinco sentidos (audição, visão, olfato, tato, e
paladar) preservados. Assim entendemos porque os surdos foram demasiadamente rejeitados
pela sociedade ouvinte. E mesmo quando a educação surda começa a se estabelecer, o foco
era fazer a pessoa se adequar à realidade ouvinte, como se fosse possível e necessário corrigir
a surdez. É neste sentido que Skliar comenta que “o surdo está obrigado a olhar-se e a narrarse como se fosse ouvinte.” (SKLIAR, 1998, p.15). Os avanços tecnológicos e médicos na área
9
Ministério da Educação (MEC)
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
61
da surdez (aparelhos de surdez, implantes cocleares, etc.) realçam essa concepção que o surdo
é um indivíduo incompleto. De fato lhe falta algo: a audição. Mas só é possível pensar em
uma inclusão, em inseri-lo na sociedade como todo, a partir da correção de seu “problema”?
Tendo em vista este ponto de tensão, entre a realidade fisiológica do surdo e como este
fato interfere em sua visibilidade social, é que se tem buscado uma saída diferente na forma
de enxergar sua representação na sociedade. Numa visão antropológica (BOTELHO, 1998), o
surdo deixa de ser visto pelo seu déficit e passa a ser apenas “diferente”. Ele possui uma
forma de comunicação diferente à dos ouvintes, mas não por isso deixa de ser parte dessa
sociedade. Assim, nesta concepção, os surdos não seriam diferentes unicamente porque não
ouvem, mas porque “desenvolveriam potencialidades psicoculturais diferentes daquelas dos
ouvintes” (ALPENDRE, 2008). Como afirma Wrigley (1996), “a distinção entre surdos e
ouvintes envolve mais que uma questão de audiologia, é uma questão de significado: os
conflitos e diferenças que surgem referem-se a formas de ser” (WRIGLEY, 1996 apud
ALPENDRE, 2008, p.49).
O surdo tem direito a se expressar e ter acesso ao conteúdo curricular pela sua língua,
a Libras, da mesma forma que um ouvinte tem em relação ao português. Ele deve ser
respeitado e valorizado por sua língua, tendo pleno direito ao gozo de seus direitos civis e
acesso à educação, como indivíduo que possui uma forma de comunicação e de se relacionar
diferente à das outras parcelas da sociedade. Ele é um indivíduo de uma comunidade
específica, a comunidade surda, e que convive dentro de uma sociedade geral, com várias
diferenças. O termo “surdo” passa a ser preferido em relação à expressão “deficiente
auditivo”, uma vez que a segunda traz uma grande carga de preconceito e discriminação. Essa
visão condiz mais com a noção que se faz de “educação inclusiva” atualmente: aquela que
deve ser para todos.
Contudo, a realidade das práticas educacionais hoje está longe do ideal. A falta de
estruturas metodológicas e tecnológicas adequadas, de apoio à necessidade do surdo, apenas
tem agravado a distância entre surdos e ouvintes nas salas de aula. O surdo no dia a dia
escolar não é ainda necessariamente visto como uma pessoa de diferença linguística e
cultural. Sobre esta situação, Stumpf afirma:
O que acontece na prática está longe de atender essas indicações [propostas pelo
MEC]. As dinâmicas educacionais da sala de aula e da escola estão focalizadas na
língua oral e na escrita da mesma. O aluno surdo inserido no espaço educacional de
alunos ouvintes, sem suportes adequados, vai tentar se comportar como um deles.
Sua Língua de Sinais aparece pouco e desfigurada, de sua cultura não há sinais.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
62
Como vai esse aluno ter acesso aos conhecimentos se sua questão linguística não
está sendo observada e menos ainda seu pertencimento cultural? Como vai
desenvolver conhecimentos se a escola apenas faz mínimas concessões e em seu
imaginário ainda vê o surdo como deficiente que, por força de lei, está obrigada a
receber? As diretrizes para a educação dos surdos apontadas pelo MEC não
chegaram na maioria das escolas que recebem surdos. Estas dizem não ter
suficientes condições estruturais e o surdo fica mal atendido sem que ninguém se
responsabilize. (STUMPF, 2008, p.24-25)
Estudos comprovam que os surdos aprendem melhor o português escrito em escolas
bilíngues, onde os professores se comunicam tanto pelo português falado quanto pela Libras,
do que em escolas comuns, onde a maioria dos professores não dominam a Língua de Sinais
(CAPOVILLA, 2000). Nesse sentindo, os surdos reivindicam hoje uma educação bilíngue,
onde a Libras seja a língua primária, natural do surdo, e a escrita, a secundária, como forma
de proporcionar uma educação de qualidade a eles. No entanto, ainda são poucas as escolas
que oferecem esta modalidade de ensino, embora grande parte delas já possua alunos surdos.
Levando em conta que a educação, desde os primórdios da sociedade, sempre esteve
muito ligada à política e ao poder, sendo até mesmo um mecanismo de ascensão e alienação
social, cabe-nos alguns questionamentos, diante da realidade em que se encontra a educação
dos surdos hoje: estamos realmente favorecendo que estes indivíduos possam integrar a
sociedade de forma plena, através de uma boa educação? Será que essa falta de melhores
condições de aprendizado não continua apenas a forçá-los a se adequarem ao modo de
aprender e se comunicar dos ouvintes?
O foco desta pesquisa partiu do princípio de uma visão ampla de educação, voltada
para a construção de saberes e desenvolvimento de indivíduos plenos, que sejam autônomos e
autênticos na sua forma de lidar com as situações que lhe são apresentadas no cotidiano.
Assim, compreende-se aqui a educação do surdo como aquela que busca legitimar suas
potencialidades e reconhecer sua cultura.
Os movimentos surdos apontam para a construção de outra história para a sua
educação, uma história que não a da falta. Temos sugerido caminhos e mostrado que
recursos sociais e artefatos culturais podem tornar a surdez aquilo que ela realmente
é: uma diferença a ser respeitada. Os surdos não querem que contem sobre eles
histórias heroicas de superação, querem que seja colocada sua capacidade virtual
para uma educação que não é menos nem mais do que a dos outros, mas é diferente.
(STUMPF, 2008, p.25)
O indivíduo surdo é, portanto, um sujeito com identidade própria, embora não
homogênea, sendo esta totalmente diferente àquela associada apenas à falta do sentido
auditivo. Ele é possuidor de uma cultura própria, que interage com as demais culturas e não
está estática, mas em constante crescimento, construção (GESSER, 2008). É uma cultura
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
63
multifacetada, como a cultura ouvinte. Longe de ser representada apenas pela sua língua, a
comunidade surda é composta por:
[...] Mulheres surdas, negros surdos, índios surdos, surdos de áreas rurais, surdos
homossexuais, surdos cegos, surdos com deficiências mentais, surdos cadeirantes,
ouvintes filhos de pais surdos, e os surdos com diferentes graus de surdez.
(GESSER, 2008, p.298)
Estes representam facetas diferentes de um mesmo grupo cultural. Se queremos uma
educação plena capaz de formar verdadeiros cidadãos, é preciso respeitar as diferenças e as
culturas, proporcionando condições para que todo e qualquer indivíduo tenha acesso a ela.
Uma vez que entendemos como se deu o processo de estabelecimento da educação dos
surdos e quais os valores que subjazem diferentes concepções de “surdo” e “educação”, cabenos agora um breve esclarecimento sobre o papel da música no processo educacional em que
estamos inseridos.
A educação musical e o processo de desenvolvimento do ser humano
Atualmente existem diversas definições para música. Mas, de um modo geral, ela é
considerada ciência e arte, na medida em que as relações entre os elementos
musicais são relações matemáticas e físicas; a arte manifesta-se pela escolha dos
arranjos e combinações. (CHIARELLI; BARRETO, 2005, p.2)
No processo de estabelecimento das diretrizes da educação brasileira, temos nos
deparado com um fato cada vez mais concreto: a inserção, ou retorno, da música à grade
curricular das escolas. Em 18 de agosto de 2008, o então presidente da república Luís Inácio
Lula da Silva sancionou a lei que determina que a música “deverá ser conteúdo obrigatório,
mas não exclusivo, do componente curricular” das instituições de ensino regular (BRASIL,
Lei 11.769, de 18 de agosto de 2008). A lei ainda estipulou o prazo de três anos para que estas
instituições se adequem para atender a exigência. Assim, a educação musical, ou
musicalização, passa a existir dentro dos espaços da escola comum.
A musicalização é o processo em que o indivíduo se apropria dos conceitos e
conhecimentos musicais. É a prática educativa que envolve a transmissão destes conceitos
pelo professor e a assimilação pelo aluno. Segundo Bréscia, ela é:
...um processo de construção do conhecimento, que tem como objetivo despertar e
desenvolver o gosto musical, favorecendo o desenvolvimento da sensibilidade,
criatividade, senso rítmico, do prazer de ouvir música, da imaginação, memória,
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
64
concentração, atenção, auto-disciplina, do respeito ao próximo, da socialização e
afetividade, também contribuindo para uma efetiva consciência corporal e de
movimentação. (BRÉSCIA, 2003 apud CHIARELLI; BARRETO, 2005, p.3)
Sendo assim, a educação musical não se limita ao ensino instrumental ou a outras
modalidades específicas da música, como composição ou regência. A verdadeira educação
musical é aquela que contempla as múltiplas formas de envolvimento com a música.
Swanwick (2003) resumiu as principais formas de envolvimento na música na sigla C (L) A
(S) P (Composition, Literature, Audition, Skill acquisition e Perfomance), sendo as
experiências mais diretas e comuns no ensino musical, a composição (C), a apreciação (A) e a
performance (P)10. As letras entre parênteses (L e S) referem-se, respectivamente, aos estudos
literários, estudos de estilo e estética, estudos bibliográficos, ao aprendizado teórico
necessário para a leitura de notações musicais, etc., e o treino, ou desenvolvimento técnico,
que, segundo o autor, por não se tratarem de uma prática musical efetiva, onde não estamos
fazendo ou ouvindo música de fato, mas ao mesmo tempo comporem o conjunto de atividades
relacionadas à música, merecem atenção do educador musical que deseja proporcionar um
envolvimento amplo de seus alunos com ela (SWANWICK, 2003).
A preocupação em oferecer aos seus alunos esse envolvimento com a música se deve,
em grande parte, ao trabalho de educadores musicais ao passar dos anos, que construíram as
bases do pensamento musical-cognitivo, e também à teoria de Gardner (1995), sobre as
“inteligências múltiplas”. Segundo conclusões que chegou a partir de sua pesquisa, o ser
humano é formado por uma inteligência multifacetada, que se organiza em sete áreas
distintas. E essas inteligências seriam natas ao ser humano:
Eu considero as inteligências como potenciais puros, biológicos, que podem ser
vistos numa forma pura somente nos indivíduos que são, no sentido técnico,
excêntricos. Em quase todas as pessoas, as inteligências funcionam juntas para
resolver problemas, para produzir vários tipos de estados finais culturais –
ocupações, passatempos e assim por diante. (GARDNER, 1995, p.15-16)
Dentre as sete inteligências observadas pela equipe de Gardner, existe a denominada
“inteligência musical”. Para o autor, existe uma independência desta inteligência em relação
às demais áreas e, por isso, é justificável ressaltá-la e evidenciá-la. Sendo assim, todo
indivíduo, que possua suas capacidades cognitivas preservadas11, possui biologicamente
10
A composição envolve atividades de criação e improvisação musical bem como a criação de arranjos para
músicas já prontas. A apreciação é o “ouvir atento”, a audição de trechos e peças musicais com
comprometimento e engajamento, de modo a explorar e conhecer o máximo que se pode apreender da obra. Já a
performance diz respeito à reprodução feita por alguém de alguma obra de outro compositor.
11
Gardner se refere aqui especificamente a pessoas que não possuam danos cerebrais, tais como pacientes que
sofreram derrame ou algum tipo de lobotomia. Ele observa que, nestes casos, o indivíduo pode perder alguma
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
65
também uma capacidade musical, uma pré-disposição a se envolver e se expressar através da
música12 (GARDNER, 1995, p.22-23). Sendo assim, ao oferecermos oportunidades para que
os alunos se envolvam com o universo musical, estamos na verdade favorecendo que eles
desenvolvam suas capacidades cognitivas plenamente, em sua diversidade.
O surdo e a música: estigma e superação
Como foi exposto na primeira seção deste tópico, por muito tempo o surdo encarou
grandes barreiras impostas pela sociedade quanto ao que ele é ou deixa de ser e quanto ao que
pode ou não fazer. O conceito de normalidade, como dito anteriormente, perpassa pela
compreensão histórica, social e biológica de “ser humano”. Vivemos e criamos a nossa
definição do normal, baseados na coletividade, na maioria, ou no ideal construído, no objetivo
a ser alcançado. Consequentemente, aquela minoria diferente e que não atende ao esperado
acaba por receber um “estigma”. O estigma, de acordo com HAGUIARA-CERVELLINI
(2003) é “um atributo profundamente depreciativo que atinge um e confirma a normalidade
do outro” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.59).
Este termo deriva da Grécia Antiga, e era usado pelos gregos se referindo a sinais
corporais que indicavam alguma característica negativa ou diferente na condição moral de um
indivíduo. Estes sinais em geral eram cortes e marcas de fogo, que indicavam que aquela
pessoa era um escravo ou um criminoso e deveria ser evitada (HAGUIARA-CERVELLINI,
2003, p.59). Atualmente, o termo “estigma” é normalmente usado para indicar desordens e
problemas que podem acometer o ser humano: físicos, mentais, morais, etc. Servem, portanto,
para ressaltar que, de alguma forma, alguns indivíduos “não preenchem as expectativas” que
se fazem deles, no que diz respeito à condição estabelecida como natural (HAGUIARACERVELLINI, 2003, p.59). O surdo pode assim ser categorizado pela sociedade, que o vê
como deficiente, devido à falta da audição e de sua dificuldade em se comunicar com os
capacidade relacionada a alguma das inteligências, ou mesmo a maioria, ao passo que outras são preservadas,
isoladamente. Sendo assim, todo indivíduo que não tenha sofrido este tipo de dano possuiu todas as inteligências
e pode desenvolvê-las (GARDNER, 1995, p.14). Como a grande maioria dos casos de surdez não envolve perda
ou dano cerebral, os indivíduos surdos podem ser educados em todas as inteligências.
12
O chamado “talento” ou “dom” musical, que algumas pessoas em particular parecem demonstrar é explicado
pelo autor como uma pré-disposição biológica daquele indivíduo para aquela tarefa. Todos os indivíduos
possuem capacidade para a música, mas alguns em especial, seja por nascimento (genética) ou por criação, já se
encontram preparados para se envolverem e responderem à situação musical mesmo antes de serem instruídos
àquele respeito. O autor também demonstra que tal fato ocorre com todas as demais inteligências (GARDNER,
1995).
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
66
demais ouvintes. Ele não atende ao padrão de normalidade estipulado pela sociedade e é, por
tanto, um sujeito estigmatizado.
O estigmatizado é visto como alguém que não é “completamente humano”. Em face
disso, ele é, então, discriminado. Não se veem suas possibilidades de ser-no-mundo,
de estar em relação e de ser livre. Ele não é visto com respeito, nem com
consideração (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.60).
Sob a ótica do estigma, o surdo foi, por muito tempo, também privado do contato com
a música e com a sua própria musicalidade. Por ter a audição comprometida, a sociedade
pressupôs que o surdo nunca poderia entender, fazer e, quanto mais, “ouvir”13 música, e
deixou de proporcionar a estes indivíduos grandes possibilidades de se expressar, explorar e
descobrir o mundo, através dos sons e da música. Como sujeitos estigmatizados, os surdos só
seriam aceitos na sociedade se superassem o “defeito estigmatizante” (HAGUIARACERVELLINI, 2003, p.60) e, pensando musicalmente, precisariam aprender e conseguir
ouvir para poder desfrutar dela. A partir disso que se levanta a seguinte questão: como pode o
surdo ouvir música?
Haguiara-Cervellini (2003) destaca que são dois os meios básicos através dos quais o
surdo pode ter acesso à música: através de aparelhos auditivos amplificadores de som e
através da sua própria percepção corporal. No primeiro caso, aproveitam-se os resíduos
auditivos da pessoa surda e por meio de tecnologias, aumenta-se a intensidade do som que
chega aos ouvidos dos surdos, facilitando a compreensão, ainda que vaga, dependendo de
cada caso, do que se ouviu.
Vários procedimentos têm sido criados a fim de restaurar a audição do surdo ou, ao
menos, minimizar a perda auditiva. Implantes cocleares, aparelhos auditivos mais potentes e
eficazes são apenas alguns dos exemplos de recursos utilizados atualmente. Mas o que se
busca aqui é a conscientização acerca da necessidade da elaboração de uma prática musical
condizente com a realidade dele, que não negue sua diferença e que seja tão significativa e
eficaz quanto às demais práticas dos ouvintes. Não se pretende, no entanto, julgar aqueles que
optam pela escolha deste tipo de procedimento, até porque a escolha deles não determina
necessariamente uma concepção patológica de surdez.
Sendo assim, devemos analisar a percepção corporal como método que mais concorda
com as possibilidades do surdo, de acordo com esta pesquisa. Esta percepção ocorre através
13
A expressão “ouvir” foi aqui apresentada entre aspas, pois o termo será abordado e questionado no decorrer
deste tópico.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
67
da pele e dos ossos. As vibrações chegam ao indivíduo através do contato com objetos, ou até
mesmo pelo ar, e são percebidas primeiramente pela pele. Haguiara-Cervellini (2003) afirma
que é possível viver sem os órgãos responsáveis pelos sentidos da audição, olfato, visão e
paladar, mas não existe vida humana sem a pele. Os sons são percebidos por toda a extensão
pericorpal do indivíduo. Sendo assim, o surdo de fato escuta através do tato, o que possibilita
a expressão de sua musicalidade.
Glennie (2008), citada por Finck (2009) estabelece diferenças significativas entre o
processo de “ouvir” e o de “escutar” um som. Para ela, o ser ouvinte faz uso dos sentidos de
audição, visão e tato para escutar, ao passo que o ato de ouvir engloba apenas o processo
orgânico exercido pelo aparelho auditivo (FINCK, 2009). O surdo, então, faria uso dos dois
sentidos que possui, tato e visão, para de fato escutar o som reproduzido. Dessa forma, a
autora estabelece novas possibilidades e experiências sonoras.
Ouvir é basicamente uma forma especializada de toque. O som é, simplesmente, o ar
vibrando que o ouvido colhe e converte em sinais elétricos e que, então, são
interpretados pelo cérebro. A sensação do ouvir não é o único sentido que pode fazer
isto, o toque pode fazer isto demasiado. Se você estiver em uma estrada e um
caminhão grande passar por perto, você ouve ou sente a vibração? A resposta é
ambos. Com a vibração de frequências muito graves o ouvido começa a se
transformar ineficiente e o resto do sentido de toque do corpo começa a dominar.
Por alguma razão nós tendemos a fazer uma distinção entre ouvir um som e o sentir
uma vibração, que na realidade são a mesma coisa. É interessante notar que na
língua italiana esta distinção não existe. O verbo “sentire” significa ouvir e o mesmo
verbo na forma reflexiva “sentirsi” significa sentir. A surdez não significa que você
não pode ouvir, apenas que há algo de errado com o ouvido. Mesmo alguém que é
totalmente surdo pode ainda ouvir/sentir sons. (GLENNIE, 2008 apud FINCK,
2009, p.60-61)
Estabelece-se ainda outro sentido, além do tato, essencial para a escuta significativa: a
visão (FINCK, 2009). O processo de interpretação dos estímulos elétricos captados pelo corpo
remete-nos a imagens arquivadas em nossa memória. Como músico, Sacks (2007) trabalha a
forte relação existente entre a imagem e o som, ressaltando a importância da visão para o
processo de significação e apreensão, ou armazenamento, da informação sonora.
Vejo meu quarto e minha mobília todos os dias, mas eles não me reaparecem como
“imagens na mente”. Tampouco ouço cães imaginários latindo nem o barulho do
trânsito em segundo plano na minha mente, não sinto aromas de comidas
imaginárias sendo preparadas, apesar de ficar exposto a tais percepções todos os
dias. Tenho fragmentos de poemas e frases que me brotam de súbito na mente,
porém nada parecido com a riqueza e a variação das minhas imagens mentais
musicais espontâneas. Talvez não seja só o sistema nervoso, mas a própria música
que contém algo muito singular – seu ritmo, seus contornos melódicos, tão
diferentes dos da fala – e sua ligação singularmente direta às emoções. (SACKS,
2007, p.50)
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
68
Assim, segundo o autor, o menor estímulo visual é capaz de desencadear a música ou
a sonoridade associada àquela situação. Finck (2009) concorda com a importância do visual
para a educação musical, especialmente para o surdo. O movimento dos objetos, como a pele
de um tambor vibrando ou a movimentação das folhas de uma árvore por causa do vento, são
capazes de evocar em nossa mente uma sonoridade que corresponda àquela situação
presenciada visualmente (FINCK, 2009). Sendo assim, por processo inverso, a apreensão e
compreensão do som se dá pela cooperação dos sentidos, e não apenas pela audição. No que
diz respeito à educação do surdo, esse conceito se faz extremamente importante, pois, devido
à perda auditiva, ele deve fazer uso destes outros sentidos a fim de escutar algo. Pode-se
proporcionar maior significado e sentido à música e à educação musical para o surdo, quando
estas se mostram acompanhadas de imagens. Estas imagens auxiliam o surdo a entender que a
“música provoca emoções nos ouvintes”, e elas podem ser entendidas e experimentadas
também por eles (SÁ, 2007 apud FINCK, 2009, p.103). Tudo o que é visual e tátil é de
extrema importância, e deve ser explorado durante sua educação (CAMPELLO, 2007).
Abordando a escuta musical sobre esse aspecto, da interação e utilização de sentidos
diferentes, Glennie (2008 apud FINCK, 2009), percussionista, surda bilateral profunda desde
os doze anos de idade (TOUCH, 2004), defende sua própria capacidade de escutar os sons,
afirmando que “não poderia ser musicista se não fosse capaz de escutar” (FINCK, 2009,
p.61). Para ela, as formas de escutar variam de pessoa para pessoa, sendo que alguns sentidos
acabam se tornando mais importantes que outros, conforme variem as especificidades
biológicas, emocionais ou cognitivas das pessoas (GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009,
p.61).
Além das possibilidades delimitadas pela correlação entre a visão e o tato, há a
possibilidade de explorar os resíduos auditivos dos surdos, aliando-os à sensação tátil. Para
tanto, os sons e músicas utilizados nas aulas de música, bem como os aparelhos reprodutores
das mídias devem ser preparados com antecedência para se adequarem à demanda destes
alunos. Aparelhos de som de baixa qualidade ou que não foram projetados e construídos para
tal finalidade, bem como a escolha de um repertório que prejudique a exploração deste
fenômeno, comprometem o entendimento e a percepção deles. Geralmente as músicas são
reproduzidas em intensidades muito fortes e em ambientes onde a acústica favoreça a
propagação do som, como em salas de assoalho de madeira14, onde os alunos possam ficar
14
A escolha dos materiais de que são feitos os objetos e mesmo as estruturas (piso, paredes e teto) do ambiente
onde ocorrem as aulas deve ser cuidadosa, pois cada material possui características de absorção, propagação e
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
69
descalços. Assim, a propagação das vibrações do som é mais bem percebida pelos alunos,
mesmo aqueles indivíduos com surdez profunda15 (FINCK, 2009). Tudo isso conflui para que
o surdo tenha suas capacidades musicais exploradas e exercitadas. Contudo, como
questionado por Haguiara-Cervellini (2003), será que a sociedade faz uma imagem do surdo
como um sujeito com potencialidades musicais?
A pesquisadora observou e estudou o envolvimento de quatro indivíduos surdos com a
música, bem como a atuação de seus familiares em todo o processo de crescimento e
educação destes. Todos tiveram contato com a música quando ainda jovens, seja por causa de
parentes músicos ou para desenvolver e melhorar a oralidade destes. O que a autora percebeu
é que, nos casos onde a música era utilizada como ferramenta para promover a
“normalização” do surdo, ou seja, torná-lo um “ouvinte-falante” (HAGUIARACERVELLINI, 2003, p.189), superando sua deficiência, os indivíduos acabavam por rejeitar e
desprezar a música, assumindo a posição de que ela não fazia parte de seu universo. Já nos
casos onde ela era encarada como fonte de prazer e expressão, seja através da exploração da
própria musicalidade, seja através da dança, e não como forma de adequação à realidade
ouvinte, os surdos passaram a demonstrar um envolvimento interessado e ativo com o fazer
musical. As duas visões, no entanto se basearam na concepção de que o surdo possui
capacidade de se expressar musicalmente e de entender a música, ainda que não possa ouvi-la
com os ouvidos. Ainda hoje essa concepção não é encontrada em grande parte das pessoas
que convivem ou se responsabilizam pela educação dos surdos e que eles próprios, muitas
vezes, não enxergam a si mesmos como seres musicais, devido à falta da audição ou de uma
educação musical que lhe faça sentido (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003). Neste sentido, a
pesquisadora defende a potencialidade de todo indivíduo, seja deficiente ou não, de viver e
expressar sua musicalidade:
Expressar a própria musicalidade em sintonia com a música interna ou externa é
uma possibilidade do homem. Aqui a audição tem um valioso papel. No entanto,
enquanto função íntegra, não se pode afirmar que seja condição sine qua non para
que a manifestação da musicalidade possa ocorrer. (HAGUIARA-CERVELLINI,
2003, p.79)
A musicalidade é uma experiência humana. Não é atributo exclusivo de indivíduos
com talento ou boa percepção auditiva, mas reflete o fluxo interno com que o indivíduo se
reflexão das ondas sonoras diferente. Além disso, estes materiais também reagem diferentemente à ondas de
frequências diferentes (mais graves ou agudas), o que deve ser explorado pelo professor durante as aulas.
15
Beethoven, à medida que sua surdez progredia, passou a ouvir as frequências através das vibrações do piano,
encostando seus ouvidos nele.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
70
relaciona com estímulos externos. Essas relações produzem reações de ordem emocional e
cinética em sua natureza expressiva, como por exemplo, a associação intrínseca que existe
entre o movimento corporal e o movimento sonoro. E estas manifestações são observadas
também em pessoas surdas, o que evidencia a musicalidade presente nelas.
Para fundamentar este ponto de vista há que citar a experiência de alguns indivíduos
surdos com a música como evidência de que é possível ao surdo aprender, entender e fazer
música. O primeiro dos casos assinalados pelo autor é o de Helen Keller, que se tornou surdocega logo ainda nos primeiros anos de vida, antes de adquirir linguagem. A jovem Helen, que
por muito tempo viveu em um mundo de escuridão e silêncio, aprendeu com esforço a se
comunicar e a se relacionar com o mundo, o que a tornou insaciável na busca por todo tipo de
conhecimento que pudesse alcançar ao seu redor (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.18).
Tratou, portanto, de buscar experiências com a música, desenvolvendo e aprimorando o tato,
uma vez que não dispunha nem da audição, nem da visão para ajuda-la como canais sensórios
de escuta. Esse processo foi tal que Nella Braddy afirma no prefácio do livro “Minha vida de
mulher”, de Helen Keller:
Sua capacidade de apreciar a música tem sido largamente discutida. Ela tem
“ouvido” com os dedos, piano, violino, tendo-se mesmo projetado vários aparelhos
para fazê-la apreciar também a orquestra. Ela já conseguiu “ouvir” rádio, pondo os
dedos de leve num tampo de ressonância feito de balsa wood. Chega a distinguir
quando é o locutor que fala ou quando é música. Chega mesmo a conhecer certa
estação pela maneira muito destacada com que o locutor anuncia o prefixo da
emissora. Sabe quando é solo ou conjunto instrumental, chegando, por vezes, a
determinar que instrumentos atuam no conjunto. Às vezes, confunde o violino com o
canto, o violoncelo com a viola; mas nunca se engana no ritmo nem no gênero da
composição, mesmo quando se procura atrapalhá-la. (KELLER, 1929, apud
HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.20)
No mesmo livro, Keller (1929 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003) demonstra o
seu conhecimento musical, fazendo referências e inferências a estilos e gostos, tal qual muitos
ouvintes não são capazes de expressar. Nestas citações, a jovem demonstra que nem a falta da
audição ou a falta da visão constituíram impedimento para o desenvolvimento de suas
capacidades.
[...] Em Denver, numa das excursões do teatro de variedades, o violinista Heifetz
tocou para mim. Pousei os dedos, de leve, no violino. A princípio, o arco de moveu
lentamente sobre as cordas, como se o mestre estivesse interrogando o Espírito da
Música sobre o que deveria tocar para essa criatura que não podia ouvi-lo. O arco
entrou a agitar-se: do instrumento sensível, começou a vir um trêmulo murmúrio
distante. Seria imitação de asas de passarinhos? As notas delicadas vinham pousarme nos dedos como felpas de sementes de cardo. Tocavam-me nos cabelos e no
rosto como beijos. Eram fluídicas e transitórias como os sorrisos, como o suspiro do
vento ao entardecer, ou o sopro da brisa nas róseas alvoradas. Seriam pétalas de
rosas caídas de mãos de fadas, ou mudos desejos do coração?
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
71
Há uma mudança no estilo. O arco eleva-se às alturas radiosas. A melodia sobe
como as cotovias de Shelley, varando os espaços, desafiando a imensidade, com as
asas e com o canto. A gente fica triste, sem saber por quê. O canto é alegre; mas a
gente sente a solidão daquele pequenino pássaro isolado na vastidão da abóbada
luminosa, único ser vivo no momento no universo, apesar de tão minúsculo. Lá vai
ele como eco do pensamento, oração fervorosa de fé inquebrantável nas coisas
invisíveis.
Penso que foi a Canção do Luar de Schumann que Heifetz tocou. [...] (KELLER,
1929 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.23)
Fica evidenciado aqui, portanto, a potencialidade musical de alguém que foi privado
dos sentidos da audição e da visão, mas não permitiu que este fato a limitasse.
O segundo caso, que já foi citado anteriormente, é da percussionista Evelyn Glennie.
Ela ficou surda após a aquisição da língua vocalizada falada, mas o seu interesse pela
percussão surgiu após a surdez, na escola onde estudou (TOUCH, 2004). Antes desse fato, ela
havia frequentado aulas de piano, que lhe foram bastante prazerosas. Após o diagnóstico de
surdez, o médico tratou de estigmatizá-la, afirmando que não poderia mais se envolver com a
música e que deveria frequentar escolas especiais, além de estabelecer uma lista atividades
que poderia ou não poderia fazer. Tal fato causou-lhe muito impacto, não pela descoberta da
surdez, mas pelas proibições que lhe foram impostas pelo médico. Seu pai, contudo, tratou de
tranquiliza-la, pois nada mudaria em relação às coisas que fazia antes. Ela poderia fazer tudo
o que quisesse, nada seria diferente (TOUCH, 2004).
Na escola onde fez o ensino colegial, ela aprendeu a ouvir com o corpo,
desenvolvendo sua sensibilidade quanto a diferenças de altura, intensidade, timbres (TOUCH,
2004).
Eu gastei muito tempo em minha juventude (com a ajuda de meu professor de
percussão na escola Ron Forbes) para refinar minha habilidade de detectar
vibrações. Eu colocava minhas mãos de encontro à parede da sala de aula enquanto
Ron tocava notas no tímpano (o tímpano produz muitas vibrações). Eventualmente,
eu consegui distinguir o conjunto bruto das notas, associando onde em meu corpo eu
sentia o som com a sensação perfeita que eu tinha antes de perder minha audição. Os
sons graves eu sinto principalmente em minhas pernas e pés e sons agudos podem
ser sentidos em partes particulares da minha face, pescoço e caixa toráxica.
(GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009, p.178)
Em sua prática musical, Glennie demonstra extrema sensibilidade e compreensão
musical durante suas performances e criações (TOUCH, 2004). Atualmente ela é convidada a
fazer palestras e apresentações musicais pelo mundo e tem trabalhado em gravações de
músicas, auxiliando inclusive em trilhas sonoras de filmes16.
16
Informações retiradas do site oficial de Evelyn Glennie: http://www.evelyn.co.uk/. Acesso em: 16 nov. 2011.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
72
Estes dois exemplos, associados às pesquisas e práticas educativas realizadas por
Haguiara-Cervelline (2003), Finck (2009) e Silva (2008), consolidam o ponto de vista
defendido por esta pesquisa, de que o aluno surdo pode usufruir da experiência musical de
forma significativa, desde que sejam consideradas e respeitadas as especificidades que a
educação destes indivíduos oferece. Isso dá significado ao desenvolvimento de práticas
educativas que são elaboradas a partir da particularidade de cada aluno e também do grupo,
sejam de ouvintes, sejam de surdos. O que nos distancia de tomar a musicalidade e seu ensino
do sentido de uma superação da surdez, algo que assemelharia a um ouvitismo, mas como
uma forma diferente de experimentar o som, a música, cuja qual, apenas cada ser humano, por
si só, pode relatar o que é.
Considerações finais
A política educacional em que o Brasil se insere atualmente busca atender dois
parâmetros recentes. O primeiro deles diz respeito à inclusão de alunos com necessidades
educacionais especiais no convívio da escola comum, regular. O segundo se refere ao retorno
da educação musical como componente curricular das escolas de educação regular do país.
Estas duas situações, que inevitavelmente se encontrarão, apresentam os desafios que os
educadores musicais terão de enfrentar, em prol do pleno funcionamento da Lei.
Durante a pesquisa dos materiais e das informações colhidas, uma inquietação se fez
presente e mostrou-se séria. A análise das referências utilizadas nesta pesquisa, dos relatos de
outros pesquisadores e da avaliação do autor sobre o contexto educacional contemporâneo,
pode indicar que os atuais e iminentes educadores musicais podem não se encontrar
totalmente preparados para oferecer a educação musical que alunos surdos necessitam. E esta
realidade, observada principalmente por Finck (2009), estende-se também a professores de
outras disciplinas. O quadro é de falta de preparo, seja pela falta de recursos, ou por falta de
conhecimento, para atender a solicitação e proposta da educação inclusiva no país, ou,
principalmente, pela falta de entendimento sobre a possibilidade de se oferecer música e
educação musical também a alunos surdos, como foi o foco adotado neste trabalho.
Isto tem contribuído para que cada vez mais os surdos se distanciem das práticas
musicais. Como observado por Sá (2008), a falta de adaptação dos conteúdos musicais para a
realidade do surdo acaba tornando a música um fator “normalizador”, onde os ouvintes
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
73
insistem que os surdos entendam e reproduzam as informações musicais da forma como eles
entendem. E, pela falta de sentido, essas experiências acabam se tornando traumáticas e
passam a ser evitadas por eles. E no ambiente da escola, onde a educação musical agora volta
a ter espaço pela Lei 11.769, este fato se torna ainda mais grave, pois estes alunos
possivelmente acabarão excluídos das aulas de música. A educação musical dos surdos nas
escolas é muito importante, pois pode ser este o único lugar onde a maioria dos surdos terá
contato com este tipo de educação por toda a sua vida (GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009).
Além disso, torna-se incoerente não musicalizar o surdo, sabendo que este possui
musicalidade e vive em um mundo atravessado por sons e músicas. Diferente do que se
imaginou por muito tempo, a música está presente em muitos eventos e festas frequentados
por surdos, como por exemplo, a Balada Vibração da Alma, que ocorre uma vez por ano e
reúne grande número de surdos no Brasil (YOUTUBE, 2011).
Ao início da pesquisa, haviam apenas questionamentos e hipóteses sobre a realidade
da musicalização para surdos, e, ao longo do processo, algumas destas perguntas e inferências
foram se confirmando, enquanto outras foram negadas. De forma alguma, intentou-se com
esta pesquisa esgotar-se as possibilidades, ou determinar metodologias rígidas, irrevogáveis,
para a educação dos surdos, mas procurou-se abrir novos horizontes para reflexão dos
profissionais da educação musical e proporcionar a conscientização dos atuais educadores
sobre o nosso dever para com uma educação inclusiva ética e efetiva.
Ficaram evidenciadas aqui algumas das capacidades que permitem ao surdo entender e
fazer música. Estas possibilidades não estão disponíveis apenas aos surdos, mas a todo e
qualquer indivíduo. As abordagens demonstradas nesta pesquisa, sob a contribuição de vários
pesquisadores, têm como desejo transformar a concepção que alguns ouvintes e surdos
possam ter a respeito da música, possibilitando uma abertura que proporcione experiências
significativas e profundas, em contextos cada vez mais diversificados.
A música, como experiência inerente a cada ser humano pode se manifestar e ser
entendida de diversas formas. Cabe-nos, como educadores, buscar oferecer a diversidade aos
nossos alunos, permitindo que a experiência musical seja significativa ao maior número de
pessoas, não importando a existência de qualquer diferença. Esta diversidade corrobora para
que todos os indivíduos experimentem a música de formas cada vez mais inovadoras. Como
GLENNIE defende (2008 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003), escutar é muito mais do
que perceber o som através de nossa audição, mas é um processo que envolve todo o corpo e
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
74
seus sentidos. Como ouvintes, podemos também usufruir de uma escuta significativa, à
medida que nos abrimos a novos conhecimentos e eliminamos preconceitos. Podemos
experimentar a música através do toque, associado ou não à visão, e perceber novas
dimensões sobre a sua vastidão. Através da musicalização, podemos integrar e ampliar o
nosso conhecimento, maximizando as nossas potencialidades.
Como educadores musicais, cabe-nos o papel de permitir que nossos alunos
descubram e façam o seu próprio conceito do que é a música, algo que lhe seja próprio,
carregado de sentido, ao invés de determinar e limitar o alcance e potencial deles. A música é
uma experiência demasiadamente ampla, para ser definida apenas naquilo que é ou deixa de
ser. Também não podemos perpetuar a estigmatização do surdo ou de qualquer outra pessoa
com deficiência, estabelecendo por eles o que podem ou não fazer. Precisamos permitir que
todo indivíduo vivencie a música e construa seu próprio significado, pois não existe um
conceito fechado. O que a música é para alguém, somente ele mesmo pode definir.
Referências
ALPENDRE, Elizabeth Vidolin. Concepções sobre Surdez e Linguagem e o Aprendizado
de Leitura. PDE. Curitiba, 2008.
BRASIL. Lei no. 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino
da música na educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, ano CXLV, n. 159, seção 1,
p.1, 19 ago. 2008.
BOTELHO, Paula. Segredos e silêncios na educação dos surdos. Belo Horizonte:
Autêntica, 1998, p.20-22.
BRÉSCIA, Vera Lúcia Pessagno. Educação Musical: bases psicológicas e ação preventiva.
São Paulo: Átomo, 2003. In: CHIARELLI, Lígia Karina Meneghetti; BARRETO, Sidirley de
Jesus. A Importância da Musicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental:
A música como meio de desenvolver a inteligência e a integração do ser. Disponível em:
<http://www.iacat.com/revista/recrearte/recrearte03/musicoterapia.htm>. Acesso em: 06 dez.
2011.
CAMPELLO, Ana Regina e Souza. Pedagogia Visual/Sinal na Educação dos Surdos. In:
QUADROS, Ronice Müller de; PERLIN, Gladis. Estudos Surdos II. Petrópolis: Arara Azul,
2007.
CAPOVILLA, Fernando César. Filosofias educacionais em relação ao surdo: Do oralismo à
comunicação total ao bilingüismo. In: Revista Brasileira de Educação Especial, ed. 6, 2000,
p.99-116.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
75
CHIARELLI, Lígia Karina Meneghetti; BARRETO, Sidirley de Jesus. A Importância da
Musicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental: A música como meio de
desenvolver a inteligência e a integração do ser. Disponível em:
<http://www.iacat.com/revista/recrearte/recrearte03/musicoterapia.htm>. Acesso em: 06 dez.
2011.
COLL, César; MARCHESI, Álvaro; PALACIOS, Jesús. Desenvolvimento psicológico e
educação. Trad.: Fátima Murad. 2ª ed . Porto Alegre: Artmed, 2004. In: SILVA, Cristina
Soares da. Atividades Musicais para Surdos: Uma experiência na Escola Municipal Rosa do
Povo. (Licenciatura Plena em Educação Artística - Habilitação: Música) - Instituto VillaLobos, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2008.
FINCK, Regina. Ensinando música ao aluno surdo: perspectivas para a ação pedagógica
inclusiva. Pós Graduação (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2009.
GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Howard Gardner; tradução
de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
GESSER, Audrei. Do patológico ao cultural na surdez: para além de um e de outro ou para
uma reflexão crítica dos paradigmas. In: QUADROS, Ronice Müller de; STUMPF, Marianne
Rossi. Estudos Surdos IV. Petrópolis: Arara Azul, 2009.
GLENNIE, Evelyn. The Hearing Essay. 2008. Texto [on line]. Disponível em:
<http://www.evelyn.co.uk/>. Acesso em: 16 nov. 2011. In: FINCK, Regina. Ensinando
música ao aluno surdo: perspectivas para a ação pedagógica inclusiva. Pós Graduação
(Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
GRANJA, Carlos Eduardo de Souza Campos. Musicalizando a escola: música,
conhecimento e educação. São Paulo: Escrituras, 2006.
HAGUIARA-CERVELLINI, Nadir. A Musicalidade do surdo: representação e estigma. São
Paulo: Plexus Editora, 2003.
KASSAR, Mônica de Carvalho Magalhães. Matrículas de Crianças com Necessidades
Educacionais Especiais na Rede de Ensino Regular: do que e de quem se fala? In: GÓES,
Maria Cecília Rafael de; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Políticas e práticas de
educação inclusiva. 2. Ed. Campinas: Autores Associados, 2007.
KELLER, Helen. Minha vida de mulher. 1929. Tradução: Espinola Veiga. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio, 1940. In: HAGUIARA-CERVELLINI, Nadir. A Musicalidade do
surdo: representação e estigma. São Paulo: Plexus Editora, 2003.
LULKIN, Sérgio Andrés. O discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle
do corpo e a expressão cultural amordaçada. In: SKLIAR, Carlos. A Surdez: um olhar sobre
as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998.
MOURA, Maria Cecília de ; LODI, Ana Cláudia ; HARRISON, Kathryn. História e
educação: o surdo, a oralidade e o uso de sinais. In: FILHO, Otacílio Lopes. (Org.). Tratado
de Fonoaudiologia. 2ª ed. Ribeirão Preto: Tecmedd, 2005, v. , p.341-364. In: HAGUIARAo
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
76
CERVELLINI, Nadir. A Musicalidade do surdo: representação e estigma. São Paulo:
Plexus Editora, 2003.
SÁ, Nídia Regina Limeira de. Os Surdos, a Música e a Educação, 2007. Texto [on line]
publicado no Espaço Universitário de Estudos Surdos. Disponível na internet em:
<http://www.eusurdo.ufba.br/>. Acesso em 20 de Agosto de 2007. In: FINCK, Regina.
Ensinando música ao aluno surdo: perspectivas para a ação pedagógica inclusiva. Pós
Graduação (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
SÁ, Nídia Regina Limeira de. Os Surdos, a Música e a Educação. Anais do IV Encontro da
ABEM Norte, Manaus: UFAM, 2008.
SACKS, Oliver. Música no Cérebro: Imagens mentais e imaginação. In: SACKS, Oliver.
Alucinações musicais: Relatos sobre a música e o cérebro. Tradução: MOTTA, Laura
Teixeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p 41 – 50.
SILVA, Cristina Soares da. Atividades Musicais para Surdos: Uma experiência na Escola
Municipal Rosa do Povo. (Licenciatura Plena em Educação Artística - Habilitação: Música) Instituto Villa-Lobos, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, 2008.
SKLIAR, Carlos. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação,
1998.
STUMPF, Marianne Rossi. Mudanças Estruturais para uma Inclusão Ética. In: QUADROS,
Ronice Müller de. Estudos Surdos III. Petrópolis: Arara Azul, 2008.
SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e
Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.
TOUCH the Sound: A Sound Journey with Evelyn Glennie. Direção: Thomas Riedelsheimer.
Produção: Filmquadrat, Munich; Skyline, Edinburgh. 2004. 1 DVD (99 min.): color.,
legendado em inglês.
VELOSO, Éden; FILHO, Valdeci Maia. Aprenda libras com eficiência e rapidez. Curitiba:
Autores Paranaenses, 2009. In: PONCHIO, Débora Escudeiro. A educação do surdo e a
Língua Brasileira de Sinais. In: ZATTAR, Neuza. Coletânea Nossos Escritos. Cáceres, 2009.
WRIGLEY, Owen. The politics of deafness. Washington: Gallaudet University Press, 1996.
In: ALPENDRE, Elizabeth Vidolin. Concepções sobre Surdez e Linguagem e o
Aprendizado de Leitura. PDE. Curitiba, 2008.
YOUTUBE. Vibração da Alma Surdos. Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=8nzmucohJMw>. Acesso em: 20 dez. 2011.
o
Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, n 2, jul/dez 2014.
Download