Crises e hecatombes José Luís Fiori No início da década de 1970, o economista norte-americano, Charles Kindelberger, formulou uma teoria que exerceu grande influência acadêmica e política, dentro e fora dos Estados Unidos. Segundo Kindelberger, "a economia mundial liberal precisa de um país estabilizador e só um país estabilizador" (Kindelberger, C. (1973) The World in Depression, University of California Press, Berkeley, p: 304). Um país que forneça aos demais, alguns "bens públicos" indispensáveis ao bom funcionamento da economia internacional, como a moeda, o livre-comércio, e a coordenação das políticas econômicas nacionais. O mundo estava vivendo a crise final do Sistema de Bretton Woods, e estava assistindo a derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. E Charles Kindelberger estava preocupado com a possibilidade de uma nova grande crise e depressão que fosse provocada como nos anos 30, pela falta de uma "liderança mundial". Durante as décadas seguintes, esta "teoria da estabilidade hegemônica" se transformou no denominador comum de um grande debate sobre as "crises" e as "transições" hegemônicas na história do sistema mundial. Incluindo, um grupo de autores marxistas norte-americanos, como Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, que atribuem à ordem mundial dos últimos séculos à sucessão de três grandes potências hegemônicas: Holanda, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Os participantes deste debate tinham posições teóricas diferentes, mas quase todos compartiam a tese de que os Estados Unidos estariam vivendo seu "declínio hegemônico", depois da "crise dos anos 70". E mais recentemente, quase todos consideram que o fracasso americano no Oriente Médio, e o "derretimento do dólar", neste início do século XXI, fazem parte já agora, de uma "crise terminal" da hegemonia americana. Assim mesmo, estes autores não conseguem responder de forma satisfatória a três perguntas fundamentais: I) como foi que a crise dos anos 70 acabou restaurando a hegemonia e fortalecendo o poder americano; II) porque esta nova crise de 2007-2008, não poderá ter um desdobramento semelhante, no longo prazo; III) e por fim, mesmo que a crise adquirisse natureza catastrófica, quem substituiria os Estados Unidos, e como funcionaria o novo sistema monetário e financeiro internacional, depois da morte do dólar? Começando pela "crise dos 70": hoje se pode ver que não houve declínio, pelo contrário, foi na década de 70 que se definiram as novas políticas e regras responsáveis pela multiplicação exponencial da riqueza e do poder americano no último quarto do século XX. Foi quando os Estados Unidos deixaram de ser "credores", e passaram para a condição de "grandes devedores" da economia mundial. Mas ao mesmo tempo, sua dívida e sua capacidade de endividamento se transformaram no primeiro motor da economia mundial, destes últimos 30 anos. Foi também na década de 70 que o "padrão dólar-ouro" foi substituído pelo novo sistema monetário internacional "dólar-flexível", lastreado, em última instância, no poder americano e nos seus títulos da dívida publica. Por outro lado, são também da década de 70 as políticas de desregulação dos mercados financeiros anglo-americanos, que lideraram o processo de globalização financeira do final do século XX. E por fim, foi à sombra da derrota americana no Vietnã, em 1973, que os Estados Unidos e a China negociaram sua nova parceria econômica que se transformou na grande locomotiva da economia mundial no início do século XXI. Ou seja, desde a crise de 70, em vez do "declínio americano", o que se assistiu foi uma mudança profunda da economia mundial e um aumento exponencial do poder dos Estados Unidos. Agora de novo, depois do fracasso das guerras do Afeganistão e do Iraque e da desvalorização dólar, provocada pela crise financeira de 2007 e 2008, volta-se a falar no "colapso" e na "crise final" da hegemonia americana (Craig Roberts, P. (2008) The Collapse of American Power, Paul Craig Roberts Archive). Mas até o momento ainda não se configurou uma crise estrutural ou global, nem existe sinal de que os Estados Unidos venham a desocupar sua liderança capitalista. Pelo contrário, apesar das suas dimensões, tudo indica ser uma crise "regular", dentro de um sistema que é, por excelência, contraditório, instável e conflitivo. Dentro das novas regras e estruturas criadas a partir da crise dos 70, os Estados Unidos definem de forma exclusiva o valor de uma moeda que é nacional e internacional a um só tempo, e que está lastreada nos títulos da dívida pública do próprio poder emissor da moeda. Além disto, os Estados Unidos possuem um sistema financeiro nacional desregulado e são - ao mesmo tempo - a cabeça de uma "máquina de crescimento global", que funciona em conjunto com a economia nacional chinesa. Dentro deste sistema, extremamente complexo, toda crise financeira interna da economia americana pode afetar a economia mundial pela corrente sanguínea do "dólar flexível" e das finanças globalizadas. E todos os seus ciclos internos de "valorização de ativos", (em particular, imóveis, câmbio e bolsa de valores) se descolam com facilidade dos circuitos produtivos e mercantis e se balizam pelas variações da dívida publica e da política de juros do governo norte-americano. Por isto, as "bolhas" são sempre uma ameaça potencial para a economia mundial, mas não são apenas "capital fictício", nem são apenas "especulação". São mais do que isto, é um ciclo específico de valorização do capital que só é possível dentro de um sistema monetário e financeiro desregulado e atrelado diretamente ao endividamento público do governo americano. A crise atual poderá ser mais ou menos extensa e profunda, mas não será a crise terminal do poder americano nem muito menos do capitalismo. Por enquanto, não é provável uma "fuga do dólar", porque o euro, o yuan e o yen não têm fôlego financeiro internacional. E acreditar na criação de uma moeda supranacional, é fugir para o mundo da fantasia, desconhecendo o sistema mundial em que vivemos. "Dentro deste sistema, não existe a menor possibilidade de que a liderança da expansão econômica do capitalismo possa sair das mãos dos 'Estados-economias nacionais' expansivos e conquistadores, com suas moedas nacionais e com seus 'grandes predadores'" (Fiori, J.L., (2007) O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações, Editora Boitempo, São Paulo, p: 38). "Por fim, como 'ciência ficção', pode-se pensar numa hecatombe que destrua moedas e Estados, mas com certeza, não será o caminho mais curto, nem o mais pacífico, para um 'mundo melhor'.” José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e editor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 26 de março de 2008.