O PROJETO OLHARES INVISÍVEIS E A POSSIBILIDADE DE UMA NOVA MEDIAÇÃO ARTÍSTICA Ivan Delmanto Ao contrário dos parâmetros da pedagogia tradicional, baseada no desenvolvimento progressivo e linear de seus alunos a partir de conhecimentos administrados pelo professor, o projeto Olhares Invisíveis pareceu adotar como metodologia a instauração de processos criativos. Sob tal pedagogia, os participantes não necessitaram da aquisição prévia de conhecimentos, técnicas ou habilidades. Através da experiência criativa, baseada na pesquisa cotidiana, ou seja na formulação constante de perguntas ao ver-se diante das questões, lacunas e vazios instaurados pelos próprios processos de criação coletiva, cada um te a oportunidade de construir conhecimento e expressar-se artisticamente, em diálogo com os coordenadores do trabalho. Nesse sentido, a grande originalidade do projeto consiste em propor uma mediação entre os funcionários do CCSP e suas próprias potencialidades artísticas, visando fazer do processo criativo em arte veículo para suas vozes possivelmente abafadas pelas relações de trabalho não-estéticas e emudecedoras. A investigação constante de processos criativos buscava assim instaurar novas formas de convivência coletivas, territórios de aprendizado e de transformação mútuas. O caminho da mediação, neste contexto artístico-pedagógico, seria então o da conscientização e apropriação, por parte de todos os participantes, dos meios e dos modos de produção artística que permitem sua expressão, de forma a que todas as decisões acerca do processo de criação e da organização do coletivo de criadores sejam conscientes. Esses processos criativos seriam instaurados no projeto procurando constituir um espaço de pesquisa artística Pluri-Linguagens. Segundo Walter Benjamin, o conceito de limiar deve ser diferenciado de maneira clara e rigorosa de fronteira. Esta distinção também pode nos ajudar a refletir sobre a situação da arte contemporânea: as tradicionais fronteiras que demarcavam e separavam as linguagens artísticas, hoje funcionam como limiares. A fronteira contém e mantém algo, evitando seu transbordamento, isto é, define seus limites não só como os contornos de um território, mas também como as limitações do seu domínio. A fronteira designa a linha, cujo traço e cuja espessura podem variar, que não pode se transposta impunemente. Sua transposição sem acordo prévio ou sem controle regrado significa uma transgressão. O conceito de limiar, por outro lado, remete às ideias de soleira, de umbral, pertencendo igualmente ao domínio de metáforas espaciais que designam operações intelectuais e espirituais; mas se inscreve de antemão num regristro mais amplo, registro de movimento, registro de ultrapassagem, de passagens. Na arquitetura, o limiar deve preencher justamente a função de transição, isto é, permitir ao andarilho ou também ao morador que possa transitar, sem maior dificuldade, de um lugar determinado a outro, diferente, às vezes oposto. Seja ele simples rampa, soleira de porta, corredor, escadaria, portão, o limiar não faz só separar dois territórios ( como a fronteira), mas permite a transição, de duração variável, entre esses dois territórios. O limiar remete àquilo que se situa entre duas categorias, muitas das vezes opostas. Designa essa zona intermediária à qual a filosofia ocidental geralmente opõe tanta resistência, assim como o chamado senso comum também, pois, na maioria das vezes, preferm-se as oposições demarcadas e claras (masculino/feminino, sagrado/profano etc). O conceito de limiar tem, desta forma, para Benjamin dois sentidos contraditórios: significa, ao mesmo tempo, delimitação e passagem, separação e transição. A pesquisa do projeto Olhares Invisíveis partiu então, caso eu não esteja equivocado, desse conceito de limiar. Em oposição à estética tradicional normativa, que sempre caracterizou-se por estabelecer fronteiras entre as linguagens, interessava aos proponentes abordar, em uma prática pluri-linguagens, o limiar das diversas expressões artísticas. Esta prática não é a simples justaposição ou mesmo a dissolução das linguagens: mas é uma manifestação artística capaz de inaugurar este espaço/tempo do entre. Assim , teríamos mais do que uma pesquisa inter-linguagens, mas sim entre-linguagens, definindo como pesquisa este território híbrido de devir entre as linguagens, esta zona desconhecida em que a dança não é dança, o teatro não é teatro e a música não é música, mas são todas artes limiares, de passagem entre o seu ser e o seu outro. A investigação tentava compreender quuais manifestações artísticas podem surgir dos intervalos, dos interstícios que habitam o confronto e a coexistência destas mesmas linguagens. Assim, a pesquisa artística como limiar, nessas suas múltiplas passagens, transições e metamorfoses, não é apenas reunião, uma linguagem junto à outra, mas é transformação das artes, é a substituição das fronteiras que separam por portais que criam novas possibilidades de expressão artística e de emancipação criativa dos artistas envolvidos. . Mediação como contradição: No entanto, na medida em que o projeto se desenvolveu, a partir do diálogo estabelecido com o público atendido (funcionários das diversas instâncias do CCSP), surge a contradição central a ser enfrentada pelo projeto: os participantes, ao contrário do que se pretendia, não queriam experimentar um processo criativo, mas pretendiam que suas trajetórias de vida, suas vozes, fossem materializadas e ouvidas. O desafio estava posto: o que fazer? A solução encontrada pelo coletivo proponente do projeto foi a de estabelecer uma mediação artístico-pedagógica diferente da inicialmente planejada, transformando as histórias de trabalho e de vida dos funcionários em material artístico por meio de depoimentos, levantados em inúmeras entrevistas, que foram gravados e gerarão depois um vídeo documentário. Os funcionários também foram fotografados, em imagens que simbolizavam o seu trabalho, e essas fotogafias formaram uma exposição, que percorreu diversos espaços no CCSP. Tal formato foi criado em estreito diálogo com os participantes. O objetivo e metodologia da mediação praticada pelos proponentes do projeto, salvo engano, pode ser identificado no que Goethe chamou de afinidades eletivas: Chamamos afins aquelas naturezas que ao encontrarem-se rapidamente fazem-se presas uma na outra e de um modo recíproco se influem. Nos alcalinos e nos ácidos, que com serem opostos entre si, e talvez precisamente por isso, são os que mais se buscam e enlaçam para formar juntos um novo corpo, é bastante notável a referida afinidade (…), mercê a que as verdadeiras qualidades contrapostas fazem possível uma fusão mais íntima.1 Assim, a metodologia de pesquisa teve como princípio básico o diálogo constante entre entrevistador e entrevistado, gerando para a investigação vozes sobrepostas, justapostas: 1 GOETHE, J.W. “Die Wahlverwandtschaften”(“As afinidades eletivas”). In: Gesammelte Werke,vol.2. Frankfurt: Verlag, 1954, p. 531. (tradução livre nossa) Assim, por exemplo, o que chamamos pedra caliza é uma terra calcárea mais ou menos pura, intimamente unida a um ácido sutil, que se nos tem dado a conhecer na forma de gás. Agora bem: se colocarmos um pedaço desta pedra em uma solução de ácido sulfúrico, este ataca a cal e aparece depois unido a ela em forma de gesso, enquanto aquele ácido sutil, gasoso, se volatiza. Se tem produzido aqui, pois uma separação e uma composição novas, e cremos ter direito a empregar inclusive a expressão de afinidade eletiva, já que verdadeiramente parece como se se preferisse uma relação à outra. (…) 2 No entanto, percebemos que tal metodologia encara a mediação como uma espécie de elemento neutro, que tem por objetivo servir de veículo às identidades e subjetividades dos participantes mas que não realiza a possibilidade de crítica e de transformação de tais sujeitos, em um processo que poderia ter outra espécie de profundidade pedagógica. Antes de nós, na sua Ciência da lógica, Hegel já promovera uma crítica ao princípio das afinidades eletivas: Dentro da afinidade eletiva, neste repelir se separam de uma parte as relações em seus lados universais qualitativos, e de outra parte estes se especificam uns aos outros e, com isso, a si mesmos, excluindose assim uns aos outros.(...) Os números têm perdido, dentro desse comportamento e relação excludente, sua continuidade e capacidade de confluir uns nos outros: é mais ou menos o que tem obtido este caráter negativo, e o que dá a preferência a um dos expoentes frente a outros e dentre aqueles, de novo, a um frente aos restantes.(...) Se transformam em geral as formas de comportamento meramente quantitativo.3 Hegel aponta que, se por um lado o processo descrito por Goethe tem o mérito de descrever a constituição dos objetos por meio – e tão somente – do seu caráter relacional, a lógica da afinidade eletiva ainda descreve movimentos no plano das oposições estanques, em que não há transformação qualitativa de um contrário em outro, permanecendo o processo no nível da lógica matemática, em que há apenas a transformação isolada de cada um dos pares de maneira quantitativa, ou seja, não se estabelecem modificações essenciais, de qualidade nos objetos ou nos sujeitos: estaríamos, portanto, distantes ainda da lógica da contradição: 2Idem, ibd. 3 HEGEL, G.W.F. Ciencia de la logica.I – La lógica objetiva. Madrid: Abada, 2011, p. 403-404 Um é o positivo, o outro o negativo; aquele, como nele mesmo positivo; este, como nele mesmo negativo. Cada um tem para si a indiferente subsistência de seu, por ter nele mesmo a referência a seu outro momento: é assim, a inteira oposição, conclusa dentro de si. Enquanto este todo, cada um está mediado consigo por seu outro e contém este [grifo nosso].E ademais está mediado consigo pelo não ser de seu outro(...), precisamente e na mesma medida consista imediatamente em ser nele mesmo e em excluir de si a determinação negativa sua. Isso é, assim, a contradição. 4 Notemos que no processo contraditório - diferente da afinidade eletiva em que os opostos aparentemente mortos se buscam uns aos outros, se atraem e se chocam -, cada oposto confunde-se com o outro, habita em seu contrário, abriga o seu contrário dentro de si e só define a si mesmo na medida em que não é o outro. Na lógica dialética, portanto, o pensar consegue pensar contra si mesmo, sem abdicar de si; se uma definição da dialética fosse possível, talvez fosse preciso sugerir uma desse gênero. No entanto, para pensarmos uma metodologia diversa, além de promovermos a crítica do processo apontado por Goethe e que baseou, mesmo que inconscientemente, a pesquisa do Olhares Invisíveis até agora - já que as entrevistas colocaram em diálogo integrantes do grupo e entrevistados muito próximos uns aos outros, atraindose e repelindo-se mas sem transformação de um no outro – é necessário precisar o que sugerimos como possibilidade de uma mediação negativa . A filosofia de Theodor Adorno pode aqui ser útil a possíveis desdobramentos desse projeto, a partir de uma nova exploração do conceito de mediação em arte. Mantendo o diálogo com Hegel, mas suspendendo-o ou suprassumindo-o, Adorno define o que seria a dialética negativa. Levando a dialética hegeliana às suas últimas consequências, Adorno insurge-se inicialmente contra o princípio de identidade, assim definido por Aristóteles na sua Metafísica: Todos os filósofos afirmam que as coisas se geram dos contrários. Mas nem a afirmação “todas as coisas”nem a outra: “dos contrários” são exatas; e eles também não dizem como derivam dos contrários as coisas que efetivamente admitem os contrários: de fato, os contrários não são afetados um pelo outro. 4 Idem, p. 482 Para nós, a dificuldade se resolve facilmente, admitindo a existência de um terceiro termo. (Metafísica, XII, 10, 1075a29-b13) Para Adorno, o princípio de identidade, desde Aristóteles perverte a filosofia dialética, contaminando-a com os padrões de movimento mecânico da lógica formal: A dialética negativa coloca o idêntico sob suspeita. Sua lógica é uma lógica da desagregação: da desagregação da figura construída e objetivada que o sujeito cognoscente possui de início em face de si mesmo. A identidade dessa figura com o sujeito é a não verdade.5 Para Adorno, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato do tempo médio de trabalho, é originalmente aparentado com o princípio de identificação. Esse princípio tem na troca o seu modelo social, e a troca não existiria sem esse princípio; por meio da troca, os seres singulares não-idênticos se tornam comensuráveis para a troca, idênticos para o comércio entre si. A difusão do princípio transforma o mundo todo em algo idêntico, em ideologia. A ideologia deve, para o filósofo alemão, sua força à sua cumplicidade com o pensar identificador: com o “pensar em geral”. Ao contrário da ideologia, o pensamento da dialética negativa teria por tarefa “perseguir a inadequação entre pensamento e coisa; experimentando-a na coisa”, na práxis. Adorno insurge-se contra a ideia de síntese, base da dilética identitária “do terceiro termo”, que Aristóteles descreve na Metafísica. A síntese seria criticável não como um ato particular de pensamento que recolhe em sua relação os momentos cindidos, mas como ideia diretriz e suprema. Contra a leitura hegemônica (e aristotélica) de Hegel, Adorno ressalta que o imperativo de examinar de maneira pura todo conceito até ele se movimentar por força de seu próprio sentido, ou seja, de sua identidade inicial, até ele se tornar não-idêntico a si mesmo, é um imperativo analítico de Hegel e não sintético: enquanto ele mesmo, o conceito não é de maneira alguma apenas ele mesmo, mas se determina por aquilo que é exterior a ele, transformando-se no seu outro. Enquanto consciência da não-identidade através da identidade, a dialética negativa não é apenas um processo progressivo, mas ao mesmo tempo um processo regressivo, a unidade e a multiplicidade, categorias apenas justapostas em Goethe, tornam-se agora momentos dos quais nenhum é sem o outro. 5 ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 127 Adorno identifica na malfadada lei “da negação da negação” a transformação do não-idêntico em algo positivo, apaziguado. A negação não é, nunca, afirmação. A equiparação da negação da negação com a positividade, o que se dá na dialética danificada, seria a quinta-essência do identificar. Tal dialética teria se disseminado sobre o mundo como ideologia, do mesmo modo que se tornou um real aborto grotesco, convencendo-se assim de sua monstruosidade. Até no cerne da linguagem vulgar, que elogia os homens porquanto eles são positivos, o positivo seria fetichizado em si: “a negação da negação não revoga essa última, ao contrário, ela comprova que essa negação não era suficientemente negativa”. Na dialética negativa, nada é pura e simplesmente por si, mas é em si seu outro e está ligado a um outro: “aquilo que é, é mais do que ele é”. Esse mais não lhe é anexado de fora, mas permanece imanente a ele enquanto aquilo que é reprimido dentro de si. Essa relação com o outro, constituidor do em-si, geraria uma lógica de modo que não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses conceitos entram, na relação de negação recíproca, em uma constelação: Uma tal universalidade imanente do singular é objetiva como história sedimentada. Esta história está nele e fora dele, ela é algo que o engloba e em que ele tem seu lugar. Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ela porta em si enquanto algo que veio a ser6. O conhecimento do objeto em sua constelação é o conhecimento do processo que ele acumula em si. Enquanto constelação, o pensamento da dialética negativa circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio de uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica. Tomar essa dialética negativa descrita por Adorno como método significa tomar a mediação em arte como possibilidade de contradição e de transformação. O mediador não seria apenas um veículo nesse processo: ele torna-se um pedagogo negativo, que trará pontos de vistas totalmente diversos daquilo que constituiem as constelações subjetivas de cada participante e, precisamente por essa 6 Idem, p.142 diferença transformada em método e em obstáculo, poderá ter com os participantes uma relação negativa, de destruição dialética. Assim, o princípio negativo, o que Hegel chama de trabalho do negativo, é a categoria central que pode estruturar possíveis visões distintas para a mediação em arte. . Do mestre ignorante ao mediador negativo: O mestre ignorante, livro de Jaques Rancière, promove a reflexão sobre a teoria excêntrica e o destino estranho de Joseph Jacotot, um professor francês que, no início do século XIX, agitou o mundo acadêmico ao afirmar que uma pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa ignorante o que ambas não conheciam, proclamando a igualdade de inteligências e exigindo a emancipação intelectual no lugar da sabedoria recebida no que diz respeito à educação do que os Iluministas chamavam de “as classes mais baixas”. Sua teoria caiu no esquecimento em meados do século XIX. Rancière achou necessário reavivá-la em 1980 para instigar o debate sobre a educação e suas balizas políticas. No processo pedagógico tradicional, o papel do professor é colocado como o ato de suprimir a distância entre a sua sabedoria e a ignorância do ignorante. Suas lições e exercícios visam diminuir continuamente a lacuna entre conhecimento e ignorância. Infelizmente, para diminuir a lacuna, ele deve seguir renovando-a sempre. Para substituir a ignorância pelo conhecimento adequado, ele deve se manter sempre um passo à frente do aluno ignorante que está perdendo sua ignorância. A razão para isto é simples: no esquema pedagógico, o ignorante não é apenas aquele que não conhece aquilo que ele não conhece; mas também aquele que ignora como conhecer. O mestre não é apenas alguém que sabe precisamente o que permanece desconhecido para o ignorante; ele também sabe como fazer com que isto seja conhecível, a tal hora e em tal lugar, de acordo com tal metodologia. O conhecimento fundamental que o mestre tradicional possui é o “conhecimento da ignorância”. É o pressuposto de uma lacuna radical entre duas formas de inteligência. Esse também é o conhecimento fundamental que ele transmite ao aluno: o conhecimento de que as coisas devem ser explicadas a ele para que ele entenda, o conhecimento de que ele não consegue aprender sozinho. É o conhecimento da sua incapacidade. Deste modo, a instrução progressiva é a verificação sem fim do seu ponto de partida: a desigualdade. Esta verificação sem fim da desigualdade é o que Ranciere chama de processo de embrutecimento. O oposto do embrutecimento é a emancipação. Emancipação é o processo de verificação da igualdade de inteligência. Isto significa que não há lacuna entre duas formas de inteligência. O mestre ignorante seria aquele capaz de assumir a igualdade das inteligências e das ignorâncias entre aluno e mestre, ensinando assim algo que ambos desconhecem, em um processo de descoberta comum. No caso da mediação realizada no projeto Ohares Invisíveis, os mestres ignorantes não são apenas efeito de retórica ou de um travestimento do professor que finge desconhecer para melhor ensinar. De fato, não foi objetivo dos coordenadores do projeto ensinar conteúdos ou treinar os participantes em qualquer técnica artística. Os coordenadores compartilharam sua ignorância, por meio de um diálogo horizontal e generoso. No entanto, uma mediação negativa poderia radicalizar a aproximação entre a vasta experiência artística do grupo proponente e sua atividade pedagógica. Caberia então aos mediadores agirem como coordenadores-autores, isto é, desdobrarem e conduzirem a proposta inicial junto aos demais participantes como se esses fossem jogadores, de forma a atuarem criativamente na realização das propostas, apresentando suas visões por meio do jogo artístico, capazes de transformar e de negar, subverter, ampliar as propostas inicias. Nesse sentido, talvez o conceito de “mestre ignorante” seja insuficiente para definir tal mediação em negativo. Háveria, em tal mediação, um território instável de dúvida e de abismo: os diferente saberes de cada um seriam trocados e negados, de maneira limitada e provisória, gerando dúvidas e questões novas. Por estarem mergulhados em um processo de criação que compartilha das mesmas inquietações e referências dos participantes, tais coordenadores poderiam compartilhar com os participantes também os seus materiais artísticos: suas cenas, improvisações, vídeos, fotografias, propostas de cenário, de figurino, de luz, poderão ser divididas e recriadas a partir do diálogo e da experiência de cada encontro pedagógico e artístico. Em seu livro, O mestre ignorante, Jaques Ranciere promove uma vasta crítica à Sócrates, argumentando que, em seus diálogos maiêuticos, o filósofo grego não agiria como “alguém que sabe que nada sabe” mas, pelo contrário, conduziria as perguntas, em uma falsa ignorância, para obter dos seus interlocutores as respostas que deseja. Durante tal condução, Sócrates apenas reafirmaria o que já sabia desde o início: a ignorância do interlocutor, e não a sua. Por mais que, de fato, Sócrates não seja um “mestre ignorante”, a análise de Ranciere sobre sua atuação pedagógica é questionável. Questionável porque ignora um elemento fundamental na ação de Sócrates: sua negatividade. Todo o movimento dialético dos diálogos socráticos termina no totalmente negativo. Mais do que sem resultado, os diálogos acabam em um resultado negativo e em contradição aberta, formada por uma constelação de negativas e de destruições. Segundo Kierkegaard: Assim, o diálogo terminaria muito bem sem resultado, mas este “sem resultado”não seria de maneira alguma idêntico com um resultado negativo. Um resultado negativo precisa sempre ser um resultado; e um resultado negativo em seu estado mais puro e sem mistura [...] renova, constantemente, como aquela velha bruxa, a tentativa certamente digna de Tântalo, de primeiro devorar tudo, e por fim devorar-se a si mesma também, ou, como convém às bruxas, devorar seu próprio estômago.7 No diálogo Protágoras, por exemplo, Sócrates e seu interlocutor, o sofista Protágoras, terminam por trocar de opiniões no final da disputa, em um movimento contraditório que levou a opinião inicial de Sócrates a ser defendida por Protágoras no final da conversa, ocorrendo a mesma troca em relação a Sócrates: A conclusão atual do nosso diálogo se levanta contra nós como um homem a rir de nós, e se pudesse falar dir-nos-ia: Sois muito inconsequentes e contraditórios, Sócrates e Protágoras! 8 Entendemos tal possibilidade de mediação negativa como filosófica porque esta procuraria romper com a divisão entre teoria e prática, dando nova dimensão a questões filosóficas, de crítica ao mundo, a partir da arte. A ação filosófica de Sócrates consiste em apresentar uma doutrina do conhecimento que aniquila a si mesma. A ação dos mediadores, neste caso, assemelhar-se-ia à da bruxa descrita por Kierkeggard acima: devorar a si mesmos, destruir seus próprios conhecimentos em busca de um processo criativo comum, o que nos torna não mais “mestres ignorantes” mas sim “filósofos e mediadores negativos”. 7 KIERKEGAARD, Soren. Sobre o conceito de ironia. São Paulo: Vozes, 2013, p. 70-71 8 PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Melhoramntos, 1970, p. 267