MÁRCIA YURI KONDO CARACTERIZAÇÃO DO MECANISMO CATALÍTICO DA SGP, ENZIMA PROTÓTIPO DAS GLUTÂMICO PEPTIDASES Tese apresentada à Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina para obtenção do título de Doutor em Ciências. São Paulo 2012 Kondo, Márcia Yuri Caracterização do mecanismo catalítico da SGP, enzima protótipo das glutâmico peptidases/ Márcia Yuri Kondo – São Paulo, 2012. xv, 110 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pósgraduação em Biologia Molecular. 1.Glutâmico peptidases 2. Mecanismo catalítico 3. Especificidade Tese preparada no Departamento de Biofísica, durante o curso de Pós-graduação em Biologia Molecular e apresentada à Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina - como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências. Orientador: Prof. Dr. Luiz Juliano Neto Co-orientador: Dr. Iuri Estrada Gouvea iii Este trabalho foi aprovado pelo comitê de ética da UNIFESP CEP: 0316/10 Nossos agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo auxílio financeiro concedido ao laboratório na forma de Projetos Temáticos, e também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa concedida e pelos auxílios financeiros concedidos ao laboratório e seus membros. iv “Science is an imaginative adventure of the mind seeking truth in a world of mystery”. Sir Cyril Herman Hinshelwood (1897-1967) Químico inglês. Prêmio Nobel (1956) v Aos meus pais, Toshico e Noboru, pela formação e educação que me proporcionaram liberdade para escolher meus próprios caminhos, e pelo amor e carinho que me provem coragem e persistência para enfrentar todas as dificuldades. Não há palavras que sejam suficientes ou exatas para agradecê-los. vi Agradecimentos especiais: Ao orientador, Professor Dr. Luiz Juliano Neto, por ter me recebido em seu laboratório, pela orientação durante o doutorado e principalmente pelas discussões dos trabalhos, sempre enriquecedoras, Ao co-orientador, Dr. Iuri Estrada Gouvêa, que com sua experiência em enzimologia, muitas idéias novas e vontade de colocálas em prática foi o maior responsável por ensinar, discutir e descrever todos os experimentos deste trabalho. Durante estes anos de convivência, a maior lição aprendida com o exemplo de vocês pode ser descrita na frase do ensaísta inglês Max Beerbohm: “Nenhum trabalho de qualidade pode ser feito sem concentração e autosacrifício, esforço e dúvida”. Meus sinceros agradecimentos por sempre me ajudarem na difícil tarefa de tentar enxergar mais longe em Ciência. vii Agradecimentos: À Professora Dra. Maria Aparecida Juliano, pela síntese dos complicados substratos usados neste trabalho e por estar sempre disposta a ensinar e ajudar, Ao Dr. Kohei Oda, pelas enzimas usadas neste trabalho, Às Dras. Izaurinha e Maria Helena, pela disponibilidade em ajudar sempre que fosse preciso e também pelos pasteizinhos e guloseimas nas pausas dos experimentos, Ao Professor Dr. Vitor Oliveira sempre disposto a ajudar, discutir trabalhos, tirar dúvidas e por ter lido esta tese, À secretária Verinha, por ajudar com todos os documentos quando necessário e à Dona Lindalva pelo café de todas as horas, Ao Professor Tetsuo Yamane, um dos meus maiores incentivadores e exemplos de dedicação a esta área tão difícil e ao mesmo tempo fascinante que é a área acadêmica, Ao Programa de Pós-graduação em Biologia Molecular da UNIFESP, À Dra. Débora e a Lilian, muitíssimo obrigada por toda a colaboração, incentivo, companhia, paciência e apoio durante estes anos de doutorado e também para a formatação desta tese. Vocês foram as melhores colegas de trabalho que se pode ter :) Ao Yudi e a Jú Conrado, pela pró-atividade e ajuda a qualquer momento, Ao Thiago, à Jú, Douglas, Jorge e Diego, pela ajuda com as amostras no massa e compartilhar o cotidiano do laboratório, Às Professoras Adriana, Kátia, Susan e Nilana, aos Professores Marcos e Rodrigo e aos colegas Vinícius, Allyne, Élide, Marcela, Fernanda, Piero, Maurício, Marcelo, Ricardo, Larissa, Pollyana, Márcio, Eric, Raquel, Gabu, Mario, Patrícia, Rafa, Sheila, aos argentinos do laboratório, Diego e Tito por terem compartilhado vários momentos durante o doutorado, A minha irmã Mayumi e meu cunhado Humberto por estarem sempre por perto me ajudando, e aos meus irmãos Toti e Fábio e a minha cunhada Paulinha, pelo carinho, incentivo e suporte emocional, viii Às minhas avós, tios e tias pelo apoio e palavras de incentivo, Ao Victor, Angela, Haroldo, Charles, Laila, Jú, Daniels, Marcelo, Natalia e Tati, amigos para todas as horas em São Paulo: happy hour, programas culturais, gastronômicos ou apenas uma boa conversa e um desabafo. Tenho muita sorte de tê-los por perto, Às amigas Raqs, Júlia, Lili e Jú N, muito bom ter a companhia de vocês em várias viagens de férias, ano novo, feriados, sempre... Às mamães Val e Fa, que sempre quando estão em São Paulo tiram um tempinho para deixar as novis em dia, Às minhas queridíssimas Pri, Clau K, Cris, Fla e Lu, espero que os nossos encontros anuais com tudo o que tem direito: mta fofoca, choro, riso e cumplicidade continuem por muitos e muitos anos, Aos meus queridos amigos que fiz no Nihon: Mina, Felipe, Rafa, Eli, Marina, Tetsuko, Edson, Yuka, Francisco, Mara, Carol, Ana entre outros... Ter conhecido pessoas tão especiais como vocês do outro lado do mundo e ainda poder desfrutar desta amizade é uma das melhores coisas que eu trouxe de lá. Aos queridos amigos da graduação pelo churras anual, Ao meu grande amigo Alvi e todos os amigos que mesmo estando longe e com a vida corrida conseguem compartilhar um pouco de suas vidas e assim manter a amizade há tantos anos... Enfim, a lista é grande e certamente não acaba por aqui, peço de antemão desculpas se deixo de formalmente mencionar alguém, mas gostaria de agradecer sinceramente a todos que me ajudaram durante os últimos anos. Muito obrigada!!! ix ÍNDICE ABREVIATURAS AMINOÁCIDOS.........................................................................xii Abreviaturas .............................................................................................................. xiii RESUMO ..................................................................................................................xiv ABSTRACT ............................................................................................................... xv INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 16 1. ENZIMAS PROTEOLÍTICAS............................................................................... 16 1.1 IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS PROTEASES ............................................ 16 1.2 CLASSIFICAÇÃO DAS PROTEASES............................................................... 21 1.3 MECANISMOS DE AÇÃO DAS ENZIMAS PROTEOLÍTICAS........................... 26 1.3.1 Serino peptidases .................................................................................. 26 1.3.2 Cisteíno peptidases ............................................................................... 29 1.3.3 Aspártico peptidase ............................................................................... 31 1.3.4 Metalo peptidases .................................................................................. 33 1.3.5 Treonino peptidases .............................................................................. 37 1.3.6 Glutamico peptidases ............................................................................ 40 1.3.7 Asparagino peptídeo liases .................................................................... 40 1.4 ESPECIFICIDADE ............................................................................................ 42 1.5 CINÉTICA ENZIMÁTICA ................................................................................... 45 1.6 DEPENDÊNCIA DO pH .................................................................................... 48 1.7 EFEITO ISOTÓPICO CINÉTICO DO SOLVENTE (Solvent Kinetic Isotopic Effect –SKIE) .................................................................................................................... 53 1.8 SUBSTRATOS SINTÉTICOS ........................................................................... 57 2. PEPTIDASES CARBOXÍLICAS INSENSÍVEIS A PEPSTATINA ......................... 60 2.1 Serino peptidases carboxílicas .......................................................................... 62 2.2 Glutâmico peptidases........................................................................................ 68 2.2.1 Família G1, clã GA ................................................................................ 69 2.2.1.a Scytalidoglutamico peptidase (SGP) ............................................... 72 2.2.2 Família G2, clã GB ................................................................................ 78 OBJETIVOS .............................................................................................................. 80 Artigo publicado ........................................................................................................ 81 1 Publicação: JBC (2010) vol.285, n°28: 21437–21445 .......................................... 81 Descrição ................................................................................................................ 82 DISCUSSÃO & CONCLUSÃO .................................................................................. 84 x Outros trabalhos: ....................................................................................................... 91 1– Tema: NS2B/NS3 recombinante do virus da febre amarela ............................... 92 Publicação n°1: BBRC (2011), 407: 640–644 ......................................................... 92 Descrição ................................................................................................................ 93 2 – Tema: Enzima halofilica SR5-3 ......................................................................... 95 Publicação n° 2: BBA Proteins and Proteomics (2009), 1794: 367-373................... 96 Publicação n° 3: Protein & Peptide Letters (2010), 17: 796-802 .............................. 96 Descrição ................................................................................................................ 97 3 Tema: SARS-CoV 3CL. ..................................................................................... 100 Publicação n°4: Biol. Chem, (2010) 391:1461–1468 ............................................. 100 Descrição .............................................................................................................. 101 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ....................................................................... 103 xi ABREVIATURAS AMINOÁCIDOS Aminoácido 3 letras 1 letra GLICINA Gly G ALANINA Ala A VALINA Val V Cadeia Lateral R NH2 O CH3 O NH2 CH3 O CH3 NH2 LEUCINA Leu CH3 O L NH2 CH3 CH3 ISOLEUCINA Ilê I CH3 O NH2 FENILALANINA Phe F TIROSINA Tyr Y O NH2 O NH2 OH O TRIPTOFANO Trp W SERINA Ser S NH2 N H O OH NH2 CH3 TREONINA Thr T O OH NH2 O CISTEINA Cyst C METIONINA Met M O ASPARAGINA Asn N O GLUTAMINA Gln Q SH NH2 S CH3 NH2 NH2 NH2 O NH2 O O NH2 OH ÁCIDO ASPARTICO Asp D ÁCIDO GLUTAMICO Glu E O NH2 O OH O O NH2 LISINA Lys K ARGININA Arg R NH2 O NH2 NH2 O NH NH NH2 HISTDINA PROLINA His Pro H P H N O NH2 O N H N xii Abreviaturas Abz: Ácido -aminobenzóico ACN: Acetonitrila AX: Absorbância a x comprimento de onda (nm) DMSO: Dimetilsulfóxido DO600: Densidade óptica a 600 nm DTT: Ditiotreitol EDDnp: N-(2,4-dinitrofenil-etilenodiamino) EDTA: Ácido etilenodiaminotetracético. ESI-MS: Espectrometria de massa com ionização por electrospray FRET: Transferência de energia entre dois fluoróforos HPLC: Cromatografia líquida de alta pressão IPTG: Isopropiltio--D-galactoside K*: (2,4-dinitrofenil)--NH2-lisina LC/MS: Cromatografia líquida/espectrometria de massa mA: Miliampère MALDI TOF: Ionização/Dessorção de Matriz Assistida por Laser MCA: 7-amino-4-trifluorometil coumarina MES: Ácido 2-[N-Morfolino]etanosulfônico Mr: Massa molecular relativa MS: Espectrometria de massa PMSF: Fluoreto de Fenilmetilsulfonila Pn e Sn: Nomenclatura para subsítios segundo Schechter e Berger Q-EDDnp: Glutamil-[N-(2,4-dinitrofenil)-etilenodiamino] TFA: Ácido trifluoroacético Tris: Tris(hidroximetil)aminometano em: Comprimento de onda de emissão em: Comprimento de onda de excitação UAF: Unidades arbitrárias de fluorescência UV: Ultravioleta Z: Benzoiloxicarbonil xiii RESUMO As enzimas proteolíticas estão amplamente distribuídas em todos os organismos e desempenham diversas funções essenciais a estes. Atualmente são reconhecidos sete grupos de proteases (serino, cisteíno, aspártico, metalo, treonino, glutâmico e a recém identificada asparagino peptídeo liases) que são classificadas de acordo com o seu mecanismo catalítico. As glutâmico peptidases são proteases carboxílicas (ou ácidas) insensíveis à pepstatina e foram reconhecidas como um grupo novo somente em 2004 (Família G1 Merops). Estas peptidases apresentam díade catalítica formada por ácido glutâmico (Glu) e glutamina (Gln) e estrutura única entre as proteases. O protótipo das glutâmico peptidases é a scytalidoglutamico peptidase (SGP), isolada do fungo decompositor de madeira Scytalidium lignicolum na década de 1970. A caracterização da estrutura das glutâmico peptidases scytalidoglutamico peptidase (SGP) e aspergiloglutamico peptidase (AGP), isolada de Aspergillus Níger, mostra que estas enzimas são praticamente idênticas, porém baseados nestes dados estruturais, dois mecanismos catalíticos diferentes foram propostos para SGP e AGP, sendo inconsistentes entre si. Com o propósito de entender o mecanismo catalítico das glutâmico peptidases, nesta tese são demonstrados (1) a caracterização bioquímica do mecanismo catalítico da SGP através da análise da dependência do pH e efeito isotópico cinético do solvente frente a peptídeos FRET e (2) a especificidade da protease para as posições P1 e P1’, descrevendo o papel das interações do subsítio S1 na catálise. Os resultados destes estudos são apresentados no artigo em anexo (Kondo, MY et al, JBC 2010). xiv ABSTRACT Proteolytic enzymes are widespread in all organisms and are involved in a wide range of biological roles. There are seven distinct classes of proteases (serine, cysteine, aspartate, metalloproteases, threonine, glutamate and the newly identified asparagine peptide lyases), grouped according to their catalytic mechanism. The glutamic peptidases are carboxylic (acidic) proteases insensitive to pepstatin inhibitor and were annotated as a new group in 2004 (Family G1 Merops). These proteases have a unique catalytic dyad of residues Glu and Gln and a previously undescribed structure fold. Scytalidoglutamic peptidase (SGP), isolated from the wood-degrading fungus Scytalidium lignicolum on the 1970’s, is the forming member of glutamic peptidases. The three dimensional structures of scytalidoglutamic peptidase (SGP) and aspergilloglutamic peptidase (AGP) from Aspergillus niger revealed that the overall structure of these enzymes are almost identical, however two different catalytic mechanisms were proposed. Aiming at understanding the reaction mechanism of glutamic peptidases, in this thesis the following topics are highlighted, (1) biochemical characterization of the catalytic mechanism of SGP by use of pH rates profiles and solvent kinetic isotopic effects (SKIE) on the enzyme hydrolysis of FRET peptides and (2) specificity of the protease for P1 and P1’ positions describing the interactions of S1 subsite during catalysis. The paper showing results of these studies is attached to this thesis (Kondo, MY et al, JBC 2010). xv INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 1. ENZIMAS PROTEOLÍTICAS Os termos enzimas proteolíticas, peptidases, proteases e proteinases são considerados sinônimos para a classe de hidrolases EC 3.4, das enzimas que catalisam a clivagem de ligações peptídicas através da presença de uma molécula de água, e segundo o Comitê de Nomenclatura da União Internacional de Bioquímica e Biologia Molecular (NC-IUBMB), a recomendação é a utilização do termo peptidase. No entanto, devido à recente descoberta de que algumas enzimas proteolíticas utilizam mecanismo de catálise diferente de hidrólise, no caso enzimas que agem como liases para a clivagem de cadeias polipeptídicas, alguns autores preferem restringir o termo peptidase apenas às classes de enzimas proteolíticas que agem como hidrolases [1]. Portanto nesta tese, como ainda não há revisão e nota oficial do NCIUBMB quanto à nomenclatura destas enzimas, os termos protease, proteinase e enzimas proteolíticas poderão aparecer com a mesma frequência que o termo peptidase, recomendado pelo NC-IUBMB. 1.1 IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS PROTEASES As proteínas são um dos polímeros biológicos mais estáveis. As ligações peptídicas podem resistir por várias horas em ácidos concentrados ou altas temperaturas, porém duram apenas alguns microssegundos na presença de proteases específicas. Estas enzimas realizam clivagem proteolítica de 16 INTRODUÇÃO ligações peptídicas sendo umas das mais importantes e frequentes encontradas em todos os organismos [2]. Historicamente, o estudo da proteólise enzimática iniciou-se no século XIX associado à digestão protéica e chamou a atenção de fisiologistas e bioquímicos interessados no processo de digestão no homem e outros animais, sendo os pontos marcantes: a descrição da pepsina por Schwann em 1836 e da tripsina por Corvisart em 1856. Assim, as proteases digestivas das secreções gástricas e pancreáticas estão entre as enzimas melhor caracterizadas e muito do conhecimento atual de estrutura de proteínas e função enzimática é derivado do estudo destas proteases [3]. Também no início dos estudos do ramo chamado “química de proteínas”, a atenção era dada às proteases devido às suas características como compostos degradantes e muitos métodos foram exaustivamente desenvolvidos para se evitar a atividade proteolítica indesejada no isolamento de proteínas [4]. Já por volta dos anos de 1930, em trabalhos realizados principalmente por Northrop, Kunitz e Herriot, algumas proteases e moléculas relacionadas a estas foram caracterizadas quanto às propriedades físico-químicas como, por exemplo, solubilidade e características termodinâmicas segundo os critérios químicos de compostos puros. Dentre as proteases e inibidores caracterizados destacam-se o pepsinogênio, pepsina e inibidores de pepsina, quimotripsina, tripsina, seus zimogênios e inibidores além da carboxipeptidase, hexoquinase, entre outras [4]. 17 INTRODUÇÃO Porém, devido à difícil obtenção destas proteínas, o campo de estudo das proteases ficou relativamente estagnado durante alguns anos e só foi retomado por volta dos anos 1950-60 com o desenvolvimento de técnicas mais eficazes e métodos específicos de isolamento, purificação e caracterização de proteínas que incluíam métodos de cromatografia, eletroforese em gel e sequenciamento de proteínas entre outros. [4, 5]. Desde então com os avanços na área biológica, as proteases têm sido identificadas em quase todos os organismos. Os dados dos genomas de organismos sequenciados até o momento estimam que pelo menos 2% das proteínas codificadas seriam de proteases, sugerindo a participação destas em muitas vias biológicas e também implicadas em muitas doenças [6]. Hoje, o vasto conhecimento que tem sido gerado sobre as proteases deve-se à aplicação de conceitos novos e técnicas modernas de biologia molecular e celular e da bioquímica, tais como clonagem e sequenciamento de DNA, mutagênese sítio dirigida, amplificação gênica, silenciamento de genes, uso de sondas fluorescentes, etc. Isto tudo está aliado às tecnologias que visam aquisições experimentais da estrutura e função de proteínas tais como espectroscopia de massa, RNM multidimensional e bioinformática, bem como a triagem de proteases em larga escala (high throughput screening) entre outras [4, 5]. Dentre os diferentes papéis descritos para as proteases, elas regulam a função, localização e atividade de muitas proteínas, modulam as interações proteína-proteína, criam novas moléculas bioativas, contribuem para o processamento de informação intracelular e geram, traduzem e amplificam 18 INTRODUÇÃO sinais moleculares. Como resultado direto destas ações múltiplas, as proteases influenciam a replicação e transcrição do DNA, proliferação e diferenciação celular, morfogênese e remodelamento tissular, respostas de choque térmico e desnaturação protéica, angiogênese, neurogênese, ovulação, fertilização, cicatrização, mobilização de células-tronco, hemostasia, coagulação sanguínea, inflamação, imunidade, autofagia, senescência, necrose e apoptose [7]. As proteases também desempenham papéis-chave em plantas e contribuem no processamento, maturação ou destruição de proteínas específicas em resposta a estímulos de desenvolvimento ou variações em condições ambientais. Do mesmo modo, muitos microrganismos infecciosos requerem proteases para replicação e processamento, (ex: enzimas NS2B/NS3 dos flavivírus causadores da Dengue e Febre amarela, HIV-PR do vírus HIV-1) ou usam proteases como fatores de virulência (ex: cruzaína do Trypanosoma cruzi) [8, 9]. Estes papéis essenciais das proteases no comportamento, sobrevivência e morte de todos os organismos fazem com que alterações nos sistemas proteolíticos relacionem-se a múltiplas condições fisiopatológicas tais como câncer, doenças neurodegenerativas, inflamatórias e cardiovasculares levando as proteases a serem um dos principais focos de atenção das indústrias farmacêuticas tanto como potenciais alvos de drogas como também na forma de biomarcadores diagnóstico e prognóstico. Assim, estima-se que 5-10% de todos os alvos farmacêuticos que estão relacionados ao desenvolvimento de drogas sejam proteases [3, 7]. 19 INTRODUÇÃO De fato, muitos medicamentos com alvo em proteases são usados com sucesso no tratamento de várias doenças, como por exemplo, os inibidores da enzima conversora de angiotensina humana (ECA) do tipo captopril, que são utilizados no tratamento de doenças cardiovasculares tais como hipertensão e falha congênita do coração já há algumas décadas. Ainda, os inibidores de HIV protease, tais como ritonavir, atazananvir e tipranavir (Aptivus; Pfizer/Boehringer Ingelheim) têm desempenhado um papel chave no tratamento de infecções por HIV desde sua introdução no mercado por volta de 1990 [3]. Para visualizar em termos econômicos a importância dos medicamentos relacionados a proteases podemos citar os inibidores das proteases trombina e fator Xa, que juntos geram um montante de vendas global de aproximadamente US$ 1 billhão, com previsão de crescimento para US$3,5 bilhões em 2014, enquanto as drogas anti-hipertensivas que agem no sistema renina-angiotensina geram cerca de US$6 bilhões em vendas no mundo inteiro [3]. Além da indústria farmacêutica, as enzimas proteolíticas são de grande utilização e interesse em outras indústrias. Uma das primeiras aplicações das proteases foi na indústria de detergentes onde continua sendo aplicada. As proteases são também largamente usadas na indústria alimentícia, de produção de ração animal, de couro, cosmética entre outras. Outra possível aplicação que vem sendo explorada é a utilização das proteases como agentes biorremediadores no tratamento de resíduos industriais e esgoto [10]. 20 INTRODUÇÃO 1.2 CLASSIFICAÇÃO DAS PROTEASES As primeiras tentativas de classificação das proteases eram baseadas em características como peso molecular, carga ou especificidade do substrato. Atualmente, as proteases são classificadas considerando-se três critérios principais: (i) tipo de reação catalisada, (ii) natureza química do sítio catalítico, e (iii) relação evolutiva baseada na estrutura. De acordo com o tipo de reação catalisada, as proteases são majoritariamente divididas em dois grupos principais: exopeptidases e endopeptidases. As exopeptidases clivam a ligação peptídica próxima à extremidade amino ou carboxi do substrato enquanto as endopeptidases clivam as ligações peptídicas distantes das extremidades do substrato. As exopeptidases agem somente próximas das extremidades das cadeias polipeptídicas e dependendo do sítio de ação (N- ou C- terminal) são classificadas como amino ou carboxipeptidase, respectivamente [11]. As aminopeptidases são, em geral, enzimas intracelulares e agem no terminal amino livre de uma cadeia polipeptídica, liberando um, dois ou três resíduos de aminoácidos: Aminopeptidase: um resíduo liberado Dipeptidil peptidase: dois resíduos liberados Tripeptidil peptidase: três resíduos liberados As carboxipeptidases agem nas extremidades carboxi da cadeia polipeptídica e liberam um ou dois resíduos de aminoácidos: Carboxipeptidase: um resíduo liberado 21 INTRODUÇÃO Peptidil dipeptidase: dois resíduos liberados Outros tipos de exopeptidases são: Dipeptidase: específicas para certos dipeptídeos. Ômega peptidase: removem resíduos na extremidade que são substituídos, ciclizados ou ligados por ligações isopeptídicas (ligações peptídicas que não ocorrem entre os grupos carboxila- e amino-). As endopeptidases são caracterizadas por agirem preferencialmente nas ligações peptídicas das regiões internas das cadeias polipeptídicas, longe das extremidades amino ou carboxi. A presença de um grupo amino ou carboxi terminal livre pode ter uma influência negativa na atividade destas enzimas [11-13]. Figura 01. Modelo de interação enzima-substrato: Tipos de clivagem de substratos por peptidases, usando catepsinas tipo cisteíno peptidases como exemplo. Endopeptidase (catepsina L) e exopeptidases, à esquerda aminopeptidase (catepsina H); e à direita, carboxipeptidase, (catepsina X). O substrato peptídico, esquematicamente representado pelas esferas azuis claro, atravessa toda a extensão do sítio ativo da endopeptidase (azul) e é clivado no meio da molécula (ponto de clivagem marcado em amarelo). Nas exopeptidases, o substrato está estruturalmente comprimido pela cadeia curta da catepsina H em laranja e pela mini alça da catepsina X em verde. Nas exopeptidases esses elementos adicionais fornecem a carga negativa (catepsina H) para a ligação ao amino terminal do substrato (positivo) em azul ou a carga positiva da catepsina X para a ligação à carga negativa da terminação carboxi do substrato em vermelho. Adaptado de [14]. A classificação das endopeptidases baseia-se no seu mecanismo de ação e nos resíduos de aminoácidos envolvidos na catálise. A partir das idéias de classes de proteases propostas por Hartley em 1960, Rawlings e 22 INTRODUÇÃO Barret desenvolveram em 1993 um sistema prático de classificação onde reconheceram inicialmente quatro tipos catalíticos: serino, cisteíno, aspártico e metalo peptidases [2, 15] Em 1995, um quinto tipo catalítico foi descoberto quando a estrutura do proteassoma foi resolvida, mostrando que três das 14 subunidades diferentes eram peptidases pertencentes a uma nova classe, a das treonino peptidases [11]. Em 2004, foi sugerido o sexto tipo catalítico, o das glutâmico peptidases, identificadas em certos fungos [16]. O sétimo e mais novo tipo catalítico é o das asparagino peptídeo liases proposto em 2010 após ser identificado em bactérias e vírus [1]. Os mecanismos de catálise das serino, cisteíno e treonino peptidases envolvem os grupos funcionais de aminoácidos como nucleófilos, respectivamente o oxigênio da hidroxila da serina, o enxofre da sulfidrila da cisteína e oxigênio da hidroxila da treonina. Em aspártico, metalo e glutâmico peptidases, uma molécula de água ativada pelos respectivos resíduos catalíticos é usada como nucleófilo para atacar a ligação peptídica do substrato. Já as asparagino peptídeo liases não são hidrolases e utilizam a ação de amidino liase para clivar as cadeias polipeptídicas [12]. A vantagem da classificação de proteases através do tipo catalítico é que, em geral, enzimas do mesmo tipo catalítico costumam ser inibidas pelos mesmos tipos de moléculas [13]. Por exemplo, a maioria das metalo peptidases é inibida por agentes quelantes como o EDTA e 1,10-fenantrolina (orto-fenantrolina) assim como a maioria das cisteíno peptidases é inibida por iodoacetamida [11, 12]. Porém a classificação somente pelo tipo catalítico 23 INTRODUÇÃO provê pouca informação a respeito da origem evolutiva das enzimas proteolíticas. Como tentativa de traçar a origem evolutiva das proteases, elas são também classificadas pela similaridade de sequência e estrutura, onde proteases com sequências homólogas são agrupadas em famílias e as famílias com estruturas relacionadas são agrupadas em clãs. Um clã contém uma ou mais famílias que possivelmente se originaram de um ancestral comum, mas divergiram de tal maneira que sua relação comparada com a estrutura primária, não pode ser mais comprovada. A homologia no nível de clã é a traçada pela similaridade tridimensional de estruturas, porém o arranjo dos resíduos catalíticos nas cadeias polipeptídicas e similaridades na sequência de aminoácidos ao redor dos aminoácidos catalíticos podem também ser relevantes [17]. A homologia no nível de uma família de peptidases é mostrada por uma relação estatística significante da sequência de aminoácidos da região da molécula responsável pela atividade proteolítica de um membro representativo (protótipo) ou outro membro da família que já tenha sido relacionado ao protótipo. As famílias de proteases podem conter dois ou mais grupos distintos de proteases divididos em subfamílias [12]. A base de dados chamada MEROPS disponível na (http://merops.sanger.ac.uk) possui atualmente aproximadamente internet 3000 peptidases catalogadas seguindo os conceitos de classificação em famílias e clãs descritos acima [2]. 24 INTRODUÇÃO TABELA 01 – Principais proteases classificadas de acordo com seu mecanismo de catálise.a CLASSES PEPTIDASES REPRESENTATIVAS SÍTIO CATALÍTICO ASPARTICO PEPTIDASES Clã AA Pepsina Asp, Asp HIV Peptidase Clã AC Signal peptidase II (E.coli) Asp, Asp CISTEÍNO PEPTIDASES Clã CA Papaína Clã PA(C) Endopeptidases Cys, His, Asn virais quimotripsina His, Glu, Cys símile Clã CD Caspase His, Cys Clã CE Adenaina (Adenovírus tipo II) His, Asp,Glu,Gln,Cys GLUTAMICO PEPTIDASES Clã GA Eqolisina Glu, Gln Cla GB Proteína “Pre-neck appendage” Glu, Asp Termolisina Glu, Asp, His/ Zn2+ METALO PEPTIDASES Clã MA Enzima Conversora de Angiotensina-I Clã MC Metalocarboxipeptidase His, Glu, His/ Zn2+ Tripsina His, Asp, Ser SERINO PEPTIDASES Clã PA(S) Quimotripsina Clã SB Subtilisina Asp, His, Ser Clã SC Carboxipeptidase C Ser, Asp, His Clã SE Carboxipeptidase de Streptomyces Ser, Lys Clã SF Repressor Lexa Ser, Lys Clã SH Peptidase do Herpesvirus His, Ser, His TREONINO PEPTIDASES Clã PB Componenteβdo precursor do proteasoma Thr N-terminal ASPARAGINO PEPTIDEO LIASE Clã N1 nodavirus peptidase (flock house virus) Asp, Asn Clã N4 “Tsh-associated self-cleaving domain” (E.coli) Asn, Tyr,Glu,Arg a = Adaptado do banco de dado MEROPS:http://merops.sanger.ac.uk/indexes.clans.htm ( verificado em 11/2011) 25 INTRODUÇÃO 1.3 MECANISMOS DE AÇÃO DAS ENZIMAS PROTEOLÍTICAS Nesta seção será apresentado um resumo de cada um dos sete tipos de mecanismos catalíticos conhecidos até o momento. O mecanismo catalítico das glutâmico peptidases, tema de estudo desta tese, será discutido novamente em outro capítulo dedicado a estas proteases. 1.3.1 Serino peptidases As serino peptidases são as enzimas proteolíticas mais estudadas e acredita-se que 1/3 de todas as proteases conhecidas pertençam a esta classe [18]. Dentre os exemplos mais conhecidos estão a tripsina, quimotripsina, subtilisina, elastase, trombina, plasmina, calicreinas, prolil oligopeptidase, pró convertases (PCs), Lon peptidases, etc. O sítio ativo destas proteases é formado pela tríade canônica His, Asp, Ser, e apesar de conter algumas variações quanto à posição na sequência primária e presença dos resíduos catalíticos, em todas as serino peptidases o resíduo Ser está presente e é responsável pelo ataque nucleofílico [18, 19]. Os inibidores mais comuns para estas enzimas são PMSF (fluoreto de fenilmetilsulfonila), DFP (Fluorofosfato de diisopropilo), aprotinina, entre outros. 26 INTRODUÇÃO B A Figura 02: (A) Representação da estrutura da subtilisina Carlsberg e (B) da quimotripsina, que pertencem a clãs e famílias diferentes dentro das serino proteases [18]. O mecanismo de catálise das serino proteases envolve duas fases: acilação e deacilação. A etapa de acilação se inicia com o ataque da Ser (nucleófilo) à carbonila da ligação peptídica do substrato, auxiliada pela His que age como uma base geral levando a formação de um intermediário tetraédrico no estado de transição. A His protonada é estabilizada por uma ponte de hidrogênio formada com Asp. A carga negativa do oxigênio do intermediário tetraédrico é estabilizada por pontes de hidrogênio com os resíduos da “cavidade oxiânica” (oxyanion hole). Com o auxílio da His protonada, a parte C-terminal do substrato peptídico é liberado levando a formação da acil-enzima intermediária. Na etapa de deacilação, a acil-enzima intermediária é hidrolisada por uma molécula de água para liberar a parte N-terminal do peptídeo e restaurar a hidroxila da Ser catalítica. A molécula de água é ativada pela His. O posicionamento da histidina facilita a remoção do próton da água e a hidroxila gerada age como nucleófilo atacando o carbono da carbonila e estabelecendo um segundo intermediário tetraédrico. Com o retorno da carga negativa do oxigênio da carbonila para o carbono da ligação, quebra-se a ligação com a serina catalítica, regenerando-se assim a enzima [19, 20]. 27 INTRODUÇÃO 1. Na primeira etapa, a Ser 56 desprotonada pela His . 195 (numeração para tripsina) na tríade Ser-His-Asp é A Ser 195 ativada age então como nucleófilo atacando o carbono da carbonila da ligação peptídica; 2. O oxianion inicia uma reação de eliminação que cliva a ligação peptídica, 56 liberando o novo N-terminal da proteína, protonado pela His ; 3. A His Ser 56 desprotona uma molécula de água, que ataca o carbono da carbonila ligada à 195 ; 28 INTRODUÇÃO 4. O oxianion inicia uma reação de eliminação que cliva a acil-enzima, liberando a parte C-terminal da proteína e a Ser 195 . A Ser 195 então desprotona a His 56 e o sitio ativo é regenerado. Figura 03: Esquema do mecanismo catalítico da tripsina. Adaptado de [21]. 1.3.2 Cisteíno peptidases As cisteíno ou tiol proteases possuem mecanismo catalítico que envolve um resíduo de cisteína. Nesta família estão presentes muitas proteínas de plantas como a papaína que é a enzima protótipo deste grupo, a bromelaina, actinidina, algumas catepsinas lisossomais, as calpaínas, peptidases 3C entre outras. Dentre os principais inibidores estão a iodoacetamida, o E-64 e as cistatinas. A B Figura 04: (A) Representação esquemática tridimensional dos sitios de ligação das peptidases do tipo papaína. (B) Representação da configuração estrutural da catepsina L. Adaptado de [22]. 29 INTRODUÇÃO O sítio ativo das cisteíno proteases é constituído pela tríade Cis-HisAsn (clã CA, ex: papaína) com um mecanismo catalítico similar aos das serino proteases tendo como nucleófilo um grupo tiol ao invés da hidroxila da serina [23, 24]. Em ambos mecanismos ocorrem formação de um intermediário covalente, éster ou tio-éster, porém, nas serino peptidases, a formação do estado de transição e do intermediário tetraédrico é acompanhada por separação de cargas, onde o próton da hidroxila é transferido para o imidazol da His56 (numeração da tripsina) por um mecanismo de catálise básica geral (Figura 05). No caso das cisteíno-peptidases o par iônico tiolato-imidazol já está presente na enzima livre e a formação do estado de transição e do intermediário tetraédrico causa apenas uma reorientação das cargas [20]. As etapas que caracterizam a hidrólise por cisteíno proteases são: 1. O tiolato da Cys 25 (numeração da papaína) age como nucleófilo atacando o carbono da carbonila da ligação peptídica; 30 INTRODUÇÃO 2. Um intermediário tetraédrico é formado e ocorre sua estabilização. O íon imidazólico protona o nitrogênio da ligação peptídica. Com o rompimento da ligação peptídica forma-se a estrutura acil-enzima. O grupo amino da nova porção N-terminal da cadeia peptídica clivada é liberada pela enzima; 3. A His 159 desprotona uma molécula de água, que ataca o carbono da carbonila da cisteína ligada no intermediário, resultando no produto C-terminal e na regeneração da Cys 25 ao seu estado inicial. Figura 05: Mecanismo catalítico de tiol peptidases. Adaptado de [21] 1.3.3 Aspártico peptidase As aspártico peptidases constituem uma classe de proteases que possuem resíduos de Asp no sítio catalítico, sendo que a maioria destas proteases possui uma díade catalítica constituída por dois resíduos de Asp e hidrolisa ligações peptídicas em pH ácido. Dentre exemplos de enzimas pertencentes a esta classe estão a pepsina, renina, algumas catepsinas lisossomais, proteases de fungos, proteases virais incluindo a protease do vírus da imunodeficiência humana (HIV-1 protease), entre outras. O principal inibidor de aspártico proteases é a pepstatina [12]. As aspártico peptidases virais são homodiméricas na forma ativa, sendo que cada subunidade carrega um resíduo de Asp catalítico. Já as 31 INTRODUÇÃO aspártico peptidases de células são geralmente monoméricas e bilobadas com um Asp em cada lóbulo contribuindo para a díade catalítica ativa [25]. Figura 06: Representação da configuração estrutural da peptidase homodimérica HIV-1 protease complexada com inibidor ampranavir. Adaptado de [26]. As aspártico peptidases não usam um grupo funcional de aminoácido como nucleófilo. Neste mecanismo catalítico, uma molécula de água ativada por um dos resíduos de Asp faz o ataque nucleofílico ao carbono da carbonila da ligação peptídica. Foi demonstrado que os Asp catalíticos possuem valores diferentes de pKa, indicando que um dos resíduos estaria agindo como base geral removendo um próton da molécula de água enquanto o outro Asp agiria como ácido doando um próton para o oxigênio da carbonila da ligação peptídica ocorrendo assim a formação de um intermediário tetraédrico [24]. 32 INTRODUÇÃO 1. O resíduo de aminoácido Asp 25 (numeração de HIV-1 protease) desprotona a molécula de água que age como nucleófilo atacando o carbono da carbonila da 25’ ligação peptídica e o oxianion resultante desprotona o Asp ; 2. O Asp 25’ desprotona a hidroxila do intermediário e inicia-se a clivagem da ligação 25 peptídica. O produto N-terminal então desprotona o Asp , que volta a forma inicial. Figura 07: Mecanismo catalítico de aspártico peptidases. Adaptado de [21]. 1.3.4 Metalo peptidases As enzimas desta classe diferem muito em suas sequências de aminoácidos e estruturas, porém elas possuem em comum um ou mais sítios de ligação para átomos de zinco ou outro metal divalente (cobalto, manganês, níquel ou cobre) cataliticamente ativo [27]. 33 INTRODUÇÃO Como exemplos de metalo peptidases incluem-se a carboxipeptidase A, diversas aminopeptidases, termolisina, enzima conversora de angiotensina (ECA), metaloproteases de matriz (MMPs), Desintegrina-metaloproteases com um domínio idêntico à trombospondina (ADAMTs), entre outas. Os inibidores mais comuns são os quelantes de metais como o EDTA e 1,10-fenantrolina. Figura 08: Representação da estrutura da ECA. Adaptado de [28]. Assim como nas aspártico peptidases, nas metalo peptidases o ataque nucleofílico à ligação peptídica é mediado por uma molécula de água. Na maioria das metalo peptidases os ligantes de metal são os resíduos de His, Glu, Asp ou Lys, muitas vezes formando um motivo [29]. Em relação ao mecanismo de catálise das metalo peptidases, os mecanismos propostos são baseados principalmente em estudos realizados com a termolisina e carboxipeptidase A, enzimas protótipos entre as metalo peptidases [27]. Nesta tese, serão abordados somente os mecanismos propostos para a termolisina, que atua como endopeptidase. Há dois mecanismos de ação propostos para a termolisina, no primeiro modelo sugerido propõe-se que o glutamato do motivo HEXXH age como um aceptor de próton durante a catálise [30, 31]. Já, no outro modelo, uma das His do sítio ativo age como base geral ao invés do Glu [32, 33]. O zinco 34 INTRODUÇÃO catalítico na termolisina é coordenado tetraédricamente pelos resíduos His 142, His146 do motivo HEXXH, Glu166 do motivo Glu-(Xaa)3-Asp, e a quarta coordenação é por uma molécula de água. No primeiro mecanismo sugerido (Figura 9), a clivagem da ligação peptídica procede por uma reação de catálise envolvendo uma base geral no qual a molécula de água ativada (íon hidróxido) ataca o carbono da carbonila da ligação peptídica. No início da reação, uma molécula de água é coordenada pelo zinco e a termolisina livre se liga ao substrato. O oxigênio da carbonila da ligação peptídica se posiciona entre His231, Tyr157 e a molécula de água próxima ao cátion zinco. A molécula de água é então deslocada em direção ao Glu143 e sendo ativada nesta etapa promoverá o ataque nucleofílico ao carbono da carbonila. Ocorre a formação de um intermediário, estando o zinco pentacoordenado. A clivagem da ligação C-N então ocorre e o Glu143 agora agindo como ácido, doa um próton e a parte N-terminal é liberada. Ocorre formação de pontes de hidrogênio pelos resíduos Asn112 e Ala113 e uma segunda transferência de próton pelo Glu143 libera o produto C-terminal da reação [27]. 35 INTRODUÇÃO Figura 9: 1º Mecanismo proposto para termolisina. Adaptado de [27] No segundo mecanismo sugerido, outros três aminoácidos (Glu143, Asp226 e a His231) são considerados importantes para catálise além da água ativada, do íon zinco e dos aminoácidos que coordenam o zinco. O Asp226 orienta o grupo imidazol da His231, enquanto a His231 age tanto como um doador de próton (ácido) como aceptor de próton (base geral) [27]. 1. A His 231 desprotona a água, que age como nucleófilo atacando a ligação peptídica, resultando na coordenação do oxianion para o cofator zinco; 36 INTRODUÇÃO 2. O oxianion inicia uma reação de eliminação que cliva a ligação peptídica. A região Nterminal do produto desprotona a His 231 ; 3. O produto N-terminal então desprotona o produto C-terminal. Figura 10: 2º Mecanismo catalítico proposto para termolisina. Adaptado de [21]. 1.3.5 Treonino peptidases As treonino peptidases foram descritas por Lowe et al em 1995, quando a estrutura do cristal do proteassoma da arqueobacteria Thermoplasma acidophilum foi determinada, demonstrando uma treonina Nterminal no sitio ativo [34]. O sistema proteassoma constitui a principal via de degradação de proteínas no citosol e núcleo de células eucarióticas [35, 36]. Os substratos destinados à degradação são marcados pelas cadeias de poliubiquitina e são degradados pelo complexo proteassoma eucariótico 26S 37 INTRODUÇÃO através de um mecanismo dependente de ATP. Este complexo consiste do proteasoma central 20S, onde ocorre a proteólise e dois complexos regulatórios 19S. A unidade catalítica 20S é formada por um complexo cilíndrico constituído por 7 subunidades distintas formadas por 2 anéis alfa e 2 anéis beta superpostos. A peptidase está localizada na parte beta [37]. A B Figura 11: (A) Representação esquemática do proteasoma. (B) Estrutura do proteassoma 20S de levedura. Adaptado de [38]. Nestas peptidades, os resíduos catalíticos de treonina se encontram na região N-terminal e o mecanismo catalítico proposto é similar ao das serino e cisteíno proteases, envolvendo a formação de uma acil enzima intermediária. 1 1 1. O N-terminal da Thr desprotona a hidroxila da Thr , que atua como nucleófilo atacando a ligação peptídica. 38 INTRODUÇÃO 2. O oxianion inicia uma reação de eliminação que cliva a ligação peptídica, o produto Nterminal desprotona o N-terminal da Thr 3. O N-terminal da Thr 1 1 . desprotona a água, que ataca o carbono da carbonila covalentemente ligado ao intermediário C-terminal. 1 4. O oxianion inicia a clivagem da ligação peptídica, o alcoolato da Thr desprotona o N1 terminal da Thr . Figura 12: Mecanismo catalítico proposto para treonino proteases. Adaptado de [21]. 39 INTRODUÇÃO 1.3.6 Glutamico peptidases O sexto mecanismo catalítico proposto foi o das glutâmico peptidases em 2004. A díade catalítica destas enzimas é constituída por resíduos dos aminoácidos Glu (E) e Gln (Q), o que levou as enzimas deste grupo serem conhecidas também como “EQolisinas”. Dentre exemplos de Eqolisinas podem ser citadas a Scytalidoglutâmico peptidase (SGP), Aspergilloglutâmico peptidase (AGP), T. emersonii glutâmico peptidase 1 (TGP1), Penicillium marneffei glutâmico peptidase (PMAP-1), etc. Assim como aspártico e metalo peptidases, nas glutâmico peptidases, o ataque nucleofílico é realizado por uma molécula de água neste caso ativada pelo resíduo de Glu com a formação de um intermediário tetraédrico. A B Figura 13: (A) Estrutura mostrando o sítio ativo e (B) mecanismo catalitico proposto para SGP. Adaptado de [16]. 1.3.7 Asparagino peptídeo liases A sétima e última classe de enzimas proteolíticas foi reconhecida recentemente (2010). Diferente das outras proteases, as enzimas 40 INTRODUÇÃO pertencentes a esta classe não são hidrolases, ou seja, não realizam clivagem de peptídeos ou proteínas por hidrólise (com presença de molécula de água), mas através de um mecanismo de autoclivagem nos resíduos de asparagina, em uma ação de amidino liases. Dentre exemplos de proteases que foram agrupadas neste tipo catalítico estão a proteína precursora Tsh de E.coli, proteína do capsídeo de Picornavírus e Picobirnavírus, outras proteínas virais de Nodavírus, Tetravírus e Reovírus e proteínas contendo inteínas [12]. Neste mecanismo, a asparagina forma um anel estável de succnimidas na própria carbonila que é induzida sobre certas circunstâncias à clivagem de sua própria ligação peptídica [12]. Este mecanismo envolve a ação de liases, ou seja, clivagem entre CC,C-O, C-N e outras pontes por eliminação restando duplas ligações ou anéis, o que levou alguns autores a postular que estas peptídeo liases são enzimas proteolíticas mas não são peptidases, que por definição são as enzimas proteolíticas que utilizam mecanismo envolvendo hidrólise na clivagem de peptídeos e proteínas [1]. Figura 14: Mecanismo catalítico proposto para precursor de Tsh de E.coli. (A) - quando o domínio N-terminal passa através do poro da membrana formado pelo domínio autotransportador, a hidroxila do Glu 1100 (B) - Asn 1249 no domínio autotransportador interage com Asn 1100 . cicliza para formar a succinimida. (C) - a ciclização leva a clivagem da ligação 1101 Asn1100-Asn e o domínio N-terminal é liberado. Adaptado de [1]. 41 INTRODUÇÃO 1.4 ESPECIFICIDADE A especificidade das peptidases por determinados substratos é um aspecto crucial no seu funcionamento. Todas as peptidases são em algum grau sequência-específicas, ou seja, um ou mais resíduos podem ser preferidos ou não em posições particulares envolvendo os sítios de clivagem nos substratos. O grau de especificidade é variável, algumas proteases exibem uma especificidade particular frente a uma única ligação peptídica de somente uma proteína (ex: enzima conversora de angiotensina); já outras são relativamente pouco específicas para substratos, e algumas clivam diversos substratos de uma maneira indiscriminada (ex: proteinase K) [39]. O estudo da especificidade de peptidases provê informações sobre a estrutura e função do sítio ativo, interação proteína-proteína, regulação de vias intra e extracelulares e evolução dos genes de proteases e substratos [40, 41]. Estas informações sobre a especificidade de uma protease possibilitam o desenho e a produção de substratos peptídicos específicos e eficientes que podem ser usados em ensaios in vitro e in vivo ou em cultura de células. Outra possibilidade é o desenvolvimento de análogos de substratos peptídicos com grupos químicos direcionados a atacar uma classe específica de protease, podendo-se produzir inibidores protéicos potentes. Tais inibidores são úteis tanto para estudos biológicos como para o desenvolvimento de novas drogas [42]. A descrição da especificidade é baseada no estudo das propriedades hidrolíticas da papaína realizado por Schechter & Berger (1967) [43], que propuseram um modelo no qual os subsítios correspondem aos locais do sítio 42 INTRODUÇÃO ativo que interagem funcionalmente com os resíduos do substrato. O sítio catalítico está flanqueado em um ou nos dois lados por subsítios de especificidade onde cada subsítio é capaz de acomodar a cadeia lateral de um único aminoácido e por convenção, estes subsitios são numerados a partir do sítio de catálise em direção ao lado N-terminal de S1, S2,..., Sn e para o lado C-terminal de S’1, S’2,..., S’n. Os resíduos de aminoácidos dos substratos que estes subsítios acomodam são denominados P1, P2,..., Pn e P’1, P’2, ..., P’n respectivamente, como mostrado no esquema abaixo: Figura 15. Representação esquemática do modelo proposto por [43] da ligação do substrato à peptidase. A superfície da peptidase é capaz de acomodar a cadeia lateral única de resíduos do substrato denominados subsitios. Os subsitios são numerados S1-Sn do lado N-terminal do substrato (lado não linha), e S1´- Sn´do lado C-terminal (lado linha), iniciando a denominação a partir do ponto de clivagem. Os resíduos de substrato que esses subsitios acomodam são numerados P1-Pn e P1’-Pn’, respectivamente. A estrutura do sitio ativo da peptidase, portanto, determina quais resíduos de substrato podem se ligar ao mesmo, resultando na especificidade da protease. Adaptado de [14]. O reconhecimento do substrato é mediado em parte por interações entre o sítio ativo da peptidase e o sítio de clivagem no substrato, sendo assim, a habilidade de uma enzima de discriminar dois ou mais substratos que competem entre si é função tanto das características químicas dos subsítios da peptidase quanto das propriedades do substrato que com ela interage [14]. Como exemplo, temos as serino proteases qumotripsina, tripsina e elastase 43 INTRODUÇÃO que apresentam tríade catalítica (His, Ser, Asp), estrutura e peso molecular semelhantes entre si, porém diferem quanto à especificidade: o subsítio S1 da tripsina possui uma carga negativa (Asp189) na sua base que facilita a ligação com os resíduos positivamente carregados de arginina e lisina, a quimotripsina possui um subsítio S1 rodeado por resíduos hidrofóbicos e é grande o suficiente para acomodar a cadeia lateral de um aminoácido aromático. Já a elastase possui um subsítio S1 pequeno formado pela presença de resíduos volumosos de treonina e valina na sua abertura e por isso acomoda somente aminoácidos pequenos [44]. A B C Figura 16: Representação da estrutura do sítio de ligação ao substrato da (A) quimotripsina, (B) tripsina e (C) elastase. Adaptado de [44]. 44 INTRODUÇÃO 1.5 CINÉTICA ENZIMÁTICA A disciplina conhecida como cinética enzimática é a aplicação mais antiga e continua sendo uma das mais importantes para entender o mecanismo enzimático. Através dela estudam-se as relações entre as constantes cinéticas de uma reação enzimática e como estas ocorrem em resposta às mudanças em parâmetros experimentais [20]. Os principais fatores que afetam uma reação enzimática são: concentração da enzima, concentração do ligante (substratos, produtos, inibidores e ativadores), pH, força iônica e temperatura; estes quando analisados conjuntamente provêm informações importantes sobre o mecanismo cinético da reação [45]. As enzimas catalisam reações bioquímicas primeiramente interagindo com as moléculas do substrato e depois as transformando quimicamente em estados intermediários até o produto final [45]. Através de modelos matemáticos pode-se deduzir uma equação cinética para uma dada enzima. Esta equação descreve como os ligantes de um sistema interagem para afetar a velocidade da reação e consequentemente, o modelo pode ser testado experimentalmente [20]. Em 1913, Leonor Michaelis e Maud Menten descreveram um dos modelos mais simples e conhecidos para a relação das constantes cinéticas de uma reação enzimática simples com um sítio único de reação: k1 k2 ES E+S k -1 E+P K-2 45 INTRODUÇÃO Onde: E= enzima ES= complexo enzima substrato kX= constante da etapa da reação S= substrato P= produto Neste modelo, assume-se que quando k2 for muito menor que k-1, ocorre o equilíbrio rápido, onde: Ks = k-1/k1 e k2/Ks=k1.k2/k-1. Neste caso, E, S e ES entram rapidamente em equilíbrio, quando comparado à velocidade de transformação do complexo ES em E + P. Aqui, k2 é o fator limitante da velocidade da reação, e em condições de velocidade inicial de reação, k-2 é desprezível, pois a concentração de produto [P] é extremamente baixa e a velocidade da reação será proporcional a [ES]. Portanto, em condições de velocidade inicial da reação, v0 = k2 [ES]. A equação que descreve este modelo, também conhecida como equação de Michaelis Menten é: Onde, é a velocidade inicial, Vmax representa a velocidade máxima adquirida pelo sistema quando a concentração de substrato for máxima (saturante). KM (às vezes representada como Ks) é a concentração de substrato na qual a velocidade da reação é 50% da Vmax. [S] é a concentração do substrato S. Esta equação é a expressão da relação quantitativa entre a , Vmax, e [S], todas relacionadas à KM [46]. A partir da equação de Michaelis-Menten, George Briggs e JBS Haldane propuseram em 1925 o modelo cinético com o tratamento do “Estado Estacionário”, ou seja, nas reações enzimáticas a velocidade com que ES forma E + P é próxima àquela em que este se dissocia de volta a E + S, então, E, S e ES não estarão em equilíbrio rápido, sendo que, k2 é comparável a k-1, e é então estabelecido o estado estacionário no qual a concentração de ES 46 INTRODUÇÃO permanece praticamente constante num certo período de tempo. A inferência sobre o estado estacionário em uma reação enzimática permite desenhar experimentos nos quais se mede a velocidade das reações em que a formação de produto é linear com o tempo. Os parâmetros aqui são dados por: KM = k-1 + k2 /k1 e k2/KM=k1.k2/(k-1+k2), observando-se que KM é uma constante dinâmica, ou de pseudoequilíbrio, que expressa a relação entre as concentrações reais no estado estacionário, ao invés de concentrações no equilíbrio [20]. O plote v x [S] de uma reação de cinética enzimática indica que a equação de Michaelis Menten possui a forma de uma hipérbole equilátera, sendo difícil a obtenção de valores precisos das constantes Vmax e KM. Para se determinar graficamente estes parâmetros cinéticos, diversos rearranjos (linearização) da equação de Michaelis Menten foram descritos e podem ser traçados nos seguintes plotes: plote de Hanes-Woolf ([S]/v versus [S]), plote de Woolf-Augustinsson-Hofstee (v versus v/[S]), plote de Eadie-Scatchard (v/[S] versus v) e plote do duplo recíproco/Lineweaver–Burk (1/v x 1/[S]), sendo este último o mais utilizado para linearização da equação [46]. 47 INTRODUÇÃO 1.6 DEPENDÊNCIA DO pH O arranjo de cargas e os resíduos ionizáveis das proteínas desempenham papéis importantes na determinação da estrutura protéica, solubilidade, tipos de ligação e atividade funcional. A dependência do pH na atividade enzimática e estabilidade também estão diretamente relacionadas a estes resíduos, sendo portanto essencial que as proteínas mantenham o estado apropriado de ionização das cadeias laterais [20]. O valor de pH no qual a carga líquida de uma enzima é zero é chamado de ponto isoelétrico (pI), que é característico para cada enzima e neste pH a enzima geralmente possui solubilidade mínima em soluções aquosas. Abaixo do pI, a carga liquida é positiva e acima do pI é negativa [46]. A identificação dos resíduos catalíticos essenciais para a atividade de uma determinada protease pode ser obtida através do efeito da ionização destes grupos catalíticos nas cinéticas enzimáticas. Os plotes das curvas de pH obtidos através de parâmetros cinéticos determinam valores de pK significativos que podem sugerir quais são estes resíduos catalíticos (Tabela 02). O valor de pK de uma enzima determina o estado de protonação e assim a carga de um resíduo em um determinado pH. Esta informação é importante para racionalizar a interação entre proteínas determinando a energia requerida para protonar ou desprotonar um grupo e para descrever o mecanismo enzimático ou o processo de transferência de prótons [20]. 48 INTRODUÇÃO Os valores de pK dos resíduos de aminoácidos ionizáveis de uma enzima muitas vezes diferem dos valores de pK correspondentes aos determinados para a forma livre do aminoácido. Este efeito ocorre devido à proteção contra a exposição dos grupos ionizáveis ao meio aquoso exercido tanto pelo substrato quanto pela própria proteína [46]. A determinação dos valores de pK de uma enzima pode ser feita assumindo-se que [20]: 1. Os grupos agem como titulantes ácidos ou básicos. 2. Ocorre somente uma forma iônica (protonada ou desprotonada) da enzima durante a catálise. 3. Todos os intermediários estão em equilíbrio protônico; ou seja, as transferências de próton são mais rápidas que as etapas químicas. Relembrando alguns conceitos básicos da ionização de uma base B ou ácido HA em termos de seu conjugado ácido BH ou base A - temos a constante de ionização definida por: E o pKa (o valor de pH no qual resíduos individuais ácidos ou básicos estão 50% em seu estado ionizável), dado pela seguinte equação: pKa= -log Ka Estas duas equações podem ser rearranjadas resultando na reação de Henderson Hasselbalch: pH= pKa + log 49 INTRODUÇÃO Para estudos dos efeitos do pH em reações catalisadas por enzimas considera-se o modelo no qual o substrato não ioniza, enquanto os grupos ionizáveis estão presentes na enzima livre e no complexo enzima substrato (ES). A forma reativa da enzima e do complexo é a forma monoionizada (EH ou EHS) de espécies diácidas (EH2) [46]: E+S ES kes2 Ke2 ks S + EH Ke1 EH2 EHS kcat EH + P Kes1 EH2S Outro parâmetro útil na identificação da natureza química das cargas dos grupos envolvidos nas reações é a entalpia de ionização (H). Esta entalpia de ionização é determinada pela dependência da temperatura do equilíbrio da constante de ionização (Ka). Os aminoácidos presentes no sítio ativo de uma enzima podem ser identificados por seu pK e H característicos [46]. Através da equação de Van’t Hoff, é possível determinar as constantes termodinâmicas da ionização: 50