Aceda ao catálogo

Propaganda
MEMORIAL
DA ESCRAVATURA
E DO TRÁFICO
NEGREIRO
Cacheu, Guiné-Bissau
Financiamento
FICHA TÉCNICA
Coordenação
Alfredo Caldeira
Coordenação Científica
Isabel Castro Henriques
Textos
Victor Ramos
Inês Quintanilha
Philip Havik
Alfredo Caldeira
Seleção e tratamento de imagens
António Coelho
Victor Ramos
Inês Quintanilha
Paulo Caldeira
Alfredo Caldeira
Design
Gonçalo Castilho
Museologia
Alfredo Caldeira
Victor Ramos
Gonçalo Castilho
Daniela Ermano
João Carrasco
Agradecimentos
AD - Acção para o Desenvolvimento
Tomane Camará
AIN - Associazione Interpreti
Naturalistici
Claudio Arbore
COAJOQ - Cooperativa
Agropecuária de Jovens Quadros
Leandro Pinto Júnior
Projeto de reabilitação do Memorial
da Escravatura e do Tráfico Negreiro
Arquitetura
Daniela Ermano
João Carrasco
Engenharia
Tiago Serralheiro
Financiamento
Apoios
Impressão Exposição
BBA-Impressão Digital, Lda.
Impressão Catálogo
Estúdios Fernando Jorge
Reprodução de Objetos
Cine Set
Edição Fundação Mário Soares
ISBN: 978-972-8885-32-8
Depósito legal: 411278/16
Alto Patrocínio da CPLP-Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa
Escravatura
e Tráfico Negreiro
Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro
Cacheu, Guiné-Bissau
Julho 2016
Imagem provisória a substituir
ÍNDICE
5
Prefácio
7
Apresentação
9
Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro
11
O Espaço Africano
15
A Presença Portuguesa
19
Escravos em Terra
23
Navios Negreiros
27
Pidgin e Crioulo
29
Sistemas de Comércio
35
Decadência de Cacheu
37
Abolição da Escravatura
43
A construção do Racismo
45
Novas formas de Servidão
53
Cronologia
65
Bibliografia
Máscara/pendente da Rainha-mãe, em marfim, ferro e cobre,
princípio do século XVI, Benim. Na tiara e colar encontram-se
representações de navegadores/comerciantes portugueses.
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Estados Unidos
da América
PREFÁCIO
ACERCA DA ESCRAVATURA
E DO TRÁFICO NEGREIRO
N
a história mundial da Escravatura,
sistema de dominação dos homens
que marcou as sociedades em momentos
históricos precisos, a vertente do tráfico
negreiro atlântico apresenta múltiplas
singularidades: a sua longa duração – mais
de quatro séculos; a amplitude espacial –
vários continentes foram historicamente
marcados por este fenómeno de violência;
a especificidade das vítimas – homens, mulheres e crianças; a sua legitimação ideológica – a desvalorização cultural da África e
dos Africanos traduzida na construção da
ideologia do racismo anti-Negro e da sua
organização jurídica.
Se os debates consagrados a este fenómeno
histórico, que envolveu milhares de seres
humanos, têm vindo a esclarecer problemas e a abrir caminhos do conhecimento,
estamos ainda longe de conhecer a sua dimensão social, económica, ideológica e cultural nas diferentes regiões do mundo. Estudar a violência esclavagista europeia e as
suas consequências históricas é uma tarefa
difícil mas necessária, que obriga a estudos
rigorosos sobre as relações e os mecanismos estabelecidos para assegurar a desumanização dos Africanos transformados
em mercadorias.
As formas africanas de escravatura, isto é,
de dependência dos homens segundo os
processos de poder e de dominação existentes, revestiam-se de características definidas pela organização social,
onde o critério do parentesco assumia um lugar central
na vida das populações, condicionando as práticas económicas e implicando a sua integração nas estruturas familiares. O parentesco permitia tornar flexível o sistema
e repelir as formas violentas de exclusão. A escravização
dos Africanos levada a cabo pelos Europeus alterou estes
parâmetros, retirando-lhes as suas qualidades humanas
para os mercantilizar, modificando-lhes o corpo, apagando as suas marcas identitárias e introduzindo marcadores que os coisificavam.
Arrancados ao seu espaço familiar, social, religioso, cultural, territorial, os Africanos escravizados foram transferidos para outros mundos, onde a sua utilização constituiu um fator económico decisivo de criação de riqueza,
levando também ao aparecimento de novas formas culturais, que irromperam e marcaram o mundo. O negreiro
e o esclavagista, interessados na vertente económica do
escravo, não puderam eliminar culturas, valores, divindades que os homens carregavam consigo e que lhes permitiram sobreviver, resistir e reconstruir identidades inéditas em espaços hostis e violentos.
O comércio negreiro europeu, gerador de lucros fabulosos, que retirou de África milhões de seres humanos,
representou uma desestruturação das formas de organização de muitas sociedades africanas. Este comércio
exterior de escravos, resultado da intervenção dos esclavagistas, legitimados por ideologias e apoiados pelo
Cristianismo, contou também com a adesão de inúmeras
chefias africanas que participaram nestas operações comerciais, procurando extrair benefícios para consolidar
os seus poderes nos planos simbólico e político, mas tam-
5
bém económico, o que tornou o fenómeno mais complexo
e ainda hoje marcado por uma grande fragilidade no campo do conhecimento.
Também a abolição do tráfico negreiro e da escravatura,
que se verificaram no século XIX, não significaram o fim
das operações de violência, que se metamorfosearam no
século XX em outras formas de dominação dos Africanos.
A maneira como fora organizada a economia colonial dos
impérios europeus renovados numa lógica de ocupação
dos espaços e de exploração das suas riquezas, traduziu-se na organização de novos sistemas de trabalho justificados pelas ideologias coloniais e redutores da humanidade africana.
6
Se hoje o fenómeno adquiriu uma consciência mundial, a
escravatura atual e o tráfico de pessoas constituem uma
violação da dignidade humana, impondo uma reflexão
profunda, que conta com a intervenção ativa de uma
diáspora africana que, através do mundo, mostra de forma inequívoca a força da uma africanidade global e as
formas sempre renovadas de uma identidade de matriz
africana.
Isabel Castro Henriques
Desenho de um escravo com corda em redor do
pescoço.
George Schweinfurth, The Heart of Africa, 1874, in
http://hitchcock.itc.virginia.edu
APRESENTAÇÃO
A
Escravatura e o Tráfico Negreiro
constituem uma marca indelével na
História da Humanidade. Ao longo de quatro séculos, mais de 12 milhões de africanos
foram capturados, reduzidos a mercadorias
e transportados para outros continentes.
O projeto de instalação em Cacheu, na
Guiné-Bissau, do Memorial da Escravatura
e do Tráfico Negreiro e da sua exposição
permanente pretende, precisamente, evocar e narrar momentos marcantes dessas
realidades, preservando a sua memória e
fornecendo aos visitantes instrumentos de
compreensão e de repúdio.
Nos tempos atuais, têm surgido novas formas de servidão, que importa igualmente
combater em nome dos direitos da pessoa
humana, em nome dos direitos dos cidadãos conscientes que queremos ser.
Esta atualidade do tema suscitou o empenho de várias organizações e indivíduos na
materialização do projeto, envolvendo diferentes saberes e capacidades com vista ao
arranque de um Memorial que seja ativamente participado pela comunidade e que
saiba, em simultâneo, inscrever-se no roteiro internacional de pesquisas e de estudos
sobre a escravatura e o tráfico negreiro.
Não foi um projeto fácil. E, em boa verdade,
ainda importa continuá-lo, fortalecendo as
suas valências e melhorando as suas competências. Inaugurado o edifício principal do
Memorial e instalada a sua exposição perma-
nente, consideramos essencial prosseguir o caminho já percorrido e robustecer os laços de cooperação estabelecidos.
A realização do projeto do Memorial da Escravatura e do
Tráfico Negreiro, em Cacheu, foi possível mediante a colaboração entre a ONGD guineense Acção para o Desenvolvimento (AD), a Associazione Interpreti Naturalistici (AIN), de Itália, a COAJOQ, Cooperativa Agropecuária
de Jovens Quadros, com sede na Região de Cacheu, e a
Fundação Mário Soares, de Portugal.
Nesse âmbito, importa ainda destacar o papel dos projetistas Arqtos. Daniela Ermano e João Carrasco e Eng.
Tiago Serralheiro, cujo trabalho permitiu conceber e realizar um projeto inovador e de grande qualidade estética
e funcional.
Por outro lado, agradecemos o apoio e a direção científica
da Prof.ª Doutora Isabel Castro Henriques e a colaboração do Prof. Doutor Philip Havik, que ajudaram a tornar
possível o projeto museológico e a abordagem dos respetivos conteúdos.
Finalmente, refira-se o apoio inicial da UNESCO, o financiamento prestado pela União Europeia, pela AD-Acção
para o Desenvolvimento e pela Fundação Mário Soares
e ainda a atribuição pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa do seu Alto Patrocínio.
Agora, há que avançar e garantir que a Memória Histórica que aqui se celebra é um passo essencial para o Futuro.
Tomane Camara, Diretor Executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento
Claudio Arbore, Presidente da AIN - Associazione Interpreti Naturalistici
Leandro Pinto Júnior, da COAJOQ - Cooperativa Agropecuária de Jovens
Quadros
Alfredo Caldeira, Administrador do Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário
Soares
7
8
Aspeto da varanda e escada do pátio interior do Memorial em construção, abril de 2016.
MEMORIAL DA ESCRAVATURA E DO TRÁFICO NEGREIRO
O
memorial da escravatura e do Tráfico Negreiro em Cacheu, agora inaugurado, é o culminar de um longo caminho
cuja génese poderá ser encontrada em Novembro de 2010, aquando da realização do
1.º Festival Quilombola em Cacheu, com
apoio da União Europeia no âmbito do projeto Percurso dos Quilombos.
Nessa data, e por iniciativa da ONGD guineense Ação para o Desenvolvimento (AD)
e, em particular, do seu então diretor executivo, o Eng.º Carlos Schwarz, o nosso saudoso “Pepito”, teve lugar um acontecimento
inédito e de suma importância: descendentes de antigos escravos, levados das costas
da Guiné-Bissau para o Brasil, fugidos das
plantações e engenhos, organizados em comunidades autónomas (os chamados “Quilombos”), visitaram as terras dos seus antepassados, numa celebração cultural das
suas raízes ancestrais.
Face ao sucesso deste evento, e de forma metódica, desde
logo a AD, em parceria com a AIN - Associazione Interpreti
Naturalistici (representada pelo seu Presidente, Dr. Claudio Arbore), encetou os primeiros esforços no sentido de
instalar um equipamento cultural permanente, que pudesse evocar a cruel realidade que foi o comércio de escravos, ao mesmo tempo que dinamizava, com as populações
locais, iniciativas culturais e de apoio ao desenvolvimento.
O documento de síntese do projeto “Cacheu caminho de
Escravos” foi entregue à União Europeia no dia 27 de Fevereiro 2012, vindo a ser aprovado no final desse ano.
9
Aspeto do edifício em ruínas, reabilitado para instalação do Memorial da
Escravatura e do Tráfico Negreiro, Cacheu, Guiné-Bissau.
Carlos Schwarz, Pepito (1949-2014).
Fotografia de Ernst Schade
Entretanto, com uma pequena verba da UNESCO, foi viabilizada a deslocação a Cacheu do Arq.º João Carrasco
e do Dr. Victor Ramos (da Fundação Mário Soares) com
vista a proceder ao levantamento arquitetónico de um
edifício em ruínas – antiga Casa Gouveia, posteriormente
Armazéns do Povo – onde hoje se encontra instalado este
Memorial, e debater os próximos passos. Estavam lançadas as bases.
O ESPAÇO AFRICANO
VISÕES PORTUGUESAS
V
alentim fernandes, cronista do fim
do século XV e início XVI, que se apoiou
em descrições de alguns navegadores, fornece-nos uma ideia do povoamento da região da
atual Guiné-Bissau. Numa primeira descrição
do Rio de São Domingos (hoje Rio Cacheu) e
de Cacheu, ou Caticheu (“o lugar onde nos
descansamos” em Banhun), escreveu:
Em frente deste esteiro deste Rio de São
Domingos contra a banda do Sul está uma
terra que se chama Caticheo e tem rei sobre
si, é terra muito abastada como a outra [refere-se ao Rio Casamança e à terra dos Banhuns]. E tem também feira e vão à feira dos
Banhuns e os Banhuns a estes e se presta de
grandes amizades, porém é lugar sobre si e
tem todas as ordenações da sua idolatria
como os Banhuns e há de uma terra e outra
três léguas por mar.
Página do prólogo de
“Esmeraldo de situ
orbis” (1506), da autoria do cosmógrafo
português Duarte
Pacheco Pereira.
Biblioteca Nacional
de Portugal
Também o cabo-verdiano André Álvares de Almada, no
seu “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo-Verde”
(1594), dá voz a outras descrições de navegadores:
As casas da dita povoação [do Rei dos Buramos, também
chamados Papéis naquela altura – refere-se aos Manjacos
da zona de Cacheu] são de taipa como as do Casamança,
delas sobradadas, cobertas de olas, com grandes cercas
de pau fincados a pique, feito um muro de palha a que
chamam tapadas, e por dentro destas cercas vão as casas
por dentro, segundo as posses dos moradores. E acrescenta que o rei que mora naquela tabanca se chama Chapala
“o principal deste rio” (Rio de São Domingos ou Cacheu).
Chapala foi quem autorizou a fortificação de Cacheu em
1588.
Segundo Álvares de Almada, a arquitetura das casas nas
povoações na zona (por ex., dos Manjacos nas ilhas de
Jeta e Pecixe) era influenciada pelos ataques frequentes
dos Bijagós, com vista à captura e escravização dos locais,
mais tarde vendidos a negreiros europeus: as casas são
muito boas e são mais labirintos que casas. E fazem nas
desta maneira por causa de uma nação de negros chamados Bijagós, que habitam em umas ilhas de frente destes
Buramos, ao Sul desta terra (…); os quais tem continuadamente guerra com estes, e dão muitas vezes neles, fazendo
muitas presas. É por esse respeito que tem as casas desta
maneira, para embaraçarem os inimigos e se acolherem.
Habitação Felupe em Bolor.
Fotografia de
Patrício Ribeiro,
2015
11
Adiante, refere as casas dos Manjacos das Ilhetas: Tem
para negros boas casas de taipas ou adobes, redondas,
cobertos por cima das folhas dos cibes, a que chamam na
nossa Índia Oriental olas, e são grandes e boas, e com tantas portas e repartidas de maneira que ficam sendo mais
labirintos que casas.
Nas descrições de outros lugares, inclui ainda referências
a tabancas, como as dos Biafadas: Vivem aparatadas em
casas de taipa, cobertas de palha, às quais chamam cá se
chama entre nós quintas, chamam eles apolónias. E há algumas de alguns fidalgos muito grandes, de muitas casas.
E as mais delas ou todas, se fazem a par de umas arvores
muito grandes, chamadas poilões, á sombra das quais fazem os seus juízos e consistórios.
12
Estas foram as visões dos espaços africanos com que os
portugueses se depararam e que rapidamente haveriam
de se alterar.
Página do “Tratado Breve dos Rios de Guiné
do Cabo-Verde desde
os Rios de Sanagá até
aos Baixos de St.ª Ana;
de todas as Nações de
Negros que há na dita
Costa, e de seus Costumes, Armas, Trajes,
Juramentos e Guerras”
(1594), de André Alvares de Almada.
Biblioteca Nacional de
Portugal
POVOS E CULTURAS
O
espaço geográfico onde atualmente se encontra a Guiné-Bissau, bem
como a sub-região da Senegâmbia onde
está inserida, foi alvo, ao longo de muitos
séculos, de intensas disputas entre diferentes unidades étnico-políticas africanas.
As diferentes etnias que se foram instalando no território (Balantas, Fulas, Manjacos,
Mandingas, Papéis, Bijagós, etc.) mantiveram relações entre elas e com grupos vizinhos, mais ou menos longínquos, através
da atividade comercial local, regional ou
integrada no comércio de longa distância.
Esse comércio, essencialmente para consumo interno, coexistia com redes comerciais
inter-regionais, controladas pelas unidades
imperiais dominantes.
Aquando da chegada dos navegadores portugueses no século XVI, foi com o Império
do Mali, então dominante na região, que se
estabeleceram as primeiras relações pacíficas: em 1556, Diogo Gomes sobe o rio Gâmbia e alcança o mercado de Cantor, um entreposto do comércio do ouro do Mali.
Este era um império à beira do fim. Disputas sucessórias e problemas financeiros
levaram à ascensão de Gao, uma antiga dependência do Mali, agora unificada como
Império Songhai, que gradualmente irá
dominar toda a região. Paralelamente, também o Reino Mandinga do Gabú conquis-
tou a sua autonomia em 1537, com Sami Koli
a tornar-se o seu primeiro monarca.
vida de escravatura nas Américas. Com a criação, em 1727,
do Imanato do Futa Djalon, a resistência Fula intensifica-se, culminando na Batalha de Kansala, em 1867, de que
resulta o fim do Império do Gabú.
Este conturbado percurso, autêntico cadinho étnico com
múltiplas vagas migratórias, originou o mosaico humano
que perdura até aos nossos dias, apesar do traçado artificial das fronteiras da atual Guiné-Bissau, estabelecido
pela Convenção luso-francesa de 1886, e das “campanhas
de pacificação”, já em pleno século XX.
Pormenor do Atlas Catalão de Abraão Cresques, 1375.
Ao centro, Musa Keita I, o 10.º “Mansa” (sultão ou imperador) do Império do Mali, segurando uma pepita de
ouro, uma das principais fontes do poderio imperial.
Bibliothèque National de France
Pouco depois, contudo, a batalha de Tondibi,
em 1591, marcou o fim do Império Songhai.
Sob o comando de Judar Pasha, um eunuco
nascido em Espanha, mas raptado e criado
em Marrocos, forças do Sultão Ahmad I al-Mansur remetem o povo Songhai para o
pequeno reino de Dendi, deixando esta vasta sub-região dispersa entre pequenas unidades, controladas na sua grande maioria
pelo Império do Gabú.
A hegemonia Mandinga do Gabú manteve-se até finais do século XIX. Expandindo-se
agressivamente para territórios Wolof, Serer e Fula, alimentaram, para seu proveito, a
crescente procura de escravos por parte das
potências europeias, enviando milhares de
súbditos, em particular Fulas, para uma
Tal diversidade étnica traduziu-se, também, nos costumes e culturas, assim como na natureza das suas atividades económicas predominantes (agricultura, pastorícia,
pesca), nas diferentes línguas maternas e na organização
social e religiosa próprias.
13
14
Brasão de Fernão
Gomes de Mina,
Livro do ArmeiroMor, de João do
Cró, 1509.
Arquivo Nacional
da Torre do Tombo
A PRESENÇA PORTUGUESA
A
chegada dos portugueses à região
da Guiné insere-se no processo da expansão iniciada no norte de África, a partir
da conquista de Ceuta, em 1415, cuja concretização foi possível graças a um conjunto
de fatores de natureza diversa (económicos,
políticos, sociais e religiosos), em que se
destacam os avanços tecnológicos no domínio das técnicas de construção naval e de
navegação.
ao Brasil em 1500, constituem os avanços fundamentais
da expansão portuguesa até ao início do século XVI.
Portugal conseguiu assim levar a cabo viagens de exploração da costa africana que
permitiram cartografar as terras do litoral,
identificar os povos e os seus sistemas de
organização e reconhecer as mercadorias
capazes de assegurar a rentabilidade do
empreendimento, como ouro, marfim, escravos, gatos de algália, goma-arábica, malagueta ou pimenta-de-rabo.
15
Os navegadores portugueses dominaram
progressivamente rotas comerciais lucrativas, instalando entrepostos comerciais
em lugares estratégicos, cada vez mais a
sul, gradualmente fortificados, reforçando
a presença dominante exclusiva que lhes
fora reconhecida pela Santa Sé.
A descoberta das ilhas de Cabo Verde, entre 1456 e 1462, e de São Tomé e Príncipe,
em 1470, a busca de um caminho marítimo
para a Índia e o acesso direto aos mercados
asiáticos de especiarias - o que veio a concretizar-se com Vasco da Gama a partir de
1498 -, e a chegada de Pedro Álvares Cabral
Carta da África Ocidental, incluída no atlas do cartógrafo português
Lázaro Luís, 1563.
Academia das Ciências de Lisboa
A “ÁFRICA NEGRA”
E
esta gente desta terra verde é toda negra e por isso é
chamada terra de negros ou terra da Guiné, por cujo
azo os homens e mulheres dela são chamados de Guinéus
que quer dizer o mesmo que negros (Gomes Eanes de Zurara, Crónica do descobrimento e conquista da Guiné,
1453).
Após a tomada de Ceuta e a chegada aos arquipélagos
atlânticos (Canárias, Madeira e Açores), em paralelo com
avanços e recuos na costa ocidental marroquina, Gil Eanes dobra, em 1434, o Cabo Bojador, até então conhecido
como Cabo do Medo, no Saara Ocidental, o primeiro grande obstáculo naútico na viagem para sul.
16
Chronica do descobrimento e conquista de Guiné, de
Gomes Eanes de Zurara, 1452-1453. Esta edição, publicada em Paris, em 1841, inclui retrato do Infante D.
Henrique.
Biblioteca Nacional de Portugal
Anos depois, em 1441, Nuno Tristão e Antão Gonçalves
navegam para sul do Cabo Branco, permanecendo cerca
de dois anos nas águas do noroeste africano, avançando
até ao rio do Ouro, onde adquirem ouro em pó, seguindo
depois para o Golfo de Arguim, na atual Mauritânia, onde
se apossam de 28 escravos, construindo, em 1461, a feitoria
e castelo de Arguim, que viria a constituir uma base para
as expedições à terra dos negros, ou seja, à Senegâmbia e
aos seus cursos fluviais.
Em 1468, o rei D. Afonso V celebrou um
contrato de monopólio do resgate e trato
da Guiné com o mercador Fernão Gomes,
que veio a alargar a penetração no Golfo da
Guiné, aumentando a captura de escravos,
que se vai tornando rapidamente uma das
mercadorias mais rentáveis do comércio ao
longo da costa ocidental de África.
Desconhece-se quem terá sido o primeiro navegador a
atingir a costa da atual Guiné-Bissau (Álvaro Fernandes
ou Nuno Tristão), mas sabe-se que em 1446 entram no rio
Cacheu, onde desembarcam, ignorando-se porém pormenores da sua instalação. Muitas destas navegações envolviam a Coroa, em especial o Infante D. Henrique, mas
também interesses privados, sabendo-se que, até 1460,
data da morte do Infante, todo o litoral até à atual Serra
Leoa foi explorado com algum detalhe, incluindo inúmeras incursões nos rios da região.
Por outro lado, a construção, em 1482, do
Castelo de São Jorge de Mina, na “Costa do
Ouro”, representa um passo decisivo no domínio português das trocas comerciais com
os potentados locais, ao mesmo tempo que
o povoamento metropolitano das ilhas de
Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe implicou o transporte para essas colónias agrícolas de mão-de-obra escrava, resgatada nas
costas adjacentes.
GUINÉ E CABO VERDE
A
pós a descoberta das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde, a Coroa portuguesa procedeu de imediato ao seu povoamento, sobretudo nas ilhas de Santiago
(na zona que viria a ser a cidade de Ribeira
Grande, hoje conhecida como Cidade Velha)
e do Fogo.
O rei de Portugal adotou o sistema de Capitães-Donatários, delegando poderes em nobres da sua confiança. Só muito mais tarde,
a partir das reformas pombalinas do século
XVIII, e num contexto generalizado de centralização do poder, é que a Coroa entrou
diretamente na administração das terras.
Com recurso a mão-de-obra escrava oriunda da vizinha costa da Guiné, os portugueses iniciaram então a exploração da cultura de cana-de-açúcar, algodão e árvores de
fruto (em Santiago), vinha (no Fogo), e, mais
tarde, nas ilhas da Boavista e Maio, a criação
de gado. Apesar disso, a valorização económica das ilhas foi sempre indissociável do
litoral africano da Guiné do Cabo Verde.
Detalhe de um
pano d’obra manjaco, datado do
início do século
XX.
Portugueses mestiços nascidos em Cabo Verde substituiram rapidamente os reinóis como lançados na Senegâmbia, graças às imunidades adquiridas relativamente a
doenças tropicais, bem como ao domínio do crioulo e das
diferentes línguas, imprescindíveis no desenvolvimento
de relações comerciais com as populações locais.
Nas últimas décadas do século XV, a expansão deste comércio caboverdiano associado aos lançados estabelecidos no hinterland continental levou a numerosas queixas
por parte dos mercadores portugueses a quem a Coroa
havia concedido monopólios comerciais na zona. Apesar
das proibições régias, este comércio floresceu ao longo
dos séculos seguintes, e embora pouco mencionado nas
fontes portuguesas, outros relatos da época dão-nos uma
possível imagem da dimensão do negócio:
O comércio que chamamos costeiro é efectuado sobretudo, em pequenas embarcações, por portugueses que vivem na ilha de Santiago. Primeiro carregam-nas com sal,
que convenientemente obtêm por quase nada nas ilhas
de Maio e Sal, e depois navegam para Serra Leoa onde o
trocam por ouro, marfim e noz de cola. Daí seguem para
Joala e Porto d’Ale Cin Senegal [no atual Senegal], onde
trocam parte da noz de cola por panos de algodão. Por
vezes também trocam marfim obtido na Serra Leoa por
panos de Cabo Verde. Daí navegam rumo a Cacheu onde
trocam o resto da noz de cola e restantes bens por escravos (Relato de Dierick Ruiters, navegador holandês, em
1623).
Os principais produtos utilizados nas trocas efetuadas
no litoral africano para a aquisição de escravos incluíam
sal, cavalos, produtos agrícolas, tabaco, aguardente e panos caboverdianos, sendo que estes três últimos se mantiveram no topo das trocas comerciais até finais do século XIX.
17
FORTE DE CACHEU
O
tráfico transatlântico de escravos, que se inicia por volta de 1500, tem nas ilhas de Cabo Verde
(em particular, Santiago) o primeiro ponto de partida dos
navios negreiros com destino às Américas, constituindo
Cacheu, assim como as restantes praças portuguesas na
costa da Senegâmbia, pontos de captura/compra de escravos, posteriormente transportados para Cabo Verde, que
funcionava assim como entreposto comercial. Contudo,
e principalmente a partir da construção do fortim e feitoria de Cacheu, a importância de Ribeira Grande vai decrescendo no comércio de escravos, vindo Cacheu a ocupar rapidamente esse papel central no tráfico negreiro.
18
A resistência à implantação portuguesa foi uma realidade sempre presente: logo em 1590, os habitantes da região
atacaram a fortificação numa batalha que durou 3 dias.
Após a vitória, o local passou a ser designado por “Nossa
Senhora do Vencimento”. Mesmo sob domínio espanhol
(1580-1640), os portugueses, a partir desta vitória, encetaram esforços cada vez mais consistentes para tornar
Cacheu um ponto-chave da sua implantação na região.
Entre 1614 e 1625 uma série de determinações régias lançaram as bases legais para o estabelecimento definitivo
da Capitania de Cacheu.
consequente reforço do poder régio representava uma ameaça aos seus interesses
financeiros e comerciais, impedindo-os de
negociar com outras potências europeias e
constituía uma afronta ao seu efetivo domínio sobre o território.
Esta resistência manifestou-se sob diferentes formas, sendo a mais comum a privação
de acesso a pontos de abastecimento de
água potável, embora ameaças de “liquidação total” não fossem incomuns. Assim, a
construção do forte estendeu-se por um período de pelo menos três décadas: em 1669,
o comerciante Francisco de Lemos Coelho
observava que “a casa forte era forte apenas no nome”, e que consistia num edifício
de adobe, similar a outros existentes no local, com a única diferença de que, na frente
virada para o rio, possuía uma plataforma
com algumas peças de artilharia, porém
“sem ter uma peça que pudesse disparar”.
Definida a estrutura administrativa de Cacheu, a Coroa
portuguesa nomeou em 1641, Gonçalo Gambôa de Ayala
para Capitão-Mor.
Partindo de Lisboa nesse mesmo ano, Ayala levou consigo quatro carpinteiros, quatro pedreiros e uma grande
quantidade de pedra, tijolo e telha, além de um significativo contingente militar. O objetivo era claro: construir
uma fortaleza em Cacheu. Tal propósito encontrou fortes resistências. Para os locais, a construção de um forte e
Aspecto atual
do Forte de
Cacheu.
Fotografia
Fundação Mário
Soares
ESCRAVOS EM TERRA
A
questão da escravatura em África
tem sido objeto de diferentes interpretações, sabendo-se no entanto que a
escravização dos homens - sujeita a regras
particulares segundo as diferentes regiões
africanas - bem como o tráfico de africanos
eram realidades existentes à chegada dos
europeus ao continente africano. As redes
transafricanas operavam de forma regular,
abastecendo de escravos muitos potentados africanos e, em articulação com o mundo exterior, alimentando inúmeros e longínquos mercados como os mediterrânicos,
os da Península Arábica e do sub-continente indiano e até à China, através do Oceano
Índico.
Com a criação do Califado após a morte do
profeta Maomé e a subsequente expansão
do Islão para África, consolidaram-se e intensificaram-se as práticas comerciais esclavagistas pré-existentes. Segundo o historiador Elikia M’Bokolo, (...) a escravatura
achou-se bruscamente legitimada, já que
qualquer idólatra capturado numa guerra
santa estava votado à escravatura. A consequência foi conferir a todas as guerras e às
simples expedições o estatuto de jihad e de
multiplicar as ocasiões de capturar escravos. Por outro lado, a escravatura tornou-se
cada vez mais uma condição específica e exclusiva dos africanos negros.
A chegada dos europeus originou profundas mutações na região, ao nível dos equilíbrios políticos e das rotas comerciais, alar-
gando também substancialmente a procura de escravos.
Sem prejuízo das incursões militares terrestres para captura de escravos, dirigidas ou organizados por europeus,
muitas dessas razzias eram executadas pelos chefes locais, com vista a corresponder às crescentes solicitações
da procura, trazendo esses escravos até às praças europeias no litoral, onde eram embarcados para os diferentes destinos, designadamente o continente americano.
As mercadorias que serviam de moeda de troca para a
aquisição de escravos não eram sempre as mesmas, variando quer no tempo, quer segundo os territórios e as
preferências das populações locais. Às mercadorias de
origem europeia das primeiras incursões comerciais (cavalos, quinquilharia, tecidos e manufacturas diversas,
bebidas alcoólicas), juntaram-se também produtos de
diferentes regiões como panos locais, noz de cola, ouro,
sal, argolas de metal. A troca dos escravos por armas e
munições, embora formalmente proibida, tornou-se cada
vez mais frequente, pelo prestígio e pelo poder que trazia aos chefes africanos, bem como pelos elevados lucros
que proporcionava aos europeus.
Mercadores árabes de escravos atacando uma aldeia, África
Ocidental, século XIX.
Hermann von Wissman, My Second Journey through Equatorial Africa from the Congo to the Zambesi in the years
1886 and 1887, Londres, 1891
19
A LONGA MARCHA
P
risioneiros de guerra ou aprisionados em razzias
destinadas a alimentar o comércio negreiro, os africanos eram escravizados e geralmente vendidos em feiras
ou mercados, muitas vezes localizados em pontos estratégicos junto a braços de rio. A estes mercados acorriam comerciantes intermediários ou representantes - frequentemente também escravos - dos negociantes europeus
instalados no litoral, que se encarregavam de os comprar
e transportar até aos portos de embarque, por via terrestre, marítima ou fluvial, revendendo-os ou entregando-os
aos operadores negreiros.
20
de captura, podiam perfazer centenas de
quilómetros, realizados em condições difíceis e penosas. Ao sol e à chuva, praticamente despidos, presos uns aos outros por
correntes de ferro ou forquilhas de madeira, os Africanos escravizados prosseguiam
uma marcha marcada por longas etapas,
com paragens mínimas e com alimentação
insuficiente, que se traduzia em doença, em
abandono, em morte.
A ESPERA
A
pós a difícil marcha até aos portos
de embarque onde chegavam exaustos e famintos, os africanos escravizados
eram sujeitos a operações destinadas a restaurar a sua condição física, não por razões
humanitárias mas para responder aos objetivos económicos dos proprietários. A alimentação era melhorada e frequentemente
eram esfregados com óleo de palma para
revigorar a sua aparência física, permitindo assim subir os preços e angariar lucros
mais elevados para os seus captores.
Fila de escravos amarrados, conduzidos por mercadores. Mali, século XIX.
Joseph Simon Galliéni, Mission d’exploration du Haut-Niger: Voyage au
Soudan Francais, Paris, 1885
Os longos percursos seguidos desde as feiras, conhecidas
no Congo e em Angola por pumbos, até aos portos do litoral, a que é necessário somar as distâncias já anteriormente percorridas pelas caravanas de escravos desde os locais
Armazém de escravos (Barracoon), Serra Leoa, século XIX.
The Illustrated London News, vol. 14, 1849
Os escravos ficavam instalados em cercados
ou grandes armazéns rudimentares,
dormindo no chão ou sobre esteiras.
Nestes depósitos, conhecidos em inglês por
barracoons, os homens-mercadoria eram
devidamente vigiados e, em alguns casos,
trabalhavam no fabrico de cestos e outros
artigos de palha, enquanto aguardavam
pelo embarque, que poderia ser célere ou
demorar meses.
AS MARCAS
E
ra nesta fase que a condição de escravo lhes era marcada na pele. Impressas
a fogo, com um sinete em brasa, as marcas
do proprietário ou as armas régias selavam
definitivamente o destino destes homens.
No peito ou no ombro, estas não eram,
muitas vezes, as únicas marcas presentes
no corpo dos escravizados, que antes
de desembarcarem nas Américas iam
acumulando marcações que podiam
surgir igualmente nos braços, nas pernas
e na região lombar: uma marca quando
eram vendidos, uma marca colocada pelo
intermediário que os transportava até
ao litoral, marcas régias para atestar que
haviam sido pagos os impostos devidos e, por
fim, como em cada navio negreiro seguiam
escravos de vários proprietários, eram
necessárias marcas que os permitissem
distinguir entre si. É aliás significativo que a
palavra portuguesa “carimbo” tenha origem
no kimbundu (língua falada no noroeste
de Angola, incluindo a Província de Luanda) “kirimbu”
(marca, sinal), designação que os traficantes africanos
da região de Angola davam ao sinete de metal com que
marcavam os escravos.
Segundo o hostoriador Arlindo Caldeira, alguns proprietários desvalorizavam a barbaridade do gesto pelo
facto de muitos africanos usarem tradicionalmente
incisões e escarificações corporais, esquecendo, porém,
que essas eram não só intencionais como sinais
prestigiantes de identidade de grupo, enquanto as novas
eram estigmas de posse, ainda mais humilhantes para
quem se orgulhava das inscrições, de valor simbólico, que
anteriormente podiam ser lidas na sua pele.
21
Escrava a ser marcada com ferros, século XIX.
William O. Blake, The History of Slavery and the Slave Trade, Columbus,
Ohio, 1857
O BATISMO
F
iéis ao argumentário da “salvação da alma dos
africanos” como uma justificação central das práticas esclavagistas, as autoridades régias e eclesiásticas foram sucessivamente ordenando o batismo dos escravos,
quer em terra, quer no mar, com a presença obrigatória de
um clérigo a bordo dos navios negreiros, quer à chegada
aos destinos.
A questão do batismo conheceu avanços e recuos ao longo dos séculos: para os sacerdotes, atravessar o Atlântico
num navio negreiro era uma obrigação penosa e arriscada e para os negreiros um custo adicional. Por outro lado,
a mortalidade a bordo significava que os escravos, se fossem apenas batizados no destino, podiam morrer antes
do desembarque, sendo as suas almas perdidas na lógica do catolicismo.
A natureza expedita e pouco rigorosa dos
batismos coletivos nos portos africanos levou a que alguns dignatários religiosos insistissem na catequização prévia, tarefa de
muito difícil concretização.
Assim, e para evitar equívocos, às marcas
corporais já referidas, podia ainda juntar-se mais uma: o sinal da cruz impresso a
ferro quente, a ser ministrado aos escravos
batizados.
22
Batismo/exorcismo
de escravos negros,
Ilha de Saint Thomas
(Caraíbas),
século
XVIII.
David Cranz, Kurze,
zuverlässige Nachricht von der, unter
dem Namen der Böhmisch-Mährischen
Brüder bekanten (...),
Halle, 1757
NAVIOS NEGREIROS
O
objetivo dos traficantes de escravos era duplo: transportar com a rapidez possível a carga humana através do
Atlântico sem sofrer baixas, pois os escra-
vos mortos ou doentes constituíam uma perda económica significativa, e chegar ao destino com uma mercadoria
em boas condições para assegurar uma lucrativa transação comercial.
23
Secções de um navio negreiro. Costa brasileira, século XIX.
Robert Walsh, Notices of Brazil in 1828 and 1829, Boston e Nova York, 1831
TIPOS DE NAVIOS
CONDIÇÕES A BORDO
O
A
s navios utilizados para o transporte de escravos
eram navios de carga adaptados, quer em termos da
sua capacidade de transporte, designadamente criando
uma segunda coberta, quer em termos das condições de
navegação nas costas africanas, permitindo assim incursões nos rios, como é o caso do Cacheu.
24
O seu porte era muito variável, oscilando geralmente entre as 120 e as 150 toneladas, embora, após o início
das campanhas abolicionistas oitocentistas conduzidas
pela Inglaterra, estes navios tenham adotado dimensões
menores, tornando-se assim mais velozes para melhor
escapar às tentativas de controlo da marinha britânica.
Também a quantidade de cativos por navio variou no
tempo: de menos de duas centenas de escravos, no início
do tráfico, até números que ultrapassavam largamente os
mil escravos num único navio, no período da proibição do
comércio negreiro.
s condições a bordo eram invariavelmente duras. Pesem embora sucessivas tentativas, por parte de diferentes autoridades régias, de legislar no sentido de
limitar a sobrecarga dos navios e estabelecer um mínimo de condições para a travessia, na prática o desejo do lucro falou sempre mais alto, estimando-se que, no total, as
taxas de mortalidade atingissem valores de
10% a 20% dos escravos embarcados.
Dois terços dos escravos transportados
para as Américas seriam homens e um terço mulheres, representando as crianças
cerca de 20% - ainda que nos falte informação detalhada referente ao Brasil.
Diagrama do porão do navio negreiro “Brookes” que transportava escravos na rota Liverpool-Costa do Ouro-Jamaica, 1787.
Mulheres e crianças viajavam geralmente
separadas dos homens, por vezes no convés. Se isto lhes permitia alguma liberdade
de movimentos, por outro lado, deixava-as
expostas às condições climatéricas e, bem
assim, à violência e abusos sexuais por parte da tripulação.
Os homens eram agrupados nas cobertas
ou nos porões, agrilhoados uns aos outros,
em espaços tão pequenos que levavam a
que, muitas vezes, tivessem de viajar deitados. Quando o clima era favorável, era-lhes
permitido vir ao convés em pequenos grupos, embora a maior parte da travessia fosse passada em terríveis condições.
O ar era pesado, quente e doentio. A falta
de condições sanitárias - os homens viajavam tão apertados que muitas vezes nem
conseguiam chegar aos baldes para dejetos,
vendo-se forçados a deitar-se sobre os seus
próprios excrementos - significava a ameaça permanente de epidemias, sendo a desinteria, as febres e a varíola as mais comuns.
Mal alimentados duas vezes por dia, obrigados a alimentação forçada em caso de recusa, muitos escravos adoeciam e morriam,
sendo simplesmente atirados borda fora.
em terras africanas, quer nos pontos de concentração e
embarque, quer na travessia atlântica, quer final-mente
aquando da sua transformação em mão-de-obra nos locais de destino, de que é exemplo a formação de quilombos de escravos fugidos no Brasil, que formaram comunidades autónomas, agregando mestiços, mino-rias
indígenas e brancos pobres, vivendo assim à mar-gem da
sociedade escravocrata. Os habitantes eram designados
“quilombolas” e algumas destas comunidades permaneceram até aos dias de hoje.
O historiador David Richardson referenciou 485 atos de
resistência violenta por parte de Africanos contra navios
negreiros e sua tripulação, dos quais 93 foram casos de
ataques a partir da costa africana e 392 revoltas a bordo,
envolvendo mais de 360 embarcações. Estima-se que cerca de 10% de todos os navios negreiros possam ter sido
alvo de insurreições, sendo o caso do “La Amistad” um
dos mais conhecidos da história do tráfico atlântico de
escravos.
MOTINS E REVOLTAS
A
o longo de toda a história do tráfico negreiro, os escravos ofereceram
resistência em todas as etapas deste infame comércio, quer aquando da captura
Navio negreiro sobrelotado. A tripulação dispara contra escravos que se
atiram ao mar. África Ocidental, século XVIII.
Carl B. Wadstrom, An Essay on Colonization, Londres, 1794
25
La Amistad
O
“la amistad” era uma escuna de dois mastros e 37
metros pertencente a um comerciante espanhol residente em Cuba, operando em rotas costeiras das Caraíbas.
Em 1839, a escuna partiu de Havana com destino a Puerto del Príncipe (atual Camagüey, Cuba), transportando 49
adultos e 4 crianças, escravos de etnia Mende (Serra Leoa)
destinados às plantações de açúcar.
26
Apesar de já vigorar em todo o Atlântico a proibição de
tráfico, a escravatura ainda não havia sido erradicada,
designadamente em Cuba. Assim, muitos negreiros tentavam enganar as autoridades afirmando que os escravos
que haviam sido capturados em África e transportados
ilegalmente para as Américas eram homens-mercadoria
nascidos em cativeiro no Novo Mundo, contornando a lei
espanhola que determinava que estes homens seriam livres assim que desembarcassem em Cuba.
Liderados por Sengbe Pieh, mais tarde conhecido como Joseph Cinqué, os escravos
revoltaram-se a bordo do “La Amistad”,
conseguindo dominar e matar parte da tripulação, deixando vivo o navegador, com
a intenção de que este os conduzisse de
volta a África. Contudo, o navegador Pedro Montez levou a embarcação até Long
Island (Nova Iorque), onde foi descoberta e
intercetada pelas autoridades americanas.
Seguiu-se um longo processo legal sobre a
propriedade do navio e dos escravos nos
tribunais norte-americanos, que se tornou
uma causa célebre entre os abolicionistas.
Finalmente, em 1841, o Supremo Tribunal
determinou que os africanos escravizados
tinham sido ilegalmente transportados
para as Américas, sublinhando que a sua
revolta era uma operação de auto-defesa e
ordenou a sua libertação. 35 sobreviventes
voltaram para África em 1842.
Morte do Capitão
Ferrer, comandante do La Amistad,
Julho de 1839.
Gravura de John
W. Barber
PIDGIN E CRIOULO
N
a Guiné-Bissau, atualmente com cerca de 1.500.000 habitantes, existem cerca de 30 povos ou grupos étnicos diferentes,
cada um com as suas características distintas como as relações familiares, os meios de
produção ede subsistência, as formas e manifestações culturais, a organização dos poderes político e religioso, ou a língua.
Hoje em dia, a região de Cacheu é habitada
fundamentalmente por Manjacos, Felupes,
Papéis e Brames, a que se juntam, a sul do
rio Cacheu, alguns núcleos Balantas.
CRIOLAR A LÍNGUA DO BRANCO
O
s Mandingas e os Biafadas terão
sido os primeiros a conhecer e a criolar a língua do “branco”. Com o passar dos
anos, a própria língua espalhou-se e evoluiu,
registando-se hoje no crioulo guineense vocabulário com origem em diferentes línguas
locais.
LANÇADOS E GRUMETES
N
as viagens dos portugueses, era frequente fixarem-se em terra homens que estabeleciam contacto
direto com os africanos – os lançados ou tangomaos,
que se casavam muitas vezes com mulheres africanas
próximas das famílias reais, chamadas tangomãs, o que
lhes conferia prestígio e privilégios comerciais junto das
autoridades tradicionais.
Com a criação das praças de Cacheu, Ziguinchor, Bissau
e Geba, surgiram os grumetes, africanos ao serviço dos
comerciantes europeus, batizados mas conservando a
sua própria liberdade e identidade, servindo de intermediários entre os chefes ou “grandes” africanos e os
comerciantes europeus. É nestes dois grupos, e naturalmente nos seus descendentes, que se encontram as raízes
da língua crioula, sob a forma de pidgin.
Os termos crioulo em português, criollo em
espanhol e créole em francês, referenciados desde finais do século XVI, foram utilizados para nomear pessoas, plantas ou
animais, no sentido de um ser criado em
casa, quer dizer nascido nas colónias, mas
não indígena.
Os crioulos eram assim designados por
contraposição aos reinóis, nascidos nas
metrópoles europeias.
Rua dos Grumetes em Bolama, c. 1908.
Fotografia de José Henrique de Melo, 1907-1908
27
DO PIDGIN AO CRIOULO
O
pidgin pode ser definido como uma forma de linguagem criada por falantes de diferentes línguas
maternas, convivendo em comunidades relativamente
estáveis, quando se sentem obrigados, por razões de sobrevivência, a comunicar entre si, embora num conjunto
restrito de situações.
A diversificação das necessidades de uso e as próprias limitações do pidgin fizeram-no ir buscar ao português e a
outras línguas expressões e formas que deram gradualmente lugar à sua evolução para a língua crioula.
28
Fruto do contacto de culturas, o Crioulo guineense apresenta-se hoje como verdadeira língua franca, sendo a língua mais falada pelo povo e entendida pela maioria da
população.
EVOLUÇÃO DA LÍNGUA
E
mbora sem estatuto de língua oficial, o Crioulo
guineense encontra-se em expansão enquanto língua de facto nacional. Tal deve-se, por um lado, à crescente urbanização e à imigração de outros países vizinhos
que têm o francês como língua nacional, apresentando-se o crioulo como uma língua comum de comunicação
num contexto multilingue, e, por outro, à cada vez maior
utilização desta língua na comunicação social e política,
especialmente, ao nível das rádios e da televisão.
As rádios locais têm assumido uma crescente importância na disseminação de informação e enquanto elemento
agregador e identitário das
populações.
> Antes da expansão dos portugueses para o
sul, em direção ao território dos Papéis (séculos
XVII-XVIII), o crioulo guineense estava já formado, sendo falado nas praças então existentes (Cacheu, Farim e Geba), onde viviam os Lançados e
os Grumetes.
> Entre o século XVIII e inícios do século XX, assiste-se à expansão da presença portuguesa no
território, em particular para Sul, interior e ilhas,
surgindo também o crioulo de Bolama, cidade
fundada em 1793 e que foi a primeira capital da
Guiné (1879).
> Com o fim da Campanha de Pacificação de João
Teixeira Pinto e Abdul Indjay contra os Papéis e
Grumetes de Bissau, a então colónia entrou num
novo ciclo administrativo. Nas escolas, nos escritórios e nas igrejas, o crioulo era proibido, mas
sobreviveu no quotidiano dos numerosos habitantes das praças. Os centros mais importantes
eram então Bolama-Bubaque, Bafatá-Geba-Gabú, Farim e Cacheu, além de Bissau, que se tornou capital em 1941.
> Se queremos levar para a frente o nosso povo,
durante muito tempo ainda, para escrevermos,
para avançarmos na ciência, a nossa língua tem
que ser o português (...) até um dia em que, tendo
estudado profundamente o crioulo, encontrando
todas as regras de fonética boas para o crioulo,
possamos passar a escrever o crioulo.
Amílcar Cabral entendia a luta de libertação
como um ato de cultura no seio do qual os diferentes grupos étnicos pertenciam a um espaço
maior, o espaço da nação. Neste contexto, e face
à profusão de línguas nativas, Cabral percebeu
a importância da existência de línguas comuns
como elementos unificadores do país e, bem assim, a importância do seu estudo aprofundado.
Apesar da esmagadora maioria da documentação escrita produzida pelo PAIGC durante o período da luta recorrer ao português como língua
veicular, foi nesta fase que o crioulo guineense
superou a inferioridade face ao português e,
num espaço de poucos anos, incorporou no seu
léxico um grande e variado número de vocábulos.
SISTEMAS DE COMÉRCIO
NOVAS POTÊNCIAS
O
comércio português de ouro, de marfim, de couro e de escravos atraiu as
principais potências marítimas europeias,
que desde cedo disputaram a sua primazia
no litoral ocidental africano.
Além de constantes ataques aos entrepostos detidos pelos portugueses, navios espanhóis, franceses, holandeses e ingleses
demandavam aquelas costas e tentavam
apoderar-se do controlo do rentável tráfico
de escravos, designadamente negociando
com comerciantes locais (e lançados) – que
assim resistiam às tentativas portuguesas
de implantação do monopólio régio – e desafiando as restrições formuladas no tratado de Tordesilhas (1494).
INÍCIO DO TRÁFICO
TRANSATLÂNTICO
O
século xvi marca o verdadeiro início
do tráfico transatlântico de escravos
para as novas colónias nas Américas e a
abertura e gradual crescimento em importância de possessões mais a sul como pontos
de exportação de escravos, sendo a viragem
para o século XVII marcada por uma alteração na organização deste comércio, com a
criação das companhias monopolistas.
Até 1621, data da fundação da Companhia
Holandesa das Índias Ocidentais, Portugal
tinha praticamente o exclusivo do comércio
de escravos. A partir daí, e face à união das
coroas ibéricas, os holandeses instalaram-se em Goreia,
seguidos, em 1659, pelos franceses em Saint-Louis, frente
à desembocadura do rio Senegal, ao passo que os ingleses
tomaram, em 1661, a ilha James, junto ao estuário do rio
Gâmbia. A presença portuguesa na Senegâmbia viu-se
assim confinada a Cabo Verde, Cacheu e Bissau.
FASES DO TRÁFICO TRANSATLÂNTICO
E
m termos cronológicos, o tráfico transatlântico de
escravos aparece dividido em duas grandes fases:
1. Exclusivo ibérico (até inícios do século XVII): esta fase
é caracterizada por uma maioria de traficantes portugueses, embora com participação minoritária de comerciantes de outras nacionalidades. Os principais destinos eram
o continente americano e as principais áreas de captura
deslocam-se gradualmente da Senegâmbia para sul, em
direcção ao golfo da Guiné e a Angola.
Do lado espanhol, o sistema baseava-se no asiento de negros, concedendo a mercadores de várias nacionalidades
(incluindo portugueses) licenças para o comércio de escravos com as suas colónias.
Segundo dados da Trans-Atlantic Slave Trade Database,
terão sido transportados para o Novo Mundo até 1650
cerca de 1 milhão de escravos, sendo mais de 90% em navios de bandeira portuguesa ou espanhola. Em termos
globais, esta fase representa cerca de 7,5% do total de 12,5
milhões de escravos transportados ao longo dos tempos.
Forte Christiansborg, atual castelo de Osu, em Accra, Gana.
Costruido originalmente pela
Noruega/Dinamarca na década
de 1660, foi reconstruído inúmeras vezes ao longo dos anos, pelas diversas potências europeias
que ocuparam a região (incluíndo Inglaterra e Portugal).
29
2. Internacionalização do tráfico: esta segunda fase caracteriza-se por uma transferência maciça de população
africana para as Américas. À medida que as potências
europeias foram construindo as suas colónias no Novo
Mundo, com base na economia de plantação fortemente
dependente de remessas de mão-de-obra escrava, as Caraíbas e a América do Norte, a par do Brasil, constituem
os principais destinos do tráfico negreiro.
Holanda, Inglaterra e França (mas também a Dinamarca e a Suécia) estabeleceram feitorias ao longo da costa
africana, muitas vezes quase lado a lado, em particular
na Costa do Ouro (atual Gana) e na Costa dos Escravos
(atual Togo, Benim e Nigéria), regiões costeiras cujo nome
correspondia aos principais produtos aí comercializados.
30
Entre 1650 e 1800, terão sido transportados mais de 7,7 milhões de escravos, cerca de metade do total de escravos
levados para o continente americano. O Reino Unido assumiu a dianteira neste tráfico, em particular na segunda
metade de 1700, com um total de cerca de 3 milhões de
escravos.
COMÉRCIO ILEGAL
A
partir do início do século xix, verifica-se um
recrudescimento do tráfico negreiro, crescentemente ilegalizado à medida que são adotadas medidas
de proibição do tráfico de escravos (mas não ainda da escravatura), designadamente o Slave Trade Act inglês e o
Slave Importation Prohibition Act aprovado pelos Estados Unidos da América, ambos com efeitos a partir de 1 de
janeiro de 1808.
O comércio negreiro, perseguido ou já ilegalizado, não
cede, transportando mais de 3,8 milhões de escravos para
as Américas, ou seja, mais de 30% do total do comércio e
transporte de escravos, na sua maioria oriundos do Congo e de Angola.
FEITORIAS E
COMPANHIAS MONOPOLISTAS
O
início da expansão portuguesa em
África foi marcado principalmente
por iniciativas semi-privadas – a coroa
autorizava as expedições e cobrava os devidos direitos. Este modelo de exploração
dos primeiros anos evoluiu pouco depois para a construção de feitorias, em
detrimento da concessão de exclusivos
comerciais a mercadores individuais.
FEITORIAS
E
ntrepostos comerciais, geralmente
for­
tificados e instalados em zonas
costeiras, as feitorias eram construídas para
centralizar e dominar o comércio dos produtos locais para o reino (e daí para a Europa).
Funcionavam simultaneamente como mercado, armazém, ponto de apoio à navegação
e alfândega. Eram governadas por um “Feitor” encarregado de reger as trocas, negociar
produtos em nome do rei e cobrar impostos
(o quinto).
Entre os séculos XV-XVI foram construídas numerosas feitorias em cerca de 50
fortificações ao longo das costas da África
ocidental e austral, no Oceano Índico e no
Brasil.
31
Representação do tráfico transatlântico de escravos (1501-1867).
Atlas of the Transatlantic Slave Trade, Eltis e Richardson, 2010
As feitorias organizavam no terreno o resgate e comércio de produtos locais posteriormente enviados para a
metrópole, onde todos os aspetos do comércio externo,
navegação, desembarque e venda de mercadorias eram
assegurados por uma estrutura da coroa designada por
“Casa da Guiné”, posteriormente “Casa da Guiné e Mina”
(1482-1483), “Casa da Índia e da Guiné” (1499) e finalmente,
a partir de 1503, “Casa da Índia”.
O monopólio régio foi acompanhado sempre pelo livre comércio de alguns produtos como têxteis, armas, papel e peixe salgado e a exploração de alguns monopólios reais foi por
vezes entregue pela “Casa da Índia” a operadores privados,
por períodos determinados. Esta política foi atenuada em
1570 e finalmente abandonada em 1642, passando a “Casa da
Índia” a ter um carácter essencialmente de alfândega.
32
COMPANHIAS MAGESTÁTICAS OU DE CARTA
É
a partir do século xvii que se começa a impôr nos
domínios portugueses outro modelo, por influência
estrangeira: o das Companhias Magestáticas ou de Carta, que consistiam em associações de comerciantes que se juntavam,
permitindo-lhes empreender investimentos que requeriam capitais mais avultados.
Estas companhias eram geralmente legitimadas por uma carta régia que determinava os termos em que podiam operar – fronteiras geográficas, tipo de comércio, seus
direitos (monopólio de produtos, caso dos
escravos) e responsabilidades, que passavam muitas vezes pela administração territorial, com exércitos ou milícias próprias e
cobrança de impostos, substituindo-se aos
Estados que nelas delegavam poderes em
territórios onde não conseguiam exercer
domínio efetivo.
Vista da cidade de Lisboa, século XVI.
Gravura de Franz Hogenberg em Civitates orbis
terrarum, 1572
A holandesa Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC – Companhia holandesa das Índias Ocidentais), fundada em 1602, e a inglesa
Royal African Company, fundada em 1672,
foram duas das mais conhecidas companhias
monopolistas, que se dedicaram, também, ao
comércio transatlântico de escravos.
AS COMPANHIAS DO ESPAÇO PORTUGUÊS
N
o espaço português, depois de exigências de comerciantes, a Coroa (então espanhola) acede à constituição da Companhia da Navegação e Comércio da Índia em
1619, com participação de municípios e de privados.
Ainda no século XVII, criaram-se, para o comércio e navegação na costa africana, duas companhias, quase especializadas no tráfico de escravos para a América luso-espanhola: Companhias de Cacheu e Rios da Guiné, fundada
em 1676, e a de Cabo Verde e Cacheu, em 1680. D. João V,
já no século XVIII, criou a Companhia da Ilha do Corisco
(atual Guiné Equatorial), com fins esclavagistas.
Simbolo da Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC - Vereenigde Oost-Indische Compagnie).
No período pombalino, o comércio de escravos a partir
de Cacheu (e de outras praças africanas portuguesas) ganhou um novo fôlego com a criação, em 1755, da Companhia Geral de Comércio do Grão- Pará e Maranhão (17551778). Perante a proibição da escravatura indígena no já
então denominado Estado do Grão-Pará e Maranhão
(Brasil), esta companhia visou a importação de escravos
africanos para o desenvolvimento agrícola da região.
Símbolo da Real Companhia Africana inglesa (RAC - Royal African Company).
Porto antigo de Cacheu que, segundo a tradição oral local, servia para embarque de escravos.
Fotografia AD - Acção para o Desenvolvimento
33
A Companhia Geral obteve o exclusivo do tráfico de escravos e os números falam por si: calcula-se que, até 1755,
data de sua criação, apenas haviam ingressado três mil
africanos no Estado do Grão-Pará e Maranhão, enquanto que, nos anos de 1755 a 1778, data da sua extinção, esse
número saltou para cerca de trinta mil. Destes, 74% provinha das praças de Bissau e Cacheu.
O fim do século XVIII vê este género de associação comercial tornar-se desajustado. As companhias foram, assim,
sendo substituídas (ou transformadas) no século XIX por
companhias de colonização, como as da
Zambézia, de Moçâmedes, de Moçambique
ou do Niassa, algumas com grande poder
de ação e influência política e económica
nos territórios coloniais portugueses.
O fim da ditadura em Portugal viu o fim das
últimas companhias. A sangria populacional que provocaram em África, contudo,
nunca poderia ser reposta.
34
Venda de escravos na costa
africana.
Isabelle Aguet, A Pictorial
History of the Slave Trade,
Geneva, Minerva, 1971.
DECADÊNCIA DE CACHEU
O
papel de Cacheu nas rotas internacionais da escravatura variou no tempo em função das dinâmicas verificadas na
subregião e no tráfico transatlântico.
Até à abertura da praça de Bissau, em finais
do século XVII, Cacheu, em estreita articulação com Cabo Verde, manteve a sua importância como ponto de acesso aos recursos económicos da Senegâmbia, incluindo,
naturalmente, os escravos. A abertura de
novas rotas comerciais mais a sul, designadamente no Golfo da Guiné e Angola,
bem como a crescente entrada de outras
potências europeias nos lucrativos tráficos
africanos, ditaram o início de uma lenta decadência de que Cacheu nunca recuperou.
Verde. Em 1588, a instalação da Capitania de Cacheu marcou
o reconhecimento da crescente importância desta praça.
> Século XVII: intensificação do tráfico transatlântico
de escravos e entrada de outros operadores no espaço
africano. A partir de 1641, com a fortificação da praça de
Cacheu e a criação de diferentes companhias a operar na
região, Cacheu conheceu um novo período aúreo, embora
de curta duração.
> Século XVIII: após a extinção da Companhia de Cacheu
e Cabo Verde, Cacheu retoma temporariamente a sua
importância com a criação, pelo Marquês de Pombal, da
Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão
(1755-1778), tendo como principal objetivo a venda de escravos ao Brasil.
> Século XIX: com o tráfico de escravos em declínio, o
século XIX encontra Cacheu entregue aos seus – a coroa
portuguesa dispunha de muito pouco controlo efetivo
sobre a região.
Planta da praça de São José de Bissau, incluindo o Forte
da Amura.
Litografia de Alexandre de Michellis, c. 1860
AS DIFERENTES FASES
DE CACHEU
> Séculos XV-XVI: chegada e implantação dos
portugueses, com o estabelecimento progressivo de lançados em estreita ligação com Cabo
Pequeno engenho de açucar, Brasil, início do século XIX.
Jean-Baptiste Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, 18341839
35
HONÓRIO PEREIRA BARRETO
(Cacheu, 1810/13 – Bissau, 1859)
D
estaca-se a figura de Honório Pereira Barreto,
Governador de Cacheu e, mais tarde, de Bissau, que
empreendeu uma forte campanha contra diversas revoltas locais e tentativas estrangeiras de se estabelecerem
em pontos considerados da esfera de influência portuguesa (caso dos ingleses em Bolama), logrando, a expensas próprias, alargar o território.
A historiografia oficial, contudo, omitiu convenientemente alguns aspetos da sua vida,
designadamente os relacionados com o tráfico de escravos. Com efeito, a evidência de
que Honório Barreto e a sua mãe eram traficantes está contida nos relatórios da comissão anglo-portuguesa encarregada de
supervisionar o cumprimento dos tratados
que visavam abolir a exportação de escravos da África Ocidental. A correspondência
britânica sobre o assunto afirma ainda que
o estabelecimento-sede da empresa comercial da família em Cacheu tem sido frequentemente indicado (...) como um bem notório
mercado de escravos.
A despeito do declínio de Cacheu como
entreposto de escravos durante a primeira metade do século XIX, a casa comercial
Alvarenga-Barreto era, de longe, a maior
proprietária de escravos da área na década
de 1850.
36
Retrato de Honório
Pereira Barreto.
Jaime Walter, Honório Pereira Barreto,
Bissau, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1947
Filho de João Pereira Barreto (caboverdiano, à data sargento-mor de Cacheu) e de Rosa de Carvalho Alvarenga
(pertencente a uma próspera família local de comerciantes), Honório Barreto, mestiço, pelos cargos que assumiu e
pelo seu importante papel na consolidação territorial do
espaço guineense, foi o exemplo, glorificado pelo Estado
Novo português, do “perfeito guineense”, parte integrante
de um alegado império pluricontinental e multiracial.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
A
escravização de milhões de africanos durante mais de quatro séculos
e o seu transporte forçado para a Europa
e sobretudo para as Américas constituem,
sem dúvida, uma das grandes tragédias da
Humanidade.
A escravatura e o tráfico negreiro foram um
dos maiores negócios de uma época que se
estendeu num longo período de tempo e
num vasto espaço do mundo.
Essa realidade condicionou toda a exploração e a produção colonial e introduziu em
África uma dinâmica comercial marcada
pela exportação de homens e pela importação de produtos europeus, como utensílios
de metal, cobre em manilhas e em barra, tecidos, vinhos, azeites, coral e também géneros coloniais, como, por exemplo, farinha e
tabaco do Brasil.
Para além dos argumentos económicos e de
rentabilidade, a defesa da escravatura encontrou também argumentos de legitimação nas religiões, designadamente no Islão
e no Cristianismo, que a defenderam em
nome da guerra santa contra os infiéis, os
pagãos ou os idólatras. Essa cobertura moral justificou a captura, o tráfico e as duras
condições de vida de milhões de homens,
mulheres e crianças africanos, reduzidos,
primeiro, à condição de mercadoria e, depois, de produtores-escravos.
A denúncia desta situação de violência encontrou, na voz e nas ações de um grupo
religioso, os Quakers, o ponto de partida para o combate contra a escravatura. Perseguidos em Inglaterra, os
Quakers emigraram em massa para os Estados Unidos,
onde fundaram a colónia da Pensilvânia, vindo a proibir
aos seus membros, em 1770, a posse de escravos.
Se a escravatura africana e o tráfico negreiro modernos
se desenvolveram sobretudo a partir do século XVI, vieram a ter o seu apogeu no século XVIII e inícios do século
XIX, numa época em que, contraditoriamente, se afirmou
o Iluminismo na Europa e se assistiu, afinal, à Revolução
Francesa e, depois, à progressiva implantação das revoluções liberais, pondo termo aos absolutismos reais.
37
Anthony Benezet (1713-1784), quaker francês que se estabeleceu na Pensilvânia, Estados Unidos da América, e, em 1750, abriu a primeira escola para
filhos de escravos.
Gravura de J. W. Barber, Pennsylvania Historical Museum Commission
Foi precisamente com o movimento iluminista e, em especial, com a edição da Encyclopédie (1751-1772) que se
começou a erguer a denúncia da escravatura: no seu artigo sobre “Escravatura”, Louis de Jaucourt afirma que a
escravatura é o estabelecimento de um direito fundado
sobre a força, direito que torna um homem propriedade
de outro homem, que é o senhor absoluto da sua vida, dos
seus bens, da sua liberdade, sublinhando, pelo contrário,
que todos os homens nascem livres.
Em Portugal, o Marquês de Pombal aboliu, em 1761, a escravatura no território continental, mantendo-a, no entanto, nas colónias, e criando, precisamente, as Companhias monopolistas que desenvolveram e aperfeiçoaram
o tráfico negreiro para abastecer o Brasil.
38
Mas foi a Revolução Francesa que atribuiu a cidadania
aos homens negros livres em 1791/92 e, por fim, a Convenção Nacional, na sua sessão de 4 de fevereiro de 1794, que
aprovou a abolição da escravatura, em que desempenharam um papel determinante três deputados (um branco,
Julgamento de Luís XVI pela Convenção Nacional em Dezembro de 1792.
Augustin Challamel, Histoire-musée de la république Française, depuis l’assemblée des notables, Paris, 1842.
um mestiço livre e um antigo escravo) da
colónia de S. Domingos (atual Haiti), em
que já se iniciara o levantamento dos escravos, que haveria de vencer e conquistar
a independência, mesmo se alguns anos
depois, Napoleão procederia à revogação
dessa legislação.
A escravatura e o tráfico negreiro eram indispensáveis para o desenvolvimento das
atividades produtivas das colónias europeias: a cultura do algodão, do açúcar, do
café, exigiam mão-de-obra intensiva e barata e a utilização dos escravos era apresentada como a única solução possível.
As enormes fortunas acumuladas nessas
atividades coloniais eram, por outro lado,
um argumento de peso nas respetivas metrópoles, silenciando as hesitações que iam
surgindo em relação à escravatura. Mas o
mundo estava a mudar e nasciam, sobretudo em Inglaterra, novas condições de produção que tornavam arcaica e dispensável
a mão-de-obra escrava.
Ao mesmo tempo, as ideias abolicionistas
ganhavam expressão na Europa, quer por
via religiosa, quer por via intelectual e política, dando lugar a sucessivas tentativas de
limitar o recurso ao tráfico negreiro e à escravatura, assistindo-se à formação de muitas associações, em especial no Reino Unido
e em França, com o objetivo de pôr termo às
situações esclavagistas, tentando influenciar os respetivos Parlamentos e Governos.
O domínio dos mares pela marinha inglesa permitiu uma pressão crescente sobre o
tráfico de escravos, desenvolvendo ações de
vigilância e intercetando e aprisionando os
navios negreiros, devolvendo muitas vezes
a África a mercadoria-humana recuperada.
Essa pressão inglesa fez-se também por via
diplomática, forçando alguns países, designadamente Portugal e, mais tarde o Brasil,
independente desde 1822, a adotar medidas
efetivas de combate à importação de escravos para o Novo Mundo.
ridades coloniais no embarque de escravos como a utilização da bandeira portuguesa pelos navios negreiros de
outras nacionalidades.
O infame tráfico dos negros é, certamente, uma nódoa
indelével na história das Nações modernas, mas não
fomos nós os principais, nem os únicos, nem os piores
réus. Cúmplices, que depois nos arguiram tanto, pecaram mais e mais feiamente. Sá da Bandeira
Em 1833, o Parlamento britânico adotou o
Slavery Abolition Act, que procedeu à abolição da escravatura em Inglaterra e em
todas as colónias britânicas, entrando em
vigor no ano seguinte e contemplando um
plano de indemnizações aos proprietários
de escravos.
39
Em 1836, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros português, o então
visconde de Sá da Bandeira, fez aprovar
legislação que determinava a extinção da
exportação de africanos das colónias portuguesas: Fica proibida a exportação de
escravos, seja por mar ou por terra, em todos os Domínios Portugueses, sem exceção,
quer sejam situados ao norte, quer ao sul do
equador, desde o dia em que na Capital de
cada um dos ditos Domínios for publicado o
presente Decreto.
Ao mesmo tempo, tomou medidas para fazer cessar tanto a cumplicidade das auto-
Bernardo de Sá Nogueira (1795-1876), Visconde (mais tarde Marquês) de Sá
da Bandeira.
Litografia de L. Maurin, 1855
Relação dos objectos, que sendo achados a bordo de qualquer Navio, se devem considerar como indícios de, que ele se destina ao
tráfico de escravos, e o tornam sujeito às disposições do Decreto
de 10 de Dezembro de 1836, de que esta mesma Relação faz parte.
1.º Escotilhas com grades libertas, em vez de serem fechadas segundo é prática nos Navios mercantes.
2.º Repartimentos, Coberta corrida, ou separações em maior numero do que é costume, ou necessário nos Navios que fazem o
Comércio lícito.
3.º Tábuas aparelhadas para formar uma segunda Coberta, conforme praticam os Navios de escravatura.
4.º Gargalheiras, algemas, anjinhos, ou Cadeias.
5.º Maior quantidade de água em pipas ou tanques, do que a necessária para o consumo da equipagem deum Navio mercante.
40
6.º Uma quantidade extraordinária de pipas ou barris para conter líquidos, uma vez que o Capitão não possa apresentar Certidão da Alfândega onde despachou, mostrando que os donos do
Navio prestaramfiança , e que essas pipas ou barris são destinados para azeite de palma ou de peixe, ou para qualqueroutro
Comércio lícito.
7.º Maior quantidade de celhas, gamelas, ou bandejas para rancho, do que as necessárias para uso daequipagem de um Navio
mercante.
8.º Uma Caldeira de maior dimensão do que a usual, e maior do
que aliás seria necessário para uso daequipagem; ou diversas
Caldeiras em maior número do que as necessárias para este
efeito.
LONGO E PENOSO CAMINHO
F
oi longo e penoso o caminho da Abolição da Escravatura, sob a pressão inglesa que não deixou de aumentar: em 1839,
o Parlamento inglês aprovou a Lord Palmerston’s Bill que autorizava os navios da
Royal Navy a apresar quaisquer navios sob
pavilhão português que transportassem
escravos ou estivessem equipados para
esse fim, verificando-se, três anos depois,
novo tratado entre a Inglaterra e Portugal
que visava a completa abolição do tráfico
da escravatura.
Entre 1845 e 1851 foram apreendidas e destruídas 368 embarcações brasileiras que faziam tráfico de escravos para o Brasil, que
continuava a ignorar os tratados internacionais que assimilavam o tráfico à pirataria.
9.º Uma quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne e peixe
salgado, farinha de pão, mandioca, milho,ou farinhas de qualquer espécie além da que posa ser necessária para o sustento da
equipagem, quando qualquer destes objectos não faça parte da
carga, e como tal se ache no Manifesto.
Também o Papa Gregório XVI, na sua Carta Apostólica
“In Supremo”, de 1839, declarava que doravante, ninguém
ouse fazer violência, desapropriar de seus bens ou reduzir
seja quem for à condição de escravo.
Foi neste contexto que diversos outros países foram adotando medidas de abolição gradual do tráfico negreiro e
a escravatura.
Certificado de membro vitalício da American Colonization
Society. Fundada em 1816 com o objetivo de instalar em
África antigos escravos negros libertos, bem como negros
nascidos livres nos Estados Unidos da América.
The Gilder Lehrman Institute of American History
A independência da Libéria, proclamada
em 1847, fundada e colonizada por escravos
americanos libertos com a ajuda de uma
organização privada, a American Colonization Society, e por escravos libertos dos
navios negreiros, constituiu um passo importante em todo o processo abolicionista
mundial.
Em 1865, com o termo da Guerra da Secessão nos Estados Unidos daAmérica, o Presidente Abraham Lincoln fez aprovar a 13.ª
Emenda à Constituição: Não haverá, nos
Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem
trabalhos forçados, salvo como punição de
um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.
A 25 de fevereiro de 1869, no reinado de D.
Luís, foi finalmente aprovada a abolição
completa da escravatura em todo o império
português: Fica abolido o estado de escravidão em todos os territórios da monarquia
portuguesa, desde o dia da publicação do
presente decreto.
Abolida formalmente a escravatura, prolongaram-se por muito tempo os abusos
sobre os antigos escravos, frequentemente
designados de “serviçais” ou “contratados”.
Esta aparentemente nova situação dos trabalhadores resultava da existência de simulacros de contratos de trabalho que, na
realidade, em nada os beneficiavam, continuando presos às plantações ou ao serviço
doméstico dos seus antigos proprietários, sem esperança
de repatriação, vivendo de forma muito semelhante à da
sua antiga condição ou empurrados para as cidades, sem
ofício, sem trabalho, sem meios de subsistência.
Também no Brasil o processo de abolição foi demorado e
complexo - se a abolição do tráfico se verificou em 1850, a
escravatura só foi extinta em 1888 - embora a pressão popular ganhasse grande força, ao mesmo tempo que muitos intelectuais tomavam posição inequívoca em defesa
dos direitos dos antigos escravos, recenseados então em
mais de 1 milhão.
A ocupação gradual dos espaços coloniais em África pelas potências europeias veio também alimentar a criação
de laços de dependência das populações locais, forçadas
a trabalho obrigatório e ameaçadas pela imposição de
sanções pelos colonialistas, com destruição do seu modo
de vida e produção ancestrais, criando-se assim condições de submissão muito similares às da escravatura.
Chegados ao século XX, muitos territórios mantiveram
ainda regimes de escravatura, mais ou menos ocultos,
quer em África, quer na Ásia, quer nas Américas, frequentemente disfarçados através de “contratos” fraudulentos
elaborados pelos seus antigos proprietários e justificados com obediências a supostas tradições que apenas
serviam para perpetuar o seu domínio. Por tudo isto, a
luta contra a escravatura e contra a deportação de mãode-obra para locais e em condições sem proteção constituem, nos nossos dias, uma urgência de cidadania.
A edificação na Guiné-Bissau do Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro em Cacheu é, por isso, um dever de memória e, também, parte integrante do combate
presente contra todas as formas aviltantes de exploração
homem pelo homem.
41
A CONSTRUÇÃO DO RACISMO
A
Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada na Assembleia
Geral das Nações Unidas de 21 de dezembro
de 1965, define “discriminação racial” como
qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência fundada na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha como objetivo ou como efeito destruir
ou comprometer o reconhecimento, o gozo
ou o exercício, em condições de igualdade,
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios político, económico, social, cultural ou em qualquer outro
domínio da vida pública.
É hoje consensual que o conceito de “raça”,
aplicado à espécie humana, é uma construção social datada e que a hipotética existência de “grupos raciais”, tão valorizados no
século XIX, não tem qualquer sustentação
genética.
Ultrapassando a vertente biológica e entendido num sentido mais amplo como
fenómeno de discriminação de grupos ou
comunidades sociais, religiosas, étnicas, regionais, o “racismo” precedeu a teoria das
raças, que defendia a divisão da humanidade em subespécies dispostas hierarquicamente, afirmando-se nos finais do séc.
XVIII, aliada ao nascimento dos nacionalismos europeus.
A escravatura e o tráfico negreiro atlânticos
levaram à consolidação de preconceitos re-
lativos aos povos africanos, mas só após vários séculos
desta ignóbil prática de mercantilização dos homens, a
eugenia e a incipiente antropologia física colonial vieram
dar foros de “verdade científica” à inferiorização e desvalorização cultural do homem negro.
Um episódio ocorrido em 1488 e contado por Rui de Pina,
cronista-mor do reino de Portugal, ilustra bem que não
era este o contexto dos primeiros séculos de presença
europeia em África: Bemoim, rei wolof de um território
próximo da foz do rio Senegal, deposto, refugia-se numa
caravela portuguesa e parte para Lisboa, onde é recebido
com honras de Estado pelo rei D. João II. Também entre
1541 e 1543 um contingente de quatrocentos portugueses
luta ao lado de forças do imperador da Etiópia contra invasores Otomanos.
A cristalização oitocentista dos preconceitos étnicos e
raciais acompanhou a ocupação efetiva dos espaços coloniais, pelo que, salvo algumas exceções, o racismo foi em
primeira instância motivado historicamente por projetos
políticos que visavam a exploração económica dos territórios africanos.
Comparação entre crânios e rostos de seres humanos, macacos e outros animais. A “ciência” ao serviço da discriminação.
Charles White, An Account of the Regular Gradations in Man
and in Different Animals and Vegetables, Londres, 1799.
43
Formas de preconceito com base na cor da pele, transfiguradas ou não em diferenças culturais, permaneceram até
tarde no século XX com valor de lei em diferentes países,
como foi o caso dos Estados Unidos da América, da África
do Sul, e também nos impérios coloniais nomeadamente
o português, onde o Estatuto do Indigenato, que reduzia
os Africanos a instrumentos de trabalho sem qualquer
reconhecimento da sua humanidade, só foi abolido em
1961.
Apesar do fim quase generalizado de situações de
discriminação institucionalizada, o racismo não desapareceu, apresentando nos dias de hoje diferentes formas
e argumentário e centrando-se nas problemáticas da
atribuição de cidadania e de direitos políticos ou na
regulação dos fluxos migratórios.
44
Jovem rapariga branca com a sua ama negra, num banco
público reservado a “europeus”. Joanesburgo, África do
Sul, 1956.
Fotografia de Peter Magubane
A dignidade humana e os direitos humanos têm ainda um
longo caminho a percorrer.
“Domingo Sangrento”, como ficou conhecida a primeira
das três marchas de Selma a Montgomery, Estados Unidos da América, 7 de março de 1965
Timorenses deitados no chão, em pose encenada, formando a palavra “Salazar”, Década de 1930.
Álbum Fontoura, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Manifestação contra o racismo e a violência policial, Lisboa, 2015.
Fotografia de Rui Palha
NOVAS FORMAS DE SERVIDÃO
TRABALHOS FORÇADOS
A
bolida a escravatura em Portugal, a
sua ideologia prevaleceu, assim como
se reproduziram os mecanismos de diferenciação e discriminação étnica e racial das
populações coloniais que a sustentavam.
Logo em 1875, a Lei de 29 de abril, concedia
aos Libertos, agora chamados Serviçais, a
possibilidade de contratação dos seus serviços por dois anos e, de preferência, pelos
seus antigos donos, podendo, no entanto,
ser estabelecidos contratos para servir noutras colónias.
Em 1878, o Regulamento para os Contratos
de Serviçais e Colonos nas Províncias de
África Portuguesa estabelecia ainda que os
indivíduos considerados vadios poderiam
ser compelidos a prestar trabalho.
Trabalhadores e capataz da Diamang, Companhia de Diamantes de Angola.
Fundação Mário Soares
O trabalho indígena foi, assim, o pilar central de sustentação do Império Colonial português. Desapareceram os
Escravos para dar lugar aos Libertos e Serviçais e, depois,
aos Contratados.
O caso da colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe é
especialmente elucidativo: após a emancipação legal dos
escravos, as necessidades de força braçal para a agricultura do cacau levam à importação de trabalhadores de
outros territórios, designadamente de Angola – estimando-se que, entre 1881 e 1904, tenham sido importados cerca de 50.000 angolas.
É nestas circunstâncias que se afirma o regime da mão-de-obra contratada. Os roceiros iriam iniciar também o
recrutamento de caboverdianos e moçambicanos, predispondo-se a repatriá-los no fim do contrato.
Balantas trabalhando na construção de um ourique.
INEP/Fundação Mário Soares
45
Embora fosse estipulada uma remuneração (quase sempre ausente das fichas produzidas pela Curadoria Geral
dos Serviçais e Colonos), o trabalhador contraía, à partida, uma dívida superior, resultante do seu próprio transporte, o que inviabilizava o seu prometido repatriamento.
A legislação previa, contudo, eventuais possibilidades de ascensão social para autóctones que provassem “capacidades” de passagem a “assimilado” ou “civilizado”. Mesmo
os brancos nascidos nas colónias serão
identificados como “portugueses de 2.ª”.
O Estatuto do Indigenato só seria revogado
em 1961, já após a eclosão da luta armada de
libertação nacional em Angola.
46
Postal com a legenda “Serviçaes trabalhando numa plantação” em São Tomé, s.d..
Arquivo Histórico de São Tomé e Píncipe/Fundação Mário Soares
Em 1878, o Regulamento para os Contratos de Serviçais e
Colonos nas Províncias de África Portuguesa introduziu
a “liberdade de trabalho” mas, logo em 1899, o Regulamento do Trabalho Indígena, estabeleceu a obrigação de trabalho sob pena da sua imposição pelas autoridades.
Após a instauração, em 1926, da Ditadura Militar em Portugal, foi nesse mesmo ano aprovado o Estatuto Político,
Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique,
visando uma “ordem jurídica própria do estado das suas
faculdades, da sua mentalidade de primitivos”. Para tal,
considerava indígenas “os indivíduos de raça negra ou
dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se
não distingam do comum daquela raça”. A ditadura colocava assim, de um lado, os “civilizados”, ou seja, os europeus da metrópole e, do outro, os povos coloniais, vistos
como sub-humanos e inferiores.
Fichas de trabalhadores contratados em São Tomé e Príncipe.
Arquivo Histórico de São Tomé e Píncipe/Fundação Mário Soares
EXPLORAÇÃO DO TRABALHO
INFANTIL
E
mbora as crianças tenham sido desde
sempre utilizadas como força de trabalho, o Trabalho Infantil aumentou em grandes proporções com a Revolução Industrial
na passagem dos séculos XVIII para XIX. As
crianças trabalhavam em fábricas e minas
durante longos períodos (12 a 18 horas por
dia, seis dias por semana) e sujeitas a condições perigosas, muitas vezes fatais, a troco
de pequenas quantias de dinheiro para ajudar as suas famílias.
nal do Trabalho, na Convenção n.º 138, aprovada em 1973
e entrada em vigor em 1976, indicou como idade mínima
recomendada para admissão em emprego ou trabalho os
16 anos.
A regulação do Trabalho Infantil aplicou-se
apenas, de um modo geral, às economias
desenvolvidas, mantendo-se em largas regiões do mundo a exploração do trabalho
de crianças, designadamente pelas multinacionais que para aí se deslocalizaram.
A Assembleia Geral das Nações Unidas
aprovou a 20 de novembro de 1989 a Convenção sobre os Direitos da Criança, que
estipula no seu artigo 1.º que “criança é todo
o ser humano menor de 18 anos”, reconhecendo-lhe, no artigo 32.º, “o direito de ser
protegida contra a exploração económica
ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou o seu desenvolvimento
físico, mental, espiritual, moral ou social.”
Por outro lado, a Organização Internacio-
Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada
pela Assembleia Geral
das Nações Unidas em 20
de novembro de 1989. A
Guiné-Bissau viria a ratificar a Convenção em 20 de
agosto de 1990.
Trabalho Infantil (crianças entre os 5 e os 17 anos)
7%
2%
7%
Agricultura
Serviços
Indústria
Trabalho Doméstico
25%
59%
Não definido
Fonte: Organização Internacional do Trabalho, 2013
47
48
Em 1999, a Organização Internacional do Trabalho indicou como plano imediato de ação o combate e eliminação
das piores formas de Trabalho infantil. Nesta lista figuram: todas as formas de escravidão ou similares, como
tráfico ou venda de crianças, servidão como pagamento
de dívidas, trabalhos forçados ou recrutamento para utilização de crianças em conflitos armados; prostituição infantil; utilização de crianças em atividades ilícitas, como
tráfico de droga e trabalhos de risco.
Em vários países da sub-região, o ensino
dos estudos corânicos tem sido utilizado
por falsos mestres para seduzir centenas
de pais a enviar-lhes as suas crianças com
o objetivo de aprenderem a ler o Corão. Estes mestres obrigam, contudo, as crianças,
conhecidas como talibés, a mendigar nas
ruas dinheiro e comida para seu próprio
sustento.
Atualmente estima-se que o número global de crianças
que trabalham seja superior a 150 milhões, apresentando
a África Subsaariana índices de Trabalho Infantil estimados em 59 milhões, ou 21% da população infantil. Embora
se pense que a escravidão já não existe, a Organização Internacional do Trabalho estima que cerca de 5,5 milhões
e crianças sejam escravizadas em todo o mundo.
56,9% das crianças em idade escolar frequentam, na Guiné-Bissau, algum grau de
ensino, estimando-se, no entanto, que muitas, acumulam com a escola a responsabilidade e o peso de algum tipo de atividade
laboral.
O TRABALHO INFANTIL NA GUINÉ-BISSAU
R
elativamente ao Trabalho Infantil, para uma população de 1,453 milhões (em 2006), onde 464.263 têm
entre 5 e 14 anos, a Guiné-Bissau apresenta na atualidade
os seguintes indicadores:
Trabalho Infantil na Guiné-Bissau
Rapazes
46,90%
42,50%
Raparigas
Total
44,90%
Mulheres e raparigas em Bissau.
Fotografia Fundação Mário Soares
22%
Crianças com idades entre os 5 e os 11 anos
21,30%
21,70%
Crianças com idades entre os 12 e os 14 anos
Fonte: Guinea Bissau, Multiple Indicator Cluster Survey 3, UNICEF, 2006
A ABOLIÇÃO E OS DIREITOS
DAS MULHERES
A
princípio, não havia diferenças de estatuto entre o homem da fornalha e a
mulher do moinho ou entre o homem que
cavava a terra e a mulher que nela lançava
a semente. Marc Ferro
doméstico, que mantinha as mulheres negras (ex-escravas) como cuidadoras dos lares, foi uma recorrência.
Em pleno século XX, a conquista do sistema educativo
nacional, universal e misto, permitiu às mulheres maior
independência económica. O movimento pela emancipação e pelos direitos das mulheres, através também da
conquista do direito de voto, lado-a-lado com o movimento abolicionista, trouxe à mulher direitos civis e políticos.
A escravatura veio agravar a diferenciação
dos direitos das mulheres, nivelando por
baixo o seu papel. Mesmo na sociedade negra desfeita, a mulher africana não mais gozaria de salvaguardas e privilégios de que
sempre dispusera.
49
Annie Kenney e Christabel
Pankhurst, inglesas e sufragistas, empunham uma faixa reclamando “Votos para
as mulheres”, 1908.
Representação de um leilão de escrava e da sua criança,
no Brasil colonial, s.d..
National Maritime Museum, Londres.
A ABOLIÇÃO E A CONQUISTA
DE DIREITOS
O
serviço doméstico após a abolição
assume características semelhantes
aos da estrutura esclavagista. O trabalho
NOVAS FORMAS DE ESCRAVATURA
E EXPLORAÇÃO DA MULHER
A
escravatura foi abolida legalmente, mas as suas
heranças estão presentes no quotidiano e na vida
das mulheres negras. Se para a mulher é preciso trabalhar mais horas, ou dias, para auferir o mesmo que
um homem, a mulher negra permanece, hoje, duplamente condicionada.
Nos nossos dias, continuam a existir graves violações dos
Direitos Humanos em muitos países. As mulheres continuam a ser prometidas em casamento a troco de compensações entregues aos pais ou à família. A mulher, por
morte do marido, continua a poder ser transmitida por
herança a outra pessoa. A mulher continua a ser objeto
de tráfico e de exploração sexual e, em muitos casos, forçada à prostituição por redes internacionais. A mulher
continua a não ter as mesmas oportunidades no acesso
à educação e ao desenvolvimento. A Luta de Libertação
da Guiné-Bissau constituíu um momento de importante
afirmação da Mulher, chamada a lutar em pé de igualdade
com os seus companheiros e tomando posição significativa em todos os momentos da afirmação política e social
da Libertação.
50
O Relatório sobre os Direitos Humanos na
Guiné-Bissau, da Organização das Nações
Unidas, indicava que, em 2014, nenhuma lei
proibia a violência doméstica e mesmo a
penalização da violação, dependente de denúncia da vítima, era geralmente ignorada.
O casamento forçado de crianças, a venda
de meninas para casamento ou a exploração sexual é ainda uma realidade na Guiné-Bissau e em muitos outros países.
Embora a Assembleia Nacional Popular tenha aprovado, em 2012, a lei de proibição da
mutilação genital feminina, a prática continua a ser também uma realidade de muitas
meninas guineenses, quer no interior do
país, quer na diáspora. A UNICEF estimava,
dez anos antes dessa ilegalização, que 50%
das mulheres guineenses tinham sofrido
mutilação genital.
A ESCRAVATURA MODERNA
A
Amílcar Cabral numa tabanca com mulheres e crianças durante a Luta de
Libertação, agosto de 1971.
Fotografia Bruna Polimeni, Arquivo Amílcar Cabral/Fundação Mário Soares
situação económica, financeira, política e social dos nossos dias caracteriza-se por uma enorme instabilidade,
agravada pelos processos desregrados da
globalização e pelas disputas de invocada
natureza religiosa. Um pouco por todo o
lado, conflitos de vária ordem têm provocado enormes vagas migratórias - segundo a
Organização Internacional do Trabalho, só
em 2014, cerca de 60 milhões de pessoas foram forçadas a mudar a sua localização em
resultado de guerras, conflitos ou perseguições, o que tem vindo a agravar-se.
Esta realidade abre caminho ao aumento
do tráfico de seres humanos, reduzidos à
perda dos seus direitos, expostos a condições de trabalho degradantes e sujeitos à
exploração e à fraude.
escravo, o tráfico sexual ou a servidão doméstica. Mas a
verdade é que estamos perante seres humanos controlados por indivíduos ou organizações que, através da violência e da coação, os mantêm reféns para melhor os explorar económica e socialmente.
Estamos perante novas escravaturas, frequentemente acompanhadas da privação
de liberdade de movimentos, de múltiplas
formas de coação e mesmo de sujeição a
trabalhos não remunerados.
Calcula-se (globalslaveryindex.org) que mais de 45 milhões de pessoas em todo o mundo estão hoje sujeitas a
verdadeiras condições de escravatura.
Não se conhecem com rigor os dados desta Escravatura Moderna, que abarca realidades tão diversas como a servidão por
dívidas, os trabalhos forçados, o trabalho
51
Emigrantes sírios e iraquianos à chegada à
ilha grega de Lesbos, 30
de outubro de 2015.
52
ESCRAVATURA E TRÁFICO NEGREIRO: CRONOLOGIA
Na antiguidade, a guerra constituiu o principal abastecimento de escravos, os vencidos. A prisão por dívidas implicava também,
muitas vezes, a redução de homens livres à
escravatura. Do mesmo modo, a pirataria
vendia como escravos os homens e mulheres raptados.
Durante muito tempo, o Mediterrâneo foi a
principal área de tráfico de escravos, trazidos da África subsaariana (designadamente da área do Lago Chade) através das rotas
do deserto para serem vendidos nos países
a norte.
Com a chegada dos portugueses à costa da
Guiné, a situação alterou-se profundamente, abrindo-se uma nova rota de escoamento dos escravos e, sobretudo, intensificando-se o tráfico.
O arquipélago de Cabo Verde foi o destino
inicial dos escravos capturados na Guiné,
sendo outros vendidos na Madeira, em Portugal e em Espanha.
1441 > O navegador português Nuno Tristão explora a costa africana, passando o
Rio do Ouro e descobrindo o Cabo Branco
e, mais tarde, as ilhas de Arguim e das Garças, atingindo a embocadura do rio Senegal
(“país dos negros”), vindo a morrer, em 1446,
na foz do rio Gâmbia, em confronto com as
populações locais.
1444 > São desembarcados em Lagos (Portugal) 235 escravos capturados a sul do
Cabo Branco por uma frota de seis caravelas, sendo vendidos num terreno perto da
Porta da Vila (antiga porta Norte), na presença do Infante
D. Henrique, a quem cabia 1/5 do valor realizado com essa
mercadoria. Este acontecimento marca o início do tráfico
europeu de escravos africanos para a Europa.
1445 > Os portugueses instalam-se na Ilha de Arguim,
numa região da atual Mauritânia habitada por mauros
e negros islamizados, com o objetivo de intercetar o ouro
que as caravanas transportavam de Tombuctu para o
norte de África, e de adquirir goma-arábica produzida localmente e, sobretudo, escravos. Portugal passou a receber de Arguim, cerca de 800 escravos por ano. Em 1461, foi
concluída a construção de uma fortificação, constituindo
a primeira feitoria comercial portuguesa em África, que
permanecerá sob controlo da Coroa portuguesa até 1633,
data da sua conquista pelos holandeses.
1446 > Álvaro Fernandes prossegue a exploração da costa
africana, atingindo as ilhas de Los, junto a Conacri.
1447 > Fernandes Afonso explora a zona do rio Jumbas e
da ilha de Goreia, acompanhado pelo dinamarquês Valarte, que virá a morrer no território do atual Senegal.
1452 > O Papa Nicolau V dirige ao rei de Portugal D. Afonso V a bula Dum Diversas, concedendo-lhe “plena e livre
permissão de invadir, conquistar, atacar, vencer e subjugar os sarracenos e os pagãos e quaisquer outros infiéis
e inimigos de Cristo (...) e outrossim que pudesse reduzir
à escravidão perpétua as suas pessoas e apropriar-se dos
seus bens”, o que será confirmado, três anos depois, pela
bula Romanus Pontifex.
1466 > D. Afonso V concede autorização aos “moradores”
do arquipélago de Cabo Verde, recém-descoberto, para
irem “com navios a tratar e resgatar em todos (...) os tratos
das partes da Guiné”, excetuando Arguim, que estava sob
controlo direto da Coroa, consagrando assim um mono-
53
pólio na importação de mercadorias africanas, sobretudo
escravos. Os escravos trazidos compulsivamente da costa
africana pelos “moradores” da Ilha de Santiago passam a
constituir a maioria da população - a mão-de-obra -, sendo também mercadoria exportável com grandes lucros
para o Brasil e sustentando a criação de uma elite escravocrata que irá dominar o arquipélago durante pelo menos um século.
54
1469 > O rei D. Afonso V concede ao comerciante Fernão
Gomes, por arrendamento, o monopólio do contrato de
comércio no Golfo da Guiné, comprometendo-se este a
explorar a costa de África durante cinco anos (o acordo
seria prolongado por mais um ano), entregando ao rei, no
final desse prazo, 100 léguas de terras descobertas. Com
os navegadores João de Santarém e Pêro Escobar, entre
outros, prossegue a exploração da costa africana, descobrindo as ilhas do Golfo da Guiné, designadamente São
Tomé e Príncipe e a foz do rio Níger e atingindo o Cabo
de Santa Catarina. Em 1471, chegam à Mina, onde encontram um florescente comércio de ouro de aluvião. Ao
abrigo desse contrato, exploram outras riquezas como a
pimenta-da-guiné, dedicando-se igualmente ao comércio
de escravos.
1479 > Assinatura, entre Portugal e Castela, do Tratado
das Alcáçovas-Toledo, que reconheceu o domínio português sobre as terras descobertas a sul do arquipélago das
Canárias, incluindo a Costa da Mina e o golfo da Guiné.
1482 > Construção da feitoria fortificada de São Jorge da
Mina, no atual Gana, com a função de assegurar a soberania e o comércio de Portugal no Golfo da Guiné. Com
o posterior incremento do tráfico atlântico de escravos,
a fortificação readquiriu importância como entreposto
onde os cativos eram mantidos a aguardar o seu transporte para as Américas.
1482-1484 > Diogo Cão contacta o reino do
Congo.
1485 > João de Aveiro, embaixador do Rei
de Portugal, estabelece relações com o rei
do Benim.
1486 > É criada em Portugal a Casa dos Escravos, com o fim de superintender todo o
comércio de escravos africanos e cobrar as
respetivas receitas régias.
1486-1493 > O banqueiro e armador florentino Bartolomeu Marchionni, um dos
homens mais ricos de Lisboa, recebe, em
regime de monopólio, o “rio dos escravos”,
um dos mais importantes entrepostos de
escravos. Era o principal comerciante de
açúcar das ilhas da Madeira e financiou
viagens para a Guiné, o Brasil e a Índia.
1493 > Início do povoamento efetivo da ilha
de São Tomé, com a introdução da cana-de-açúcar e o desenvolvimento da produção
açucareira, o que implicou a importação de
escravos do continente africano.
1494 > Assinado entre Portugal e Espanha
o Tratado de Tordesilhas, para dividir as
terras “descobertas e por descobrir”, na sequência da viagem de Cristóvão Colombo
ao “Novo Mundo” em 1492. Os territórios a
leste do meridiano traçado pertenceriam a
Portugal e os territórios a oeste, à Espanha,
que foi assim excluída do comércio direto
com África.
1500 > Primeiras notícias de “lançados” na
região dos rios da Guiné. As naus portuguesas que demandaram as terras e os rios
da Guiné recorreram frequentemente aos
“lançados”, voluntários ou à força, cripto
judeus ou cristãos, deixados em terra para
se fixarem entre os africanos e aí se estabelecerem. Viriam a servir frequentemente
como intermediários entre as autoridades
africanas e os comerciantes europeus no
tráfico de escravos.
1502 > São introduzidas os primeiros escravos africanos nas Antilhas (ilha Hispaniola,
atual S. Domingos).
1512 > O rei D. Manuel I proibiu que fossem
desembarcados fora de Lisboa quaisquer
escravos trazidos para Portugal.
1515 > O rei D. Manuel I mandou que se construísse em Lisboa um poço onde fossem deitados e tapados com cal os corpos dos escravos mortos e abandonados. Situava-se na
zona da Igreja de Santa Catarina, onde hoje
existe ainda a Rua do Poço dos Negros.
1516 > As autoridades espanholas concedem a uma companhia genovesa o “asiento
de negros”, isto é, a exclusividade no abastecimento de escravos às Índias de Castela.
1518 > É autorizada a exportação direta de
escravos para a América espanhola a partir
de Cabo Verde e de São Tomé.
1518-1519 > Forte epidemia de varíola nas
Antilhas acelera a importação de mão-de-obra escrava.
1537 > A bula In Nomine Sancte, promulgada pelo Papa
Paulo III, proibiu a escravidão dos índios (das Américas),
mas mantém indiferença em relação à escravatura negra.
1550-1551 > Junta de Valladolid: debate no Colégio de San
Gregorio de Valladolid sobre os indígenas americanos
ou índios no âmbito da colonização das Américas: Juan
Ginés de Sepúlveda defendeu o direito e a conveniência do
domínio dos espanhóis sobre os indígenas, considerados
inferiores, enquanto Bartolomé de Las Casas defendeu
a tese de que todos os homens são criados à imagem de
Deus e, portanto, a escravidão deveria ser rejeitada. O
debate foi inconclusivo.
1555 > O padre Fernando de Oliveira, em “Arte de Guerra do Mar” denuncia o comércio de escravos como um
“odioso comércio”, pregando uma convivência pacífica
dos portugueses com os gentios que estavam dispostos a
com eles comerciar e opondo-se às conversões violentas,
como de judeus e muçulmanos. Afirma que o comércio de
seres humanos viola o conceito da “Guerra Justa” defendido pela teologia de Santo Agostinho.
1570 > O rei de Portugal D. Sebastião introduz limitações
à escravização dos ameríndios.
1576 > O fidalgo e explorador português Paulo Dias de Novais funda em Angola a cidade de São Paulo da Assunção
de Loanda. O tráfico negreiro que se vinha a deslocar para
sul adquire neste novo entreposto importância crescente,
com o objetivo de assegurar o fornecimento de escravos
com destino a Portugal, ao Brasil e à América Central. Entre
1641 e 1648, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais
ocupa a cidade, controlando o tráfico de escravos aí sediado.
1579 > O contrato dos direitos régios de Angola é separado dos de São Tomé, a que estava associado.
55
1580 > Com a crise de sucessão em Portugal e a união da
coroa com a Espanha, esta torna-se o mais importante
império colonial e o maior participante no comércio de
escravos.
1588 > Instalação em Cacheu da primeira feitoria portuguesa na Guiné, destinada a assegurar essencialmente
o comércio de escravos. A região estará dependente de
Cabo Verde até 1879.
56
O comércio de escravos conhece uma nova fase. Por um
lado, a ocupação pelos europeus do continente americano
provoca crescente necessidade da mão-de-obra escrava.
Por outro lado, o comércio de escravos africanos é alargado a novas nacionalidades, com a instalação de ingleses,
franceses, holandeses, dinamarqueses nas áreas onde é
feito o seu abastecimento.
São criadas em diversos países companhias especialmente dedicadas ao tráfico negreiro, com participação
de capitais públicos e privados. Os países europeus tentam garantir diretamente o fornecimento de escravos às
colónias que instalam no Novo Mundo.
1588 > Mercadores ingleses adquirem direitos de comércio entre os rios Senegal e Gâmbia.
1595 > Mercadores portugueses asseguram, até 1640, o
asiento, o fornecimento exclusivo de escravos à América
Espanhola.
1617 > Holandeses expulsam os portugueses da Angra de
Bezaguiche, que abriga o ilhéu de Goreia.
1620 > Chegada dos primeiros escravos africanos às
colónias continentais inglesas na América.
1621 > Fundação da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais (WIC) com monopólio comercial com as
colónias ocidentais pertencentes às Sete Províncias
Unidas dos Países Baixos nas Índias Ocidentais (o Caribe) e do tráfico de escravos
no Brasil, Caribe e América do Norte. A
Companhia podia operar também em África (entre o Trópico de Câncer e o Cabo da
Boa Esperança) e nas Américas, incluindo o
Oceano Pacífico e na parte oriental da Nova
Guiné.
1633 > A Companhia das Índias Ocidentais
conquista aos portugueses a fortaleza de
Arguim.
1637 > Os holandeses conquistam a fortaleza de São Jorge da Mina.
1638 > Comerciantes franceses estabelecem um posto na ilha de Bakosse, na foz
do rio Senegal.
1641-1648 > Aproveitando a união das coroas portuguesa e espanhola, os holandeses
ocupam vários portos do litoral angolano
e de São Tomé, reforçando o seu posicionamento no tráfico de escravos no Hemisfério
Sul.
1645 > Os portugueses instalam uma feitoria em Ziguinchor, no reino de Casamansa,
subordinada à capitania de Cacheu.
1658 > É criada pelos franceses a Companhia
de Cabo Verde e do Senegal, que instala um
entreposto em Saint Louis.
1660 > Formação pela Casa dos Stuart e
comerciantes de Londres da Company
of Royal Adventurers Trading to Africa,
estabelecendo numerosos entrepostos
esclavagistas na costa da África Ocidental, essencialmente destinados ao
abastecimento das Caraíbas Britânicas.
Após uma séria crise, voltou a erguer-se
em 1672, sob a designação de Royal African
Company, transportando no período
até 1689 entre 90 000 a 100 000 escravos,
marcados a ferro no peito com as iniciais da
companhia, “RAC”. A partir de 1731, dedicouse ao comércio do marfim e do ouro em pó.
1663 > Os ingleses constroem o Forte James,
na atual Gâmbia, a sua primeira possessão
em África.
1664 > Criação da Companhia Francesa das
Índias Ocidentais, que durará até 1674. Receberá o monopólio do tráfico de escravos
africanos que pertencera à Companhia de
Cabo Verde e do Senegal.
1671 > Criação da Companhia Dinamarquesa das Índias Ocidentais, que operou principalmente na zona da Costa do Ouro (atual
Gana).
1673 > Fundação em França da Companhia
do Senegal para o comércio de escravos.
1677 > Os franceses ocupam definitivamente o entreposto de escravos do ilhéu de
Goreia, até aí sob domínio holandês.
1684 > O rei de Portugal D. Pedro II manda
publicar o Regimento sobre o despacho dos
negros cativos de Angola e mais conquistas e sobre a arqueação dos navios, em que
procura disciplinar o transporte de escra-
vos: “do aperto, com que vem, sucede maltratarem-se de
maneira, que, morrendo muitos, chegam impiamente lastimosos os que ficam vivos”.
1685 > Criação em França da Compagnie Royale de
Guinée, sociedade comercial privilegiada dedicada especialmente ao tráfico negreiro e ao comércio triangular
entre a cidade francesa de Nantes e a ilha Hispaniola ou
São Domingos.
1685 > Promulgação, pelo rei de França, Luís XIV, do “Código Negro”, que estabelecia o estatuto civil e penal dos
escravos nas colónias francesas, assim como as relações
com os seus proprietários.
1687 > O capitão-mor de Cacheu informa o rei português,
D. Pedro II, da situação preocupante que se vive na
Guiné face às investidas francesas, que colocam em
risco o monopólio português do tráfico de escravos.
A Compagnie du Sénégal, recentemente criada, com o
intuito específico de fornecer mão-de-obra escrava para
as Antilhas, procede a razzias nos territórios da Guiné e
pretende construir uma fortificação em Bissau.
1696 > Início da construção da fortaleza da Amura, em
Bissau, que viria a ser abandonada nos dez anos seguintes porque sobre se achar hoje tão pouco adiantada, se
reconhece estarmos com pouca aceitação dos Negros,
chegando a experimentar-se o excesso de que o rei prendesse ao capitão-mor.
No século XVIII, o tráfico negreiro insere-se no chamado “comércio triangular”, muito mais rentável: os navios
partiam de portos ingleses, designadamente de Bristol
ou Liverpool, com destino ao Golfo da Guiné, levando encomendas de armas, rum, tecidos de algodão e bijuterias
que vendiam aos traficantes de escravos, adquirindo-lhes
57
“mercadoria humana” para a 2.ª viagem, destinada ao
continente americano. Desembarcados e vendidos os escravos, os navios regressavam à Europa, desta vez transportando produtos como açúcar, café, tabaco e tecidos
confecionados no Novo Mundo.
1701-1713 > Os franceses da Companhia da Guiné recuperam o asiento, o exclusivo de fornecimento de escravos
à América Espanhola.
58
1711 > Fundação da sociedade público-privada inglesa
South Sea Company, obtendo os direitos exclusivos do
comércio com a América do Sul ao finalizar a Guerra
de Sucessão Espanhola (obtém o asiento pelo qual se
comprometia a enviar para a América Espanhola um
total de 144000 escravos em 30 anos). O seu colapso em
1720 constituiu um dos maiores escândalos financeiros da
sua época.
1721 > Fundação na Holanda da Companhia de Comércio
de Midelburgo (Middelburgsche Commercie Compagnie),
cuja atividade principal era o comércio de escravos. O
poderio destas companhias holandesas espalhava-se pelos vários continentes, sendo a VOC (Vereenigde Oost-Indische Compagnie) a mais poderosa.
1721 > Os portugueses erguem uma feitoria fortificada em
Ajudá (Ouidah, na atual República do Benim), perto das
fortalezas inglesa e francesa já existentes. Esse entreposto exportou a maioria dos escravos para Salvador da Baía.
1748 > Fundação, em Nantes (França), da Société d’Angola,
destinada ao tráfico de escravos no litoral angolano 1748
– na sua obra O Espírito das Leis, o filósofo francês Montesquieu combate a escravidão dos africanos, afirmando
ironicamente: “Tendo os povos da Europa exterminado os
da América, tiveram de escravizar os de África para conseguirem tratar tantas terras.”
A escravatura e o tráfico negreiro suscitam
crescente oposição de meios intelectuais e
religiosos. Entretanto, as necessidades de
mão-de-obra nas colónias europeias no continente americano fazem aumentar o fluxo
de escravos africanos, sendo necessário
mais de um século para a abolição da escravatura. Mas a verdade é que muitos escravos formalmente libertos permanecem na
dependência dos seus proprietários, agora
como “serviçais” ou “ contratados”.
1753 > A fortaleza da Amura, em Bissau, é
reconstruída, tendo sido provavelmente
utilizada mão-de-obra cabo-verdiana trazida para o efeito.
1755 > O Marquês de Pombal institui, em
Portugal, a Companhia Geral do Grão-Pará
e Maranhão e, em 1759, a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba. Tratam-se
de companhias monopolistas destinadas a
controlar e fomentar a atividade comercial
com essas capitanias, sendo uma das suas
principais atividades o fornecimento de
escravos africanos.
1761 > Primeiro alvará, da autoria do
Marquês de Pombal, visando a abolição
da escravatura em Portugal, mantendo-a,
contudo, nas colónias. Passam a ser considerados livres os escravos que entrarem
em Portugal.
1770 > Os quakers americanos proíbem
aos seus membros a posse de escravos na
sequência de posições anti-esclavagistas
já tomadas em vários países pela sua
organização.
1772 > No Reino Unido, um escravo da
Virgínia, James Somerset, que havia acompanhado o seu proprietário para Inglaterra,
recusa-se a voltar para a América, sendo
acorrentado num barco com destino à Jamaica. Com apoio de anti-esclavagistas
ingleses, leva o caso aos tribunais e obtém
uma sentença que o declara livre.
1773 > Embora com algumas exceções, consideram-se homens livres os escravos residentes em Portugal.
1777 > Abolição gradual da escravatura no
estado do Vermont (EUA) e, dois anos depois, na Pensilvânia.
1778 > Tratado de El Pardo assinado entre
a Rainha Maria I de Portugal e o Rei Carlos
III de Espanha, pelo qual Portugal cedeu as
ilhas de Annobon e Bioko (Fernando Pó), na
atual Guiné Equatorial, assim como a costa
do Golfo da Guiné entre a foz do rio Níger
e a do Ogooué, no atual Gabão. Em troca
desses territórios, Portugal adquiriu territórios na América do Sul para a colónia do
Brasil.
1781 > A tripulação do navio negreiro inglês
“Zong” assassinou 133 escravos africanos
destinados à Jamaica, atirando-os borda
fora à medida que faltava água potável a
bordo. Posteriormente, os proprietários
do navio solicitaram uma indemnização à
companhia seguradora, que a recusou. Levado o caso a
tribunal, os proprietários viram ser-lhes negada a indemnização pedida. O caso teve grande impacto no seu tempo devido à denúncia do massacre realizada pelo escravo
liberto Olaudah Equiano.
1783 > Mais de 300 quakers apresentaram ao Parlamento
inglês, inspirados pelo massacre do “Zong”, uma petição
contra o tráfico de escravos.
1787 > Thomas Clarkson e William Wilberforce fundam
em Londres a Society for Effecting the Abolition of the
Slave Trade (antecessora da British Antislavery Society),
modelo de outras associações em vários países da Europa
e da América.
1788 > Fundada em Paris, à imagem da sociedade abolicionista inglesa, a Sociedade dos Amigos dos Negros, que
tinha por objetivo a igualdade nas colónias entre brancos
e homens de cor livres, a abolição imediata do tráfico negreiro e a abolição progressiva da escravatura.
1789 > A Revolução Francesa aprova a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo artigo 1.º estabelece
que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”.
1789 > O rei de Espanha concede liberdade de comércio a
espanhóis e a estrangeiros para o tráfico de escravos com
as ilhas de Cuba, São Domingos, Porto Rico e província
de Caracas.
1789 > Publicação, em Londres, da autobiografia do escravo liberto Olaudah Equiano (The Interesting Narrative of
the Life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, The African), obra que influenciará decisivamente o movimento
abolicionista.
1791-1804 > Levantamento dos escravos haitianos que
59
põem termo à colónia francesa de S. Domingos e fundam
o Estado soberano do Haiti. A vitoriosa Revolução Haitiana exerceu enorme influência nas Américas, mostrando
que era possível criar um Estado liberto da escravatura e
dirigido por não-brancos e antigos cativos.
1792 > O rei da Dinamarca Cristiano VII promulga um
decreto sobre “comércio de negros” ordenando que, a
partir de 1803, cesse o tráfico negreiro transatlântico sob
bandeira dinamarquesa, que era aliás diminuto.
1792 > Em Inglaterra, uma moção para a abolição do tráfico é aprovada na Câmara dos Comuns mas rejeitada pela
Câmara dos Lordes.
60
1794 > A Convenção Nacional saída da Revolução Francesa atribui a cidadania francesa aos homens de cor e mestiços e aos escravos, abolindo assim a escravatura. Napoleão revoga essa decisão, que será retomada em 1833 para
os negros livres e em 1848 para os escravos.
1794 > Fundação em Filadélfia da American Convention
for Promoting the Abolition of Slavery, reunindo as sociedades abolicionistas dos Estados Unidos da América.
O combate ao tráfico negreiro precede a abolição da escravatura. A Inglaterra domina os mares e apreende centenas de navios negreiros. Mas o certo é que o modo de
produção nas colónias dos países europeus continua a
exigir mão-de-obra intensiva, sendo os escravos a solução
mais barata, arrastando assim o processo de abolição.
1807 > O Parlamento inglês aprova o Slave Trade Act, que
proibia, a partir de 1 de janeiro de 1808, o tráfico negreiro
no Império Britânico, mas não a escravatura.
1807 > Os Estados Unidos da América proíbem a importação de escravos (Slave Importation Prohibition Act),
também a partir de 1 de janeiro de 1808.
1808 > A Serra Leoa torna-se colónia
britânica e acolhe operações navais contra
o tráfico negreiro, recebendo numerosos
escravos libertos, designadamente apreendidos aos traficantes pelos navios de
guerra britânicos.
1810 > Tratado de Aliança e Amizade entre
Portugal e Inglaterra estabelece a abolição
gradual do tráfico negreiro português, que
fica desde logo limitado às suas possessões
efetivas em África.
1810 > O México manifesta a sua intenção
de abolir a escravatura, o que se viria a verificar apenas em 1829.
1814 > Os Países Baixos proíbem o tráfico
negreiro.
1815 > No Congresso de Viena, as potências
europeias (Áustria, Espanha, França, GrãBretanha, Noruega, Portugal, Prússia, Rússia e Suécia) comprometem-se a proibir o
tráfico de escravos, embora sem fixação de
datas.
1815 > Assinada em Viena a Convenção
Luso-Britânica, pela qual Portugal declarava proibir doravante a todos os seus
nacionais “comprar escravos ou traficar
neles em qualquer parte da costa da África
ao Norte do Equador”. Dois anos depois,
Portugal reconhece à Inglaterra o direito
de visita e busca dos seus navios suspeitos
de servirem o tráfico negreiro.
1817 > Tratado entre a Inglaterra e Espanha
em que esta se comprometia a suprimir o
tráfico e a abolir a escravatura num prazo
de três anos (não foi cumprido até 1867).
1818 > A American Colonization Society
adquire terrenos na costa africana (atual
Libéria) para instalar escravos americanos
libertos.
1823 > Abolição da escravatura no Chile e,
em 1826, na Bolívia.
1826 > Tratado pelo qual a Inglaterra impõe
ao governo do Brasil, recém-independente
de Portugal, o compromisso de decretar a
abolição do tráfico no prazo de três anos.
1831 > O Parlamento brasileiro aprova a
“Lei Feijó” com medidas contra o tráfico negreiro, que ficou conhecida como “lei para
inglês ver”.
1831 > Campanha de petições em Inglaterra
com vista à abolição da escravatura.
A “Revolução Industrial” em Inglaterra dispensa a mão-de-obra escrava, agora substituída por proletários contratados. Mas as
colónias dos vários Estados europeus ainda
não atingiram esse avanço tecnológico e
produtivo.
O lento processo de abolição da escravatura passa assim pela indemnização dos proprietários de escravos, para resolver o “incalculável prejuízo” causado. Durante mais
de três séculos, o tráfico negreiro constituíra uma das molas fundamentais do capitalismo mercantil, fornecendo a mão-de-obra
necessária às plantações do Novo Mundo e representando em si uma forma importante de acumulação de capital.
1833 > Lei da abolição da escravatura em Inglaterra e em
todas as colónias britânicas, com indemnização aos proprietários.
1834 > Fundação da Sociedade Francesa para Abolição da
Escravatura.
1835 > Negreiros espanhóis navegando com bandeira
portuguesa continuam a abastecer Cuba com escravos
provindos sobretudo de Cacheu e Bissau, sendo conhecida a participação de Honório Barreto em alguns desses
carregamentos.
1836 > O primeiro-ministro português Sá da Bandeira faz
aprovar legislação que determinava a extinção da exportação de africanos das colónias portuguesas: “Fica proibida a exportação de escravos, seja por mar ou por terra,
em todos os Domínios Portugueses, sem excepção, quer
sejam situados ao norte, quer ao sul do equador, desde o
dia em que na Capital de cada um dos ditos Domínios for
publicado o presente Decreto.”
1837 > Espanha decreta a abolição da escravatura no território peninsular, mas não nas colónias.
1839 > Carta Apostólica In Supremo do Papa Gregório
XVI: “admoestamos e esconjuramos energicamente no
Senhor todos os fiéis cristãos de qualquer condição que,
doravante, ninguém ouse fazer violência, desapropriar de
seus bens ou reduzir seja quem for à condição de escravo,
ou prestar ajuda ou favorecer àqueles que cometem tal
delito ou querem exercitar o indigno comércio por meio
do qual os negros são reduzidos a escravos”.
1839 > O Parlamento inglês aprova, unilateralmente,
uma determinação (Lord Palmerston’s bill) pela qual se
61
autoriza os navios da Royal Navy a apresar quaisquer
embarcações sob pavilhão português que transportassem
escravos ou estivessem equipados para esse fim.
1842 > Abolição gradual da escravatura no Uruguai e no
Paraguai.
1842 > Assinado em Lisboa, entre o Reuno Unido e Portugal, o Tratado de Comércio e Navegação e o Tratado para
a completa abolição do tráfico da escravatura.
1845 > Espanha adota uma lei de proibição do tráfico, mas
abrindo exceções para a sua colónia de Cuba.
62
1845 > Aprovado pelo Parlamento do Reino Unido o Slave
Trade Suppression Act ou Aberdeen’s Bill, autorizando
as embarcações da Marinha Real Britânica a apreender
quaisquer navios negreiros que porventura se dirigissem
ao Império do Brasil. Entre 1845 e 1851 foram apreendidas
e destruídas 368 embarcações que faziam tráfico de escravos para o Brasil, que continuava a ignorar os tratados internacionais que assimilavam o tráfico à pirataria.
1846-48 > Diversos países foram, entretanto, abolindo a
escravatura, como a Suécia, a Tunísia, a Dinamarca e a
França.
1847 > Proclamação da independência da Libéria, fundada e colonizada por escravos americanos libertos com a
ajuda de uma organização privada chamada American
Colonization Society e por escravos libertos dos navios
negreiros.
proibiu o tráfico transatlântico de escravos. O certo é que o tráfico interno cresceu
e concentrou-se nas Províncias do Rio de
Janeiro e de São Paulo.
1851-54 > A abolição da escravatura chega
aos países latino-americanos: Colômbia,
Argentina, Venezuela e Perú.
1854 > Primeiras medidas com vista à
abolição da escravatura nas colónias portuguesas. Cinco anos depois, é extinta a escravatura em todos os territórios portugueses,
embora com restrições e prazos.
1857 > O Império Otomano proíbe o tráfico
de escravos.
1861 > Alexandre II emancipa por decreto
todos os servos russos.
1862 > Proclamação da Emancipação nos
Estados Unidos, pelo Presidente Abraham
Lincoln, abolindo a escravatura em todo
o território confederado, ainda em Guerra Civil. Três anos depois, com o termo
da Guerra de Secessão, a escravatura foi
declarada ilegal através da aprovação da
13.ª Emenda Constitucional.
1863 > A Holanda declara a abolição da escravatura nas suas colónias.
1849 > A França aprova uma lei de indemnização aos colonos proprietários de escravos.
1867 > Espanha proíbe definitivamente o
tráfico negreiro.
1849 > Fundação de Libreville (Gabão) por escravos libertos a partir de um navio negreiro chamado Elizier.
1867 > Chegada documentada do último
navio negreiro a Cuba.
1849 > Aprovada pelo Brasil a “lei Eusébio Queirós” que
1869 > Abolição da escravatura em Por-
tugal: Fica abolido o estado de escravidão
em todos os territórios da monarquia portuguesa, desde o dia da publicação do presente decreto.
1873 > Abolição da escravatura na colónia
espanhola de Porto Rico.
1876 > Abolição da escravatura na Turquia.
1880-1886 > Abolição progressiva da escravatura na colónia espanhola de Cuba.
1885 > As decisões finais da Conferência de
Berlim visaram repartir África pelas potências coloniais, adotando ainda algumas medidas para reprimir a prática da escravatura.
63
1886 > Espanha proíbe definitivamente a
escravatura no seu território e nas suas
colónias, incluindo Cuba.
1888 > O Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir
completamente a escravatura, aprovando a
Lei Áurea (que havia sido precedida pela Lei
do Ventre Livre, de 1871, que libertou todas
as crianças nascidas de pais escravos). Data
de 1856 a última chegada documentada de
escravos africanos ao Brasil.
1890 > A Conferência Internacional de
Bruxelas aprova a Convenção relativa à
escravatura, incentivando todos os países
a adotar medidas efetivas de combate à escravatura e ao tráfico negreiro.
Desenho utilizado pela British Anti-Slavery Society, 1795, atribuído a Josiah
Wedgwood.
British Abolition Movement
BIBLIOGRAFIA
LIVROS E PUBLICAÇÕES
AAVV, General History of Africa, Paris, UNESCO, 1992
AAVV, Trabalho Forçado Africano, Porto, Campo das Letras, 2006
ALEXANDRE, Valentim, O Império Africano - Séculos
XIX e XX, Lisboa, Colibri, 2000
ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill, O Império Africano
1825-1890, Lisboa, Editorial Estampa, 2008
BARRY, Boubacar, Senegambia and the Atlantic Slave
Trade, Cambridge, Cambridge University Press, 1998
BETHENCOURT, Francisco, Racismos: das cruzadas ao
século XX, Lisboa, Temas & Debates, 2015
64
BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti (Org.),
História da Expansão Portuguesa, Lisboa, Circulo de
Leitores, 1998
BULL, Benjamin Pinto, O Crioulo da Guiné-Bissau. Filosofia e Sabedoria, Lisboa/Bissau, Instituto da Cultura e
Língua Portuguesa/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1989
CABRAL, Iva, A Primeira Elite Colonial Atlântica, Dos
“homens honrados brancos” de Santiago à ‘nobreza da
terra’, Pedro Cardoso Livraria, 2015
CALDEIRA, Arlindo Manuel, Escravos e Traficantes no
Império Português, Lisboa, Esfera dos Livros, 2013
CORTESÃO, Jaime, Os Descobrimentos Portugueses,
Lisboa, Alethêia/Expresso, 2016
ELTIS, David e RICHARDSON, David, Atlas of the Transatlantic Slave Trade, New Haven, Yale University Press, 2010
FERRO, Marc, História das Colonizações, Lisboa, Editorial Estampa, 1996
JERÓNIMO, Miguel Bandeira, Livros Brancos, Almas
Negras: a «missão civilizadora» do colonialismo português c. 1870-1930, Lisboa, ICS, 2009
LOBBAN, Richard, Historical Dictionary of the Republic
of Guinea-Bissau and Cape Verde, Metuchen, N.J., Scarecrow Press, 1979
LOPES, Carlos (Org.), Mansas, Escravos, Grumetes e
Gentio: Cacheu na encruzilhada de civilizações, Bissau,
INEP, 1993
LOPES, Edmundo Correia, A Escravatura: subsídios
para a sua história, Lisboa, Agência Geral das Colónias,
1944
MARQUES, João Pedro, Sá da Bandeira e o Fim da Escravidão: vitória da moral, desforra do interesse, Lisboa,
ICS, 2008
M’BOKOLO, Elikia, África Negra: história e civilizações,
Lisboa, Edições Colibri, 2007
PEREIRA, Dulce, Crioulos de Base Portuguesa, Lisboa,
Caminho, 2006
SCATAMBURLO, Luigi, O Léxico do crioulo guineense e
as suas relações com o português: ensino bilingue português-crioulo guineense, Lisboa, FCSH/UNL – Tese de
Doutoramento, 2013
WALTER, Jaime, Honório Pereira Barreto, Bissau, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1947
WALVIN, James, História da Escravatura, Lisboa, Tinta
da China, 2014
INTERNET
Trans-Atlantic Slave Trade Database
(http://www.slavevoyages.org/)
The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas:
A Visual Record (http://www.slaveryimages.org/)
FICHA TÉCNICA
Coordenação
Alfredo Caldeira
Coordenação Científica
Isabel Castro Henriques
Textos
Victor Ramos
Inês Quintanilha
Philip Havik
Alfredo Caldeira
Seleção e tratamento de imagens
António Coelho
Victor Ramos
Inês Quintanilha
Paulo Caldeira
Alfredo Caldeira
Design
Gonçalo Castilho
Museologia
Alfredo Caldeira
Victor Ramos
Gonçalo Castilho
Daniela Ermano
João Carrasco
Agradecimentos
AD - Acção para o Desenvolvimento
Tomane Camará
AIN - Associazione Interpreti
Naturalistici
Claudio Arbore
COAJOQ - Cooperativa
Agropecuária de Jovens Quadros
Leandro Pinto Júnior
Projeto de reabilitação do Memorial
da Escravatura e do Tráfico Negreiro
Arquitetura
Daniela Ermano
João Carrasco
Engenharia
Tiago Serralheiro
Financiamento
Apoios
Impressão Exposição
BBA-Impressão Digital, Lda.
Impressão Catálogo
Estúdios Fernando Jorge
Reprodução de Objetos
Cine Set
Edição Fundação Mário Soares
ISBN: 978-972-8885-32-8
Depósito legal: 411278/16
Alto Patrocínio da CPLP-Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa
MEMORIAL
DA ESCRAVATURA
E DO TRÁFICO
NEGREIRO
Cacheu, Guiné-Bissau
Financiamento
Download