Problemas Atuais de Direito Autoral em face da Internet

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APRESENTAÇÃO
O VII Congresso Internacional de Direito da Universidade São Judas Tadeu, que se
desenvolveu no período entre 24 e 28 de maio de 2010, nas Unidades Mooca e Butantã, e
que teve como tema “O Brasil no Mundo”, alcançou os seus objetivos pedagógicos e
científicos.
O Congresso deste ano, como os anteriores, visou proporcionar um momento de
preparação da comunidade acadêmica para o enfrentamento multidisciplinar das grandes
questões que se apresentam aos juristas.
Essa oportunidade complementa outras desenvolvidas na Faculdade de Direito da
USJT, como cursos, pesquisas, seminários, etc, e contribuiu, certamente, para a maior
qualificação dos alunos, além de proporcionar a consolidação de convênios e acordos de
cooperação acadêmica, mantendo a tradicional participação de Professores da
Universidade de Buenos Aires, Lomas de Zamora e da Universidade Paris 1 (Panthéon
Sorbonne).
O evento contou com trinta e quatro palestras, constando dentre elas três palestras
de convidados do exterior.
O Professor Luis Domingos Silva Morais (Portugal) discorreu sobre “O
desenvolvimento da Moderna Regulação da Economia no Brasil e na UE - Antes e Depois
da Crise Econômica Internacional”, tema atual e que tem no Brasil uma referência.
O Prof. Sylvain Bollée (França) abordou temática relevante para a solução de
conflitos e que tem gerado reflexão na comunidade internacional. Tratou sobre
“Localização ou (des)localização da arbitragem internacional?” e analisou as eventuais
consequências decorrentes da fixação da sede da arbitragem em um ou em outro país.
O Professor Pablo Oscar Gallegos Fedriani (Argentina) expôs uma abordagem
crítica sobre “Integracion de Argentina y Brasil por medio del Mercosur”, destacando o
contexto atual em que se insere o MERCOSUL, seus aspectos positivos e desafios.
Foram debatidos, ainda, assuntos relacionados ao temário do Congresso – “O
Brasil no Mundo” -, como o relativo ao Poder Judiciário, quando foi proferida palestra
pelo Professor Marcelino Meleu sobre "A jurisconstrução brasileira frente aos desafios da
administração da justiça em nível nacional e internacional", oportunidade em que destacou
a ocorrência de mudanças no cenário nacional e internacional no que tange ao modelo de
jurisdição, que passou a admitir formas de resolução/tratamento de conflitos diversas da
judicial, como a mediação de conflitos, a justiça restaurativa, entre outras.
Outro tema exposto relacionou-se a direito e comunicação, contando com palestra
do Dr. Bernardo Kucinski sobre “ O poder e os limites do jornalismo no Brasil e no
Mundo”. O palestrante salientou que existe uma desordem nas três esferas, na do direito de
expressão em si, na do direito comercial e na das políticas públicas para a concessão de
freqüências de rádio e tevê. Além disso, apontou que o Brasil está à mercê de uma grande
mídia sofisticada e avançada em termos técnicos e estéticos, mas excessivamente
concentrada, atrasada em relação aos direitos básicos da pessoa, que prospera na
ilegalidade constitucional, e ao mesmo tempo se insurge por antecipação à qualquer
tentativa de regulação.
O Dr. Davi Furtado Meirelles tratou do tema Direito Sindical e argumentou em
favor do modelo de liberdade sindical como sendo modelo a ser implementado,
constituindo-se em objetivo de um sistema de organização sindical mais democrático e
representativo.
A Dra. Annie Dymetman tratou do tema “Novo Paradigma: o fim do Sujeito de
Direito? A abordagem objetivou mostrar a mediação como forma alternativa de resolução
de conflitos, mas instituída como “práticas reformadoras”, em resposta à chamada “crise
do judiciário”.
O tema “Contratos de Adesão Eletrônicos” foi abordado pela Dra. Cíntia de Lima e
foi fundamentado em uma análise comparativa entre o Brasil e Canadá. Tal estudo
demonstra-se relevante na medida em que os níveis de globalização econômica, social e
jurídica estão cada vez mais elevados, tendo em vista os avanços tecnológicos. Desta
forma, tem por objetivo, esta investigação, preparar a sociedade, bem como o fornecedor e
o consumidor, para o comércio global, tendo em vista as novas tecnologias, sobretudo a
internet.
Outros assuntos foram tratados, como a Política Externa Brasileira; a regulação da
economia no Brasil e na UE; pandemias e o Estado de Exceção; arbitragem internacional;
direito e desenvolvimento; Direito Autoral em face da internet; Governança da Internet;
mudanças climáticas; inserção internacional brasileira; trabalhadores brasileiros no Japão;
Biodireito e a tutela da vida humana frente aos avanços da Biomedicina; desafios da
administração da Justiça; Contratos Internacionais de Trabalho; a globalização econômica
e sua arquitetura jurídica; convênios internacionais assinados pelo Brasil para evitar a
dupla tributação e a evasão fiscal; planos estratégicos e integração das cidades brasileiras
nos circuitos produtivos internacionais; crise energética; ecologia e Direito Ambiental; o
Direito como linguagem e os problemas inerentes a sua interpretação no Brasil e no
mundo; Direitos Humanos; tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho; a
implementação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional no Direito Brasileiro; e, o
Brasil e a Justiça de Transição no Timor Leste.
Os diversos assuntos relacionados ao temário do Congresso foram abordados por
especialistas em diversas áreas. As exposições proporcionaram o estudo sobre a
experiência e realidade brasileiras em comparação com outras em nível internacional.
Diante desses vários aspectos, pode-se dizer que o VII Congresso proporcionou
novas análises aos pesquisadores, professores e alunos vinculados à instituição e à
comunidade acadêmica.
Os textos e resumos que integram os presentes anais são contribuições dos
expositores para a comunidade acadêmica, e refletem pesquisas e estudos desenvolvidos
que, certamente, em muito contribuirão para novas reflexões.
Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
Comissão organizadora:
Fernando Herren Aguillar - Presidente
Adriano Guedes Laimer
Adriano de Assis Ferreira
Caio Pereira Santucci
Fernando Guilherme Bruno Filho
Comissão científica:
Adriano Guedes Laimer
Annie Dymetmann
Caio Gracco Pinheiro Dias
Lucyla Tellez Merino
Solange Gonçalves Dias
Diagramação e arte final:
Celso Lemos Ferreira
Beatriz Dionisio
Munir Abdo Baarini Junior
Sumário
Novo Paradigma: o fim do Sujeito de Direito? .....................................................................8 Dra. Annie Dymetman O poder e os limites do jornalismo no Brasil e no Mundo ....................................................9 Bernardo Kucinski Análise comparativa entre Brasil e Canadá sobre contratos de adesão eletrônicos ............15 Cíntia Rosa Pereira de Lima O Contexto do Direito Sindical no Brasil e no Mundo .......................................................40 Davi Furtado Meirelles Pandemias e estado de exceção ...........................................................................................41 Deisy Ventura Tráfico de pessoas para exploração do trabalho em condição análoga á de escravo ..........56 Denise Pasello Valente Novais Inserção internacional brasileira: Dicotomia: Emergentes / 1º Mundo Instrumentos
Jurídicos e Direito Comparado ............................................................................................60 Francisco Pedro Jucá A globalização econômica e sua arquitetura jurídica
(dez tendências do direito contemporâneo) .........................................................................86 José Eduardo Faria Brasileiros no Japão: direitos e cidadania.........................................................................103 Lili Kawamura O Desenvolvimento da Moderna Regulação da Economia no Brasil e na UE - Antes e
Depois da Crise Económica Internacional.........................................................................117 Luís Silva Morais Problemas Atuais de Direito Autoral em face da Internet.................................................119 Manoel J. Pereira dos Santos "A jurisconstrução brasileira frente aos desafios da administração da justiça a nível
nacional e internacional" ...................................................................................................122 Professor Marcelino Meleu Os trabalhadores brasileiros no Japão e as questões jurídicas que enfrentam...................123 Masato Ninomiya Integracion de Argentina y Brasil por Medio Del Mercosur.............................................125 Pablo Oscar Gallegos Fedriani Os convênios internacionais assinados pelo Brasil para evitar a dupla tributação
e a evasão fiscal. ................................................................................................................131 Pollyana Mayer Governança da Internet: conceito, atores, mecanismos e participação brasileira. ............133 Raquel Fortes Gatto e Antonio Marcos Moreiras Os desafios do século XXI e a quarta dimensão dos direitos do homem:
o biodireito e a tutela da vida humana frente aos avanços da biomedicina.......................142 Renata da Rocha Localisation ou Délocalisation de l’Arbitrage International?
La Perspective Brésilienne ................................................................................................153 Sylvain Bollée Inserção do Brasil no Mundo Contemporâneo ..................................................................166 Umberto Celli Junior Teses aprovadas pela comissão científica Jornada de Trabalho e Criação de Postos de Trabalho:
Experiência Brasileira e Estrangeira..................................................................................167 Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho Negociações Coletivas no Brasil: Cenário Pós-Crise Econômica.....................................169 Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho 8
NOVO PARADIGMA: O FIM DO SUJEITO DE DIREITO?
Dra. Annie Dymetman
Professora da Universidade São Judas Tadeu
A apresentação tem por objetivo mostrar como formas alternativas de resolução de
conflitos - a mediação, sobretudo -, instituídas como práticas reformadoras, em resposta ao
que se sói denominar a “crise do judiciário”, que não dá conta do volume cada vez maior
de processos e sua conseqüente morosidade, foram paulatinamente se transformando, até o
“salto qualitativo” que as constitui, ao menos em parte, em verdadeira revolução
paradigmática.
Essas novas práticas, que em sua busca por maior autonomia em relação ao poder
judiciário, seja por seu caráter pré-processual ou mesmo extrajudicial, por vezes visando à
auto-composição para a resolução dos conflitos, aliadas a suporte interdisciplinar sobretudo abordagens fenomenológicas -, terminaram por constituir um arcabouço teórico,
que não poucas vezes questiona alguns dos fatores menos problemáticos do direito
positivo. Nesse sentido, o que aqui se propõe é justamente refletir e desconstruir dois de
seus marcos mais característicos, como entendidos por Tércio Sampaio Ferraz Jr., o
conflito jurídico e o sujeito de direito.
Em primeiro lugar se, de acordo com o direito positivo, o conflito jurídico é aquele
enunciado em uma linguagem que permita decisão, cabe aqui refletir sobre a percepção do
conflito a partir do “novo paradigma”: de que conflito se está falando? Qual o tratamento
que se dá ao conflito?
E, em segundo lugar, se o sujeito de direito é o titular de direitos e obrigações, a
pergunta que se coloca em relação às formas alternativas é sobre que tipo de subjetividade
o novo paradigma institui? Em que universo os sujeitos do “novo paradigma” transitam?
Finalmente, trata-se aqui, a partir da desconstrução e da crítica do direito positivo,
apresentar uma nova forma – a mediação transformadora - de tratamento de conflitos, de
maneira que “se o direito arranca o conflito da vida e o devolve em forma de justiça”, o
novo paradigma pretende devolvê-lo à própria dimensão da vida vivida, à própria
experiência de vida da qual foi arrancado. E, neste sentido, fica a pergunta: será este o fim
do sujeito de direito?
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O PODER E OS LIMITES DO JORNALISMO NO BRASIL E NO MUNDO
Bernardo Kucinski
Professor da Universidade de São Paulo – Escola de Comunicação e Artes
Todos sabemos que a imprensa pode destruir reputações, derrubar ministros, e às
vezes até um governo inteiro. Foi uma campanha de imprensa, liderada por um grande
jornalista, Carlos Lacerda, que levou Getúlio ao suicídio em 1954. Vinte anos depois, nos
Estados Unidos, o presidente Richard Nixon renunciou também por causa de denúncias da
imprensa.
No Chile, em 1973, a grande imprensa abriu caminho para o golpe que instaurou a
sangrenta ditadura de Pinochet. Mais recentemente, entre nós, a revista VEJA
praticamente inventou do nada o candidato Fernando Collor de Mello, apresentado em
grande estilo ao eleitorado como um revolucionário “caçador de marajás,”condutor de uma
luta implacável contra a corrupção. Com o apoio da grande mídia, inclusive da Rede
Globo, que falseou o debate final decisivo da campanha, Collor tornou-se o primeiro
presidente eleito, após os 25 anos de ditadura militar.
Depois, arrependida, a mesma mídia que inventou sua candidatura, conduziu a
campanha que levou ao seu impeachment. Mas o resultado duradouro e nefasto do
episódio não foi o arrependimento. Ao contrário, foi a percepção pelos principais grupos
de mídia de massa do país de seu poder de eleger ou derrubar presidentes. Desde então,
nossa mídia de massa não se limita a reportar a nossa história – ela quer determinar os
rumos de nossa história.
O ataque americano ao Iraque em 1991 foi precedido por uma grandes operação de
mídia, com o objetivo de iludir a opinião pública, criando a falsa idéia dos bombardeios
cirúrgicos, que atingem instalações com precisão milimétrica, sem matar ninguém. No
segundo ataque ao Iraque, esse seguido da invasão e ocupação, dezenas de jornalistas
foram “embutidos” nos diferentes batalhões, disseminando a cada dia uma nova falsa
informação de que haviam sido encontrados indícios dos meios de destruição de massa – o
pretexto da invasão.
Nem as ONGs não resistem ao fascínio da mídia. O Green Peace faz dos eventos
midiáticos de grande impacto a principal arma de suas campanhas. Nas grandes
democracias representativas, a mídia substituiu hoje as praças públicas como o espaço em
que se dá a disputa pelo voto. Campanhas eleitorais viraram operações de guerra midiática,
nas quais a imagem do candidatos é maquiada por estilistas e marqueteiros e seu discurso
responde não mais a propostas programáticas de seu r partido político, e sim ao que o povo
quer ouvir, aferido através de sofisticadas , contínuas e caríssimas pesquisas de opinião.
Mas será que a mídia com todo seu poder, pode derrubar qualquer governo? Pode
eleger qualquer candidato? Será que a mídia sozinha pode levar ao desarmamento nuclear
ou à redução das emissões de gás carbônico? Qual o alcance e quais os limites do poder da
mídia? Esse é o nosso tema de hoje. Que se desdobra em muitas outras perguntas: Qual a
relação entre violência na Tevê e violência nas ruas? Entre o clamor da mídia em torno de
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um crime e administração da justiça? Entre os prognósticos da mídia sobre o mercado
financeiro e o colapso dos grandes bancos americanos? Entre o erotismo midiático e a
gravidez precoce?
São questões que intrigam e fascinam profissionais de diversos campos: médicos,
sanitaristas, economistas, educadores, publicitários, cientistas sociais e, é claro, os
políticos. Não há uma resposta fácil a essas perguntas e muito menos uma resposta única.
Os mecanismos de influência são complexos porque dependem não só da intencionalidade
da mídia, mas também de como a comunicação é absorvida e decodificada por ouvintes,
espectadores e leitores, que formam em geral um universo heterogêneo e cambiante.
O que os estudiosos dizem, com um algum grau de segurança, a partir de estudos
empíricos feitos em sua maioria nos Estados Unidos, é que os meios tradicionais de
comunicação de massa, em especial os grandes jornais e a tevê, conseguem impor a
agenda pública de debates, determinar que temas serão objeto de discussão pública e que
temas serão omitidos dessa discussão, mas influem pouco na posição das pessoas sobre
cada um desses temas. Conseguem com alguma facilidade explorar opiniões sentimentos e
posições pré-existentes, reforçando-os. Raramente conseguem reverter por completo essas
opiniões ou sentimentos pré-existentes.
Por isso, é na determinação da agenda pública de debates, de resultados muito mais
seguros, em especial na nomenclatura e forma de abordagem desses temas, que os grupos
de interesses mais poderosos, como os bancos, por exemplo, concentram hoje seus
esforços. Um exemplo notável de como a mídia determina nossa agenda pública é a
visibilidade dada às ocupações de terra do MST, retratando-o como organização violenta,
nunca se referindo à Universidade dos Sem Terra, em Guararema ou às suas escolas
primárias.
Muito menos a grande mídia toca na escandalosa concentração da propriedade da
Terra no Brasil ou ao fato de que desde 1980 não são atualizados os índices de
produtividade agrícola, sem o que é impossível a desapropriação de terras improdutivas
para fins de reforma agrária. Nossos jornais de referência nacional insistem na crítica ao
que chamam de “déficit da Previdência”, mas raramente mencionam os grandes devedores
da previdência. Insistem na crítica ao que chamam de “déficit público”, e ao tamanho da
dívida pública, mas raramente mencionam os eternos escalonamentos de dívida agrária dos
grandes proprietários de terra, que até janeiro do ano passado já somava 74,3 bilhões de
reais.
Outro exemplo interessante é insistência da nossa mídia em retratar o presidente
Lula como um analfabeto funcional, enquanto a própria grande mídia de fora o considera
um dos principais líderes mundiais, porta-voz dos países e povos periféricos, ganhador de
mais de uma dezenas de prêmios internacionais pelos programas da Bolsa Família e outras
políticas públicas sociais de seu governo.
No plano internacional um bom exemplo de determinação da agenda é a insistência
da mídia mundial em classificar certos países como “irresponsáveis”, em cujas mãos nunca
deveria estar a bomba atômica, quando o único país que ousou despejar bombas atômicas
em cima de populações civis foram os Estados Unidos, e sem uma justificativa plausível,
se é que poderia haver alguma.
Dei esses exemplos para mostrar que ao agendar o que é discutido e o que não é,
em especial a forma e a linguagem das discussões, os grandes jornais e redes de Tevê, cada
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vez mais interligados e homogêneos, criam o ambiente em que se forma nossa visão de
mundo. Além disso, geram falsos consensos ou um senso comum simplificado ou
grosseiro. No limite, invertem sentidos e escamoteiam a realidade.
Isso não significa que a mídia possa impor qualquer consenso em qualquer
situação, ou alterar arbitrariamente o curso da história. Se assim fosse, Lula não teria
vencido a eleição de 2002, depois de perder três vezes. Nem o Corinthians, o time que de
longe mais vende jornais e mais atrai audiência na tevê, não teria caído para a segunda
divisão.
Os grandes jornais são também instituições da sociedade civil. A maioria deles foi
criada em momentos cruciais da luta política em seus respectivos países. O Estadão,
principal jornal brasileiro, foi lançado em 1875 manifestamente para defender a
instauração de um regime republicano. O Le Monde nasceu da luta contra a ocupação
alemã. O Washington Post deixou de ser um jornal provinciano subindo á categoria dos
grandes jornais de referência, ao se engajar na denuncia da conspiração de Nixon contra os
democratas – o escândalo Watergate. O Al Ahram, principal diário de língua árabe, nasceu
do projeto de modernização do Egito. O último desses grandes jornais, o espanhol El País,
foi criado pela burguesia espanhola como parte integral do projeto de enterrar o
vergonhoso passado do franq6uismo e levar a Espanha à União Européia.
No Brasil, os quatro grandes jornais de circulação nacional – Estadão, Folha, O
Globo e JB- e mais alguns importantes diários regionais, como o Correio Braziliense e o
Zero Hora, de Porto Alegre, e ainda a revista VEJA e os canais de tevê e rádio do grupo
Globo, formam hoje um compacto político-ideológico em defesa dos fundamentos do
modelo econômico chamado neo –liberal: privatizações, terceirizações, flexibilização das
leis trabalhistas e des- regulação do movimento de capitais. Também combatem em
uníssono as principais políticas públicas do governo, como o Bolsa Família, o Plano
Nacional de Direitos Humanos, e a política externa.Tornaram-se assim substitutos de um
grande partido político conservador e protagonistas centrais na cena político-eleitoral.
Mas, já se foram os tempos em que os grandes jornais combinavam de modo tão
explosivo o poder econômico com o poder político e se auto - denominavam “O quarto
poder.” O advento da internet como principal meio hoje de comunicação tanto interpessoal, como inter-grupal e de massa, destruiu o monopólio da fala detido pelos jornais e
pelos jornalistas.
A internet é ao mesmo tempo uma nova mídia, um novo meio de transmissão, e
uma ferramenta poderosa de pesquisa, de registro, processamento e guarda do
conhecimento. Tudo de forma, mágica, lúdica, sem impedimentos materiais. O que nasceu
como comunicação de guerra, logo revelou seu potencial ilimitado e sua vocação
libertária, tornando-se o meio principal de comunicação livre e barata entre acadêmicos e
logo em seguida se massificando.
Pela primeira vez, com as novas tecnologias, baratas e livres do controle do grande
capital, qualquer ser humano razoavelmente inserido num meio social, pode materializar o
direito de informar, como distinto do direito de ser informado. A mediação exclusiva dos
meios de comunicação foi substituída pela interatividade, pela capacidade de cada leitor
modificar, questionar, desconstruir o conteúdos jornalísticos no momento mesmo de sua
emissão. Trata-se de todo um novo processo de elaboração coletiva do discurso mediático,
um processo tão rico e sedutor, que está cativando até mesmo os jornalistas, cada vez mais
dedicados aos seus blogs e twiters do que às suas colunas opinativas nos grandes jornais.
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Essa revolução da comunicação está ainda no seu inicio e não sabemos onde vai
parar. Uma de suas conseqüências mais dramáticas é o declínio acelerado dos grandes
jornais como indústria capital intensiva, que se utiliza de rotativas gigantescas,
processando volumes imensos de papel. Embora o hábito de ler jornais seja muito
arraigado, a lógica de produzir jornais já morreu. Não tem mais sentido econômico plantar
uma floresta inteira de eucaliptos, produzir toneladas de polpa e depois bobinas imensas de
papel jornal, transportá-las a grande distância levá-las até uma rotativa central , imprimir
meio milhão de exemplares de jornais e depois distribuí-los em caminhões por vastas
distancias, para nos trazer de manhã uma noticia que já está velha, que já foi superada pelo
noticiário on line da internet.
Esse modelo de negócios”, como se diz na linguagem neo-liberal, está superado. E
a indústria dos grandes jornais ainda não conseguiu encontrar um novo modelo. Embora os
jornais continuem sendo a principal fonte produtora das informações, inclusive as
veiculadas pela internet, e todos eles tenham hoje uma versão on line, não sabem como
cobrar pela leitura on line, enquanto perdem publicidade e leitores pagos, na versão
tradicional impressa.
O meio internet é infenso ao lucro e ao conceito de mercadoria, fundamental no
capitalismo. Na internet é possível “consumir” a matéria jornalística ou de entretenimento
sem que com isso ela acaba, ao contrário, ao mesmo tempo que se a consome é possível
multiplicá-la reenviando-a mesma matéria a inúmeros outros destinos. A maioria dos
grandes jornais já reduziu suas redações à metade. Alguns já deixaram de circular e outros
seguem o mesmo caminho. Embora mais lentamente, a revolução tecnologia está erodindo
a indústria dos jornais da mesma forma como erodiu a indústria dos CDs.
Isso não significa que os jornais impressos deixarão de existir. Tanto jornais quanto
revistas existirão para sempre, nas mais diversas formas. Mas não mais como uma
poderosa indústria que comandava ao mesmo lucros e poder político, que detinha o
monopólio da fala e da mediação. A internet, mais ainda mais do que o rádio e a tevê,
retirou dos jornais sua principal função, a função noticiosa. Dai a exacerbação hoje da
função ideológica que marcou os jornais nas era das revoluções republicanas , antes que a
invenção das grandes rotativas fizesse deles também uma indústria de alto retorno. Sem
poder econômico, os grandes jornais tendem a perder poder político. Na França já há
subsídio estatal a alguns grandes jornais. As tevês, em ritmo mais lento, perdem poder
pela força da fragmentação do meio e do rápido avanço da informação digital em outras
plataformas, inclusive no celular.
O símbolo maior da nova era da comunicação é o celular, com o qual cada ser
humano pode se comunicar todos os demais, informar e ser informado. Vivemos hoje uma
situação paradoxal. Enquanto os grandes jornais decaem rapidamente, perdendo leitores a
cada dia, ao ponto de muitos deixarem de circular, a comunicação como um todo assumiu
estatuto antropológico nas nossas vidas, constituindo-se no ambiente no qual se formam as
novas gerações, desde a infância.
É uma nova era, de comunicação virtual e sem limites, na qual associada às demais
invenções, como o cabo ótico, o satélite de comunicações e a digitalização, a internet
derrubou todas as demarcações da era da comunicação delimitada por meios físicos. Não
há mais distinção nítida entre comunicação pública e privada, entre jornalistas e não
jornalistas. O próprio jornalismo como um campo, constituído de relações definidas,
papéis pré- atribuídos uma ética própria, foi destruído pela internet e ainda não sabe como
se recompor.
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O vazio jurídico da internet é imenso. Nos principais países do mundo, inclusive no
Brasil, discutem-se hoje novos marcos legais para a comunicação. Como preservar o
direito autoral, se a cópia é tecnicamente acessível a todos e barata? Como preservar o
direito à auto-imagem, se uma matéria caluniosa ou difamatória, mesmo se posteriormente
corrigida, fica registrada para sempre nos arquivos digitais da internet? Deve haver direito
de resposta na internet? Qualquer um tem o direito de enviar uma mensagem a outra
pessoa? Com se define um atentado ao pudor pela internet? Como impedir a acesso de
crianças à pornografia, à violência ou mensagens escatológicas. Como tipificar crimes de
imprensa pela internet, se ela é ao mesmo tempo comunicação pública e privada? Como
preservar a neutralidade da rede, ou seja, o principio pelo qual nenhum acesso por se
direcionado a determinados serviços e produtos sem afetar seu potencial publicitário?
Tudo isso entre nós se agravou depois da extinção da Lei de Imprensa e da
obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, pelo Supremo Tribunal
Federal. A Lei de Imprensa estabelecia mecanismos específicos para o exercício do direito
de resposta, que não afetavam a liberdade de expressão, mas garantiam às pessoas ou
instituições injustamente agredidas pela mídia, o direito básico à retificação. Sem esses
mecanismos, passaram a valer as leis ordinárias que tratam dos crimes de calunia, injuria e
difamação. E a mesma grande mídia, que lutou pelo fim da Lei de Imprensa, hoje se
arrepende e acusa o judiciário de censura.
Mais uma simplificação grosseira. Um seminário recente, promovido na PUC do
Rio de Janeiro pelos donos da grande mídia, chegou a ser denominado “Como evitar a
impunidade nos crimes contra a imprensa,” quando o verdadeiro problema advindo do
fim da Lei de Imprensa é “como evitar a impunidade dos crimes de imprensa.” Com
essa inversão de sentidos os donos da grande mídia pretendem obviamente se antecipar os
esforços da sociedade por um marco regulatório moderno que proteja o cidadão contra os
abusos da mídia, em substituição à extinta Lei de Imprensa. Até prometem um “autoregulação”, se desistirmos desse marco regulatório.
Mais que isso, querem desqualificar por antecipação a necessidade, essa premente,
de se regulamentar os artigos da constituição “cidadã” de 1988, até hoje esquecidos, que
tentam colocar um pouco de ordem na casa. Ou de acabar com ilegalidades flagrantes
como é a posse direta ou disfarçada de concessões de rádio e Tevê por políticos com
mandato.
Os proprietários da grande mídia também confundem liberdade de expressão,
um dos direitos humanos fundamentais, com liberdade da indústria de comunicação,
que é um direito comercial. Como se as empresas fossem as detentoras exclusivas do
direito de expressão. Ou, em outras palavras, como se o direito de expressão só pudesse ser
exercido na forma de uma mercadoria.
A liberdade de expressão tem como limites ou pontos de atrito o direito à autoimagem e à privacidade, assim como a presunção da inocência. São conflitos delicados,
em parte objeto de Leis especificas de imprensa e em parte objeto de códigos de ética ou
leis ordinárias. O espírito dessas leis em geral é o de não intimidar o jornalista ou o meio
de comunicação a tal ponto que ele sinta inibição no seu trabalho. Por que se reconhece a
peso especial de uma imprensa livre na constituição da democracia. Mas ao tempo,
assegurar a imediata reparação de eventuais erros cometidos. Daí o direito de resposta.
O direito comercial tem como limites e pontos de atrito a formação de cartéis,
oligopólios e monopólios – considerados crimes contra a livre concorrência.. São âmbitos
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distintos. Além disso, a mercadoria comunicação tem dimensões próprias que exigem
regulamentação especifica, assim como a mercadoria medicamentos tem regulamentação
própria. Medicamento mexe com saúde. Tem faixa vermelha, tem faixa preta. Tem
restrição de propaganda. Comunicação mexe com cultura, com educação, com interesse
social e nacional. Com erotismo, com pornografia. Tem restrição de horário, faixa etária.
Linguagem.
E há também que distinguir os meios oriundos de concessão pública, a partir de um
espectro de freqüências necessariamente limitado, como rádio e tevê. Essas concessões
devem ser regidos pelos princípios republicanos do serviço público e neutralidade política
– além de critérios de regionalização, diversificação editorial, desconcentração do
mercado e outras políticas públicas.
No nosso caso, predomina a desordem nas três esferas, na do direito de expressão
em si, na do direito comercial e na das políticas públicas para a concessão de freqüências
de rádio e tevê. Vivemos hoje no Brasil à mercê de uma grande mídia sofisticada e
avançada em termos técnicos e estéticos, mas excessivamente concentrada, atrasada em
relação aos direitos básicos da pessoa , que prospera na ilegalidade constitucional, e ao
mesmo tempo se insurge por antecipação à qualquer tentativa de regulação. As empresas
não querem que se legisle nem sobre nada, nenhuma das três esferas. É como se quisessem
estender à indústria da comunicação todas as benesses de dês-regulação neo - liberal que a
banca internacional conseguiu para o capital financeiro.
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ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE BRASIL E CANADÁ SOBRE CONTRATOS
DE ADESÃO ELETRÔNICOS
Cíntia Rosa Pereira de Lima
Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo com
estágio na Faculdade da Universidade de Ottawa (bolsa CAPES).
Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP).
1. Introdução
Em tempos remotos, a venda à distância coincidia com a venda por
correspondência. Entretanto, a análise desta prática comercial, cada vez mais comum,
segue a própria evolução dos meios de comunicação, do telégrafo (1835), passando pelo
telefone (1860), pelo rádio (1893) e pela televisão (1924), chegando ao desenvolvimento
do computador pessoal (1971) e à internet (1969). Hoje, por exemplo, o comércio
eletrônico está estruturado nas vendas à distância, utilizando a internet como um eficiente
meio de comunicação de massa.[2]
Portanto, comércio eletrônico é caracterizado pela contratação não-presencial, em
que as partes contratantes ora utilizam de um meio de comunicação instantânea, tal como o
real-chats, ora um meio de comunicação não-instantânea, como o e-mail. Além disso, é
muito comum, oferecer produtos e serviços através de uma página na internet para um
número indeterminado de pessoas (oferta ao público). Tudo isso traz à tona a preemente
necessidade em rediscutir a formação dos contratos não-presenciais, notadamente os
contratos de adesão eletrônicos.
Outro aspecto relevante é a possibilidade de comunicação, inclusive em tempo real,
com pessoas residentes em diversos países, distantes umas das outras. De sorte que as
novas tecnologias vão ao encontro do processo de globalização, cujas características
apontadas por Javier Carrascosa González[3] são: a ausência de fronteiras rígidas e o
acentuado crescimento dos blocos econômicos. Segundo Javier C. Gonzáles, a
globalização ou mundialização (conceitos equivalentes) pode ser conceituada como “um
fenômeno complexo (pois formado por várias estruturas de diferentes características)
consistente na livre circulação mundial de fatores produtivos, da informação e dos modelos
sociais e culturais”.
Conseqüentemente, a possibilidade de um mesmo caso concreto vir a ser
questionado diante de tribunais de países distintos[4], devido à ausência de fronteiras na
internet, demonstra o intenso globalismo[5] em que a sociedade pós-moderna insere-se.[6]
Em suma, a internet trouxe diversas vantagens, tais como a comunicação em tempo
real, a facilitação da comunicação não-instantânea (e. g. e-mail) e a redução dos custos da
interligação entre pessoas que residam em países distintos. Tudo isso é possível tendo em
vista as características do desenvolvimento tecnológico e da economia da informação.
De sorte que a porosidade das fronteiras representada pela quase que ilimitada
circulação de riquezas entre os países traz consigo algumas inquietações, como a
16
possibilidade de um indivíduo residente no Brasil negociar com outro cidadão canadense.
Neste caso, qual seria a lei aplicável: a brasileira ou a canadense? A resposta seria a
mesma em se tratando de responsabilidade civil? Como aplicar o critério da lei mais
favorável ao consumidor? Esta última hipótese requer um conhecimento de ambas as
leis.[7]
Para tanto, este trabalho é fundamentado em uma análise comparativa, tal estudo
mostra-se relevante na medida em que os níveis de globalização econômica, social e
jurídica estão cada vez mais elevados tendo em vista os avanços tecnológicos. Desta
forma, tem-se por objetivo com esta investigação preparar a sociedade, bem como o
fornecedor e o consumidor, para o comércio global tendo em vista as novas tecnologias,
sobretudo a internet. Em outras palavras, o jurista pós-moderno precisa, além de dominar o
Direito pátrio, ter uma boa noção de como a matéria está sendo tratada em nível global
(“direito global”).[8] Este trabalho de pesquisa concentrou-se no sistema jurídico do
common law, representado pelo modelo canadense, tendo em vista a sólida doutrina e
jurisprudência sobre comércio eletrônico.
2. Análise comparativa entre Brasil e Canadá quanto ao plano da existência dos
contratos de adesão eletrônicos
A doutrina de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda[9] sobre a tripartição dos
planos do mundo jurídico em “plano da existência”,[10] “plano da validade”[11] e “plano
da eficácia”[12] é amplamente aceita no Brasil. Portanto, neste contexto, o negócio
jurídico, também, é analisado sob estes três planos de forma pacífica pela doutrina
brasileira.[13]
Semelhantemente, o sistema contratual canadense, apesar de não utilizar esta
terminologia, estrutura-se sob estes três enfoques (existência, validade e eficácia).[14] Em
linhas gerais, quanto à existência de um contrato, o Common Law enfatiza o fenômeno
denominado “meeting of the minds”.[15]
Em suma, um contrato, para existir, deve ter sido formado mediante as
declarações convergentes quanto aos fins e congruentes quanto aos meios de ambas as
partes contratantes. É o que se denomina, também, “meeting of the minds” ou “consensus
ad idem”.[16]
No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira[17] afirma que o acordo de
vontade das partes ou consentimento não é apenas um requisito de validade; mas, antes, é
verdadeiro pressuposto existencial do próprio negócio.
No Civil Law, estas declarações de vontade não estão condicionadas à
determinada forma (art. 107 do CC/02 e art. 1.386 CC de Québec),[18] podendo ser feitas
por diversas maneiras, inclusive mediante o uso de e-mails ou ofertas em sítios eletrônicos,
por exemplo.
Assim, o corte epistemológico deste trabalho ressalta tão-somente a formação do
contrato através do uso de novos meios de comunicação (e. g. contratos telemáticos).
Portanto, este estudo concentra-se, apenas, nos elementos existenciais do contrato, em
17
especial o consentimento. Não se aborda o plano da eficácia, nem o plano da validade.
Mesmo porque, uma análise desta envergadura demanda um estudo à parte, cujo foco
estará em outras peculiaridades do comércio eletrônico distintas da formação dos contratos
telemáticos, o que não é o propósito deste estudo.
2.1 Brasil (Civil Law): proposta, oferta ao público, publicidade e aceitação
Em linhas gerais, a oferta deve conter todas as informações necessárias para a
conclusão do contrato. Esta regra está estabelecida, inclusive, nos princípios do
UNIDROIT[19], que foi aceita pela vasta maioria dos países do Civil Law.
Quanto à dogmática contratual brasileira, há três possibilidades de se manifestar
acerca de um negócio jurídico, iniciando as negociações: proposta, oferta ao público e
publicidade.[20] Porém, hodiernamente, não há distinção quanto aos efeitos, pois todas são
obrigatórias e vinculantes, guardadas certas especificidades.
Quanto à proposta ou policitação, trata-se de uma declaração receptícia de vontade
feita a uma pessoa certa, através da qual o proponente (ou policitante) exterioriza sua
intenção em concluir o contrato com a outra pessoa, vinculando-se, portanto, aos termos da
proposta.[21] Neste sentido, o Código Civil de Québec traz a definição de oferta no art.
1.388, que diz: “Art. 1.388. Est une offre de contracter, la proposition qui comporte tous
les éléments essentiels du contrat envisagé et qui indique la volonté de son auteur d’être
lié en cas d’acceptation".
A função da proposta é iniciar a fase de contratação (art. 1.389 do CC de
Québec)[22]. Não é qualquer declaração de vontade que pode ser considerada uma
proposta em sentido técnico, pois é fundamental que haja intenção de efetivamente
contratar. Neste sentido, as meras conversas ou negociações preliminares, em que as
pessoas apenas formulam hipóteses, investigam a situação econômica recíproca, não
vinculam as partes.[23]
Nos termos do art. 427 do CC/02[24] a proposta é obrigatória, razão pela qual
vincula o proponente, salvo se contiver cláusula expressa que o desvincule, ou se este
efeito decorrer da própria natureza do negócio ou, ainda, tendo em vista as circunstâncias.
Semelhantemente, este era o efeito da proposta sob a égide do art. 1.080 do CC/16[25].
Ademais, o princípio da força obrigatória da proposta é universalmente aceito, haja
vista o art. 2.1.1 dos princípios do UNIDROIT, que traz, em seguida (art. 2.1.2)[26], uma
definição de proposta, ressaltando o seu conteúdo (“suficientemente definido”) e a
intenção do proponente em realizar um contrato (“seriedade”).
A forma normal de extinção da proposta é a conseqüente aceitação. Até este
momento, o proponente estará obrigado a cumprir o que prometeu caso o oblato manifeste
sua aceitação. Feita entre presentes, a aceitação deve ser imediata para manter o
proponente vinculado ao conteúdo da proposta. Todavia, a força vinculante da proposta é
limitada, tendo em vista o possível, e muito comum, arrependimento humano.
Por isso, admite-se subordinar a obrigatoriedade da proposta a um tempo
predeterminado pelo policitante (art. 428, inc. III do CC/02) ou a um prazo razoável ou
prazo moral (art. 428, inc. II do CC/02). E, por fim, admite-se ainda a retratação da
18
proposta (art. 428, inc. IV do CC/02) desde que chegue anteriormente. A primeira parte do
art. 1.392 do Código Civil de Québec traz as mesmas regras.[27] Mas, além disto, o
dispositivo deixa claro que a morte do proponente ou do oblato implica na caducidade da
oferta, a menos que o falecimento ocorra após o recebimento da aceitação pelo proponente
(2ª parte do art. 1.392)[28].
Estes dispositivos brasileiros e quebequenses devem ser repensados em face às
novas tecnologias. É extremamente difícil determinar o que vem a ser “tempo suficiente”
para a chegada da resposta ao conhecimento do proponente, pois o contexto da sociedade
da informação revela a alta velocidade das transmissões das mensagens eletrônicas, que
passam a ser enviadas e recebidas quase que automaticamente por e-mail.
Além disso, esta característica dos novos meios de comunicação ameaça o direito
de retratação, na medida em que, dificilmente, a retratação chegará antes da proposta, que
enviada, por e-mail, chega instantaneamente ao oblato. Restando, tão-somente, ao
proponente o direito de retrato, quando o envio da mensagem for feito à noite (fora do
horário comercial), sendo que o oblato irá acessá-la apenas no dia seguinte. Este é o
posicionamento da doutrina[29] a respeito.
Uma inovação do CC/02 diz respeito à “oferta ao público”, que também é uma
manifestação receptícia de vontade, pois depende da anuência da outra parte. No entanto,
distingue-se da primeira, na medida em que a primeira é feita a uma pessoa certa, enquanto
que a oferta ao público destina-se ao público em geral (ad incertam personam), que será
aceita pelo unus ex publico.[30] Todavia, quanto aos efeitos, são idênticos, ou seja,
vinculam o proponente.
A força obrigatória da oferta ao público pode ser limitada pelas reservas, como, por
exemplo, condicionando-a à disponibilidade de estoque.[31] Este é uma forma eficaz de
limitar a força obrigatória da oferta ao público veiculada em página na internet por expor o
proponente a um universo extremamente vasto (global).
Não se confunde com o denominado “convite a contratar”[32] (“invitatio ad
offerendum”, “invitation aux pourparlers”, “invito ad offrire”, “invitation to treat”), pois
este não vincula as partes, de um lado o invitante e do outro, o invitado. Apenas o invitado
vincular-se-á caso faça sua oferta, sendo que o invitante, por sua vez, estará vinculado à
sua aceitação, porque, ao invés de ofertar, ele tão-somente convidou que outras pessoas o
façam.[33]
Cabe ressaltar que a oferta ao público, prevista no art. 429 do CC/02,[34] é uma
verdadeira proposta e não um mero convite a fazer oferta (“invitatio ad offerendum”).[35]
O pano de fundo do art. 429 do CC/02 são, na verdade, os anúncios publicitários,
consoante a ressalva de Jones Figueiredo Alves que atenta para a necessidade de se
reformar o dispositivo para adequá-lo à realidade social marcada pelas técnicas persuasivas
da publicidade. Esta alteração foi encampada pelo Projeto de Lei n. 6.960/2002 (“Projeto
Deputado Ricardo Fiúza”), que pretende alterar a redação do referido dispositivo legal,
deixando expresso este caráter.[36]
No entanto, melhor é a posição manifestada no parecer de Vicente Arruda, que
sustenta, acertadamente, que tal modificação não é necessária, porque a noção de oferta ao
público coincide com a noção de publicidade. Ademais, a obrigatoriedade dos anúncios
publicitários está regulada em lei específica, o CDC (art. 30 c/c art. 35).
19
Neste sentido, o art. 30 do CDC encerra a terceira possibilidade de emitir
declaração de vontade receptícia com o fim de ofertar um produto ou serviço, trata-se de
“publicidade”. Assim, a noção de “oferta” deixa de ser individualizada e cristalina como
ocorre no Direito Privado estampado no CC/02, para evidenciar o fenômeno da
massificação da sociedade de consumo, em que as ofertas são veiculadas através de
agressivas técnicas de marketing. Por isso, Antônio Herman de Vasconcellos e
Benjamin[37] conceitua a oferta nas relações de consumo equiparando-a as técnicas de
marketing, utilizadas para aproximar o consumidor dos produtos e serviços
disponibilizados no mercado de consumo.
Quanto aos efeitos da publicidade, o CDC foi além do que dispõe o CC/02,[38]
pois possibilita a execução específica da obrigação se o consumidor assim preferir (art. 35
do CDC), sendo que nas relações privadas, tal litígio resolve-se em perdas e danos.[39]
Portanto, não se aplica o art. 429 do CC/02 às relações de consumo,[40] porque a
exigência da oferta ao público conter “todos os requisitos essenciais ao contrato” é
impraticável na atual sociedade de massa, em que a veiculação da publicidade é feita
através de meios maciços de comunicação (e. g. rádio, televisão e páginas na internet). É
cediço que estes veículos de comunicação são demasiadamente caros, e se paga por
segundos. Destarte, os anúncios são o mais breve possível, caracterizando-se mais pelo
apelo de marketing do que pela preocupação em evidenciar todos os elementos essenciais
ao contrato.
Fechando o ciclo existencial do acordo de vontade, o oblato deve manifestar sua
intenção em vincular-se ao que foi proposto (aceitação). Desta forma o mero aviso de
recebimento não caracteriza a aceitação. Este fato assume enormes proporções no
comércio eletrônico, sendo muito comum o envio instantâneo de mensagens automáticas
que acusem o recebimento de mensagem previamente enviada. Estas confirmações não
equivalem à aceitação, segundo a acepção técnica do termo, pois delas não se pode inferir
a intenção do oblato em concluir o certame.[41]
Assim, a aceitação pode ser definida como a declaração receptícia de vontade por
meio da qual, o destinatário da proposta manifesta intenção em concluir o contrato, a partir
da sua integral anuência aos termos da proposta, desde que o faça dentro do prazo
estipulado quando for o caso.[42] O destinatário deve anuir com todos os termos da
proposta, caso contrário, qualquer alteração na proposta original importa em recusa desta e
em nova proposta (art. 431 do CC/02). No sistema jurídico brasileiro, a aceitação
modificativa equivale à contraproposta.[43]/[44]
A observância do prazo, quando o proponente o tiver estabelecido, integra a
proposta, pois se o oblato não obedecê-lo, consoante o art. 431 do CC/02, considera-se
nova proposta. Nesta hipótese, invertem-se os papéis, o indivíduo, que tinha realizado a
proposta, terá o direito de recusar a anuência tardia do destinatário, porque neste caso a
proposta deixa de ser obrigatória (art. 427, inc. III do CC/02).
Se não houve prazo prefixado pelo proponente, a aceitação deverá ser feita em
tempo hábil (prazo moral), levando-se em conta o meio de comunicação empregado pelas
partes. Neste aspecto, o fator “tempo” traz alguns inconvenientes à legislação, pois
elaborada sem levar em consideração a alta velocidade dos novos meios de comunicação
requer um cuidado maior por parte do intérprete.
20
O mesmo que foi dito supra sobre o direito de retrato do policitante, aplica-se à
possibilidade de retratação do oblato, que, após ter aceitado a proposta, vem a se
arrepender, desde que a retratação chegue antes ou simultaneamente à aceitação (art. 433
do CC/02). Portanto, este direito está ameaçado, tendo em vista a comunicação quase que
automática na era da informática.
2.2. Canadá (Common Law): “offer”, “invitation to treat”, “acceptance” e
“consideration”
Neste estudo comparativo entre a dogmática contratual brasileira e a canadense,
constatam-se algumas semelhanças e diferenças. As semelhanças dizem respeito à oferta e
seus efeitos vinculantes e à aceitação, como elemento conclusivo do contrato.
As diferenças, por sua vez, dizem respeito à noção de “convite a contratar”
(“invitation to treat”), caracterizada pela oferta a um número indeterminado de pessoas,
cujo proponente não fica vinculado. Além disso, o Common Law recorre a outro elemento
para a formação válida do contrato: a “consideration”.
O primeiro elemento, a oferta é uma declaração receptícia de vontade na qual o
proponente (offeror) determina as condições essenciais do contrato, tais como, o objeto e o
preço, que é destinada ao oblato (offeree).[45]
No Common Law, a oferta feita a uma pessoa determinada também deve conter
todos os elementos do contrato, a tal ponto que a aceitação do oblato possa concluir o
contrato. Desta forma, quando uma oferta feita é aceita pela outra parte, desde que tenha
havido consideration, o contrato passa a existir.[46]
Todavia, assim como no Brasil, a vinculação à proposta está limitada ao prazo
estabelecido pelo proponente.[47] Podendo, ainda, ser revogada pelo proponente, desde
que chegue antes ou simultaneamente à proposta.[48] Além destas hipóteses, a oferta deixa
de ser obrigatória (“enforceable”) quando ela é rejeitada pelo oblato, que, inclusive, pode
fazer uma contraproposta (“counter-offer”). Em síntese, quanto à oferta individualizada, o
Civil Law está bem próximo do Common Law.
A distinção de maior relevância diz respeito às ofertas feitas a um número
indeterminado de pessoas. E justamente este é o tópico de maior interesse dos empresários
e pessoas físicas que pretendam utilizar a internet para anunciar produtos e serviços,
através dos contratos de adesão eletrônicos. Portanto, é preciso distinguir uma oferta, feita
a uma pessoa determinada, e a “invitation to treat”, oferta feita a um número
indeterminado de pessoas, cujo regramento jurídico do Common Law é distinto.
Conceitualmente, a “invitation to treat” é uma proposta feita ao público em geral
(“to the world at large”), cujo conteúdo é, predominantemente, comercial. Portanto, em
última análise, o proponente, nesta hipótese, não tem intenção de criar relações jurídicas
com o público, que é genérico; mas, tão-somente, de comunicar sua disponibilidade em
realizar negociações contratuais, convidando os interessados para tanto. Destarte, o
contrato final somente se formará se o público alvo fizer uma proposta adequada às
condições preestabelecidas no primeiro ato do fornecedor.[49]
21
Em suma, no sistema jurídico canadense o fato de se comercializar um produto
através, por exemplo, de um anúncio publicitário na internet, não implica a vinculação do
indivíduo que o fez veicular. Ao contrário, haverá uma inversão em que o fornecedor passa
a ser considerado como oblato e o consumidor como proponente.[50]
Esta análise é especialmente relevante ao contexto do comércio eletrônico, na
medida em que uma página da internet, ao divulgar um produto ou serviço, contendo uma
proposta destinada ao público em geral é uma oferta ao público no sistema brasileiro;
porém, é um “invitation to treat”, no sistema canadense.
O “leading case” britânico, que estabelece a não vinculação do “invitation to
treat”, é o Pharmaceutical Society of Great Britain vs. Boots Cash Chemists.[51] A corte
determinou que o fato de deixar os produtos disponíveis em prateleiras (“display of
goods”) é considerado um “convite a contratar”, e, portanto não vincula o dono da loja.
Este caso demonstra, claramente, a distinção entre a força vinculativa da oferta ao
público vigente no sistema brasileiro e no Common Law, de um modo geral, pois este
precedente, mesmo sendo proferido pelos tribunais ingleses, é citado nos julgamentos
canadenses.[52]
Deve-se analisar, também, outro caso inglês, também invocado pela doutrina e
jurisprudência canadense, Carlill vs. Carbolic Smoke Ball Co.,[53] por ser o leading case
em matéria de “invitation to treat”. Neste caso, a empresa requerida, Carbolic Smoke Ball,
fez veicular no jornal inglês, Pall Mall Gazette, em 13 de novembro de 1891, que se algum
consumidor, fazendo uso da referida substância (“carbolic”), não se imunizasse da gripe
epidêmica ou outra doença parecida, faria jus à recompensa de ₤100 (cem libras).
O Tribunal considerou que ao adquirir o produto, cujo anúncio preconizava uma
recompensa em caso de falha do medicamento, o contrato se aperfeiçoa. Os juízes
ressaltaram que não houve revogação da proposta de recompensa. Além disso, o anúncio
não subordinava a recompensa à exigência de que o consumidor manifestasse sua
aceitação de forma expressa; portanto, bastou a aquisição do medicamento e a conseqüente
execução do tratamento conforme as instruções para caracterizar a conclusão do contrato,
vinculando as partes.
Este caso demonstra a flexibilidade do Common Law em deliberar sobre os efeitos
vinculantes de um anúncio publicitário; situação distinta da disponibilização de produtos
em lojas, como ocorre nas livrarias e nas lojas do tipo “self-service”.
A aceitação é uma declaração de vontade receptícia, assim como a oferta; ela
somente produzirá seus efeitos após ser comunicada ao destinatário, conforme o
entendimento proferido em Schiller v. Fisher.[54]
Assim como ocorre no Brasil, no Canadá a aceitação somente ocorre mediante a
completa concordância com os termos da proposta. Se o oblato originário modifica
algumas condições ou o preço, trata-se, em verdade, de uma contraproposta (“counteroffer”); invertendo-se os papéis, o oblato originário torna-se proponente e vice-versa.[55]
Em Livingstone vs. Evans,[56] o Tribunal afirmou que qualquer alteração feita na proposta
original implica nova proposta (“counter-offer”), que só produzirá efeitos após a sua
comunicação ao destinatário, desde que este aceite.
Trata-se de uma proposta original em que o proponente, T. J. Evans (requerido)
ofereceu ao requerente um imóvel pelo valor de $1800. No mesmo dia, o requerente
22
respondeu ofertando um valor inferior, no caso, $1600. Em seguida, o requerido respondeu
negando a redução de preço (“Cannot reduce the price”). Finalmente, o requerente envia
outro telegrama ao requerido aceitando a proposta. O Tribunal decidiu com base nos
precedentes, que no caso em tela, ao modificar o preço, a proposta original perde sua
eficácia; e a primeira resposta do requerente passou, então, a ser uma nova proposta
(contraproposta), que extingue a proposta original. Destarte, a contraproposta somente
produz efeitos se aceita pelo destinatário, o que não ocorreu no caso em tela. Portanto, em
última análise, o Tribunal decidiu que a primeira proposta (no valor de $1800) foi extinta
pela contraproposta (que ofertou o valor de $1600). Desta forma, a proposta original não
pode mais ser aceita pelo requerente.[57]
No precedente inglês, Butler Machine Tool Co. vs. Ex-Cell-O Corp.,[58] o Tribunal
declarou que adições feitas à proposta original equivalem a nova proposta. Em 23 de maio
de 1969, os compradores, interessados em adquirir um maquinário fabricado pela empresa
Butler Machine Tool Co., receberam o resultado de uma cotação de preços com a empresa.
Em resposta, a empresa determinou o valor em ₤75,535 (setenta e cinco mil e quinhentos e
trinta e cinco libras) determinando o prazo de entrega em 10 (dez) meses. No verso deste
papel, havia os termos e condições, que diziam prevalecer sobre qualquer outro escrito na
ordem de pedido do comprador. Uma destas cláusulas conferia ao vendedor o direito de
variação do preço unilateralmente até a data da entrega. Em 27 de maio, a compradora, ExCell-O Corp, respondeu concordando com o preço e o objeto, mas fez adições com relação
aos custos de instalação, data de entrega, etc.
Poucos dias depois, em 05 de junho de 1969, a empresa (vendedora) completou a
ordem do pedido afirmando que o preço estava mantido conforme a cotação feita em 23 de
maio, e neste documento não havia, no verso, nenhuma cláusula permitindo a variação
unilateral do preço. No entanto, na data da entrega do maquinário, a vendedora exigiu um
valor adicional de ₤2,892 (duas mil e oitocentos e noventa e duas libras), montante que a
compradora se negou a pagar.
Diante disto, a vendedora ingressou em juízo pleiteando o adicional, além de
perdas e danos, fundamentando seu pedido na cláusula de variação de preço constante do
verso do documento da cotação feita em 23 de maio.
Quanto à existência do contrato, o Tribunal declarou não haver dúvida. No
entanto, o Tribunal entendeu que a resposta da compradora de 05 de junho, por conter
adições aniquila a proposta original da vendedora. Portanto, semelhantemente ao art. 431
do CC/02 brasileiro, as adições de quaisquer espécies à proposta original equivalem em
contraproposta. Destarte, no caso em análise, a vendedora respondendo à contraproposta
feita pela compradora anuiu com os termos estabelecidos pela compradora abrindo mão de
seus termos, como a cláusula de variação de preço.[59]
Este caso evidencia o fenômeno denominado “battle of the forms”, oriundo da
diversidade dos formulários utilizados pelos vendedores e compradores durante a fase de
negociação. Diante desta diversidade, surge a polêmica questão de se dar prevalência de
um formulário sobre o outro, tendo em vista as diferenças entre o formulário da ordem de
pedido e o formulário do reconhecimento do pedido.[60]
Há duas regras: - “the first shot rule”, ou seja, prevalecem as cláusulas que se
qualificam como “supremas”, acima de todas as outras (“supremacy clause”); ou – “the
last shot rule” (“the performance rule” ou “the last past the post rule”), mediante a qual
23
se considera o segundo formulário uma contraproposta que pode ser aceita pela parte que
inicia a execução do contrato.
Outro requisito da formação do contrato é a denominada “consideration”, que
vigora nos sistemas do Common Law. De acordo com este sistema, só existe contrato entre
as partes, além da manifestação de vontade convergente, se houver alguma troca entre as
partes.[61]
Portanto, a noção de “consideration” está intimamente ligada à troca de valores
(“quid pro quo”). Em outras palavras, este elemento é essencial para se distinguir entre as
promessas de caráter contratual (“contractual promises”) daquelas feitas sem seriedade
suficiente para vincular contratualmente as partes (“gratuitous promises”).[62]
A definição de “consideration” é extraída do precedente inglês, Currie vs. Misa.
[63]. “Lizardi & Co” era correntista do “Banco Currie” (“Glyn, Mills, Currie & Co”) e
estava com a conta bancária negativa. Em 11 de fevereiro de 1875, a empresa “Lizardi”
vendeu quatro títulos negociáveis para o Sr. Misa, com o vencimento para o dia 14 de
fevereiro. Tendo em vista o alto valor devido pela empresa “Lizardi” a seu Banco, em que
um dos sócios era o Sr. Currie (autor da ação), a empresa foi pressionada para reduzir o
débito, pagando algum valor. Então, a empresa “Lizardi” entregou ao Banco a ordem de
pagamento emitida pelo Sr. Misa, para pagar à empresa “Lizardi” ou ao portador. O sócio
do Banco, Sr. Currie, ao descobrir estas negociações, ingressou com uma ação contra o Sr.
Misa para que este honrasse a ordem do pagamento, que fora sustada por ele.
Em suma, neste caso, o Juiz Lush trouxe a célebre definição de
“consideration”,[64] entendida como “algum direito, interesse, lucro ou benefício de uma
parte ou alguma renúncia (“forbearance”), em detrimento, perda, responsabilidade
assumida pela outra parte.”
Em síntese, a “consideration” pode ser prestada de diversas formas, a saber: um
benefício, um direito, uma renúncia, etc.
Além disso, o seu elemento não precisa ser necessariamente adequado, basta que
seja suficiente. Em outras palavras, o Tribunal diante das circunstâncias de cada caso
concreto decidirá se houve ou não “consideration”.[65]
Da mesma forma que a doutrina de Québec critica arduamente a “causa” da
obrigação (art. 1.371) e a “causa” do contrato (art. 1.410), a doutrina do Common Law o
faz com relação à “consideration”, por ser inútil na grande maioria dos casos.[66]
No entanto, o fornecedor que queira realizar contratos disponibilizando seus
produtos e serviços pela internet, deve atentar à “consideration” do Direito anglo-saxão;
que neste ponto, distingue-se da dogmática contratual brasileira.
2.3. Contrato entre ausentes: o impacto da Teoria da Expedição no comércio
eletrônico
Um desafio à contratação eletrônica está na análise do momento em que se forma o
vínculo contratual. O sistema da cognição ou da informação determina que o contrato
conclui-se no momento em que o proponente toma conhecimento do conteúdo da
24
aceitação.[67] Para parte da doutrina, este sistema é o melhor sob o ponto de vista da
lógica jurídica.[68] Outra parte[69] a critica por ser impraticável, na medida em que tal
entendimento geraria uma situação de vaivém de comunicação em escala interminável.
O outro é o sistema da agnição ou da declaração e tem por fundamento a
exteriorização da vontade da parte. Em outras palavras, o contrato se conclui no momento
em que “a vontade se afirmou por um ato exterior”, pois neste momento “ela se reveste de
aparência perceptível e hábil a ser o termo de uma relação de direito”.[70]
Para minimizar a objetividade deste sistema, formularam-se três teorias a respeito.
A teoria da declaração propriamente dita[71] determina como momento da conclusão
do contrato o ato em que o aceitante formula a resposta, por exemplo, redigindo o e-mail.
Esta teoria leva à situação de vincular o proponente no momento em que o oblato está
redigindo a aceitação, sem que o proponente tivesse conhecimento disso e de seu
conteúdo. Portanto, a crítica que se faz é quanto à impossibilidade de se conceber que
alguém se vincule sem ter conhecimento da “constituição do vínculo”.
A teoria da expedição ou da transmissão, em resposta a esta crítica, determina
que o simples fato de redigir a aceitação não é suficiente, sendo preciso remetê-la ao
proponente, uma vez “realizado esse ato, presume-se que o contratante fez tudo quanto
estava ao seu alcance, tudo quanto dele dependia para externar a aceitação.”[72]
A teoria da recepção, por sua vez, afirma que a conclusão do contrato dá-se no
momento em que a resposta positiva do oblato chega materialmente às mãos do
policitante. Esta é a teoria adotada pelo BGB.[73] Esta teoria, também, é adotada pelo
Código Civil de Québec, no art. 1.387,[74] que estabelece como momento de conclusão do
contrato o recebimento da aceitação (teoria da recepção). Uma única regra é adotada pela
dogmática contratual de Québec, quer sejam ausentes, quer sejam presentes.[75]
Diversamente, o CC/02 brasileiro filiou-se aos adeptos da teoria da expedição no
art. 434. Washington de Barros Monteiro[76] elogia este dispositivo, pois a teoria da
expedição é, “[...] a que melhor se afeiçoa às necessidades da vida e à natureza das coisas.
De acordo, pois, com o nosso sistema legal, não basta escrever a resposta favorável, é
preciso remetê-la (art. 434 do Cód. Civil de 2002): os contratos por correspondência
epistolar, ou telegráfica, tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida”.
Assim, na dogmática contratual brasileira, o contrato forma-se no momento em que
o oblato envia a sua aceitação, ressalvado o direito de retrato do oblato, desde que a
retratação chegue antes ou simultaneamente à aceitação (art. 433 do CC/02). Se ele não
dispõe de meio algum nesse sentido, ou se o meio empregado falha, o contrato está
concluído.
Além disso, o inc. II do art. 434 do CC/02 estabelece que se o proponente tiver se
comprometido a esperar a resposta, o contrato não se conclui com a expedição, mas após o
recebimento da resposta pelo proponente.
Por fim, se as partes tiverem predeterminado um prazo para a aceitação, o contrato
aperfeiçoar-se-á após este prazo convencionado pelas partes (inc. III do art. 434 do
CC/02). Esta regra pode ocasionar alguns problemas, por exemplo, o caso em que o oblato
envie a mensagem à noite do último dia do prazo, mas que o proponente só venha a tomar
conhecimento no dia seguinte, quando abrir sua caixa de e-mails. Nesta hipótese,
sustentamos a tese de que se aplicando a teoria da expedição, o oblato observou o prazo
convencionado; sendo que o proponente diligente, consultaria seu e-mail antes do
25
encerramento do prazo para verificar se a proposta foi aceita, e, portanto, constatando que
o contrato fora concluído, surtindo os efeitos.
A solução brasileira é muito semelhante à regra canadense e norte-americana da
“dispatch rule”, pela qual o contrato forma-se quando o oblato expedir a aceitação e no
momento em que o fizer.
De acordo com esta teoria, um contrato torna-se perfeito quando o oblato
efetivamente envia a aceitação, isto é, quando ele clica no ícone da página da internet do
fornecedor manifestando sua anuência, ou quando ele envia o e-mail contendo a sua
resposta positiva.
A vantagem desta teoria é a desnecessidade de se provar o momento em que a
mensagem chega à esfera de domínio do destinatário. No entanto, não se pode, a partir
desta constatação, ter uma idéia equivocada de que não se requer o conhecimento da
aceitação para a conclusão do contrato. A aceitação é declaração de vontade receptícia,
portanto, requer-se que o proponente tome conhecimento dela. Na verdade, o que ocorre é
a fixação retroativa do momento da conclusão do contrato.[77]
O comércio eletrônico depara-se com estes diversos sistemas jurídicos que são
adotados pelos países, sem haver uma uniformidade. A título de exemplo, a Lei Uniforme
sobre Comércio Eletrônico da CNUDMI, em seu art. 15, estabelece que o momento do
recebimento da mensagem eletrônica é definido quando ela entra no sistema de informação
fora do controle de quem a expediu. Assim, o contrato eletrônico forma-se no momento
em que a aceitação entra no sistema de informação alheio ao controle do oblato, ou seja,
ela ingresse no sistema de informação do proponente, passando a ser acessível por este.
Parece, portanto, ter se filiado à teoria da recepção adotada pelo BGB e pelo Código Civil
de Québec.
2.4. Contrato entre presentes: o impacto da omissão do Código Civil brasileiro no
comércio eletrônico
O CC/02 foi omisso quanto à contratação inter praesentes, constituindo-se em fator
de insegurança no comércio eletrônico, pois é muito comum utilizar meios de
comunicação semelhantes ao telefone como, por exemplo, os sistemas de comunicação em
tempo real. Desta forma, considera-se concluído instantaneamente o contrato celebrado
entre presentes.
O Legislador brasileiro não regulamentou a matéria, provavelmente, por aceitá-la
como uma situação tão simples, fazendo-se desnecessária uma regulamentação
específica.[78]
O art. 428, inc. I do CC/02 apenas menciona que entre presentes a aceitação deve
ser imediata (assim como no Direito alemão e no canadense), no entanto, não estabelece o
lugar, nem o momento em que o contrato reputar-se-á formado. Esta omissão acarreta
diversas polêmicas quanto à determinação da lei aplicável e do juízo competente.
Para solucionar este dilema, o Código Civil de Québec estabelece a teoria da
recepção seja qual for o meio de comunicação. Portanto, entre presentes, considera-se
concluído o contrato no momento em que o proponente receba a aceitação.
26
No Direito alemão, a solução enveredou pela distinção que deve ser feita entre
mensagens corpóreas (em que a declaração de vontade é corporificada em um suporte
físico, e. g. documento escrito); e as mensagens não-corpóreas (e.g. telefone), que se
esvaem após sua exteriorização.
As primeiras, por estarem materializadas, podem ser revistas pelo destinatário
sempre que julgar necessário. O mesmo não ocorre com as mensagens não-corpóreas.
Sendo assim, a doutrina alemã requer o efetivo conhecimento destas mensagens (nãocorpóreas), enquanto, para as mensagens corpóreas basta a chegada ao destinatário (não se
requer o conhecimento fático do conteúdo da mensagem). Esta solução vai ao encontro das
necessidades da sociedade de informação, pois:
[...] Na transposição desses princípios às declarações de vontade
transmitidas pela Internet a pessoas consideradas presentes (por Relay
Chats), deve-se levar em consideração que a mensagem transmitida
por escrito permanece registrada na tela do computador. Basta,
então, para caracterizar a sua ‘chegada’, que ela apareça na tela do
computador do destinatário, sendo a este possível lê-la e, caso deseja,
salvá-la ou mesmo imprimi-la. Diferente é, contudo, o caso em que os
usuários da Internet se comunicam interativamente por meio de
equipamentos como microfone e fone de ouvido, uma vez que as
declarações transmitidas oralmente não são em regra registradas, o que
faz com que elas se tornem eficazes apenas com a efetiva tomada de
conhecimento por parte do destinatário. (grifo nosso)[79]
Em suma, segundo a dogmática contratual brasileira, o contrato formado entre
presentes, se a proposta, feita sem prazo, não for imediatamente aceita, não haverá contrato
algum.[80] O inc. I do art. 428 do CC/02 considera o contrato entre presentes, o contrato
formado por telefone, trazendo uma abertura ao sistema na parte final, na medida em que
possibilita a extensão deste conceito às partes que contratam “por meio de comunicação
semelhante” ao telefone. No entanto, não se estabelece o momento nem o local da
conclusão do contrato. Tal omissão representa um obstáculo ao bom desempenho do
comércio eletrônico, por causar insegurança jurídica quanto à determinação do momento e
local da conclusão do certame, e, conseqüentemente, gera dúvidas acerca da lei aplicável e
do Tribunal competente, tendo em vista a globalização econômica que marca as práticas
comerciais na era digital.
Diversamente, portanto, os países do Common Law atentos ao fato de que o critério
para se estabelecer se o contrato se dá entre presentes ou entre ausentes é justamente o
meio de comunicação adotado pelas partes, que possibilita ou não o contato imediato,
distinguem os meios de comunicação instantânea e os não-instantânea para se definir o
momento da conclusão do contrato.
A comunicação é fator de enorme relevância à formação do vínculo contratual, pois
a vontade das partes devem se exteriorizar através de algum meio de comunicação. Em
outras palavras, a comunicação pode ser verbal, escrita, por gestos ou mímicas, etc.
Os meios de comunicação estão em constante evolução, tendo em vista o
desenvolvimento científico da matéria. Por esta razão, o Common Law, construído com
base em precedentes, confere aos juízes e tribunais maior flexibilidade para analisar em
um caso concreto se a comunicação empregada pelas partes pode ser considerada
instantânea ou não.
27
A dificuldade de prefixar uma regra única que comporte todos os fatos sociais
deve-se ao fato da extensa gama de variação dos meios de comunicação. Neste aspecto, a
comunicação escrita comporta diversas variações, tendo em vista o meio de comunicação
empregado. Por exemplo, pode-se comunicar por carta (contrato epistolar), por telegrama,
por fax, por e-mail, por outros meios que, sendo instantâneo, as partes escrevem algo para
manifestar sua vontade (e. g. Relay Chats, como o Messenger da Microsoft).
Portanto, a formação do contrato por correspondência, ou outro meio semelhante,
adquire incontestável relevância no comércio eletrônico, haja vista a utilização da internet
como meio de comunicação em massa para a realização de negócios. Assim, tendo em
vista a evolução dos meios de comunicação, é imperiosa a reestruturação de alguns
conceitos tradicionais sobre o tema, tais como momento de formação do contrato, atrasos
com a transmissão, etc. Sobre este tema em específico, os tribunais do Common Law já
têm decidido, formando diversos precedentes.
Tradicionalmente, a oferta e a aceitação eram instrumentalizadas ora por meios de
comunicação instantânea, tais como telefone, ora por meios de comunicação nãoinstantânea, como telegrama, carta, etc.
Hodiernamente, contudo, as novas tecnologias, como a internet, impossibilitam a
criação de regras fixas devido à sua complexidade; ou seja, ao mesmo tempo em que se
possibilita a comunicação instantânea (ou em tempo real) por meio de relay chats;
possibilita-se, também, a comunicação não-instantãnea através de e-mails e das ofertas ao
público em páginas da internet.
Em suma, o sistema do Common Law ressalta a impossibilidade de estabelecer uma
regra fixa sobre a matéria aplicável ao comércio eletrônico. O fornecedor, que opte em
disponibilizar seus produtos e serviços pela internet, deve levar em conta os riscos de uma
mensagem transmitida por e-mail, por exemplo, de estar vinculado mesmo desconhecendo
tal situação. Ora, esta situação ocorre igualmente nas comunicações escritas, tendo como
suporte material o papel; no entanto, isto é mais comum de ocorrer quando o suporte
material da vontade estiver consubstanciado em meio eletrônico, diante à difusão deste
meio de comunicação na sociedade de informação massificada.
No Canadá, as regulamentações do comércio eletrônico das províncias e territórios,
desenvolvidas a partir da lei modelo UECA sobre comércio eletrônico não exigem
qualquer outro requisito além do envio eletrônico dos dados. No entanto, a doutrina
canadense sugere, para maior segurança, que além da transmissão eletrônica da mensagem,
seja acompanhada de outra forma materializada em papel como, por exemplo, enviando
um fax.[81]
Todavia, esta não é a solução imposta pelos tribunais, haja vista seus efeitos
contraproducentes. Em outras palavras, se a transmissão eletrônica de dados surgiu como
facilitador do comércio globalizado, o reenvio da comunicação em suporte material do
papel significa trabalho dobrado, e, portanto, negativa da eficiência e da validade das
comunicações eletrônicas.
Assim, fala-se em meio de comunicação instantânea para significar os contratos
formados entre partes presentes, ou seja, meios de comunicação que possibilitem a
interação imediata (como se as partes estivessem “face a face”). Na Dogmática brasileira,
fala-se em contratos entre presentes (art. 428, inc. I do CC/02), que devem ser aceitos
28
imediatamente, porém, é omissa ao se estabelecer o momento da conclusão do contrato.
Diversamente, o Common Law traz regra para esta hipótese.
Assim, o direito canadense determina como regra geral, para se definir o momento
da conclusão do contrato celebrado por meio de comunicação instantânea, a “Receipt
Rule” (Teoria da Recepção). Em outras palavras, o contrato forma-se onde e quando a
aceitação for recebida pelo proponente. Todavia, semelhantemente à doutrina brasileira, a
canadense ressalta que, nas situações entre pessoas presentes (meio de comunicação
instantânea), não há maiores problemas em se definir o local e o momento da conclusão do
contrato, tendo em vista a sua formação imediata.[82]
Quanto aos meios de comunicação pós-modernos, não se pode definir uma regra
concreta. Dependerá de se verificar, caso a caso, se a comunicação permite uma interação
imediata entre as partes.[83] Tradicionalmente, os tribunais do Common Law vêm
afirmando esta regra, como ocorreu no caso inglês, Brinkibon Ltd. vs. Stahag Stahl und
Stahl Warenhandelsegesellshaft mbH.[84] O Tribunal inglês considerou que o telex,
assim como o telefone, permite a interação face a face entre as partes, e por isso, aplica-se
a regra geral, receipt rule. Em outras palavras, o contrato reputou-se formado onde e
quando o proponente, que residia em Viena, recebeu a aceitação, tomando conhecimento
de seu conteúdo.
A regra mencionada supra não se aplica quando o contrato for formado através de
uso de um meio de comunicação não-instantânea, como correspondência, telegrama, etc.
Nestas hipóteses, aplica-se a regra conhecida por “Postal Acceptance” ou “Dispatch
Rule”[85], segundo a qual o contrato forma-se onde e quando a aceitação é despachada
(Teoria da Expedição).[86]
No caso Marshall vs. Jameison,[87] o Tribunal enfrentou alguns aspectos acerca
da aceitação da oferta por telegrama.[88] É indiscutível no sistema da Common Law a
possibilidade de realizar transações comerciais através de envio de telegramas. Neste caso,
aplicando-se a “dispatch rule”, o contrato formou-se em Clinton, onde residia o requerente.
A consagração desta regra deu-se em Adams vs. Lindsell.[89] As partes estavam
contratando (compra e venda) via correspondência. A proposta dizia aguardar a resposta
pelo Correio, sem determinar um prazo, mas devendo este ser o prazo razoável. No caso, o
oblato endereçou equivocadamente a carta, contendo sua aceitação. Por conta disso, houve
um atraso excessivo para que a aceitação chegasse ao proponente. No entanto, o Tribunal
entendeu que o proponente responde pelo atraso, pois foi ele quem indicou o endereço
errado ao oblato, concluindo que o contrato formou-se no momento em que a aceitação foi
postada pelo oblato.[90]
29
3. Conclusão
O ciclo contratual tem como ponto de partida uma declaração receptícia de vontade
que traz os elementos essenciais do contrato destinado a um determinado indivíduo
(proposta). Pode, também, destinar-se a um número indeterminado de pessoas (oferta ao
público). Além destes, o anúncio publicitário desempenha semelhante papel, guardadas as
especificidades do regramento do Código de Defesa do Consumidor.
No Brasil, tanto a proposta, quanto a oferta ao público e anúncio publicitário
obrigam o proponente, salvo se a revogação chegar antes da proposta feita a uma pessoa
certa e determinada. No Canadá, entretanto, quando a oferta é feita ao público em geral
(“public at large”), não tem efeito vinculante. Ao contrário, o invitado fica vinculado caso
faça a oferta que pode ou não ser aceita pelo invitante, pois este tão-somente convidou que
pessoas fizessem propostas.
No contexto jurídico atual, em que se enfrenta os desafios trazidos pelas novas
tecnologias, a formação dos contratos entre presentes que, a primeira vista, parece algo
pacificado, tanto é que não é mencionada nenhuma regra no ordenamento jurídico
brasileiro sobre o tema, reclama um cuidadoso estudo. Isto porque, o comércio eletrônico,
caracterizado pelas vendas à distância, possibilita a comunicação em tempo real,
assemelhando-se ao contrato entre presentes feito por telefone. Todavia, deve-se ressaltar
que há programas de computador que viabiliza a comunicação direta e imediata entre as
partes, podendo ser registrada, como o Messenger do MSN; mas, é possível também que tal
comunicação não fique materializada, assim como se utiliza o telefone como meio de
comunicação.
Tudo isso demonstra a deficiência de se estabelecer uma regra fixa e definida de
antemão para ser aplicada a todos os meios de comunicação viabilizados com o recurso da
internet.
Ademais, o jurista moderno deve repensar a teoria da expedição, aplicada aos
contratos entre ausentes, ou seja, quando há um decurso de tempo entre as falas dos
contratantes, como o tradicional contrato epistolar, por telegrama ou por fax. Esta é a regra
que vigora no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, o contrato entre ausentes forma-se
no momento em que o oblato envia a sua aceitação. Esta regra é muito semelhante à
“dispatch rule” adotada no Canadá.
Esta teoria apresenta a grande vantagem de dispensar instrução probatória quanto
ao momento em que a mensagem chegou à esfera de domínio do destinatário. Todavia, em
uma leitura rápida e imatura, pode-se pensar que o simples recebimento é suficiente para
formar o contrato. Ao contrário, sendo a aceitação uma declaração de vontade receptícia,
requer-se o efetivo conhecimento dela pelo proponente, dando surgimento ao contrato.
Por fim, os sistemas jurídicos, brasileiro e canadense, embora tendo por base
sistemas distintos, respectivamente, o Civil Law e o Common Law, são razoavelmente
semelhantes. Portanto, no comércio eletrônico global, marcado pelas transações
transfronteiriças, não haverá grandes divergências.
30
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[01] O estudo sobre este tema resultou do Estágio de Pesquisa de Doutorado no Exterior
(PDEE) financiado pela CAPES durante 11 (onze) meses em que a autora ficou
pesquisando o tema sobre contratos de adesão eletrônicos na Universidade de Ottawa. Este
estudo foi aprovado para publicação em sua íntegra (35 páginas) na Revista da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo do ano de 2010 (no prelo).
[02] MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do
consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 35 - 36; GLANZ, Semy. Internet e Contrato
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Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 286.
[03] Globalización y derecho internacional privado. In: Anales de Derecho. Universidad
de
Murcia,
vol.
22,
p.
17
–
58,
2004.
Disponível
em:
<http://www.um.es/facdere/publicaciones/anales/anales22/javier-carrascosa.pdf>. Acesso
em: 19 de nov. 2008. p. 18.
[04]
Por
exemplo,
o
caso
Yahoo!France
[disponível
em:
<
http://www.juriscom.net/txt/jurisfr/cti/yauctions.htm>; Yahoo!, Inc. v. LICRA, C-0021275 JF, 2001 U.S. Dist. LEXIS 18378 (N.D. Cal. Nov. 7, 2001)] revela que a
possibilidade de um indivíduo ou empresa estabelecida em um país vir a se submeter ao
julgamento emanado do Judiciário de outra nação deixou de ser mera especulação,
passando a ser uma realidade recorrente na era digital.
[05] “Sistema pedagógico, que consiste na aquisição de conhecimentos em globo, e não
parceladamente”. In: DICIONÁRIO MOR DA LÍNGUA PORTUGUESA. OLIVEIRA,
Cândido de (supervisão geral). São Paulo: Livro’Mor, s.d. vol. 2. p. 1.101.
[06] A expressão “globalismo” designa algo mais genérico e mais antigo que o termo
globalização, que tem raízes no globalismo, ou seja, é um fenômeno novo, pois já “[...]
estava presente, por exemplo, nos antigos impérios, provocando sucessivos surtos de
modernização econômica, cultural e jurídica. Na era moderna, foi impulsionado pela
interação entre a expansão da cartografia, o crescente domínio das técnicas de navegação
pelos povos ibéricos e a própria evolução do conhecimento científico”. FARIA, José
Eduardo. O direito na economia globalizada. 1ª ed. 3ª tir. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
60.
[07] Com o intuito de minimizar tais polêmicas ressalte-se o Projeto de Protocolo de
Defensa del Consumidor del Mercosur, aprovado pelo Ministério da Justiça, porém não
assinado. Este protocolo padronizaria os direitos dos consumidores que vigora nos países
membros do Mercosul, porém ele vai de encontro com inúmeros dispositivos do Código de
Defesa do Consumidor brasileiro, ocasionando a revogação destes dispositivos. Isto seria
uma perda imensurável tendo em vista que este diploma é um referencial para outras
legislações. Cf. DE LUCCA, Newton. Globalização, mercados comuns e o consumidor de
serviços. Os processos de integração comunitária e a questão da defesa dos consumidores.
In: Revista Direito do Consumidor, vol. 26, p. 154 – 158, abr. a jun. 1998. p. 155.
[08] Expressão utilizada por GONZÁLEZ, Javier Carrascosa. Globalización y derecho
internacional privado. In: Anales de Derecho. Universidad de Murcia, número 22, p. 17 –
58,
2004.
Disponível
em:
<http://www.um.es/facdere/publicaciones/anales/anales22/javier-carrascosa.pdf>. Acesso
em 19 de nov. de 2008.
[09] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte
Geral – Tomo II – Bens. Fatos jurídicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954.
Passim.
[10] Idem, Parte Geral. Tomos I a III. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. A gradação entre estes
três planos do mundo jurídico é sintetizado: ______. Tratado de Direito Privado. Tomo
XXIV: Direito das obrigações: efeitos das dívidas e das obrigações. Juros. Extinção das
dívidas e obrigações. Adimplemento. Arras. Liquidação. Depósito em consignação para
34
adimplemento. Alienação para liberação. Adimplemento com sub-rogação. Imputação.
Compensação. 3. ed. Reimp. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971. p. 05.
[11] Idem, Tratado de Direito Privado. Tomo IV: Validade. Nulidade. Anulabilidade. 2.
ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954. p. 03: “O negócio jurídico ou o ato jurídico stricto
sensu nulo é de suporte fáctico (sic) deficiente, e – de regra – é negócio jurídico, ou ato
jurídico stricto sensu ineficaz; o negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu anulável é
de suporte fáctico (sic) deficiente, mas o negócio jurídico ou o ato jurídico stricto sensu é
eficaz enquanto se não admite, em sentença, que não tenha eficácia.”
[12] Idem. Tratado de Direito Privado. Tomo V: Eficácia jurídica. Determinações inexas
(sic) e anexas. Direitos. Pretensões. Ações. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1955. p. 03: “A
eficácia jurídica é irradiação do fato jurídico; portanto, depois da incidência da regra
jurídica no suporte fáctico (sic), que assim, e só assim, passa a pertencer ao mundo
jurídico. Incidência é prius; e a incidência supõe a regra jurídica e o suporte fáctico (sic),
sobre o qual ela incida. A eficácia é, pois, lògicamente, posterius; o que não exclui a
produção posterior de eficácia desde antes ou até antes da incidência, ou da própria regra
jurídica, ou da concepção e elaboração mesma da regra jurídica.”
[13] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia.
4. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 23; cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do
Fato Jurídico: Plano da Existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 95 – 101.
[14] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts: cases and commentaries. 7. ed.
Toronto (Ont.): Thomson Carswell, 2004. p. 15 (sobre a formação do contrato), p. 377 e
ss. (sobre causas de anulação do contrato, e. g., “misrepresentation”, “mistake”,
“frustation”, “duress”, “undue influence”); WADDAMS, Stephen. M. The law of
contracts. 5. ed. Toronto: Canada Law Book, 2005. Op. cit., p. 24 (sobre o acordo de
vontades, oferta e aceitação, etc.) e p. 350 e ss (sobre causas de nulidade e anulabilidade
dos contratos). O plano da eficácia é analisado tendo em vista os elementos acidentais.
[15] WILLISTON, Richard LORD. Williston on Contracts: A Treatise on the Law of
Contracts. 4. ed. Vol. 1. Rochester (NY): Lawyers Cooperative Publishing, 1990. § 3:4, p.
210-211; WADDAMS, Stephen M. op. cit., § 140, p. 103 – 104. Este aspecto já foi
abordado por nós em outra ocasião cf. LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; LAWSON, Philippa.
“Browse-Wrap” Contracts and Unfair Terms: What the Supreme Court Missed in Dell
Computer Corporation v. Union des consommateurs et Dumoulin. (2007) 37 R.G.D., no 2.
In: Revue générale de droit da Universidade de Ottawa, Faculdade de direito – Seção de
direito civil, vol. 37, n. 02, p. 445 – 462. p. 447.
[16] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts..., op. cit., p. 15.
[17] Instituições de direito civil. Vol. 3 - Contratos. 12. ed. rev. e atual. por Regis
Fichtner.Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 36.
[18] Art. 1.386. L’échange de consentement se réalise par la manifestation, expresse ou
tacite, de la volonté d’une personne d’accepter l’offre de contracter que lui fait une autre
personne.
[19] “ARTICLE 2.1.2 (Definition of offer) A proposal for concluding a contract
constitutes an offer if it is sufficiently definite and indicates the intention of the offeror to
be bound in case of acceptance.” UNIDROIT principles of international contracts.
Disponível
em:
35
<http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2004/blackletter2004.pdf>.
Acesso em: 28 de nov. de 2008.
[20] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., Tomo XXXIX, p. 26;
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 3: teoria das obrigações
contratuais e extracontratuais. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 58.
[21] GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. BRITTO, Edvaldo (coord.); AZEVEDO,
Antônio Junqueira de; MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo (atualizadores). Rio de
Janeiro: Forense, 2008. p. 73; PEREIRA, Cáio Mário. Op. cit., p. 38; DINIZ, Maria
Helena. Curso de Direito ..., op. cit., p. 59 – 60; MONTEIRO, Washington de Barros.
Curso de Direito Civil. Vol. 5: Direito das obrigações 2ª parte. 34. ed. rev. e atual por
DABUS MALUF, Carlos Alberto; SILVA, Regina Beatriz Tavares da. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 15.
[22] “L’offre de contracter emane de La personne qui prend l’iniciative du contrat ou qui
en détermine le contenu, ou même, en certains cas, qui présente le dernier élément
essentiel du contrat projeté".
[23] DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. Vol. 5. 6. ed., ampl. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 66; PEREIRA, Cáio Mário. Ibidem, p. 37; GOMES,
Orlando. Contratos. Op. cit., p. 73.
[24] “Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos
termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.” A obrigatoriedade da
proposta está prevista no art. 1.396 do Código Civil de Québec, que requer a intenção do
policitante em obrigar-se mediante a aceitação do oblato: “L’offre de contracter, faite à
une personne déterminée, constitue une promesse de conclure le contrat envisagé, dês lors
que le destinataire manifeste clairement à l’offrant son intention de prendre l’offre em
considération et d’y répondre dans un délai raisonnable ou dans celui dont elle est
assortie”.
[25] “Art. 1.080 - A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar
dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.” Neste sentido, o
conceito de BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil
Comentado. 2. ed. vol. IV. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1924. p. 244: “A
proposta é a manifestação da vontade de uma parte contractante (sic), que solicita a
vontade accorde (sic) da outra parte. Ella (sic) só por si não gera o contrato, mas o
interesse social exige que seja séria, tenha estabilidade; por isso o Código Civil declara que
o proponente fica, em regra, obrigado a mantê-la. Cessa essa obrigação, se dos próprios
termos da proposta, da natureza do negócio e das circunstâncias isso mesmo se infere.”
[26] “ARTICLE 2.1.2 (Definition of offer): A proposal for concluding a contract
constitutes an offer if it is sufficiently definite and indicates the intention of the offeror to
be bound in case of acceptance.”
[27] “Art. 1.392. L’offre devient caduque si aucune acceptation n’est reçue par l’offrant
avant l’expirarion du délai imparti ou, en l’absence d’un tel délai, à l’expiration d’un délai
raisonnable; elle devient également caduque à l’égard du destinataire qui l’a refusée".
[28] “Art. 1.392. [...] Le décès ou la faillite de l’’offrant ou du destinataire de l’offre,
assortie ou non d’un délai, de même que lóuverture à l’égard de l’un ou de l’autre d’un
36
régime de protection, emportent aussi la caducité de l’offre, si ces causes de caducité
surviennent avant que l’acceptation ne soit reçue par l’offrant."
[29] CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Contratos via Internet. Belo Horizonte: Del Rey,
2001. p. 52.
[30] Na expressão do Common Law, “to the world at large”. BOYLE, Christine; PERCY,
David R. op. cit., p. 26 – 27, comentando o caso Carlill versus Carbolic Smoke Ball Co.
[31] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 39.
[32] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e; et alli. Código Brasileiro de Defesa
do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. rev., ampl. e atual. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005. Capítulo V – Das práticas comerciais (do Título I), p.
240 – 492. p. 264.
[33] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo
XXXIX: Direito das obrigações: compra e venda. Troca. Contrato estimatório. 3. ed.
reimp. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972. p. 15 – 16.
[34] “Art. 429. A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos
essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.” O
Código Civil de Québec, também, disciplina a possibilidade de fazer uma proposta à
pessoa indeterminada: “Art. 1.390. L’offre de contracter peut être faite à une personne
déterminée ou indéterminée; elle peut être assorite ou non d’un délai pour son
acceptation". Contudo, a força vinculante é restrita à proposta dirigida a uma pessoa
determinada (cf. art. 1.396 do Código Civil de Québec citado supra).
[35] GOMES, Orlando. Contratos. Op. cit., p. 74; DINIZ, Maria Helena. Curso..., op. cit.,
p. 61.
[36] O texto sugerido é: “Art. 429. A oferta ao público equivale à proposta, obrigando o
proponente, quando suficientemente precisa a informação ou a publicidade, salvo se o
contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.” Disponível em: <
http://www2.camara.gov.br/homeagencia/retrancas.html?retranca=projeto>, acessado em
12 de dezembro de 2008, às 13:05 hs. Cf. FIUZA, Ricardo (coord. até a 5. ed.). Código
Civil Comentado. SILVA, Regina Beatriz Tavares da (coord. da 6. ed.). 6. ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2008. p. 393.
[37] Código Brasileiro..., op. cit., p. 255 – 256.
[38] DE LUCCA, Newton. Aspectos Jurídicos da Contratação Informática e Telemática.
São Paulo: Saraiva, 2003. p. 64 nota de rodapé n. 08: o jurista ressalta a distinção entre o
art. 30 do CDC e o art. 429 do CC/02 – “A primeira e mais importante consideração a ser
feita sobre a noção jurídica de oferta, como já salientamos em nossa mencionada tese sobre
a Teoria geral da relação jurídica de consumo (p. 160), é a de que essa categoria jurídica,
no âmbito do CDC, não guarda correspondência principiológica com o instituto da
proposta previsto no Código Comercial e no Código Civil”.
[39] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 39 – 40.
[40] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e; et alli. Código Brasileiro..., op. cit.,
p. 270 – 271.
37
[41] CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Op. cit., p. 53.
[42] SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil. Vol. III – Fontes das
Obrigações: Contratos. 6. ed. rev. e atual. Por José Serpa Santa Maria. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1996. p. 112: “a aceitação pode definir-se como sendo ‘a manifestação de
vontade da parte do destinatário de uma oferta, que se iguala em conteúdo a esta última,
tornando o contrato definitivamente concluído, uma vez dirigida ao ofertante ou chagando
ao conhecimento deste, conforme o critério legislativo adotado”; DINIZ, Maria Helena.
Tratado..., op. cit., p. 72.
[43] BEVILÁQUA, Clóvis. Op. cit., p. 248; GOMES, Orlando. Contratos. Op. cit., p. 78.
[44] Neste sentido, o art. 1.393 do Código Civil de Québec dispõe: “L’acceptation qui
n’est pás substantiellement conforme à l’offre, de même que celle qui est recue par
l’offrant alors que l’offre était devenue caduque, ne vaut pas acceptation".
[45] WADDAMS, S. M. The law of contracts..., op. cit., p. 19.
[46] KERR, Ian. Contracts Course Material. Podcast. Disponível em: <
http://iankerr.ca/content/section/16/112/>, acessado em 05/12/2008 [material multimídia
sem paginação].
[47] WADDAMS, S. M. The law of contracts..., op. cit., p. 78.
[48] Idem ibidem, p. 79.
[49] KERR, Ian. Contracts Course Material. Op. cit. [documento eletrônico, multimídia,
sem paginação].
[50] Idem ibidem, p. 21. No caso A. J. Diamond Associates v. City of Halifax (1978), 31
N.S.R. (2d) 510 (S.C.T.D.), o Tribunal determinou que o anúncio (“advertisement”), feito
pela municipalidade em que chamava pessoas para fazerem propostas, é, na verdade, um
convite a contratar; e não uma oferta, propriamente dita.
[51] Queen's Bench Division [1952] 2 QB 795: “Poisons - Sale of poisons - Self-service
system - Selection of articles by customer from shelves - Payment in presence of qualified
pharmacist - Pharmacy and Poisons Act, 1933 (23 & 24 Geo. 5, c. 25), s. 18 (1) (a) (iii).
Contract - Offer and acceptance - Sale of goods - Self-service - Time of sale.”
[52] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts..., op. cit., p. 20 - 25.
[53] Court of Appeal [1893] 1 QB 256. In: QUICKLAW [documento eletrônico sem
paginação]: “Contract - Offer by Advertisement - Performance of Condition in
Advertisement - Notification of Acceptance of Offer - Wager - Insurance - 8 & 9 Vict. c.
109 - 14 Geo. 3, c. 48, s. 2.”
[54] (1981), 124 D.L.R. (3d) 577.
[55] WADDAMS, S. M. The law of contracts, op. cit., p. 44.
[56] [1925] 4 D.L.R. 769, Alb. S. C. In: QUICKLAW [documento eletrônico sem
paginação]: “Contract I D - Offer and acceptance - Intervening negotiations - Effect.”
38
[57] [1925] 4 D.L.R. 769, Alb. S. C. In: QUICKLAW [documento eletrônico sem
paginação]: “[...] it has firmly established it as a part of the law of contracts that the
making of a counter-offer is a rejectin of the original offer”.
[58] [1979] 1 All ER 965, [1979] 1 WLR 401. In: QUICKLAW [documento eletrônico sem
paginação]: “Contract - Offer and acceptance - Counter-offer - Terms and conditions on
which contract made - Seller offering to sell subject to terms and conditions which were to
prevail over buyer's terms - Buyer offering to buy subject to own terms and conditions Seller acknowledging receipt of buyer's order - Whether buyer's order a counter-offer Whether seller's acknowledgment of receipt of buyer’s order an acceptance of a counteroffer - Whether contract concluded on buyer's or seller's terms.”
[59] [1979] 1 All ER 965, [1979] 1 WLR 401. In: QUICKLAW [documento eletrônico sem
paginação]: O Juiz Lord Denning recebeu a apelação dando ganho de causa à compradora.
[60] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts…, op. cit., p. 62 – 63.
[61] WADDAMS, S. M. The law of contracts..., op. cit., p. 82.
[62] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts…, op. cit., p. 173.
[63] (1875), L.R. 10 Ex. 153 (Ex. Ch.), affd 1 App. Cas. 554. In:QUICKLAW [documento
eletrônico sem paginação].
[64] (1875), L.R. 10 Ex. 153 (Ex. Ch.), affd 1 App. Cas. 554. In:QUICKLAW [documento
eletrônico sem paginação]. “A valuable consideration, in the sense of the law, may consist
either in some right, interest, profit, or benefit accruing to the one party, or some
forbearance, detriment, loss, or responsibility, given, suffered, or undertaken by the other”.
[tradução livre]
[65] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts…, op. cit., p. 173.
[66] Idem ibidem, loc. cit.
[67] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso..., op. cit., p. 114.
[68] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., op. cit., p. 20.
[69] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso..., op. cit., p. 114.
[70] Idem ibidem, loc. cit.
[71] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., op. cit., p. 21; GOMES, Orlando.
Contratos..., op. cit., p. 81.
[72] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso..., op. cit., p. 21.
[73] CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Op. cit., p. 55.
[74] “Art. 1.387 Le contra test formé au moment où l’offrant reçoit l’acceptation et au lieu
aù cette acceptation est reçue, quel qu’ait été le moyen utilisé pour la communiquer et lors
même que les parties ont convenu de réserver leur accord sur certains éléments
secondaires."
[75] KARIM, Vincent. Op. cit., p. 120.
39
[76] Op. cit., p. 21.
[77] CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Op. cit., p. 80.
[78] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso..., op. cit., p. 113; PEREIRA, Caio Mário da
Silva. Instituições..., op. cit., p. 46; GOMES, Orlando. Op. cit., p. 80; DINIZ, Maria
Helena. Curso…, op. cit., p. 71; CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Op. cit., p. 84.
[79] CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Op. cit., p. 72.
[80] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso..., op. cit., p. 113.
[81] KERR, Ian; MCLNNES, Mitchell; VANDUZER, J. Anthony; CARMODY, Chi.
Managing the Law: The Legal Aspects of Doing Business. Toronto: Prentice Hall, 2003. p.
380.
[82] BOYLE, Christine; PERCY, David R. Contracts..., op. cit., p. 90.
[83] WADDAMS, S. M. op. cit., p. 70.
[84] [1983] 2 A.C. 34, [1982] 2 W.L.R. 264, [1982] 1 All E.R. 293 (H.L.). Disponível em:
QUICKLAW [documento eletrônico sem paginação].
[85] Nos Estados Unidos, esta teoria é mais conhecida por “mailbox rule”; no Canadá, por
“acceptance rule”.
[86] WADDAMS, S. M. The law of contracts..., op. cit., p. 70.
[87] [1877] O.J. No. 56, 42 U.C.R. 115, Ont. C. of Queen's Bench. In: QUICKLAW
[documento eletrônico sem paginação]: “Contract to deliver wheat f.o.b. the cars -- Duty to
provide cars -- Contract by telegrams.”
[88] Ementa: “Contract to deliver wheat f.o.b. the cars -- Duty to provide cars -- Contract
by telegrams.”
[89] [1818], 1 B & Ald. 681, 106 E.R. 250 (K.B.).
[90] WADDAMS, S. M. Op. cit., p. 71.
40
O CONTEXTO DO DIREITO SINDICAL NO BRASIL E NO MUNDO
Davi Furtado Meirelles
Mestrado em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2006)
Desembargador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região
Professor Convidado da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (Pós-graduação)
e da Escola Paulista de Direito (Pós-graduação)
A liberdade sindical, como modelo a ser implementado, constitui o objetivo de um
sistema de organização sindical mais democrático e representativo. A OIT (Organização
Internacional do Trabalho) a estimula através de seu mais importante tratado sobre temas
relacionados ao trabalho: a Convenção nº 87.
Ao contrário da maioria dos países que desenvolve um sistema sindical mais
representativo e atuante, o Brasil jamais ratificou essa Convenção, ainda que nossa atual
Constituição Federal expressamente determine que “é livre a associação profissional ou
sindical”, conforme o caput do seu artigo 8º. Ocorre que alguns impeditivos para uma
liberdade sindical plena foram mantidos na nossa estrutura atual. Podemos destacar quatro
deles: a unicidade sindical, o sistema confederativo e seu conceito de enquadramento, a
contribuição sindical obrigatória e o poder normativo da Justiça do Trabalho.
Após mais de vinte anos do nosso novo ordenamento constitucional, o que se
verifica é que a realidade está cada vez mais distante desse modelo de liberdade vigiada
que o legislador constitucional imaginou. A unicidade sindical não tem conseguido
impedir a criação de novos sindicatos a partir dos já existentes, quer por divisão de base
territorial, quer por critério de especificidade. O sistema confederativo não impediu que as
centrais sindicais se tornassem uma realidade legal em nosso país. A contribuição cogente,
que tem natureza mais tributária do que sindical, perdeu a razão da sua manutenção e já se
fala na sua substituição por uma contribuição negocial. E o poder normativo, que sofreu
limitações extremas com a Emenda Constitucional nº 45/2004, não mais desestimula o
processo de negociação coletiva.
Assim, com fundamento na Carta Constitucional, e independente da Convenção nº
87 da OIT, podemos afirmar que a liberdade sindical, como modelo ideal, já é quase uma
realidade brasileira.
41
Direitos reservados ao Instituto de Hermenêutica Jurídica, como capítulo do livro
“CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: a resposta do constitucionalismo à banalização do
terror” (Editora Del Rey, lançamento previsto para 16/9/09). Paper correspondente à
palestra no Congresso de mesmo nome, a ocorrer entre 16-18 de setembro de 2009 – ver
programação em http://www.ihj.org.br/bh/09congresso/index.htm#.
PANDEMIAS E ESTADO DE EXCEÇÃO
Deisy Ventura
Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRIUSP)
Mestre em Direito Comunitário e Europeu e Doutora em Direito Internacional da
Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne.
Graduada em Direito e Mestre em Integração Latino-americana da Universidade Federal
de Santa Maria
Exerceu a Cátedra Simon Bolívar do Instituto de Altos Estudos da América Latina da
Universidade de Paris 3 (Sorbonne-Nouvelle) e foi professora convidada de Sciences-Po
Paris (Ciclo Iberoamericano de Poitiers). Foi professora do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UNISINOS (RS)
Membro do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo
(CEPEDISA-USP).
“Eu quero expressar por meio da peste o sufocamento que todos nós sofremos,
e a atmosfera de ameaça e de exílio em que vivemos. Eu quero também
estender esta interpretação à noção de existência em geral”
(Camus, Carnets II, p. 72)
1. Introdução
42
A pandemia 1 não é tema exclusivo de doutos especialistas. Um dos grandes
romances do século XX, “A Peste”, de Albert Camus, é declaradamente uma metáfora do
terror da Segunda Guerra mundial. Por que teria ele escolhido a peste como representação
do mal? Provavelmente porque a epidemia “toca todos os domínios da sociedade e
desorganiza a vida da cidade, [é] a única que coloca os cadáveres na rua, que muda a tal
ponto as mentalidades” (BLONDEAU:1986, p.80). Logo, a metáfora de Camus não é
datada. O que varia na história da humanidade não é a existência ou não da peste, que se
sabe cíclica: oscilam apenas a sua amplitude e as suas circunstâncias. Dando razão à
cantilena dos filósofos, para quem a vocação de qualquer crise sempre foi desnudar as
fraquezas de uma “cidade” ao levantar o véu que acoberta suas insuficiências, a peste põe
radicalmente à prova a sociedade democrática, seus princípios, sua viabilidade histórica e
seu sentido (SLEDZIEWSKI: 2007, p.12). Tanto no romance como na vida, trata-se,
então, menos de falar sobre a peste em si, e mais de mostrar como se portam os homens
diante dela (LÉVI-VALENSI:1991, p.56).
Sob o prisma do Direito, onde se lê pandemia, leia-se provável restrição das
liberdades fundamentais. A gramática da vigilância epidemiológica compreende a
quarentena, a limitação ou interdição de viagens, o recrudescimento do controle fronteiriço
ou mesmo o fechamento de fronteiras, a imposição de terapias, a restrição ou supressão de
reuniões públicas, a vacinação obrigatória, ou até ingerências no modo como se realizam
os funerais. Além das interdições mais visíveis, na cotidiana gestão da escassez que toca
aos sistemas de saúde dos países periféricos, a política pública a conduzir uma urgência
sanitária traz em seu bojo complexas decisões de fundo: quem terá direito às primeiras
vacinas? Quais serão as prioridades de tratamento médico e acesso aos leitos hospitalares?
Serão “quebradas” as patentes dos medicamentos essenciais ao tratamento da
enfermidade? Vê-se que, na saúde pública, mais do que em qualquer outro campo, “a vida,
que, com as declarações dos direitos, tinha sido investida como tal do princípio de
soberania, torna-se agora ela mesma o local de uma decisão soberana” (AGAMBEN:2007,
p.149).
Por conseguinte, para tratar do problema das pandemias no Estado democrático de
Direito, pouco interessa a prospectiva quanto ao advento ou a extensão da doença, em que
se lança irresponsavelmente grande parte dos formadores de opinião, hesitando entre o
alarmismo e a subestimação. O mundo está diante das primeiras pestes globalizadas, cuja
velocidade de contágio, sem precedentes, é inversamente proporcional à lentidão
paquidérmica do Direito. A gripe espanhola, por exemplo, que fez cerca de 70 milhões de
mortos entre 1918 e 1920, ocorreu numa época em que o essencial da população mundial
vivia no campo e, salvo em alguns países ocidentais, ninguém sabia o que estava
ocorrendo no país ao lado (DERENNE:2009). Hoje, para que o combate às pandemias seja
eficaz, ele deve restringir dois dos pilares fundamentais da globalização econômica, que
1
Uma pandemia pode ser definida como um fenômeno patológico que alcança simultaneamente um grande número de
pessoas, numa zona geográfica muito vasta. A diferença entre pandemia e epidemia é que, embora ambas consistam num
forte aumento de casos de uma dada enfermidade, a dimensão da pandemia é maior, seja por sua propagação territorial,
seja pela gravidade das ocorrências, o que resulta em número expressivo de casos severos ou mortes (VENTURA e
SILVA: 2008, p.280). No momento em que se escreve este artigo, há uma pandemia gripal em curso. No dia 25 de abril
de 2009, foi declarada uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). Em boletim do dia 6 de julho de 2009, a OMS reconhece que 94.512 pessoas estariam contaminadas pelo
vírus Influenza A (H1N1), dito da “gripe porcina”, em 136 países. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, no
dia 23 de julho de 2009 existiriam 1.583 casos graves da doença. De acordo com nota de 13 de julho do mesmo ano,
cerca de 30% dos casos já seriam autóctones. O maior número de mortes foi anotado, até então nos Estados Unidos;
Argentina e Chile são os líderes de casos letais na América Latina (OMS:2009). Na França, de acordo com nota do
Instituto Nacional de Vigilância Sanitária de 21 de julho de 2009, estima-se que um terço da população seja contaminado
até dezembro do mesmo ano.
43
são a livre circulação de pessoas e a de mercadorias. Por outro lado, as pestes do presente
disseminam-se numa conjuntura de desigualdade econômica jamais vista.
Assim, os principais desafios que as pandemias trazem ao Direito são, em primeiro
lugar, como garantir o direito à saúde em contextos de exacerbação da crise, eis que, ao
menos nos países em via de desenvolvimento (PVDs), a saúde pública já vive uma crise
permanente; e, em segundo lugar, como conceber e gerir o “estado de exceção” 2 que se
instala, em maior ou menor grau, diante de vultosos riscos sanitários. Esta é uma discussão
que deveria, por óbvio, preceder as pandemias. No entanto, estamos em meio a uma delas
sem que a sociedade, e nela particularmente a academia, tenha travado o devido debate3 . O
presente artigo debruça-se justamente sobre a tradução da pandemia no processo decisório
e normativo de uma sociedade; dito de outro modo, pretende ser um estudo embrionário da
peste como fenômeno jurídico-político.
No Ocidente, sabe-se que a fita métrica da excepcionalidade é, ou deveria ser, a
Constituição. A esta caberia definir quem tem o poder de decretar um estado de exceção e
por quais motivos; quem pode controlá-lo, e se a priori ou a posteriori; a que princípios
deve obedecer seu curso e quais são os seus limites. Por esta razão, em sua primeira parte,
o texto procura discernir as peculiaridades do estado de exceção engendrado pelas
pandemias. A seguir, do mesmo modo que Camus narrou a luta contra a peste como
metáfora da resistência a todas as formas de totalitarismo – e, inspirado no ar do seu
tempo, particularmente ao nazismo – aqui se pretende conceber o combate às pandemias
como metáfora contemporânea da resistência aos efeitos perversos da globalização
econômica. Contudo, as reações da maioria dos Estados à pandemia de influenza em curso
não dão sinais de caminhar neste sentido. Este artigo busca demonstrar que os planos de
contenção das pandemias têm servido antes como vetores do que como diques contra os
cataclismos político-jurídicos do nosso tempo. Na segunda parte, indica que os poderes
públicos geralmente omitem-se em relação à imprescindível regulação detalhada das
restrições aos direitos humanos no estado de exceção e, ao fazê-lo, excluem do espaço
público o debate sobre tais decisões. Ao final, evidencia a incapacidade dos Estados de
evitar que o agravamento da pandemia recrudesça também a transposição das assimetrias
sócio-econômicas para o contexto de crise. O peso das urgências sanitárias é, portanto,
desigualmente distribuído, fazendo dos PVDs e, dentro deles, dos contingentes
populacionais hipossuficientes, as suas maiores vítimas.
2. Estado de exceção em nome da saúde pública
2
No jargão da Organização das Nações Unidas, estão compreendidas nesta expressão as situações designadas pelos
seguintes termos: estado de urgência, estado de sítio, estado de necessidade, estado de alerta, estado de prevenção, estado
de guerra interna, suspensão das garantias, lei marcial, poderes de crise, poderes especiais, toque de recolher, e todas as
medidas adotadas pelos governos que submetem o exercício dos direitos humanos a restrições que ultrapassam aquelas
regularmente autorizadas em situações ordinárias (DESPOUY: 1997, p. 8).
3
Em 2005, o bioquímico brasileiro Hernan Chaimovich alertou: “se o mundo tiver muita sorte, teremos uma pandemia
de influenza em cinco anos. (...) Se não tivermos muita sorte, ela ocorrerá daqui a dois anos e, se realmente formos
protegidos por uma força divina, não teremos essa pandemia – mas essa é uma probabilidade muito baixa. Todos os
especialistas em doenças infecciosas acreditam que o mundo está prestes a padecer de uma pandemia. E, apesar de tudo
que se sabe – no ano 1918 morreram vinte milhões de pessoas no mundo vítimas da gripe espanhola – a sociedade em
geral (e vamos chegar à universidade em particular) aparentemente não está preocupada. Um importante estudo
publicado nos Estados Unidos questiona se o mundo está pronto para uma pandemia, e a resposta é muito clara: não. E a
pergunta que formulo é se a Academia pode ignorar este fato, da forma como ela o está ignorando. Uma pandemia não se
resume a um assunto específico de interesse exclusivo para os especialistas em doenças infecciosas. Há problemas como:
que fazer na cidade de São Paulo com cem mil doentes que precisam ser internados de uma semana para a outra? Qual é
a velocidade da propagação da pandemia? Como fazer com o serviço de correio quando 30% do pessoal está doente? São
problemas que a reflexão acadêmica não pode dispensar” (p.261-2)
44
“Há no mundo tantas pestes quanto guerras. E, no entanto, as pestes e guerras
pegam as pessoas sempre tão desprevenidas”
(CAMUS: 1947, p. 41).
Embora a proteção da saúde pública encontre-se entre as hipóteses da maior parte
das normas que justificam estados de exceção, cabe questionar: a excepcionalidade
ensejada por uma pandemia reveste-se da mesma natureza das demais?
Seguramente não se trata do único campo onde se decide sobre a vida e a morte em
nome do interesse coletivo: é também o caso da guerra, ou até mesmo, para Agamben, o
problema da eutanásia: “se ao soberano, na medida em que decide sobre o estado de
exceção, compete em qualquer tempo o poder de decidir qual vida possa ser morta sem
que se cometa homicídio, na idade da biopolítica este poder tende a emancipar-se do
estado de exceção, transformando-se em poder de decidir sobre o ponto em que a vida
cessa de ser politicamente relevante” (2007, p.149). A singularidade tampouco diz respeito
ao número de mortos em diferentes países, entre outras razões “porque um homem morto
só tem peso se foi visto morto, cem milhões de cadáveres semeados através da história são
apenas uma fumaça na imaginação” (CAMUS:1947, p. 42). De fato, entre doenças, fome,
catástrofes naturais e guerras, não há modo de estabelecer uma hierarquia quantitativa da
mortandade humana que venha a justificar diferentes graus de excepcionalidade. A
exceção se justificaria pelo imperativo de “conservação da civilização, mesmo nos casos
em que cada um está inclinado a ser regido apenas por seus próprios instintos” (PITCHO,
2007; p.40). Resta saber como a democracia define e conserva a civilização diante do
risco.
Ao pensar na “sociedade democrática” que as primeiras pestes da era da
globalização econômica estão a encontrar, tudo indica “um horizonte desumanizado e
niilista, povoado de tropas humanas padronizadas, tão inconsistentes quanto sedentas de
satisfações vulgares” (LIPOVETSKY: 2006, p. 324), numa sociedade hiperconsumista em
que predominam, em absoluto, os interesses individuais. A autonomia do sujeito poderia,
assim, ser compreendida na máxima “primeiro, eu”; em situação extrema, há o forte risco
de recurso a um esquema de autoproteção e autovalidação das normas que pretendem
organizar o mundo na perspectiva de um dado sujeito coletivo – um grupo, uma “raça”,
uma religião – e não de toda a humanidade (SLEDZIEWSKI: 2007, p.15). Instala-se
também um paradoxo: a comunhão de destino insinuada pela “invasão brutal” da exceção
na vida das pessoas deveria ter “por primeiro efeito o de obrigar nossos concidadãos a agir
como se não tivessem sentimentos individuais”, mas as mudanças causadas pelas
interdições são tão rápidas e extraordinárias que não é fácil tomá-las como algo real; diante
de um aparente pesadelo, “o resultado é que nós continuamos a colocar em primeiro plano
nossos sentimentos pessoais” (CAMUS:1947, p.68)
As situações de crise tenderiam, então, a multiplicar geometricamente os elementos
de uma espécie de “barbárie moral”. No entanto, as manifestações de altruísmo, as reações
de indignação em diferentes espaços públicos e, sobretudo, as redes de solidariedade que
se multiplicam em âmbito mundial, lançam dúvidas sobre o clichê da deslegitimação de
todos os valores: o tempo presente parece menos refém do cinismo e do relativismo
generalizados, e mais propenso ao renascimento da interrogação moral que se deve “ao
recuo da política e à falência dos grandes sistemas de sentido” (LIPOVETSKY: 2006,
p.327).
45
A política encontra-se, de fato, acuada. De um lado, pelo descrédito que conduz a
solidariedade a outros modos de expressão social, distantes da política tradicional. De
outro, pela criação voluntária de um “estado de emergência permanente” que, apesar de
não declarado formalmente, converteu-se, segundo Giorgio Agamben, numa das principais
técnicas de governo do Estado democrático contemporâneo, transformando a estrutura e o
sentido das distinções tradicionais entre os diversos tipos de Constituição (2004, p. 13). O
estado de necessidade é interpretado como uma lacuna no direito público, a que o Poder
Executivo é obrigado a remediar (idem, p.48). O aspecto normativo do Direito encontra-se,
assim, “impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental” que,
embora ignore no âmbito externo o direito internacional e produza no âmbito interno um
estado de exceção permanente, comete a desfaçatez de apresentar-se como modo de
“aplicação” do direito (idem, p. 131).
Não por acaso, a teoria do estado de exceção permanente de Agamben produz-se na
esteira da crítica à obsessão securitária que sucedeu os ataques de 11 de setembro 4 .
Particularmente nos campos do direito constitucional e do direito internacional, um campo
reflexivo procura retratar criticamente os danos que a “guerra contra o terror” vem
produzindo no catálogo de direitos e liberdades que caracteriza o constitucionalismo
moderno, com especial atenção ao “tempo e o espaço subtraídos” na baía de Guantanamo
(PAIXÃO:2009, p.386) – mais do que um campo de prisioneiros de guerra, trata-se de um
espetáculo: “uma horrenda demonstração do que pode acontecer com os homens que
escolhem jogar fora das regras do jogo” (COETZEE:2008, p. 29). Como lugar de nãodireito, em que as violações de direitos humanos tornaram-se sistemáticas 5 , Guantanamo
seria, porém, apenas a expressão extrema de uma prática generalizada, eis que “o estado de
exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário”; a cultura
política do Ocidente teria perdido por inteiro, e sem dar-se conta, os princípios que a
fundam, precisamente no momento em que gostaria de dar lições de democracia a culturas
e tradições diferentes (AGAMBEN:2004, p.33) 6 .
4
Não que o terrorismo seja novidade histórica. É curioso ler, por exemplo, o início de um artigo publicado nos anos
1980, acerca do terror na obra de Camus: “O espectro do terrorismo assombra o mundo contemporâneo. As Brigadas
Vermelhas, o Bando de Baader, a FPLP, o ETA, o IRA, Carlos, Abou Nidal, sem esquecer os diversos esquadrões da
morte, fizeram deste final de século o tempo dos assassinos que Camus havia, com todas as suas forças, buscado
conjurar. O problema do terrorismo nele se situa na encruzilhada de um tema literário, o assassinato; de uma meditação
filosófica sobre os fins e os meios, a culpabilidade e a inocência, a legitimidade ou a ilegitimidade da violência; enfim,
uma reflexão política sobre a democracia e o totalitarismo” (GUÉRIN:1987, p. 39). Diga-se de passagem, a “piscadela”
da primeira frase está relacionada à crítica do marxismo que Guérin desenvolve naquele estudo.
5
“Alguém deveria fazer um balé com o título de Guantanamo, Guantanamo! Um grupo de prisioneiros acorrentados uns
aos outros pelos tornozelos, grossas mitenes de feltro nas mãos, protetores de orelhas, capuzes pretos na cabeça, faz a
dança dos perseguidos e desesperados. Em torno deles, guardas de fardas verde-oliva se empinam com demoníaca
energia e ânimo, aguilhões de gado e cassetetes em prontidão. Eles tocam os prisioneiros com os aguilhões e os
prisioneiros saltam; submetem e imobilizam os prisioneiros no chão, enfiam os cassetetes em seus ânus e os prisioneiros
têm espasmos. Num canto, um homem sobre pernas-de-pau com a máscara de Donald Rumsfeld alterna a escrita em seu
pódio com danças de pequenas gigas estáticas. Um dia, isso será feito, embora não por mim. Poderá até ser um sucesso
em Londres, Berlim e Nova York. Não terá qualquer efeito nas pessoas que são o seu alvo, que não ligam a mínima para
o que as platéias de dança pensam delas” (COETZEE:2008, p. 46).
6
A escolha de Agamben como marco teórico para o manuseio do estado de exceção no âmbito deste artigo não ignora as
críticas a sua polêmica tese. Por exemplo: “o direito, a exemplo da língua, não é fascista, e sim reacionário. Ele é
reacionário porque ele sempre vem „depois . Ele vem „depois de alguém „já ter decidido, depois de alguém „já ter
falado. Trata-se do paradoxo constitutivo do direito e da linguagem. A necessidade de „dizer algo, a necessidade de
„decidir algo, só existe porque alguém „já disse algo, porque alguém „já decidiu algo. A violência pura, não o foi o
direito quem criou, e sim o tempo. Porque o tempo destrói as possibilidades não consumadas. Ele decide que o passado
será irreversível. É então o tempo que é fascista, e não o direito, que sobrevém sempre „depois . Ora, „mostrar o
tempo, como propõe Agamben, não é um gesto político, mas um gesto contemplativo. O tempo passa e alguém „já
decidiu, e este é o limite insuperável de todo o pensamento anarquista. É também o que se chamava, no passado, a
realidade” (DUBREUIL:2004, p.202-3).
46
Com efeito, o paralelo entre a luta contra o terrorismo e o combate às pandemias
parece auspicioso e, embora não possa ser desenvolvido no modesto âmbito deste artigo,
vale ao menos esboçá-lo. A definição de terrorismo constitui o principal obstáculo às
negociações multilaterais em matéria de segurança: para alguns, sendo essencialmente uma
alcunha política, não se trata de um conceito juridicamente aceitável (SASSOLI: 2007,
p.32); para outros, “os atos de terrorismo são previstos, definidos e incriminados pelo
direito internacional” (DOUCET:2005, p.265). Todos reconhecem, porém, a extrema
sensibilidade do debate sobre os eventuais elementos constitutivos desta definição, com
destaque para o direito de resistência à ocupação estrangeira como excludente da
tipificação, ou a inclusão, como forma de terrorismo, do uso, pelo Estado, das forças
militares contra a população civil (idem, p.264). Ora, a depender do conceito, não somente
esta, mas um conjunto significativo de práticas estatais pode ser considerado como
terrorismo. Há, porém, uma diferença substancial entre o terror praticado pelo Estado e
aquele perpetrado por indivíduos ou grupos: enquanto o terrorismo de um grupo mata, o
terrorismo de Estado mata e tiraniza (GUÉRIN:1987, p.44). Ademais, enquanto o
terrorismo de um grupo se justifica no plano individual ou numa carta programática, o
terror de Estado toma para si a noção de interesse público, o que supostamente legitima o
desfrute do monopólio da violência legítima.
No cotejo entre o estado de exceção gerado pela luta contra o terrorismo e a
exceção fundada na pandemia, dois aspectos merecem maior destaque. Primeiro, uma
diferença: no caso do terrorismo, o modo como o Estado, ele mesmo, incute o terror na
população e pratica o terror contra os “adversários” que institui. Em geral, a pandemia
incute o terror na população por intermédio dos meios de comunicação, e secundariamente
pela via das religiões, quase sempre contra os interesses do Estado e do setor privado que,
em princípio, pouco teriam a ganhar com o pânico 7 .
Ocorre que tanto na exceção securitária quanto na sanitária pode haver um
“inimigo comum” que seria identificado como o portador do mal. Nas doutrinas de
segurança nacional, é fácil rotular o “comunista” ou o ator “ideológico” (sendo o Estado
supostamente “neutro”). No mundo pós-11 de setembro, teme-se a população muçulmana,
como se não existissem outros fundamentalismos, religiosos ou não. Em relação à peste,
ela parece, de início, uma abstração. Mais adiante, com a evolução da pandemia, o terreno
do medo passa a ser fértil para a estigmatização de estrangeiros (os mexicanos no início do
surto de gripe porcina, por exemplo, discriminados nos Estados Unidos como
“responsáveis” pela epidemia), de grupos de risco (como no caso da AIDS em relação aos
homossexuais) ou de profissões (carreiras da saúde; ou pessoas que trabalham em criação
de animais, no caso das gripes aviária e porcina). Salta aos olhos que a mobilização social
fundada no medo, tão contagioso quanto as doenças infecciosas, mostra-se incompatível
com a democracia, e produz efeitos nefastos a médio e longo prazo.
Ademais, parece haver algo em comum na força do argumento de restrição dos
direitos humanos em nome da preservação da vida, representada, em ambos os casos, pela
inconteste equação do predomínio da segurança ou da saúde pública, como interesse
coletivo, sobre os interesses individuais. Ora, o meio-ambiente, embora igualmente crucial
para a preservação da civilização, até então jamais justificou estados de exceção que
implicassem restrições extraordinárias de direitos. O aspecto econômico do fenômeno
pandêmico será mencionado ao final deste artigo; por ora, cabe ressaltar que tanto o
combate contra o terrorismo como a luta contra as pandemias constituem um valor
7
“É sem dúvida o descrédito das políticas que se soma, aqui, aos velhos espectros do envenenamento coletivo e da
contaminação mortal nas sociedades industriais cujos membros não conhecem mais a origem da maior parte do que
comem” (NAU:2005, p.2).
47
agregado significativo para duas das mais importantes indústrias no plano mundial: a
armamentista e a de medicamentos.
Logo, torna-se decisivo saber quem enuncia o interesse público na democracia.
Ocorre que, tanto na tutela da saúde como da segurança pública, a subsistência do estado
de necessidade pretensamente esgotaria o problema da legitimidade do estado de exceção,
tanto para quem considera que “a necessidade não conhece nenhuma lei”, como para quem
propugna que “a necessidade cria a sua própria lei” (AGAMBEN:2004, p.40). No entanto,
pensar a necessidade como situação objetiva seria de todo ingênuo: a necessidade, longe
de mostrar-se como um dado objetivo, implica claramente um juízo subjetivo: “necessárias
e excepcionais são, é evidente, apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como
tais” (idem, p.46).
3. Direito da urgência e da necessidade
“Sim, diz Rieux, é o mesmo enterro, mas hoje nós fazemos fichas. O progresso
é incontestável”
(CAMUS:1947, p.162).
Antes de mais nada, é preciso afirmar, sem hesitação – e numa radical oposição à
idéia de que a necessidade dispensa ou cria a lei – que certos direitos jamais poderão ser
objeto de suspensão: o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a um trato
humano, a proibição da escravidão, o princípio da não-retroatividade das leis, a liberdade
de consciência e religião, a proteção da família, o direito a um nome, os direitos das
crianças, o direito à nacionalidade, o direito de participar do governo e as garantias
judiciais essenciais, particularmente o habeas corpus e o mandado de segurança
(CIDH:2002,§52). A transigência no que concerne a estas prerrogativas desmente a razão
de ser do Direito; não mais se trata de ordem jurídica, e sim de medidas de arbítrio.
Desafortunadamente, a história mostra que mesmo os mais explicitamente anti-jurídicos
estados de exceção tiveram seus juristas de plantão, vorazes em travestir de norma o puro
terror.
No mesmo diapasão, o direito internacional, embora admita o estado de exceção,
preconiza o respeito, em qualquer caso, malgrado a excepcionalidade das circunstâncias,
dos seguintes princípios, enunciados em convenções internacionais ou consolidados na
jurisprudência internacional: legalidade – a possibilidade de decretação deve estar prevista
na Constituição; proclamação – medida pública sob a forma de uma declaração oficial
passível de controle interno, que descreva a situação excepcional em curso, o campo de
aplicação territorial, o período de duração, as medidas autorizadas e as interdições, e o
fundamento legal; notificação – endereçada à comunidade internacional como condição da
impossibilidade temporária de atendimento a dadas obrigações, atendidos os mesmos
requisitos da proclamação; transitoriedade – as medidas não podem tornar-se rotineiras e
devem limitar-se ao tempo estritamente imprescindível; ameaça excepcional – perigo
atual ou iminente que ameace toda a população de um Estado e própria existência
organizada da comunidade, diante do qual a ordem jurídica ordinária seja manifestamente
insuficiente; proporcionalidade – adequação entre as medidas adotadas e a gravidade da
crise; não discriminação – as restrições devem atingir igualmente a todos, e jamais visar
48
em particular a raça, cor, sexo, origem social, idioma ou religião; compatibilidade,
concordância e complementaridade com as normas internacionais (DESPOUY: 1997,
p. 15-25).
A Constituição brasileira prevê dois tipos de estado de exceção: o de defesa, “para
preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública
ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por
calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136, caput); e o de sítio, em caso de
“I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” ou de “II - declaração de estado
de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira” (art. 137) 8 . No Brasil, compete ao
Presidente da República decretar tanto o estado de defesa como o de sítio, ambos
controlados pelo Congresso Nacional: o primeiro a posteriori (o Presidente submete-lhe a
decretação em 24 horas), o segundo a priori (o Congresso autoriza e mantém-se reunido
durante todo o período do estado de sítio).
Ora, não se pode imaginar uma noção de ordem pública que exclua a saúde 9 . No
entanto, ainda falta no direito brasileiro a regulamentação específica sobre situações
especiais vinculadas à saúde pública 10 . Se é verdade que as medidas tomadas durante um
estado de emergência são autoritárias, também o é que o interesse coletivo deve primar,
em princípio, sobre o interesse individual em caso de colisão. O autoritarismo inaceitável
seria, então, a recusa de debater a exceção antes que ela ocorresse. Via de conseqüência,
pensar o regime excepcional da urgência sanitária de modo democrático é fazer o esforço
de imaginar meios de enquadrar democraticamente as necessárias restrições
(KOROLITSKI:2007, p. 36).
Como medir, porém, a necessidade e a excepcionalidade na seara sanitária, quando
se leva em conta que “a saúde terá sempre um conceito próprio em cada comunidade”
(DALLARI: 2009, p. 99) e que, na maior parte das Constituições, a saúde pública é gerida
por entes federativos concorrentes? A gestão em saúde torna-se inviável num quadro de
concentração de poder, tanto no que atine à relação entre Estado e sociedade 11 , como no
8
No estado de sítio, admite a Constituição Federal restrições aos direitos de: “a) reunião, ainda que exercida no seio das
associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; II - ocupação e uso
temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos
decorrentes” (art. 136). No estado de defesa, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: “I obrigação de permanência em localidade determinada; II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados
por crimes comuns; III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à
prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV - suspensão da
liberdade de reunião; V - busca e apreensão em domicílio; VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; VII requisição de bens (art. 139).
9
Originário do direito administrativo francês, e de extrema subjetividade, o conceito de ordem pública é utilizado, com
matizes diversos, por também variados ramos do direito. “A expressão ordem pública representa os elementos
fundamentais que ligam e unificam todo sistema legal. Representa o interesse social do conjunto da sociedade e deriva
das fundações culturais e morais da sociedade. (...) Comumente, o conceito de ordem pública é usado pelos países em
direito interno e em direito internacional privado (...). A ordem pública em direito internacional público foi contestada
durante muitos anos; ela é hoje aceita como parte da evolução do direito constitucional internacional” (WEBER:2009,
p.61).
10
“O dilema de regulamentar ou não as restrições aos direitos humanos evoca o duplo paradigma que atinge o campo do
direito por uma ambigüidade essencial. De um lado, há uma tendência normativa, em sentido estrito, que visa a
cristalizar-se num sistema rígido de normas cuja conexão com a vida é, porém, problemática, senão impossível (o estado
perfeito de direito, em que tudo é regulado por normas). De outro lado, uma tendência anômica que desemboca no estado
de exceção ou na idéia do soberano como lei viva, em que uma força de lei privada de norma age como pura inclusão da
vida” (AGAMBEN:2004,p. 111). A palavra lei é propositadamente riscada pelo filósofo, que denuncia “a força de lei
separada da lei, o imperium flutuante, a vigência sem aplicação e, de modo mais geral, a idéia de uma espécie de „grau
zero da lei, são algumas das tantas ficções por meio das quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e
apropriar-se do estado de exceção ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com ele” (idem, p.80).
11
Há um imenso desnível entre a opinião pública e a dos especialistas. Segundo um estudo da Comissão Européia, no
qual foram entrevistados 600 profissionais de diversas áreas e nacionalidades, as doenças infecciosas constituem a
49
que diz respeito às decisões tomadas pelas diferentes pastas do Executivo e, sobretudo, por
diferentes esferas de governo 12 . O Plano Brasileiro de Preparação para uma Pandemia de
Influenza refere diretamente a necessidade de “criar mecanismos de articulação e
cooperação entre os entes federativos para que estes possam, em eventuais situações de
emergência, implementar ações rápidas de controle de epidemias. Esses mecanismos
devem prever formas de atuação complementar da União para quando os demais entes
federativos não forem capazes de conter as epidemias existentes, tendo em vista o risco
que o alastramento poderia provocar para toda a sociedade brasileira” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE:2006, p.146).
No entanto, o trecho do Plano brasileiro que mais chama a atenção é aquele que
propugna a criação de um “Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica”, em
detrimento das tendências de ausência de regulação ou da regulação mínima – por
exemplo, a edição de uma lei específica ou, ainda pior, um ato normativo do Poder
Executivo sobre quarentena ou outra sobre fechamento de fronteiras. No mesmo diapasão,
o Plano reputa “necessário prever, para a tomada de decisões em situações de emergência
epidemiológica, procedimentos e órgãos decisórios democráticos”, harmonizando a
atuação dos fóruns já existentes e criando um órgão representativo específico que reúna
não somente agentes do governo como também representantes da sociedade civil:
“médicos, advogados, usuários do sistema, cidadãos representativos, etc.” (idem).
Na falta deste sistema e de uma discussão nacional a este respeito13 , prossegue em
vigor a Lei 6.259, de 30 de outubro de 1975, incipiente e anacrônica em relação à
vigilância epidemiológica em geral, e silente no que atine às restrições a direitos
fundamentais. Um dos piores efeitos da pandemia gripal vivida atualmente poderia ser,
então, o de levar o governo federal, sob a pressão do aumento de número de casos graves,
a anunciar uma norma sobre exceção desvinculada de uma compreensão global do
problema da vigilância epidemiológica, e particularmente do reconhecimento da
necessidade de criar uma estrutura eficaz de prevenção e combate às epidemias, da qual as
normas sobre restrição de direitos são apenas um recurso extremo 14 .
A omissão do direito interno é ainda mais grave na medida em que se conforma, no
plano internacional, um direito de ingerência sanitária. O reconhecimento da existência de
uma pandemia, que pode vir a fundar medidas excepcionais, depende de uma engrenagem
complexa entre os Estados e a Organização Mundial da Saúde (OMS). A principal razão
de existir da OMS é “administrar o regime mundial de luta contra a propagação
internacional das doenças”, como preconiza o Preâmbulo do Regulamento Sanitário
primeira urgência internacional, maior até que o terrorismo; paradoxalmente, todos, menos o “grande público”, estão
conscientes das possíveis conseqüências de uma epidemia de gripe que seria capaz de fazer mais vítimas do que a gripe
espanhola de 1918 (MORDINI:2007, p.23
12
Note-se que “o real problema da descentralização ocorrida pós-1988 é a falta de planejamento, coordenação e
cooperação entre os entes federados e a União, ou seja, a falta de efetividade da própria Constituição e do federalismo
nela previsto” (BERCOVICI:2004, p.72).
13
Em 2006, o Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário (CEPEDISA) da Universidade de São Paulo
apresentou, a pedido do Ministério da Saúde, um anteprojeto de “Lei das Emergências de Saúde Pública de Relevância
Nacional”, que foi discutido em alguns âmbitos acadêmicos e de governo, mas hoje parece estar fora da pauta da crise
pandêmica. Para Maria Célia Delduque, da Fundação Osvaldo Cruz, caso aprovado aquele anteprojeto de lei, o Estado
poderia “saber quem são os cidadãos que estão sofrendo medidas sanitárias, a fim de garantir que não aconteçam
abusos”; para Sueli Dallari, do CEPEDISA, “na hora em que você determina quais são as garantias e fixa um
procedimento para que a autoridade possa tomar determinadas atitudes, as pessoas passam a ter os seus direitos mais
garantidos, o que não acontece na lei hoje” (LÔBO:2007).
14
Por exemplo, a Defensoria Pública da União anunciou, no Rio de Janeiro, em 23 de julho de 2009, a propositura de
uma ação civil pública contra a União, o Estado e o Município do Rio Janeiro, por omissão na prevenção e combate à
epidemia de gripe A(H1N1), sob o argumento de que o atendimento prestado pelo “serviço público de saúde do Rio foi
precário desde os primeiros sinais da doença no estado, prejudicando centenas de pessoas e contribuindo para a
proliferação da epidemia e as mortes” (BASTOS:2009).
50
Internacional (RSI). A decisão sobre a existência de uma “urgência de saúde pública de
alcance internacional” compete à Organização Mundial da Saúde, de acordo com o
procedimento previsto pelo Regulamento Sanitário Internacional, revisado em 2005
(particularmente o artigo 12 e o Anexo 2). O anexo 2 do Regulamento contém um
“instrumento de decisão que permite avaliar e notificar eventos que possam constituir uma
urgência de saúde pública internacional”, baseado essencialmente nas seguintes perguntas:
as repercussões do evento sobre a saúde pública são graves? O evento é inabitual ou
inesperado? Há um risco importante de propagação internacional? Há um risco importante
de restrição a viagens internacionais ou ao comércio internacional?
Uma vez declarada uma situação de urgência de saúde pública de alcance
internacional, um sistema de identificação de fases permite mensurar tanto a gravidade de
uma pandemia como das medidas que a ela respondem 15 . As recomendações da OMS,
previstas no Título III do RSI, podem ser temporárias ou permanentes. As temporárias
concernem medidas sanitárias que devem ser aplicadas pelo(s) Estado(s) Parte(s) “no que
concerne às pessoas, às bagagens, cargas, containers, meios de transporte, mercadorias
e/ou embalagens postais, para prevenir ou reduzir a propagação da enfermidade e evitar
todo entrave inútil ao tráfico internacional” (art. 15.1 RSI).
Assim, uma das peculiaridades do estado de exceção justificado pela pandemia é
precisamente o fato de que sua decretação depende de um procedimento de cooperação
internacional. A OMS depende da notificação dos Estados para a decretação de uma
urgência, mas opera uma nítida ingerência em seus assuntos, em nome do interesse público
mundial, no combate a esta mesma urgência. O campo de disputa política do qual resulta a
regulamentação destas situações excepcionais, via de conseqüência, excede largamente a
dimensão nacional, configurando um problema transconstitucional 16 , cujo deslinde, via de
regra, acaba por depender do recurso à jurisdição.
No plano interno, mas de modo crescente também pela via da jurisdição
internacional – especialmente dos tribunais regionais de direitos humanos –, os juízes
devem cumprir o papel fundamental de fiscalizar a aplicação dos princípios que coíbem o
uso abusivo de medidas de exceção. Não se pode negar aos magistrados o poder de
questionar os motivos que levam os Estados a suspender direitos, tampouco o de valorar a
justa adequação entre as medidas adotadas e a gravidade da situação, além de declarar a
ilegalidade das medidas que se baseiem exclusivamente em motivos discriminatórios
(DESPOUY: 2008, p. 7-8).
No caso específico das pandemias, as principais questões que se colocam aos juízes
parecem estar relacionadas às prioridades de tratamento. Seria equitativo que as
populações de risco, não raro as pessoas mais vulneráveis, fossem desprezadas em
benefício daqueles que dispõem dos meios para se proteger e eventualmente de tratar-se?
15
“A determinação de fases em uma pandemia é uma iniciativa que a Organização Mundial da Saúde desenvolveu para a
Influenza a partir de um grupo de peritos no assunto. Temos a Fase 1, caracterizada pela detecção da existência do vírus
circulando em animais, mas sem relatos em humanos. Foi o que aconteceu com as pequenas epidemias em criação de
porcos, principalmente nos EUA. A Fase 2 significa que o vírus apresentou modificações que podem infectar humanos.
A Fase 3 caracteriza infecção em humanos sem transmissão de pessoa a pessoa. A Fase 4 é decretada quando há
transmissão de pessoa a pessoa. A Fase 5 também representa transmissão de pessoa a pessoa, mas em pelo menos dois
países de uma mesma região da OMS. E a fase 6 significa que essa transmissão ocorreu em pelo menos mais um país de
uma outra região da OMS em adição à Fase 5” (MEDRONHO:2009).
16
“Cada vez mais, problemas de direitos humanos ou fundamentais e de controle e limitação do poder tornam-se
concomitantemente relevantes para mais de uma ordem jurídica, muitas vezes não estatais, que são chamadas ou instadas
a oferecer respostas para a sua solução. Isso implica uma relação transversal permanente entre ordens jurídicas em torno
de problemas comuns. (...) Em face dessa situação, introduzo o conceito de transconstitucionalismo. Não se trata,
portanto, de constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. O conceito aponta
exatamente para o desenvolvimento de problemas jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas”
(NEVES:2009, p.XV).
51
O controle das decisões do Poder Executivo pela autoridade judiciária poderia ser
descartado em nome da maior eficácia do dispositivo de luta contra pandemia, em
detrimento do respeito às liberdades públicas? Finalmente, “como prevenir sem excluir”?
(MAGENDIE:2007, p.7).
52
4. Considerações finais: a multiplicação geométrica da desigualdade
“Nos países pobres, onde os sistemas de saúde normalmente são frágeis, temese que morra um grande número de doentes que, se tratados, poderiam ser
salvos. (...) Hoje nós temos um nível de informação bem avançado em matéria
sanitária, e todos saberão que os ricos terão deliberadamente deixado morrer
milhões de pobres”
(DERENNE:2009).
Face aos perigos sanitários, a democracia não pode deixar de tomar um partido
ético que consiste em colocar o homem no centro de todas as decisões e de defender sua
humanidade (SLEDZIEWSKI: 2007, p.14). No entanto, nas últimas décadas, as redes de
poder foram deslocadas para o campo da administração macroeconômica global. Ao abrir
mão do controle das políticas monetária e fiscal, os Estados operaram uma “erosão da
autoridade pública e o esgarçamento da solidariedade nacional, despolitizando
radicalmente as relações econômicas e reduzindo ao mínimo a vida democrática”,
particularmente nos países periféricos, lançados a um “estado de exceção econômico
permanente” (BERCOVICI:2006, p. 98).
A saúde pública constitui, sem dúvida alguma, um campo privilegiado para o
estudo dos efeitos nefastos da globalização econômica. A situação sanitária internacional
revela um desolador quadro de subsistência de enfermidades devidas exclusivamente à
pobreza. As pandemias gripais recentes costuram uma frágil intersecção entre ricos e
pobres, pouco favorável aos segundos:
“Por ser um vírus novo, a suscetibilidade da população é total e em
escala mundial. Claro que temos outras preocupações no nosso campo no
hemisfério Sul, e que também são muito graves. Mas quando a imprensa
começa a contar os casos confirmados, acaba causando temor na
população. Costumo perguntar aos jornalistas que me procuram porque
não contar os casos de óbitos por tuberculose no Brasil. São cerca de
cinco mil por ano, o que dá a média de 12 a 14 casos por dia. Imagine ter
diariamente na primeira página dos jornais que os casos de tuberculose
aumentam cada dia. Fico imaginando que impacto isso teria do ponto de
vista do controle da doença, pois isso significaria uma relativa redução
deste grave problema de saúde pública. Claro que a tuberculose não é
uma ameaça às classes dominantes; é uma doença que fica muito oculta
na
sociedade,
atingindo
as
classes
menos
favorecidas”
(MEDRONHO:2006).
Por tudo isto, o debate público sobre as pandemias deveria abranger os efeitos da
exclusão econômica sobre a origem da propagação e acerca do combate à doença 17 . Na
17
Um dos primeiros títulos que Camus imaginou para “A Peste” foi “Os Exilados”; o título que ele atribuiu a um extrato
que publicou do livro foi “Os Exilados na Peste” – de fato, durante todo o romance, ele insiste na idéia de separação
(GRENIER:1987, p.177). Esta idéia pode ser trabalhada sob diversos ângulos, entre eles o do duplo isolamento imposto
aos desvalidos: “As famílias pobres encontravam-se, assim, numa situação muito penosa, mas às famílias ricas quase
nada faltava. Enquanto a peste, pela imparcialidade eficaz que trazia em sua obra deveria ter reforçado a igualdade entre
os cidadãos, pelo jogo normal dos egoísmos, ao contrário, ela tornava mais agudo no coração dos homens o sentimento
de injustiça. Restava, evidentemente, a igualdade impecável da morte, mas esta ninguém queria. Os pobres, que sofriam a
fome, pensavam, com ainda maior nostalgia, nas cidades e nos campos vizinhos, onde a vida era livre e onde o pão não
era caro. Porque eles não podiam alimentar-se suficientemente, eles tinham o sentimento, aliás pouco razoável, de que
53
relação entre o mundo desenvolvido e o em via de desenvolvimento, destaca-se a questão
das patentes de vacinas e medicamentos:
“Uma outra pergunta que falta, na reflexão existente, tem a ver com
questões relacionadas à pesquisa, à produção e às patentes. Existe um
único antiviral que é medianamente efetivo contra a influenza. Ele é
produzido pela Roche e ela não tem capacidade sequer de produzir
vacina suficiente se a gripe vier daqui a um ano e meio ou dois. Se isso
acontecer, o Brasil vai ter que decidir se quebra a patente, e não podemos
pensar que é um problema ético ou político, pois é um problema de
sobrevivência de cerca de seis milhões de brasileiros. Não podemos
tomar a decisão de quebrar ou não a patente quando a pandemia já
estiver instalada.” (CHAIMOVICH:2005, p. 263).
Diante da atual propagação da enfermidade, a fim de coibir um movimento político
em direção à quebra da patente do medicamento acima referido, a principal empresa
fabricante deflagrou uma ofensiva de comunicação, com respaldo amplo da OMS. A
transnacional doou 5,65 milhões de tratamentos à organização; criou, igualmente, um
“programa” para facilitar o acesso dos países em via de desenvolvimento (PVD) ao
medicamento, que compreende a diferenciação do preço entre países desenvolvidos e PVD
(ROCHE:2009, p.1)18. Ora, quando o mundo desenvolvido convencionou, à época da
negociação dos acordos da Organização Mundial de Comércio, a possibilidade de quebra
de patentes de medicamentos19, poderia haver hipótese que melhor configurasse a sua
necessidade do que as pandemias?
O movimento político das organizações de direitos humanos vinculadas à
prevenção e combate à AIDS muito ensinou à sociedade sobre o compromisso e a
resistência em nome do bem comum. Para numerosos atores sociais, os governos deveriam
apostar na democracia participativa na gestão das crises, convocando “estados gerais” que
permitam afirmar publicamente os valores democráticos a inspirar as decisões em matéria
de saúde pública (HIRSCH: 2006, p.2). Quando as pandemias convertem-se em tema de
especialistas, e as decisões das instituições se deixam pautar por interesses privados,
embora as populações desfavorecidas portem um fardo bem pesado diante da catástrofe, é
a sociedade em seu conjunto que sai de uma crise sanitária ainda mais fragmentada
(DAB:2007, p.21-2).
Estas considerações embrionárias sobre a relação entre pandemias e direito
evocam, acima de tudo, a “distração” da academia no que concerne ao profundo debate
suscitado pelo risco, capaz, talvez, de devolver ao homem a consciência de que seu destino
não se resolve na pretensamente redentora dimensão individual. Bem ao contrário,
depende de uma dimensão coletiva a reconstruir:
“cada um a porta em si, a peste, porque ninguém, não, ninguém no
mundo é a ela indene. E é preciso cuidar-se incessantemente para não ser
levado, num minuto de distração, a respirar no rosto de outro e nele colar
a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade,
a pureza, como queira, é efeito da vontade e de uma vontade que não
deve cessar jamais. O bom homem, aquele que não infecta quase
ninguém, é aquele que tem a menor distração possível” (CAMUS:1947,
p.228).
deveriam deixá-los partir. Tanto que uma palavra de ordem havia terminado por grassar e se lia, às vezes, nas paredes, ou
se gritava, outras vezes, à passagem do Prefeito: „ou pão, ou ar ” (CAMUS:1947, p. 214-5).
54
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57
TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO EM
CONDIÇÃO ANÁLOGA Á DE ESCRAVO
Denise Pasello Valente Novais
Advogada, Mestre e Doutora em direito do trabalho pela USP
A palestra aborda os resultados de estudo realizado em tese de doutoramento na
Universidade de São Paulo sobre o tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho
em condição análoga à de escravo, trazendo como exemplo a situação de trabalhadores
bolivianos na cidade de São Paulo.
Tráfico de migrantes x tráfico de pessoas.
O tráfico de pessoas e o tráfico de migrantes são regulados por Protocolos
adicionais à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
conhecida por Convenção de Palermo.
Para o Protocolo, o tráfico de migrantes significa: o ato de promover a entrada
ilegal de uma pessoa num Estado-Parte do qual ela não seja nacional ou residente, com o
objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou material. O
fenômeno se verifica quando uma pessoa é transportada consensualmente a outro país,
por intermédio de um terceiro, por meios ilegais. A utilização do intermediário se
justifica porque esse migrante não reúne os requisitos necessários para o ingresso regular
no país (por exemplo, o visto). No tráfico de migrantes há, essencialmente, o
consentimento da vítima, que pactua com o intermediário o transporte até o destino
pretendido. Por essa tarefa o intermediário aufere, direta ou indiretamente, vantagens
econômicas. É o caso típico do coiote, cuja atividade se esgota no traslado. Assim é que o
tráfico de migrantes consiste, essencialmente, em infração à legislação migratória, uma
forma de facilitação da migração irregular.
O tráfico de pessoas é absolutamente distinto. O Protocolo o define como o
recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas,
recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude,
ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade, para fins de
exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou
outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou
práticas similares à escravatura, à servidão ou à remoção de órgãos (artigo 3º, a). O tráfico
de pessoas tem por finalidade a exploração da vítima. É portanto uma grave violação aos
Direitos Humanos. Ele pode implicar o traslado da vítima de um país para outro pelos
traficantes (tráfico internacional), mas pode ocorrer dentro de um mesmo país (tráfico
interno).
58
O tráfico de pessoas se processa pelas seguintes etapas: (i) captação dos migrantes
em seus locais de origem, (ii) transporte / traslado da vítima, (iii) inserção e integração nos
locais de destino.
Muitos governos respondem ao problema do tráfico de pessoas com maior rigidez
de seu controle migratório, medida que, além de não resolver o problema do tráfico de
pessoas (já que o migrante vítima do tráfico de pessoas também pode ingressar
regularmente em um país), geralmente aumenta a rentabilidade dos grupos traficantes (que
envidarão maiores esforços e, consequentemente, cobrarão quantias mais vultosas para
romper as barreiras).
Tráfico de bolivianos para exploração do trabalho em situação análoga a de escravo
No caso dos bolivianos, o estudo constatou que o tráfico de pessoas se processa da
seguinte forma:
(i) captação do migrante em seu país de origem
As ofertas de emprego em São Paulo são veiculadas em estações de rádio e jornais,
em cidades como La Paz e Santa Cruz, que anunciam esse tipo de trabalho e, abusando da
situação de vulnerabilidade, induzem os bolivianos a acreditar que suas vidas serão
imensamente melhores, com salários altos (e em dólar), alimentação e moradia garantidos.
(ii) transporte / traslado
As principais portas de entrada no Brasil são: Corumbá (Mato Grosso do Sul),
Cáceres (Mato Grosso) e Guajará-Mirim (Rondônia). Quando utilizado o ingresso via
Paraguai, o tráfico tem pontos de referência, denominados “ninhos”, onde as pessoas são
deixadas aguardando o momento exato para atravessar a fronteira. O ninho é, via de regra,
um apartamento alugado, onde moram de 10 até 40 pessoas. Muitas vezes, esses migrantes
ficam sem comida, sem água, em total precariedade. Dos ninhos, os imigrantes são levados
para atravessar a fronteira do Paraguai, em Foz do Iguaçu. No lado brasileiro, um ônibus
os aguarda e os conduz até São Paulo, onde já têm o lugar certo para se dirigirem.
(iii) inserção e integração no país de destino
É quando chegam aqui que os imigrantes se dão conta do engano a que foram
submetidos. A exploração do trabalho se concretiza das seguintes formas:
a) condições degradantes de trabalho
A moradia dos costureiros é a oficina de costura, ou seja, o mesmo lugar onde
trabalham o dia inteiro, fazem suas refeições e dormem. Os colchonetes são estendidos
embaixo das máquinas, e neles as crianças dormem durante o dia, enquanto os pais
trabalham. Nessas oficinas, as instalações elétricas são precárias. Há, inclusive, material
inflamável armazenado próximo da fiação exposta. Não há muita higiene, o que é fácil de
se imaginar sobre um lugar que serve, ao mesmo tempo, de moradia e trabalho. Os
banheiros são em número insuficiente para atender o contingente de pessoas e possuem
péssimas condições de higiene.
59
Muitas oficinas operam com as janelas fechadas, para camuflar sua situação de
irregularidade. A falta de ventilação adequada aumenta o desconforto e a possibilidade de
transmissão de doenças, como a tuberculose, que tem alta incidência na comunidade.
A alimentação fornecida – e descontada do pagamento – é pobre em nutrientes, o
que debilita ainda mais os trabalhadores.
b) submissão à jornada de trabalho exaustiva
O pagamento da remuneração é normalmente feito exclusivamente por produção.
Assim, o salário dependerá da quantidade de peças que o trabalhador for capaz de produzir
em um mês. O preço pago por peça varia de acordo com a complexidade da roupa. Para se
ter uma ideia, de acordo com tabela fornecida pela Associação Cultural Bolívia-Brasil
(Bolbra), os preços mínimos a serem cobrados pelos donos de oficinas de costura, quando
as peças são costuradas em malha, são: blusa básica (R$ 2,00), calça legging (R$ 1,50),
saia (R$ 2,00). O costureiro recebe, em média, por cada peça produzida, valor não superior
a 10% do valor recebido pelo dono da oficina de costura, o que representa quantia ínfima.
Justamente por conta da forma de pagamento (exclusivamente por produção), e
considerando o ínfimo valor recebido por cada peça produzida, a jornada de trabalho
dos(as) costureiros(as) é extenuante, chegando a 18 horas por dia.
As longas horas de trabalho, associadas às péssimas condições de higiene e
segurança verificadas nas oficinas, fazem com que a jornada seja não apenas excessiva,
mas verdadeiramente exaustiva.
c) servidão por dívidas
Os custos da viagem são superdimensionados e o pagamento pelo trabalho é
irrisório. A dívida se avoluma e cria uma relação de dependência entre contratador e
contratado difícil de ser rompida.
d) cerceamento de liberdade
O cerceamento da liberdade se processa por diversos meios: as oficinas ficam
trancadas, os documentos e pagamentos são retidos e, em casos mais extremos, há o
emprego da violência física.
Embora não muito frequentes, existem casos extremos em que se mantém
vigilância armada no local de trabalho. O uso da violência física também não é recorrente,
mas há relatos dando conta de abusos nesse sentido.
A dinâmica acima descrita evidencia com clareza a ocorrência do tráfico de pessoas
para exploração do trabalho em condições análogas à de escravo.
A situação dos bolivianos foi, durante muito tempo, agravada pela situação de
irregularidade que vivenciavam. O medo da deportação e a situação de clandestinidade os
impediam de buscar auxílio e os aprisionava em verdadeiros guetos. Justamente por conta
disso, e a par do cenário de exploração, foi editada a lei de anistia geral, em 2009. Ainda
não é possível mensurar os impactos da regularização de parcela dos bolivianos. A anistia
também não é garantia de que a exploração cessará. Ademais, sempre haverá mais e novos
migrantes.
60
Mecanismos de prevenção e enfrentamento do tráfico
Embora o tráfico de pessoas seja oficialmente reconhecido no Brasil, haja vista a
Política e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a legislação interna
sobre o assunto ainda é incipiente, pois não contempla, no aspecto penal, o crime de tráfico
de pessoas para exploração do trabalho. Mas se não há, por ora, mecanismos de punição
pelo crime em si, existe, todavia, aparato que permite a reparação do efeito do tráfico, que
é a exploração de trabalho em condição análoga à de escravo.
Considerando a ausência de regulação específica para a vítima do tráfico de
pessoas, sob a perspectiva trabalhista, as medidas aplicáveis deverão ser as mesmas das
vítimas do trabalho escravo. Deve a Justiça do Trabalho reconhecer tratar-se de
modalidade de trabalho proibido (e não ilícito) e, consequentemente, garantir efeitos
jurídicos a esse contrato de trabalho. É verdade que a mera percepção das verbas
trabalhistas não é uma verdadeira ação de enfrentamento do problema, mas ao menos
minimiza a exploração sofrida pelo trabalhador.
O Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego exercem
importante papel no que diz respeito à proteção da vítima. Atualmente, várias são as ações
empregadas no que diz respeito ao tráfico de pessoas para exploração dos migrantes
bolivianos, como são inúmeros os Termos de Ajuste de Condutas firmados, justamente
com o propósito de diminuir a precariedade do trabalho na cadeia produtiva do setor têxtil.
61
INSERÇÃO INTERNACIONAL BRASILEIRA:
DICOTOMIA: EMERGENTES / 1º MUNDO
INSTRUMENTOS JURÍDICOS E DIREITO COMPARADO
Francisco Pedro Jucá
Juiz do Trabalho
Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo
Professor Universitário
O tema proposto: “O BRASIL NO MUNDO” onde se insere a abordagem que se
ousa fazer, nos leva a considerar o tema em quatro aspectos, a saber: Modernidade e
Globalização; Globalização e Direito; e, Direito e Relações Internacionais. A reflexão
sobre estes três aspectos é que nos conduzem ao quarto que é a Inserção brasileira no
panorama Internacional, no contexto da dicotomia: Emergentes X 1º Mundo.
A abordagem é oportuna, pertinente, desafiadora. A proposta do congresso estou
convencido de que é uma contribuição importante para a compreensão do quadro atual que
vivemos, com toda a sua multifariedade e complexidade.
A posição do nosso País no concerto mundial vem sendo alterada substancialmente
nos últimos anos. Ainda não deixou completamente a condição de economia periférica,
todavia vem caminhando fortemente em direção ao centro. Concordem alguns ou não. São
fatos.
O reequilíbrio econômico iniciado na metade dos anos 90, com a ordenação das
contas públicas abriu espaço para nova etapa de modernização econômica, tanto na
incorporação tecnológica, quanto organizacional e de gestão, o que levou o Brasil a novo
posicionamento no contexto mundial.
É fato que o crescimento da demanda de “comodities”, pela incorporação ao
mercado consumidor delas de parcelas gigantescas da população mundial ao processo,
aumentou significativamente o mercado, tanto em preço como em volume, e, a capacidade
brasileira de fornecer tais produtos serviu de empuxo para expansão econômica.
Vivemos um tempo de expansão onde se destaca a incorporação de fatias cada vez
maiores da população brasileira ao mercado consumidor, o que o fortalece e estabiliza a
economia nacional, que se vem consolidando em fundamentos sólidos, convertendo a seu
turno o País em mercado atraente para investimentos da comunidade internacional,
carreando aporte da capitais à nossa economia, onde o capital volátil restrito ao âmbito
financeiro vem cedendo espaço para o capital produtivo, em todos os setores.
A consolidação deste processo vem dando cada vez maior protagonismo ao Brasil
nas relações internacionais, isto também é inegável.
62
Tudo isto acontece no pano de fundo da globalização (economia: produção,
circulação, mercado, investimentos e interesses corporativos) considerados sob a ótica do
conjunto, daí decorrendo dois fenômenos importantes: a interdependência econômica e o
fortalecimento das relações internacionais institucionais.
Ainda existem repartições no mundo, e destacamos especialmente dois subsistemas
relevantes: o 1º Mundo, o Grupo das Maiores Economias de um lado, e, o conjunto dos
Países em Processo de Desenvolvimento, chamados de emergentes. Novas afinidades e
interesses complementares se formam e crescem em ambos os lados, ainda que não se
possa considerar a formação propriamente de Blocos.
A consequência natural é a mudança do diálogo entre os dois lados, o reequilíbrio
das relações entre eles. Nesta nova etapa do processo de diálogo, tais economias e países
que caminham da periferia para o centro, como é o caso do Brasil, ganham novos papéis
no contexto internacional.
Tal quadro se força com a ocorrência da crise atual que bate duro no mundo
europeu, enfrentando dificuldades de liquidez e crédito, gerando desequilíbrio de contas e
balanço de pagamentos, impondo intervenção cooperativa para preservar o sistema
financeiro, sem dúvida abalado.
Neste quadro o papel já desempenhado pelos Emergentes vem sendo decisivo para
o salvamento do sistema, seja por melhor situação estrutural e conjuntural das suas
economias vem funcionando como válvula ou zona de escape, área de respiro.
Neste contexto, novo panorama das relações internacionais se vai formando, é
verdade que ainda desconhecido na sua totalidade.
Aí se abre o espaço para a contribuição do Direito a este processo. Este precisa
ajustar-se, adaptar-se, tanto conceitual, quanto normativamente aos novos tempos. Ganhar
a capacidade de ferramenta para atender aos novos problemas, romper com modelos
tradicionais, mas insuficientes para as novas demandas.
O que se vislumbra nesta etapa é um “risorgimento” do Direito Internacional e das
instâncias jurídico-políticas internacionais, desafiando a criatividade e a capacidade
criadora de todos.
No âmbito do direito interno igualmente tal se impõe. Urge ajustar a ordem jurídica
aos novos tempos, considerar, acolher e fazer prevalecer a tendência universal do
privilégio aos direitos fundamentais, o vetor do humanismo jurídico (ainda que haja todo
um longo caminho a percorrer).
Além destas demandas, crescem a nosso ver, a necessidade compatibilização
legislativa, harmonização legislativa, estabelecimento de normas supra-nacionais, estas
ainda que restritas e específicas.
O Estado contemporâneo, organizado pelo direito, ganha novos contornos e novas
tarefas. O direito público precisa ganhar novos institutos. A equação das relações entre
governantes e governados se altera e, cada vez mais, a hierarquização é substituída pela
coordenação. Novos atores políticos e institucionais ganham espaço, como as categorias
apontadas por Touraine estudando a Pós-Modernidade: as corporações e os consumidores,
desbordando, assim, a moldura jurídica tradicional, impondo novos paradigmas e
referências.
63
Tudo quase lembra Huxley e o “Admirável Mundo Novo”, ainda que nessa
“novidade” nem tudo sejam flores e bem querer. Até para o que não é, são demandadas
novas estruturas normativas. Os avanços e recuos, altos e baixos do processo econômico,
cada vez mais veloz e variável, o vem impondo.
O quem ontem era sonho, miragem, devaneio, ganha a condição de realidade
dura,que precisa ser enfrentada, exigindo novas competências, diversas das tradicionais, e
isto alcança necessariamente o direito.
Este é o rumo das coisas em nossos dias. Problemas como da Grécia e outros países
da zona do Euro, vivendo déficits preocupantes em relação aos seus PIBs, a fragilização da
liquidez pela dificuldade de sustentação do crédito. As dificuldades de expansão
econômica capazes de manter mercado de trabalho em níveis mínimos compatíveis com a
sustentabilidade de um mercado. Tudo se entrelaça. Cada vez mais as divisões entre o
Direito, a Economia e a Política, entre os diversos ramos do direito, antes tão claros e
esquemáticos, mudam de contorno e quase desaparecem, mudam de papel.
É o enfrentar deste quadro que nos vai permitir compreender a inserção
internacional dos Países no concerto mundial e os novos papéis do Direito.
1. Modernidade e Globalização
O ponto de partida da reflexão é a existência de relação essencial entre a
Modernidade e a Globalização, entendendo-se que a primeira é decorrente e, ao mesmo
tempo, geradora da mutação ensejada pela terceira revolução, a tecnológica, que se marca
pelo padrão de sociedade da informática, a qual tem a característica da mutação
permanente e em velocidade e ritmo intenso. Portanto, a contemporaneidade é uma época
de mutações velozes e profundas - é o tempo da velocidade mutacional - onde, como
sugere Hobsbawm:
"A destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que
vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos
fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase
todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem
qualquer espécie de passado público da época em que vivem." 18
Superada a revolução mecânica, está em curso a revolução decorrente da
tecnologia, da mecatrônica, da cibernética e da robótica, o que provoca mudança
substancial na Economia.
À semelhança da Revolução Industrial, onde a tecnologia de então, contemplando a
economia de escala e a linha de produção, impôs a formação de grande massa de capital e
mão-de-obra concentrados para alcançar seus objetivos, o processo atual demanda
concentração muitíssimo maior de todos os insumos.
18
Eric Hobsbawm, Era dos Extremos. São Paulo: Cia. das Letras, l.995, p. l3.
64
O volume e a escala da produção impoem a ultrapassagem das fronteiras
geopolíticas; e o capital deste Sistema Produtivo dos novos tempos rompe com a idéia de
nacionalidade, passando a ter vida própria. O imperativo do processo econômico é o
alargamento do sistema e subsistemas de produção e consumo, inerentes ao processo e
modo de produção decorrentes da tecnologia disponível e em uso.
Alain Touraine, na sua "Crítica da Modernidade", vislumbra o tripé em que está
assentado o presente e se projeta o futuro: nação, empresa e consumidor, com nova feição
e novo papel, como observa: "A sociedade moderna ou industrial não se reduz ao triunfo
do cálculo e da autoridade racional legal; ela é obra de empresas, ela é trazida pela
consciência nacional, ela é cada vez mais arrastada pelas demandas dos consumidores.
(......) .As nações se definem mais por uma cultura do que por uma ação econômica; as
empresas visam tanto o lucro e o poder quanto a organização racional da produção; os
consumidores introduzem nas suas escolhas, aspectos cada vez mais diversos de sua
personalidade à medida que seu nível de vida lhes permite satisfazer necessidades menos
elementares e, portanto, menos enquadradas nas regras e estatutos tradicionais." 19
É o apogeu do taylorismo e do fordismo que termina neste final de século e
milênio.
Para clarificar a idéia que se defende de que a Globalização é decorrência, de certa
forma, da transição da Modernidade para Pós-Modernidade, entendida como etapa
seguinte, é pertinente acompanhar-se o raciocínio de Touraine acerca da concepção
clássica de modernidade, o qual serve perfeitamente para o que se pretende: "Esta
concepção clássica de modernidade, ao mesmo tempo filosófica e econômica, define-a
como triunfo da razão, como libertação e como revolução, e a modernização como
modernidade em ato, como um processo inteiramente endógeno. Os manuais de história
falam com razão do período moderno que vai da Renascença à Revolução Francesa e aos
princípios da industrialização em massa da Grã-Bretanha. Porque as sociedades onde se
desenvolveram o espírito e as práticas da modernidade procuravam mais pôr em ordem,
que pôr em movimento: organização do comércio e das regras de câmbio, criação de uma
administração pública e do Estado de direito, difusão do livro, crítica das tradições, das
proibições e dos privilégios. É a razão, mais que o capital e o trabalho, desempenhando o
papel principal. Esses séculos são dominados pelos legistas, filósofos, escritores, todos
homens do livro, e as ciências observam, classificam, ordenam para descobrir a ordem
das coisas. Durante esse período, a idéia de modernidade - presente, mesmo que a
palavra não exista - dá aos conflitos sociais a forma de uma luta da razão e da natureza
contra os poderes estabelecidos. Não são apenas os Modernos que se opõem aos Antigos;
é a natureza ou mesmo a palavra de Deus que se desprende de forma de dominação,
apoiadas mais na tradição do que na história, e espalhando as trevas que o iluminismo
deverá dissipar. A concepção clássica de modernidade é , antes de tudo, a construção de
uma imagem racionalista do mundo que integra o homem na natureza, o microcosmo no
macrocosmo, e que rejeita todas as formas de dualismo do corpo e da alma, do mundo
humano e da transcendência.
Anthony Giddens apresenta uma imagem fortemente integrada da modernidade,
com um esforço global de produção e de controle, cujas quatro principais dimensões são o
industrialismo, o capitalismo, a industrialização da guerra e a vigilância de todos os
aspectos da vida social. Acrescenta, ainda, que a tendência central do mundo moderno
19
Alain Touraine, Crítica da Modernidade, São Paulo: Vozes, l.994. p. l43.
65
leva-o a uma globalização crescente, que toma a forma de divisão internacional do
trabalho e da formação de economias-mundos, mas também, uma ordem militar mundial
e do fortalecimento dos Estados nacionais que centralizam os sistemas de controle." 20
É esta visão clássica de Moderno, de que nos fala Touraine que começa a dissiparse, a desfazer-se , sendo sucedida e substituída pela nova ordem, dentro do que David
Harvey, em "Condição Pós-Moderna", observa: 21 "A luta pela manutenção da
lucratividade apressa os capitalistas a explorarem todo tipo de novas possibilidades. São
abertas novas linhas de produto, o que significa a criação de novos desejos e
necessidades. Os capitalistas são obrigados a redobrar seus esforços para criar novas
necessidades nos outros, enfatizando o cultivo de apetites imaginários e o papel da
fantasia, do capricho e do impulso. O resultado é a exacerbação da insegurança e da
instabilidade, na medida em que massas de capital e de trabalho vão sendo transferidas
entre linhas de produção, deixando setores inteiros devastados, enquanto o fluxo perpétuo
de desejos, gostos e necessidades do consumidor se tornam um foco permanente de
incerteza e de luta. Abrem-se necessariamente novos espaços quando os capitalistas
procuram novos mercados, novas fontes de matérias primas, uma nova força de trabalho
e locais novos e mais lucrativos para operações de produção. O impulso de realocação
para locais mais vantajosos (o movimento geográfico do capital e do trabalho)
revoluciona periodicamente a divisão territorial e internacional do trabalho,
acrescentando à insegurança uma dimensão geográfica vital. A resultante transformação
da experiência do espaço e do lugar é acompanhada por revoluções na dimensão do
tempo, na medida em que os capitalistas tentam reduzir o tempo de giro do seu capital , a
" um piscar de olhos".
O mesmo autor, mais adiante, detecta que a aceleração do tempo do giro na
produção envolve aceleração em todo o processo, executada pelos sistemas de
comunicação e fluxo de informações; técnicas de produção e circulação, que possibilitam
maior velocidade dos produtos no mercado, ao lado do fluxo eletrônico do dinheiro e o
mercado financeiro da informática via satélite, apontando como conseqüência disto o
acentuar-se da "volatilização" das modas, produtos, técnicas de produção, processo de
trabalho, idéias, ideologias, valores e práticas estabelecidas, com a ênfase nos valores e
virtudes da instantaneidade e da descartabilidade.22
Esta cultura da volatilidade e da descartabilidade, que explode o modo de produção
e a organização da Economia nestes tempos, materializa o que antes se verificou como
velocidade mutacional vertiginosa e, também, a ausência de passado de que falou
Hobsbawm, na era dos extremos, antes transcrita.
Precisa ainda ser considerada a revolução nas e das comunicações, tal como
Marshall McLuhan anteviu nos anos sessenta "Aldeia Global" 23 , quando da massificação
das comunicações pelo uso de satélite e pela televisão. Assim, o que já pareceu utópico e
ficcional - a sociedade mundial - torna-se horizonte possível, pois, rompidas as muralhas
20
Alain Touraine, op. cit. p.36.
21
David Harvey, Condição Pós-Moderna. Loyola, l.993, p. l03
22
ibidem, idem. op. cit., loc. cit.
23
Mcluhan, Mrsahall e Powers, Bruce R.., The Global Village: transformation in
world life and media in the 21st. century, Oxford University Press, Oxford, l.989.
66
chinesas do isolacionismo, os novos mercadores fenícios da Internet percorrem os mundos
dantes inatingíveis, dirigindo-se às novas índias, como no medievo peninsular.
Da mesma forma como no passado, hoje os mercadores e produtores rompem
limites, ultrapassam separações e movimentam-se pelo braço da economia altamente
tecnologizada, unem-se antigos rivais tradicionais, e sob novas formas convivem
divergências ideológicas, antes inconciliáveis.
Grosso modo, a explosão das comunicações, como prenunciava McLuhan,
universaliza hábitos, culturas e fórmulas de produção e consumo, já se podendo falar em
"standart" quase-universal de um modo de vida genérico, que engendrou o Mercado
Mundial, para cuja alimentação e resposta o mundo produtivo se organiza e opera,
movimentando volumes de recursos naturais, tecnológicos e financeiros inimagináveis
antes, com reflexos brutalmente intensos para a sociedade como um todo.
Isso repercute nas Instituições Políticas e alcança a todas as relações humanas,
como observa Otávio Ianni: 24 "Além das nações pobres e ricas, centrais e periféricas,
dominantes e dependentes, revelam-se relações, processos e estruturas ainda pouco
conhecidas, operando em escala global".
O mesmo autor, na obra "Teorias da Globalização" 25 , explicita claramente este
entendimento, resgatando McLuhan e a idéia da Aldeia Global de maneira especialmente
útil: "A noção de Aldeia Global é bem uma expressão da globalidade das idéias, padrões
e valores sócio-culturais, imaginários. Pode ser vista como uma teoria da cultura
mundial, entendida como cultura de massa, mercado de bens culturais, universo de signos
e símbolos, linguagem e significados que povoam o mundo pelo qual uns e outros situamse no mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem.
Em decorrência das tecnologias oriundas da eletrônica e da informática, os meios
de comunicação adquirem maiores recursos, mais dinamismos, alcances mais distantes.
Os meios de comunicação de massa , potenciados por essas tecnologias, rompem ou
ultrapassam fronteiras, culturas, idiomas, religiões, regimes políticos, diversidades e
desigualdades sócio-econômicas e hierarquias raciais, de sexo, e idade. Em poucos anos,
na segunda metade do século XX, a indústria cultural revoluciona o mundo da cultura,
transforma radicalmente o imaginário de todo o mundo. Forma-se uma cultura de massa
mundial, tanto pela difusão das produções locais e nacionais, como pela criação
diretamente em escala mundial. São produções musicais, cinematográficas, teatrais,
literárias e muitas outras, lançadas diretamente no mundo como signos mundiais ou da
mundialização. Difundem-se pelos mais diversos povos, independentemente das suas
peculiaridades nacionais, culturais, lingüisticas, religiosas, históricas ou outras. São
produções as vezes cercadas de aura científica ou filosófica, como o boato do fim da
história, o fim da geografia, a gênese da pátria terra, as maravilhas da sociedade
informática, o mundo como paraíso livre do castigo do trabalho alienado".
Entende-se que esta mutação de padrões, rompendo barreiras e alterando fronteiras,
na verdade atribuiu a estas fronteiras outro papel de nova feição. As profundas alterações
24
Otavio Ianni, A Sociedade Global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, l.993., p.
90.
25
Otavio Ianni, Teorias da Globalização, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
l.995. p. 93-95.
67
do imaginário mundial decorrentes da massificação observada por Ianni não chegam a
homogeneizar completamente, restando espaços para as peculiaridades. Todavia, a
construção daí derivada tem dupla referência: a local e a mundial ou global, e se projeta
como intermediação viável e possibilidade existencial desta relação, que agora não é mais
perspectiva ou expectativa, mas, concretitude, onde a dimensão e a intensidade têm
variações de grau, porém sempre se fazendo presentes, convivendo com as rupturas
inseridas na dinâmica do processo histórico, como Ianni percuscientemente atenta:
"Rompem-se sistemas de referências, cartografias, geopolíticas, alianças sedimentadas,
conveniências lucrativas, tensões institucionalizadas, quadros de pensamento
instrumental".
A sociedade humana caminha no processo de globalização seqüencial à revolução
tecnológica fundada entre a comunicação de massas e o modo de produção e
comercialização transnacional. Neste contexto, necessariamente, alteram-se atores e
categorias, que se definem pelos papéis que desempenham. E pode-se ver que Estado cede
à Nação como unidade cultural particular, Empresa como unidade produtiva macro e com
papel principalmente estratégico, desenrolando-se o jogo econômico como forma de
guerra, e o mercado consumidor ganhando feição diversa, de globalidade.
Como tentamos demonstrar, optando por citações o quanto possível textuais, a
figura da Empresa Transnacional vem se destacando como o grande ator e agente da
globalização, transcendendo da produção para a real e, sobretudo, aceita influência política
no contexto nacional e as instituições político-jurídicas nacionais.
A velocidade de atuação operacional da empresa não é alcançada pelos
mecanismos do Estado Nacional, e, na verdade, a categoria de Empresa acaba por
sobrepor-se, em muitos aspectos, ao Estado Nacional, mesmo em suas esferas tradicionais
de influência.
A dicotomia que se estabelece e assoma no processo da globalização é
Empresa/Mercado, ficando severamente diminuído o papel de intermediação e controle
tradicionalmente exercido pelo Estado-Nacional, que na prática fica esvaziado e impotente
para esta intermediação, na medida em que centros decisórios e o processo da decisão
escapam à limitação territorial, faltando, assim, instrumental mínimo de intervenção.
Este processo de globalização alcança todo o mundo. Todavia, deve ser destacado
que o estágio e grau de desenvolvimento dele não é uniforme, deixando de alcançar todos
os continentes da mesma forma e ao mesmo tempo, na mesma fase. Parte, porque sua
eclosão se deu no chamado primeiro mundo, onde as condições objetivas e subjetivas
estavam mais favoráveis; parte, porque reproduz de certa forma, as relações de
dependência entre as diversas regiões do planeta, conforme o desenvolvimento histórico,
passando pelo antigo colonialismo e, principalmente, pelos diversificados estágios de
desenvolvimento ocorridos, marcados pelas diversidades culturais e sociais.
Principalmente em decorrência da necessidade estratégica de organizar a economia,
os Estados buscam maneiras de cooperação entre si, e a experiência se vem dando,
especialmente, desde o segundo pós guerra, pelas articulações regionais, a princípio com a
68
divisão ideológica; mas, depois, da queda do Muro de Berlim e da desmontagem da União
Soviética, com o chamado colapso do socialismo real 26 .
Isso resulta nova reordenação do sistema das relações internacionais, antes
bipolarizadas ideologicamente e hoje sem este referencial, numa quase Pax Romana,
coordenada pelo G-7, integrado pelas Potências mais ricas e poderosas econômica e
politicamente, onde se desenrola o processo decisório da Economia Política
Contemporânea, seja pela detenção dos mecanismos e agências institucionais e formais de
intervenção, seja pelos mecanismos tradicionais das Relações Internacionais, ou, ainda,
pela pressão política, direcionada pelos seus interesses, ideologias e conveniências.
Desde logo é preciso que se fixe que o modo de produção imposto na
Modernidade/Pós-Modernidade, com a cultura da velocidade de obsolescência e as idéias
de instantaneidade e descartabilidade, características do processo produtivo e do sistema,
econômico, enseja enorme exclusão humana. Legiões inteiras, em todos os países e
sistemas são colhidas pelo desemprego, subemprego e falta de condições de sobrevivência,
gerando massas de excluídos; de desassistidos lançados a própria sorte, os quais os Estados
Nacionais são incapazes de atender , com os mecanismos disponíveis e a falta de recursos.
Otávio Ianni observa que a globalização causou perplexidade e perda de capacidade
de ação efetiva, desfazendo as nações e relações assentadas acerca da dependência e
independência dos Estados e das Economias, observando que "As empresas, corporações e
conglomerados transnacionais, em suas redes e alianças, em seus planejamentos
sofisticados, operando em escala regional, continental e global, dispõem de condições
para impor-se aos diferentes regimes políticos, às diversas estruturas estatais, aos
distintos projetos racionais" 27
É uma força avassaladora e poderosa, pelo que se impõe à civilização
contemporânea buscar mecanismos e fórmulas de mitigar-lhe os efeitos negativos, munida
de instrumentos capazes de imprimir alguma ética que obste a "seleção natural da
espécie", isto é, a eliminação dos excluídos indesejáveis, colocando o que Cornélio
Castorianides 28 focalizou como "civilização e barbáries". O desafio da
contemporaneidade é enfrentar , adequada e eficientemente, o abismo entre incluídos e
excluídos, partícipes do processo e marginalizados, o que renega toda a cultura ocidental.
Mais uma uma vez Ianni aponta: "Este o horizonte das nações e metáforas que as ciências
sociais estão sendo desafiadas a criar: aldeia global, fábrica global, cidade global, nave
espacial, desterritorialização, re-territorialização, redes inter e intracorporações,
alianças estratégicas de corporações, nova divisão internacional do trabalho,
neofordismo, acumulação flexível, zona franca, mercado global, mercadoria global,
moeda global, planejamento global, tecnocosmo, planeta terra, sociedade civil mundial,
cidadania mundial, contrato social universal.
26
v. Robin Blackburn (org.). Depois da Queda - o fracassso do comunismo e o
futuro do socialismo: São Paulo, Paz e Terra, l.983. v. também: Robert Kurs. O Colapso
da Modernização, São Paulo: Paz e Terra, l.993; Eric Hobsbawm, Era dos Extremos o breve século XX, l.9l4/l.99l, São Paulo: Cia. das Letras, l.995 e Alain Touraine, O Pós
Socialismo, São Paulo: Brasileiense, l.988.
27
Otavio Ianni, Sociedade...
28
Cornélio Castorianides, Socialismo e Barbárie, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, l.990.
69
Não é suficiente transferir conceitos, categorias, interpretações elaboradas sobre a
sociedade nacional para a global. Quando se trata de movimentos, relações, processos e
estruturas características da sociedade global, não basta utilizar ou adaptar o que se sabe
sobre a sociedade nacional. As noções de sociedade, estado, nação, partido, sindicato,
movimento social, soberania, hegemonia, urbanização, industrialização, arcaico, moderno
e outras não se transferem nem se adaptam facilmente. As relações, processos e estruturas
de dominação e apropriação, integração e antagonismo característicos da sociedade
global exigem também novos conceitos, categorias, interpretações" 29 .
É, como se vê, todo um processo de construção de estruturas e processos
desconhecidos, prenhe de dúvidas e incertezas, que José Eduardo Faria, na Introdução a
'Direito e Globalização Econômica", levanta magistralmente: "Alimentada por uma
revolução tecnológica contínua, a globalização econômica tornou-se um fato. Vencida a
fase inicial do desafio da integração dos mercados, vive-se agora a fase dos seus
desdobramentos institucionais e jurídicos. Qual o papel dos Estados nacionais nesse novo
cenário? Qual a eficácia e alcance de seus instrumentos normativos legais? O que esperar
do Direito Positivo em sua versão normativista convencional, com suas regras
hierarquizadas por meio de critérios lógico-formais, em contextos cada vez mais
complexos, mutáveis e policêntricos? Se a conversão das economias nacionais num
sistema mundial único está conduzindo ao redimensionamento do princípio da soberania
nacional, qual o futuro das Constituições Dirigentes, aquelas que, além de consistirem
num estatuto organizatório definidor de competências e regulador de processos, atuam
também como uma espécie de "estatuto político" dos Estados intervencionistas,
estabelecendo o que (como e quando) o legislador e os governantes devem fazer para a
concretização das diretrizes programáticas constitucionais" 30
Sem dúvida, assiste razão neste contexto a Jacob Dolinger, quando observa, ao
abrir o Capítulo I do seu "Direito Internacional Privado": "A Internacionalização da vida
e das atividades humanas acarreta uma série de fenômenos de natureza jurídica que
devem ser enfrentados pelos Estados isoladamente e pelas entidades regionais e
internacionais no plano coletivo". Este enfrentar-se enseja a construção, dentro do
processo de globalização, repita-se, irreversível e em andamento permanente, com o
surgimento da sociedade global como a sucessora da sociedade nacional, num mundo
multipolarizado, onde as idéias e concepções tradicionais, como projeto nacional,
sociedade nacional e estado nacional se tornam insuficientes e obsoletas, incapazes de
instrumentar a compreensão e a atuação nesta época de incertezas e de dilemas humanos
terríveis. John Kenneth Galbraith, em recente obra "A Sociedade Justa", observa que "o
progresso rumo a uma associação mais estreita entre os povos e as instituições dos países
avançados não pode ser detido. Ele integra a grande corrente da história; as forças
sociais envolvidas estão além da influência das legislaturas, parlamentos ou políticos
nacionais". 31
E constata mais adiante: "Entre as nações avançadas, é necessário agora uma
coordenação internacional eficaz das políticas sociais e econômicas. Isso começa pela
29 Otavio Ianni, Globalização: novo paradigma das ciências sociais.In: Revista de
Estudos Avançados USP, São Paulo, n. 2l, vol..8, p. l47-l63, maio/agosto l.994.
30 José Eduardo Faria (org.), Direito e Globalização Econômica -introdução, São Paulo:
Malheiros Editores, l996,p.5.
31
John Kaneth Galbraith, A sociedade justa - uma perspectiva humana, Campus.
70
ação fiscal e monetária, essencial á contenção da seqüência normal de "boom" e quebra,
da especulação dando lugar ao desemprego. Nenhum país consegue agir eficazmente
sozinho. Além disso, é necessário que haja uma coordenação das políticas sociais
nacionais, das políticas agrícolas, das medidas para atender ás necessidades ambientais e
de outros programas substitutivos do Estado do Bem-Estar Social moderno. A sociedade
justa deve estar comprometida com essa coordenação, por ser não apenas a melhor, mas
a única resposta".
E arremata: "A sociedade justa não pode se deixar identificar apenas com o
Estado-Nação; ela deve reconhecer e apoiar as forças internacionais maiores a que o país
individual está sujeito. Isso não é questão de escolha; é o imperativo moderno".
A necessidade que Galbraith aponta como imperiosa de coordenar ações e políticas,
regular relações no contexto deste processo, sugere a existência de um papel a
desempenhar, que já se afigura como
alguma clareza, como observa Rattner:
"Contrariamente às interpretações convencionais, os agentes mais dinâmicos da
globalização não são os governos nem os representantes parlamentares dos países que
formaram mercados comuns à procura de integração econômica. As forças mais ativas e
poderosas do processo de globalização são os conglomerados e empresas transnacionais
que dominam e controlam efetivamente a maior parte da produção, do comércio, da
tecnologia e das finanças internacionais. Com seu imenso potencial econômico financeiro,
essas organizações operam em escalas transcontinentais, transferindo recursos
financeiros e know-how por sistemas de comunicações informatizadas e via satélite e
crescem, mesmo em tempos de recessão e crise, através de fusões, incorporações, venda e
compra de ativos em transações bilionárias. Baseadas em uma cultura organizacional e
administrativa sem precedentes na história e dispondo de ativos financeiros superiores
aos da maioria dos Bancos Centrais, a extrema mobilidade de seu capital financeiro
movimentado em tempo real por redes computadorizadas integradas, permite realizar
altas taxas de lucratividade, inclusive em operações especulativas de câmbio, taxas de
juros e preços de comodities, tudo contribuindo para o aumento e expansão das riquezas e
do poder dessas organizações. A atuação de conglomerados e empresas transnacionais
não se limita às esferas econômico-financeiras apenas. Suas decisões de investir e
desinvestir afetam, em última análise, a prosperidade ou decadência de cidades e regiões,
e o peso de seus recursos econômicos financeiros influi na composição e funcionamento
da estrutura e das instituições políticas. São inúmeros os casos de eleições de
representantes do povo, cuja campanhas são financiadas pelo grande capital, sem falar
dos lobbies e das práticas de corrupção da administração pública, comuns até nas mais
altas instâncias dos três poderes 32 ".
É fora de dúvidas que a globalização, em todos os sentidos, traz problemas
políticos, sociais e institucionais graves, cabendo como tarefa ao Estado Nacional que vai
convivendo com a Sociedade Global equacionar e propor respostas e ações completas para
enfrentar estas questões e neutralizar seus efeitos.
A convicção que fica é a de que o Direito é que vem a ser instrumento por
excelência para esta ação, seu papel ganha relevância. Cumpre, portanto, que se reflita
sobre os impactos e as repercussões da globalização no Direito e detectem-se pistas de
como este instrumento pode servir ao destino que se antevê.
32 Henrique Rattner, Globalização: em direção a um mundo só. In: Revista de Estudos
Avançados da USP, São Paulo, vol.9, n. 25, p.65-76, set./dez. l.995.
71
Sem dúvida, eis que demonstrada a enorme influência do fator econômico na
formulação do perfil e do papel do binômio estado/direito, na concepção nacional. Ambos
demandam mudanças em suas concepções e referências, ou em seus parâmetros, como os
denomina Ianni, de forma a estarem compatíveis com a realidade atual e o processo em
curso.
72
2. Globalização e Direito
A figura do Estado como institucionalização do poder político capaz de administrar
choques, conflitos, contradições e intermediar tensões no contexto de uma sociedade está
recebendo novos papéis, adaptando-se ao contexto dos embates ideológicos interno e
externo, para o que vem mudando o seu perfil, sendo redesenhado, partindo da constatação
da insuficiência do instrumental disponível, como se mencionou antes.
A constatação que se faz ao longo do processo é o da convivência de uma
multiplicidade de ordens jurídicas em variados campos de atuação, como sucessora, ainda
que parcial e regionalmente, sendo a decorrência da formação da sociedade global
sucessora da nacional onde surgem relações novas e conectadas articuladamente a este
universo de convivência de ordens jurídicas. E como observa Adré-Noel Roth: 33 "A
conseqüência dessa evolução na técnica jurídica é uma maior flexibilidade do anterior
caráter autoritário do direito e de sua dispersão em vários níveis de formulação".
Não é sem razão que Jurgen Habermas 34 observa que o Estado nação não pode
mais fornecer base para manutenção de padrões convivenciais democráticos e reguladores
de desequilíbrios a níveis toleráveis. Esta manutenção transcende a seus limites e
facilmente é constatada a emergência de regimes supranacionais, entendendo-se a
articulação de uma pluralidade de Estados-Nacionais que se articulam para enfrentar as
graves questões sócio políticas, organizando e integrando suas ações, inclusive como
tentativa de inserir-se no processo maior e mais amplo da globalização como um todo.
A experiência histórica recente mostra que os primeiros passos dados são no
sentido de Uniões Aduaneiras e Mercados Comuns, confirmando o papel de agente indutor
e condutor da figura da Empresa trazendo e servindo de ponto de partida para as uniões
mais estreitas e interativas, tendentes à institucionalização, construindo um conjunto
instrumental que se assemelha ao do Estado tradicional, com campo de ação transnacional,
voltado portanto à comunidade respectiva se provocando a convivência e formas
específicas de ação entre ordens jurídicas diversas.
Assim, temos repartições negociadas de competências normativas, campos dos
Estados-Nacionais, campos das estruturas transnacionais, sendo este papel desempenhado
pelo Direito Internacional, como já observou Hans Kelsen: "Na medida em que o Direito
Internacional se intromete, com a sua regulamentação, em matérias que até aqui apenas
eram normadas pela ordem jurídica estadual, a sua imediata tendência para a imediata
atribuição de direitos e imposições de deveres aos indivíduos tem necessariamente de
fortalecer-se". 35
Jacob Gorender, examinando as estratégias desenvolvidas pelos Estados nacionais
para integrar-se e conviver com o processo da globalização e a formação de blocos
33 Adré-Noel Roth, O direito em crise: o fim do estado moderno. In: Direito e
Globalização Econômica, organização José Eduardo Faria, op. cit. p.l5-27.l7.
34 Jurgan Habermas, O estado-nação europeu frente aos desafios da globalização: o
passado e o futuro da soberania e da cidadania). In: novos estudos cebrap, n.43,
p.87-101,nov. l995.
35 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, (trd.portuguesa),Coimbra: Armênio
Amado,l.976, p. 437.
73
regionais: "A concorrência entre os países industrializados e suas empresas
multinacionais conduziu, na fase atual, à formação de blocos econômicos regionais.
Notoriamente, os três principais, dentre eles são o Tratado de Livre Comércio da América
do Norte (Nafta), a União Européia (UE) e o bloco informal do Extremo Oriente".
Liderados, respectivamente, pelos Estados Unidos, Alemanha e Japão. Neste contexto é
que se visualizam na inserção do Mercosul. 36
A mecânica de ação política desta economia globalizada, que se denomina neste
texto de "blocada", encerra relações intra-blocos e inter blocos, com contradições internas
e externas a serem administradas pelo sistema. O mesmo Jacob Gorender a respeito
observa:
"A política de blocos encerra significação contraditória no que se refere ao
comércio mundial. Por um lado, contribui para incentivá-lo, na medida em que intensifica
o intercâmbio entre membros do bloco, e deste com parceiros externos. Por outro lado,
porém, permite a prática protecionista do bloco em conjunto diante de outros blocos e, em
geral, de países de fora, desta maneira conduzindo a um desvio do comércio". 37
Nesta visão de globalização é útil a teoria monista kelseniana, que antevê a
progressiva centralização normativa até a criação de uma comunidade de tendência
universal de Direito Mundial, portanto um Estado Mundial 38 .
O que se pode ler, com referência à blocagem, uma ordem jurídica regional e uma
organização de traços estatais regional, isto porque, ainda que modificado e adaptado ao
processo, persiste o papel do Estado como instância política de intermediação dos conflitos
internos, instrumentando as dimensões humana social, buscando algum equilíbrio nas
relações entre a economia das empresas fortalecidas e a sociedade como porções
significativas de excluídos, ou pelo menos de inferiorizados na efetivação de seus
interesses e direitos, daí porque esclarece Sachs: "Por várias razões, o debate atual sobre
o Estado começou de forma errada. Ela se originou da oposição estabelecida entre Estado
e Mercado, enquanto, na realidade, todo mercado deve ser regulado pelo Estado, ainda
mais se quisermos que a economia de mercado também cumpra uma função social. As
críticas ao estatismo que, com razão, visam seus excessos e o peso da burocracia,
simplificam exageradamente o problema ao postularem menos estado, quando a
verdadeira questão consiste em que ele, ao mesmo tempo, torne-se mais eficiente e menos
oneroso. É de bom tom que se censurem as falhas do Estado, calando sobre as
deficiências do mercado - às vezes tão numerosas quanto as do Estado -, sua incapacidade
em apreender o longo prazo e o interesse social. De modo geral, é legítimo postular a
redução do Estado empresário, sobretudo quando o setor público se compõem de
empresas que foram nacionalizadas no momento em que estavam falidas e o Estado, ao
intervir, privilegiou os interesses particulares de tal ou qual grupo próximo ao poder. Mas
permanecem as funções de Estado Promotor (development state), a exemplo do que
ocorreu no Japão, na Coréia do Sul, em Taiwam e, sobretudo, do Estado-regulador. O
36 Jacob Gorender, Estratégias do sestados-nacionais diante do processo de
globalização. In:
Revista de Estudos Avançados da USP, Saõ Paulo,v.9, n.25,
set./dez. l.995,p.93-ll2.
37
Jacob Gorender, op. cit. loc.cit.
38 Ignacy Sachs, Em busca de novas estratégias de desenvolvimento. In:
Revista de
Estudos Avançados da USP, v. 9, n.25., set./dez. l.995, p. 29-63.
74
desafio para os anos vindouros está é em encontrar formas verdadeiramente democráticas
de regulamentação das economias mistas". 39
Exatamente neste papel Estatal (que não some com a globalização, antes, cresce),
de promover influência na economia e, também, humanizando as relações de mercado, está
a raiz ou ponto de partida da ordem atual para remoldagem dos Estados-Nacionais, seja
das instituições de natureza estatal regionais, até mesmo como fator de equilíbrio das
relações econômicas interblocos ou inter regiões, ou de administrar as questões sociais
emergentes, combatendo com alguma eficiência a exclusão, levando as tensões decorrentes
a níveis toleráveis e indispensáveis à manutenção do equilíbrio e funcionamento do
sistema. E, ao que parece, as alternativas mais consistentes são a construção de um Direito
e de uma Instituição de características Estatais com vigência e campo de atuação regional,
correspondendo aos blocos regionais. 40
Aí está a sede da motivação de surgimento de um Ordenamento Jurídico e de uma
Instituição Transnacional, o que, por seu turno viabiliza a idéia de cidadania transnacional,
significando vinculação da sociedade com este ordenamento e esta instituição. Assim
entendido o surgimento de uma real comunidade transnacional como decorrência da
globalização, percebida esta pela materialização dos "blocos".
Evidenciada a necessidade de uma intermediação dos conflitos internos e do
regramento do universo relacional emergente em todos os níveis, tomando-se, pois, como
pressuposto o monismo jurídico e vislumbrando os dois âmbitos de validade, o interno e o
externo, opta-se, por coerência e lógica, pela prevalência do Direito Internacional.
Seja porque a maioria dos Estados na contemporaneidade valem-se de mecanismo
para a incorporação das normas internacionais aos seus ordenamentos internos, seja
porque, como assinala Gerson Boson: "Decerto que somente o Direito Internacional é
capaz de limitar o poder estatal, de modo que o Estado não possa impor sua vontade aos
órgãos da ordem jurídica internacional". 41 . Arrematando mais adiante:
"Firma-se, deste modo, em termos de conhecimento mais que
organização, a unidade de um sistema que permite resolver as
contradições eventuais entre as duas ordens jurídicas, cedendo o Direito
Interno o passo ao Direito Internacional, a quem pertence a primazia.
Esta supõe o Direito Internacional delimitando os domínios de valida e
das ordens jurídicas estatais no tempo e no espaço, quanto às pessoas e
à matéria que são objeto de legislação".
Com efeito, conforme já se esboçou, o processo de construção da globalização
torna inviável a postura isolacionista do Estado, porquanto imperativo das relações
econômicas, não permite.
39
Sachs, op. cit., loc. cit.
40
Sachs, op. cit. loc. cit.
41 Gerson Mello Boson, Direito Internacional Público: O Estado em Direito das
Gentes, Belo Horizonte, Del rey, l994, p.l43.
75
Daí as relações internacionais que em última análise no dizer da Karl Deutsh
pretendem promover e realizar os interesses nacionais 42 haverem se tornado em condição
de existência de um Estado, já que a idéia autárquica da auto-suficiência a qualquer custo,
fenece com a modernidade globalizada.
René-Jean Dupuy destaca a importância da institucionalização observando que as
organizações internacionais explicam-se melhor considerado o monismo, com a primazia
do Direito Internacional, e remetendo ao ecletismo, onde há evocação de estruturas que se
aproximam do Direito Interno e tendem a introduzir uma certa subordinação dos Estados a
um poder institucionalizado e destaca: "Assim, o Direito Internacional vê-se
progressivamente dotado de órgãos próprios que lhe faziam falta no Direito Relacional.
Certamente que a independência dos povos pode favorecer o desenvolvimento do Direito
das Gentes, mas é pela organização que esses progressos podem tomar formas". 43
Na linha de raciocínio que guia este trabalho, entende-se, com Dupuy, que o
compatível com a sociedade globalizada é o Direito da Sociedade Institucional, oposta ao
voluntarismo tradicional, que pontua: “A tensão é sinal de vida, e por isso, estas
contradições não podem surpreender. Elas não impedem que o reagrupamento dos
Estados, em busca de objetivos comuns em instituições às quais confiam em certos
números, ainda que reduzido, de competências, os situe numa perspectiva jurídica
diferente da do Direito Relacional. É certo que as organizações internacionais são obra
da sua vontade, mas a própria criação tende a separar-se do criador, por mais
dominador que ele seja, e, além disso, forçá-lo a contar com ela. No plano da técnica
jurídica, todo o fenômeno de associação procede do processo federalista. Este tende a
conciliar a necessidade de segurança e a necessidade de liberdade. A primeira é
assegurada pela união das coletividades estaduais, que participam tanto na formação dos
órgãos comuns, encarregados de definir o interesse geral, como na elaboração das
decisões que o exprimem". 44
Tem-se assente, pois, que a resposta às questões que se colocam com a
globalização deve ter como ponto de partida o Direito Internacional, onde a busca e
esforço pela Mundialização não são novos.
É a um tempo eloqüente e interessante mencionar a existência de um Projeto de
Constituição Mundial, vindo à público por edição da Nagel, de Paris, em 1949, com
apresentação de Thomas Mann, e que foi elaborada por um Comitê de Redação composto
por Robert m. Hutghins, G.A Borgese, Mortimer j. Adler, Stringfellow Bare, Albert
Guérard, Harold A. Innis, Erich Kahler, Wilber A. Katz, Charles H. McIlwain, Roberto
Redfield e Rexford G. Tugwell, que se reuniu em treze sessões, de novembro de 1945 a
julho de 1947, e, na introdução ao texto, assinada por Robert M. Hutchins e G. A. Borgese,
evidente que sob o impacto devastador da segunda conflagração mundial, declararam:
"Cependent le gouvernement Mondial doit un jour devenir une rèalité: la
génération présent est d'acoord sur ce point. Ce peut être dans cinq ans
ou dans cinquante, aprés une grande catastrophe ou en l'évitant. C'est
42 Karl Deutsch, Como se faz política externa. In: Curso de Relações Internacionais unidade I, Distrito Federal: Editora Universidade de Brasília, l982.
43
René Dupuy, O Direito Internacional (trd. portuguesa), Coimbra: Almedina,
l993,p.28.
44
Dupuy, op. cit. p.l04.
76
dans cette pensée qu'a été accompli le travail de ce Comité: avec
humilité mais avec confiance, comme une proposition fait à l'histoire.
L'histoire peut, un jour proche ou lointain, l'examiner".
Todavia, sempre que se pensa em juridicização de relações internacionais, (e
mormente, quando mais estreitas, na concepção institucionalista), levanta-se a questão da
Soberania como obstáculo ou entrave. Sem dúvida, a concepção de Soberania como
absoluta, ilimitada e poder incontrastável, é contornada precariamente pelo princípio da
"pacta sunt servanda", através do que os Estados ao firmarem compromissos
internacionais obrigam-se voluntariamente; mas mesmo assim tem-se problema grave a ser
enfrentado na globalização e na blocagem regional. A antes citada comissão de redação da
Constituição Mundial, formada por juristas de diversos países, já nominados, sustenta a
tese da delegação de competência dos Estados para o que chamam de governo mundial, em
técnica semelhante ao que adota na Comunidade Européia, e, ao termo do Preâmbulo,
observam:
"Les pouvoirs nos délégués par cette Constituition au Gouvernement
Mondial, et non refusés par cette Constituition aux divers membres de la
République Mondiale Fédérale, seront réservés aux Etats, nations, ou
unions d'États ou de nations constituant cette République". 45
Podemos vislumbrar, para compreender melhor, que se por um lado a globalização
e blocagem como processo irresistível decorrente da modernidade/pós-modernidade vem
favorecendo e até mesmo impondo que as Relações Internacionais sejam marcadas pelo
institucionalismo, conduzindo as articulações interestaduais mais estreitas, com
surgimento de normas de vigência transnacional.
Como ver-se à mais adiante, em síntese, empurrando para o transnacionalismo, de
outro, têm-se a resistência do entendimento e do sentimento de soberania, onde a
concepção de ilimitação e incontrastabilidade, de ser absoluta conflita com a aceitação de
vigência de normas transnacionais e mais ainda, de articulação de políticas econômicas e
sociais compartilhadas. De qualquer sorte, entende-se que a questão têm sido posta
equivocadamente.
Não se trata de suprimir ou negar a soberania, mas de entendê-la capaz de conviver
articulada e, sobretudo, cooperativamente com outras soberanias, o que não é de todo
descolado da doutrina clássica, desde que bem entendida sob este enfoque. Não será
excesso remeter a Arthur Machado Paupério, que, a pg. 19 da clássica obra 'O Conceito
Polêmico de Soberania," fundado em boa doutrina salienta: 46
"Soberano é, portanto, o Estado que se dirige, rege, governa
inteiramente por si mesmo. Sendo suprema a soberania do Estado, só a
este cabe decidir em última instância, a nenhum outro poder cabendo
limitar-lhe a ação. O Estado soberano limita-se a si mesmo, realizando a
autolimitação, característica por excelência, do poder soberano: poder
capaz de dirigir-se e organizar-se, na expressão de Posada. Estado
45
Robert M. Hutghins et alli, Projeto de Constituição Mundial, Paris, Nagel, l949
46
Arthur Machado Paupério, O conceito polêmico de soberania, Rio de
Janeiro:Forense, l959, p. l9.
77
soberano é, portanto, o capaz de determinar sua própria esfera de
atribuições, como assinala Meyer".
J. L. Bierly 47 , no seu "Direito Internacional", examinando o tema soberania,
observa que: "A dificuldade fundamental da submissão dos Estados ao Direito reside no
fato de estes serem detentores de poder. É sempre difícil o controle jurídico do poder, e
não é só no direito internacional que isto constitui problema", pois, igualmente nas
relações internas, há dificuldades, prossegue o autor mas, Dupuy também observa: "O
Estado não é realmente soberano: a lógica exclui a pluralidade de soberanos; um Estado,
ao delimitar as suas próprias fronteiras, deve contar com seus vizinhos. Além disso, como
conciliar soberania e submissão ao Direito? Essas duas noções são antinômicas. Na
verdade, os sujeitos de Direito são sempre condicionados por normas que nascem fora
deles e os estados exercem competências que lhes são reconhecidas pelo Direito
Internacional" 48
André-Noel Roth, antes já citado, 49 observa: "A interdependência crescente dos
países, desde o ponto de vista econômico, financeiro, assim como a complexidade dos
problemas novos (meio ambiente) e a rapidez das mudanças do transtorno, levavam quer
à impossibilidade da seqüência desse modo de produção e de aplicação das regras
jurídicas, quer a uma crise do direito. Crise que se reflete na dificuldade que tem o Estado
para aplicar seus programas legislativos, e no reconhecimento da existência de um
pluralismo jurídico. O Estado perde sua pretensão na detenção do monopólio de
promulgar regras. A Internacionalização é a maior mobilidade das empresas comerciais e
dos meios de produção, permitem àquelas "jogar" com maior facilidade e eficiência com
as diferentes legislações nacionais".
É de ver-se, portanto, que a insuficiência dos modelos até então utilizados não
apenas é incompatível, como também é incapaz de cumprir o papel de intermediadora e
regulamentadora das relações globalizadas, tendo sua eficiência posta em questão. Por
outro lado, também é de se considerar, na compreensão de Soberania, que as decisões
acerca da política econômica, em todos os seus níveis, praticadas pelos Estados-Nacionais
nos diversos graus de intervencionismo, igualmente não podem se dar, eficientemente,
descoladas da visão global e compartilhada, como se vê no mesmo autor:
"Agora, cada Estado tem que levar em consideração a situação
internacional para promulgar leis de caráter nacional, em setores cada
vez mais numerosos (a competição mundial, o problema da
"eurocompatibilidade", o GATT, etc.). O recente caso da firma Hoover,
que transferiu uma unidade de produção da França para o Reino Unido,
é um exemplo evidente deste fenômeno". 50
Sem dúvida em face da modernidade globalizada tal como aqui se refere, o EstadoNacional precisa aparelhar-se adequadamente para o desempenho do papel que lhe é
historicamente destinado. E o caminho tentado tem sido a blocagem regionalizada. Se pelo
47
J.L. Bierly, Direito Internacional, (trd. portuguesa), Lisboa, Fundação Calouste
Gulbekian, l962, p.44.
48
Dupuy, op. cit. p.26.
49
Adré Noel Roth, op. cit.
50
ibidem idem
78
lado econômico este sistema de blocagem tem dado respostas de certa forma animadoras
em muitos aspectos, nas dimensões do político e do jurídico o desempenho não tem sido o
mesmo.
As dificuldades têm sido grandes, seja pela concepção de soberania que os EstadosNacionais têm e que os impedem de transferir competências ou de compartilhar políticas
harmonizadas ou harmonizantes, seja pela resistência das sociedades em conviver mais
estreitamente, Todavia, pouco a pouco, através do Direito Internacional, que vem
experimentando crescimento e amadurecimento especialmente grandes nestes tempos de
globalização, as coisas vão seguindo o curso no sentido da consolidação das experiências
integracionistas. Manfred Lachs, 51 no trabalho "O Direito Internacional no Alvorecer do
Século XXI", observa:
"As novas técnicas de criação do Direito apareceram e representam
ferramentas importantes na época atual. Isso é igualmente um dos
valores que este século vai transmitir ao que virá. O crescimento do
corpus
jurídico e seu desenvolvimento modificaram de forma
considerável o conceito de soberania do Estado, e este é um fenômeno
bem conhecido. Hoje a noção de uma soberania ilimitada do Estado está
completamente prescrita. Ser-me-iam necessárias inúmeras exposições
para apresentar-lhes os setores onde a soberania do Estado viu-se
limitada, a exemplo de quando me referi ao domínio dos direitos do
homem e das telecomunicações".
É a alteração e formulação nova dos novos campos jurídicos (não mais
endocêntricos), umbilicalmente atrelados ao Estado-Nacional, com o surgimento de novos
campos, de âmbito transnacional dotados de modo de produção normativa diferenciada.
Da mesma forma a aplicação, interpretação e elaboração teórica, que surgem, por
ora no âmbito dos blocos regionais e, o mesmo autor citado, adiante, observa que o Direito
Internacional: "Estará simplesmente na realidade a formulação do que deve acontecer.
Nessa pluralidade, que pode criar a harmonia indispensável ao desenvolvimento de cada
Estado e de todos os Estados, reside o futuro do Direito Internacional, através do
conjunto das resoluções tendo em vista o interesse do que se acham envolvidos. Um dos
avanços mais convincentes a esse respeito é o feito pela Comunidade Européia".
Boson 52 , acompanhado por Acioly, entende o "Direito Internacional
como um conjunto de regras e princípios que regem as relações
jurídicas transnacionais, tanto dos Estados ou outras entidades
análogas, quanto dos homens". E como assinala o mesmo autor, hoje se
configuram plenamente relações de Direito Internacional por ele
tuteladas e regradas, o que ganha consistência na sociedade transnacional
ora em formação.
Daí se pode inferir que a construção do Direito Comunitário é, de certa forma,
manifestação do Direito Internacional, tal como a ele se refere Manf Red Lachs:
"chegamos a um momento da história em que, considerada a complexidade das relações
51 Manfred Lachs, O Direito Internacional no alvorecer do século XXI. In:
Estudos Avançados da USP, v.8, n. 21, maio/agosto l994, p. 97-ll8.
52
Gerson Boson Mello, op. cit.,p. 64
Revista de
79
internacionais e da interdependência, os interesses mútuos fizeram um progresso muito
rápido: cada Estado tem, muito freqüentemente, interesse no respeito à regra de direito.
Trata-se de preferência de uma escolha entre os interesses em competições. A dicotomia
torna-se artificial. A vontade política é limitada por interesses mútuos dos Estados. A
interdependência e a interpenetração crescentes, nas quais mais domínios os estados se
outorgam, criaram uma comunidade internacional jurídica ainda que imperfeita, frágil ou
lacunar". 53
Neste contexto de ordens jurídicas de validade transnacionais, é pressuposta a
centralização e a organização também transnacionais, com a função unificadora da
comunidade jurídica pertencente a mais de um Estado-Nação, surgindo a possibilidade de
construir uma cidadania que ultrapassa fronteiras e uma real ordem transnacional, como
órgãos centralizados transnacional, dando, em conseqüência, uma cidadania de dimensão
transnacional.
Tal como se vem colocando ao longo deste despretensioso texto, a globalização,
embora alcance todo o mundo, vem se apresentando em estágios diferenciados e ganhando
feição regional. Assim vão surgindo ordens jurídicas comunitárias igualmente
regionalizadas, das quais se tem concretização maior e mais consistente na Comunidade
Européia, e a evolução do processo sugere fortemente aos outros blocos ainda que
inicialmente econômica e progressivamente jurídica, caminha em direção a um modelo
parecido com o adotado pela Europa.
Apontando o sentido para a montagem estrutural de convivência de ordens
nacionais, com competências específicas e, ordem regional comunitária, também com
órbita específica, e, portanto, consequentemente, com uma cidadania nacional, vinculada
ao Estado-Nacional, e simultaneamente, uma cidadania comunitária, vinculada aos blocos
regionais.
A alternativa que vem se afigurando para corresponder a este quadro é a
Construção de um Direito Comunitário, originariamente fruto da elaboração
jurisprudencial das Cortes Internacionais, mas que, com a maturidade do processo e pelas
características que apresenta, pode fortalecer a institucionalização dos blocos regionais. Aí
se insere com inteira compatibilidade um Parlamento Transnacional, com o papel também
de exercer a função precípua de legislativo do sistema. Umberto Forte orienta utilmente
neste sentido, oferecendo uma idéia de Direito Comunitário nos seguintes termos: 54
"Podemos definir o Direito Comunitário, de um lado, como o conjunto
de normas vinculantes para as instituições comunitárias e para os
Estados-Membros, sancionadas principalmente pelos Tratados, e, de
outro lado como o conjunto de normas contidas em alguns atos
qualificados das instituições comunitárias.
Considerando, portanto, em sua totalidade, o direito comunitário
mostra-se como corpus harmônico, ainda que em seu âmbito possa
operar-se uma hierarquia de fontes".
53
Lachs Manfred. op. cit., loc. cit.
54 Umberto Forte, União européia - comunidade econõmica européia: direito das
comunidades européias e harmonização fiscal, São Paulo:Malheiros Editores, l994.,
p.31.
80
As comunidades, observa Forte, não são Estados, não vem, por enquanto, constituir
Estado Transnacional, mas guardam traços importantes de afinidades e semelhanças,
especialmente porque ensejam construção de Ordenamentos Jurídicos e estruturam Órgãos
com competências específicas, os quais, por seu turno, editam normas capazes da produção
de efeitos no âmbito da comunidade respectiva, versando sobre matérias de interesse e das
relações de natureza comunitária.
Para os fins deste texto consideram-se as idéias de Órgãos Comunitários e a idéia
de Sociedade Comunitária, para extrair as bases justificadoras de um Parlamento, seja
como editor do ordenamento comunitário, seja como mecanismo da representação política
democrática da sociedade. Ambos deslocanm-se da perspectiva de representações
estritamente governamentais, próprias das relações interestatais, já que as comunidades são
articulações de sociedades e estados, cujos os governos vem a ser meros integrantes e não
propriamente atores plenos.
É exatamente com este entendimento que se vai especular acerca das possibilidades
de um Parlamento Latino Americano, certamente que vinculado a um Ordenamento
Jurídico Comunitário que lhe seja respectivo, vislumbrando como conseqüência da
evolução da experiência do Mercosul, ora em curso.
Dentre os motivos que se entendem imperativos para o caminho da
institucionalização está o da paz, decorrente da convivência política das e nas comunidades
próximas, geográfica ou politicamente. Há de haver necessariamente, insiste-se, um canal
de manifestação política que não se pode reduzir aos mecanismos pertinentes, apenas, aos
Estados-Nacionais. Hão de ir além, considerando a sociedade comunitária como um todo,
no sentido em que alude Habermas.
Ora, a alternativa disponível é a da criação de mecanismos institucionais de
natureza política que sejam capazes de articular as sociedades nacionais e a comunitária, as
instituições nacionais e comunitárias, também num contexto de democracia representativa,
mas de representação obviamente complexa, como o é o quadro, onde precisarão estar
presentes a sociedade, os estados e suas divisões internas, de sorte a espelhar com a
possível fidelidade a representação pretendida.
Este caminho delicado, cheio de marchas e contramarchas, háo de ser percorrido,
com as limitações e entraves próprios, não apenas do que é novo, mas do que é em certo
grau necessário.
Sem dúvida que isto já é bastante para configurar a necessidade de que a estrutura
jurídica dos Estados-Nacionais, ser adaptada, adequada, de forma a articular-se com outros
e, mais do que isto, estabelecer a ligação com um sistema em comum, abrangente a todo o
espaço de integração.
Sendo capaz, assim de cobrir o que podemos chamar de macro-relações, mas,
também as micro-relações, abrangendo, assim, instituições e pessoas, soldando a
comunidade, possível é claro, mas instrumentando a administração da conflitividade
natural das relações humanas em todos os níveis e dimensões, sempre e invariavelmente
através do Direito, instrumento pacificador e harmonizador das relações entre os homens,
seu destino final e mais nobre.
O que se busca demonstrar, ao fim e ao cabo, é que as mudanças ocorridas no
mundo em razão da tecnologia e da informação, provocaram substancial mudança também
na organização econômica e, consequentemente, política.
81
Assim, tornou-se imperativo que o Estado-Nacional sofresse um processo de
adaptação equivalente, de forma a tornar possível a inserção dele no contexto mundial que
se desenha, e que já se descreveu até aqui, não sendo todavia excesso trazer à colação as
considerações bem atuais de Ohmae 55 , vislumbrando o que denomina de "civilização
transnacional": "Nos antigos mapas econômicos, os fatos cartográficos mais importantes
estavam associados a coisas como a localização dos depósitos de matérias-primas, as
fontes de energia, os rios navegáveis, os portos marítimos, as ferrovias, as estradas
pavimentadas - e as fronteiras nacionais. Nos mapas atuais, em contraposição, os fatos
mais salientes são o alcance das transmissões de TV via satélite, as áreas cobertas por
sinais de rádio e o alcance geográfico dos jornais e das revistas. A informação substituiu
a proximidade e a política como o fator mais provável de moldar os fluxos de atividade
econômica. O terreno físico e as fronteira políticas importam, é claro, mas nenhum deles e especialmente não as fronteiras políticas - importa tanto como o que as pessoas sabem,
desejam ou valorizam.
Em certo sentido, os fatores intangíveis do conhecimento, do gosto e da
preferência locais desempenharam sempre um papel formador crucial.
Muito antes do adventos dos Estados-Nações, muito antes que as cidades
e as aldeias das quais eles surgiram assumissem uma forma
reconhecível, grupos de pessoas vinculadas por laços sociais e culturais
trocavam regularmente o que conseguiam caçar, pescar, colher, coletar,
extrair ou fabricar. Os horizontes significativos de suas vidas eram
circunscritos não pelo artifício das instituições políticas formais, mas
pela terra em que viviam e pelos laços sociais que os uniam. Mesmo no
mundo moderno, ou seu emaranhado de fronteiras políticas, centenas d
milhões de pessoas - por exemplo, camponeses em áreas remotas da
China - vivem mais ou menos da mesma forma."
O interessante estudo do citado autor, arremata, demonstrando que as relações
econômicas no mundo da informação mudaram completamente o panorama geopolítico,
assim que, observa :
"Em face de uma demanda insistente e bem-informada, a capacidade dos
Estados-Nações de impor opções econômicas individuais fica cada vez
menor. Caso tentem fazê-lo de forma demasiadamente restritiva, os
fluxos de capital com base eletrônica tomarão outro rumo, penalizando
suas moedas e deixando-os sem recursos para investimentos. Além disso,
as transações individuais migrarão para canais fora de seu campo de
visão, bem como fora do seu alcance." 56
Exatamente, o que entendemos e propomos é que tais mudanças tragam como
conseqüência a adoção da estratégia dos Estados-Nacionais de formação, dentro de suas
possibilidades e com as suas características de blocos-regionais, dando feição nova às
fronteiras comuns, e buscando interesses comuns, que superem divergências. E o
instrumento disponível para tal, é, sem dúvida, o Direito.
55
56
Kenichi Ohmae, O fim do Estado-Nação, São Paulo: Campus, 1999, p.22.
op. cit. p.33.
82
2. Direito e Relações Internacionais
Diante da demonstração das mudanças da organização do mundo, da cultura e das
circunstâncias gerais da organização humana, temos que as relações internacionais, numa
parte substancial delas, modificam-se, também, diante do imperativo de adaptação aos
novos tempos, até mesmo como forma de resistir às pressões internas e externas da
sociedade de informação.
O caminho escolhido, o da integração, tem se tornado objeto de preocupação dos
governos nacionais, os quais estão buscando desenvolver as suas habilidades e capacidades
neste sentido. Observa Bernando Klisksberg 57 : "La administración pública necesaria
deberá ser eficiente en el manejo de los complejos procesos de gestión que supone la
puesta en marcha de amplios programa de integración. deberá anticipar los problemas
involucrados y diseñar e implementar mecanismos que facilitem al máximo su solución. A
efecto de que integracións regional pueda realmente avanzar, deberá predominar en el
aparato público en este campo, una mentalidad antiburocrática, ágil y dinámica,
reemplazando a la acción burocratizante que ha caracterizado el pasado inmediato.
La administración pública necesaria deberá emplear las importantes capacidades
econômicas, humanas y técnicas que concentrem los Estados de la región, para
movilizarlas en operaciones integradas de envergadura, que les permitam negociar en
conjunto condiciones adecuadas en multiples campos desde la quisición de insumos y la
transferência de tecnologia,a la misma negociación financiera. debe tener una definida
orientación hacia el empleo activo de estas posibilidades y buscar creativamente nuevos
espacios de integración."
E prossegue sustentando que a integração produtiva, desde a construção da vontade
política, possibilita o aproveitamento e a multiplicação das possibilidades econômicas,
que, ultrapassando os limites do nacional, vão até o espaço e recursos da região, através da
realização de projetos comuns.
Construindo assim uma rede de organismos necessários ao intento, superando as
dificuldades de conexão existentes entre seus componente, buscando a estruturação, ou,
como dizem os autores da União Européia, a construção de organismos próprios da
integração, que vem a ser a institucionalização do processo de integração, como sendo a
elaboração de estruturas jurídico políticas regionais, com âmbito de validade sobre o
espaço de integração, como se pretende, numa visão mais europeizada.
Assim posto, sem dúvida que o papel do direito nas relações internacionais muda.
Se na sua concepção tradicional está centrada no universo de relações entre Estados e
Organismos que preservam a todo o custo os seus pontos de vista, com o exercício da
vontade soberana restrito à precariedade e a sutileza característica das relações entre
soberanias à maneira clássica, hoje, a tendência, como se pretende demonstrar, caminha
em sentido diverso, já que persistem de alguma formas as relações tradicionais. Surgem,
progressivamente outra sorte de relações, onde os Estados buscam a trilha de uma reunião
em torno de interesses comuns cada vez mais acentuados e reciprocamente importantes.
57 Bernardo Klisksberg, Como transformar al estado ? más allá de mitos y dogmas,
México: Fondo de Cultura Econômica, 1993, p. 28-29.
83
Ensina Hildebrando Accioly, consideradas a linhas gerais da
visão tradicional
das relações internacionais e do direito internacional, que: "O direito internacional público
(DIP) é o conjunto de normas jurídicas que regulam as relações mútuas dos Estados e,
subsidiariamente, das demais pessoas internacionais, como determinadas organizações
intergovernamentais e dos indivíduos." 58 Bem afeita a esta formulação, como se vê, um
direito vigendo para e nas relações entre estados e organização, e só a eles, tendo como
centro e referências as individualidades de cada qual, sendo, dessarte, tradicionalmente um
"direito interestatal", como expõe Albuquerque Mello 59 .
Descrevendo o quadro atual, que é o que de certa forma se nos afigura, Gelson
Fonseca Jr. oferece explicação que serve para justificar a adoção das estratégias de
agrupamento regionais e formação de blocos de Estados. Sobretudo reune e conjuga
esforços e recursos em torno de interesses comuns, para fortalecer suas posições nas
relações tanto de cada qual como do conjunto, na comunidade internacional, exatamente
diante da complexidade e precariedade das hegemonias internacionais com capacidade real
de ordenarem o mundo, ainda centrado na concepção tradicional de soberania.
Assim é que aponta os fatores de complexidade das relações internacionais atuais,
apontando: "Quando se analisam as relações internacionais contemporâneas, um dos
aspectos complexos é justamente a dessincronia entre os processos econômicos, por
natureza, lentos, cumulativos e incrementais, e os políticos que, neste momento, diante da
rapidez e dramaticidade de transformações, como a fragmentação da União Soviética, vão
impondo, com correspondente rapidez, soluções e acerto novos. Os processos políticos
têm tempo próprio e não podem esperar a lenta sedimentação da geografia econômica.
Ademais a multipolarização econômica ainda nãos e reflete de maneira clara nas questões
estratégicas e de segurança, como mostra o Prof. Luciano Martins. Uma das
conseqüências dessa situação é, em contraste com o imediato pós-Segunda Guerra
Mundial, a dificuldade de definir quais serão os atores hegemônicos e, sobretudo, como se
exercerá a hegemonia.
Em um sistema em que os atores são soberanos, a ordem é constituída mais pela
política do que pela lei. A estabilidade está sendo constantemente "corrigida" pela
dinâmica política. Daí, o papel-chave dos processos hegemônicas. Em modelo ideal, a
hegemonia se realizaria através de um país ou grupo de países, que disporiam dos
elementos econômicos, militares, políticos, necessários para "ordenar" o mundo, ou seja,
dar as regras da precária estabilidade que normalmente acompanha o sistema
internacional. Ora, num tempo de mutações rápidas, como o nosso, a constituição da
hegemonia se torna, então, especialmente complexa." 60
A construção desta multiplicidade de hegemonias, ainda que com hierarquização
entre elas, é a tarefa da contemporaneidade. Surge, assim, uma feição nova para o papel do
Direito no contexto das relações internacionais, acentuando Vicente Marotta Rangel a
58 Accioly Hildebranco, Manual de Direito Internacional Público (atualizado por
Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva), São Paulo: Saraiva, 1996, p.1
59
Celso d. de Albuquerque Mello, Direito Internacional Público, Rio de Janeiro:
Renovar, v. 1,1977, p. 42.
60 Gelson Fonseca Jr., Sobre poder e legitimidade nas relações internacionais
contemporâneas. In: A nova ordem internacional e a terceira revolução industrial,
coordenação de João Paulo dos Reis Velloso, Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1991, p. 132-133.
84
respeito desta nova conformação: "Importa, de outro lado, notar que a área de aplicação
do direito internacional penetra, de forma progressiva, setores que tradicionalmente eram
reservados ao direito interno dos Estados. Ele o faz de maneira envolvente, à medida em
que se atenuam as rígidas barreiras outrora erguidas entre os dois ordenamentos
jurídicos, que se contesta à vontade estatal a qualidade de congregar, com exclusividade,
a norma de direito, e se proclama ao mesmo tempo sujeito de direito internacional.
O domínio do direito das gentes não mais se estende apenas, como o dissera certa
feita Alphonsus Rivier, desde o boudoir" da embaixatriz até o campo de batalha... Alargase a muito mais, os fatos impostos pela transformação da estrutura material do mundo, a
concepções destinadas a explicá-los. Fala, por outro lado, linguagem mais direta e menos
esotérica. Inclína-se para os sofrimentos da humanidade e se torna porta-vos das suas
esperanças. "Desceu do Olimpo para misturar-se com a multidão". E a sua intervenção se
torna necessária toda a vez que a regulamentação de um problema se torna válida para
mais de um Estado." 61 .
Estabelecida uma ordem econômica internacional complexa e extremamente
mutável, a propósito do que Luciano Martins comenta: "Acrescenta-se a essas dificuldades
que a referência ora a países individuais, ora aos "blocos" que eles integram e nos quais
são subsumidos, quando se consideram as tendências à regionalização, constituem um
complicador adicional para representar a ordem mundial." 62 , há um esforço substancial
na busca de alguma estabilidade, seja das relações internacionais, seja das organizações daí
decorrentes mesmo, e, sem dúvida que é ao direito que toca este papel, como instrumento
de organização e harmonização entre os sujeitos das relações em todos os níveis, num
contexto ético, humanístico e equilibrado, em conseqüência do que ou mais estável, ou,
quando precariamente, menos instável.
Independentemente da referência teórica usada para entender o fenômenos do
direito, se monista, pluralista, ou qualquer das suas variações, como aponta Boson 63 , e
mesmo também considerado o obstáculo oposto pela soberania dos estados, ponto ainda,
complexo e delicado, que de certa forma se presta como elemento de divisão dos
entendimentos, como aponta o mesmo Boson 64
"E nisto - na soberania - vai uma das flagrantes diferenças entre o
Direito Internacional e o Direito Constitucional numa Federação. No
estado federal, o Direito Constitucional persistirá, ainda que
transformado o Estado, com a eliminação da soberania lateral,
horizontal dos Estados-Membros, ao passo que o Direito Internacional
não persistirá com a sua eliminação. Surgirá um Direito Constitucional
Planetário, ou um Direito Político Universal, que o substituirá, com
certeza."
61
Vicente Marotta Rangel, Direito e Relações Internacionais, São Paulo: RT,
1993, p.14.
62 Luciano Martins, Uma introdução ao debate sobre a norva ordem internacional.In: A
Nova Ordem Internacional e a Terceira Revolução Industrial, cvoordenação João Paulo
dos Reis Velloso, Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991, p.10
63 Gerson de Britto Mello Boson, Direito Internacional Público: o Estado em Direito das
Gentes, Belo Horizonte,Del-Rey, 1994, p.134-165.
64
op. cit. p.106
85
Cabe ao Direito instrumentar a reorganização em curso, acomodando as diferenças
e discrepâncias, pelo que se impõe a alteração do conteúdo de conceitos como soberania, e
o reamoldamento das distinções entre o Direito Interno e o Internacional, além do
nascimento do Comunitário. Obviamente que, para esta remoldagem de parâmetros e
estruturas, urge a adaptação das constituições dos Estados, de forma a receber e acolher os
frutos destas mudanças que se vêm dando por imperativo econômico, tecnológico e
político. Não é sem razão que Pascual Caiella pondera:
"La creación, organización y funcionamiento de una comunidad
económica y eventualmente política y social, o de un mercado común,
trae aparejado una série de problemas jurídicos de Derecho Público,
que necesáriamente deben resolverse, tales como el referido a la
primacía o jerarquia de los órdenes jurídicos y aún mas, de la eventual
autonomia del Derecho Comunitário respecto del Derecho Internacional
Público, es decir como in veradero orden jurídico autônomo e
independiente." 65
A tarefa que se afigura no contexto dos novos moldes das relações internacionais,
aí incluídos os processos de "blocos-regionais", implica na convivência de três ordens
jurídicas distintas e com papéis específicos: Direito Interno, Direito Internacional e Direito
Comunitário, pertinentes, respectivamente, aos Estados individuais, à Comunidade
Internacional como um todo e às regiões compreendidas nos espaços de integração
regional na formação dos blocos. Evidentemente que isto passa pela necessidade imperiosa
de remoldagem, também e principalmente do direito interno, e muito especialmente no que
tange ao direito público.
Sem dúvida que o Direito Constitucional interno há de sofrer alterações e
remoldagem para acolher os novos complexos normativos que estão em surgência,
cabendo-lhe a tarefa e, sobretudo, o desafio, de compatibilizar entre sí as diversas formas
do exercício das soberanias nacionais, no contexto dos novos tempos e da nova
organização mundial, mas, também, regional, pois, como aponta Daniel Sarmento: “O
Direito, como não poderia deixar de ser, não assiste impávido a estas transformações. A
globalização aprofunda a crise dos paradigmas do Direito Moderno, construídos ao
longo de séculos de história e tradição. As novas variáveis econômicas, políticas e sociais
emergentes do processo de globalização implodem os pilares fundamentais sobre os quais
se alicerçou o pensamento jurídico ocidental, desafiando o jurista a reexaminar os
institutos e conceitos que formam o seu instrumental técnico sob novas perspectivas,
despindo-se de preconceitos e dogmas.
No Direito Constitucional, este quadro ganha contornos ainda mais dramáticos, já
que os conceitos-chave que formam o arcabouço teórico da disciplina, como os de Estado
e Soberania, passam a ser questionados e relativizados, levados pelo "arrastão" da
globalização. Instaura-se, com isso, um verdadeiro "mal-estar no constitucionalismo", na
medida em que os seus fundamentos basilares vão se revelando anacrônicos, e não
65 Pascual Caiella, Problemas relativos a la compatibilización de los derechos
constitucionales y el derecho comunitário. In: Direito Global, coordenação de Carlos
Ari Sunfield e Oscar Vilhena Vieira, São Paulo: Max Limonad, 1999, p.49
86
surgem novos modelos teóricos suficientes para enquadrar, sob o ângulo jurídico, a
realidade contemporânea das nossas comunidades políticas." 66
66 Celso Albuquerque de Mello (coord.) Constituição e Globalização: a crise dos
paradigmas do Direito Constitucional. In:
Anuário Direito e Globalização - a
soberania - 1, pidig, Programa Interdisciplinar Direito e Globalização UERJ, Rio de
Janeiro: Renovar, 1999, p.53-70.
87
Texto preparado para o Congresso Jurídico Globalización, Riesgo y Medio Ambiente, a ser
realizado entre 3 a 5 de março na Universidade de Granada, por convite dos professores
Pedro Mercado e Esteban Pérez Alonso. Agradeço a Evorah L. Cardoso pela leitura e
comentários.
A GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E SUA ARQUITETURA JURÍDICA
(DEZ TENDÊNCIAS DO DIREITO CONTEMPORÂNEO)
José Eduardo Faria
Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo
Pós-doutor pela Winsconsin University (Estados Unidos, 1984)
Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.
Globalização é um conceito aberto e multiforme, que envolve problemas e
processos relativos à abertura e liberalização comerciais, à integração funcional de
atividades econômicas internacionalmente dispersas, à competição interestatal por capitais
voláteis e ao advento de um sistema financeiro internacional sobre o qual os governos têm
decrescente capacidade de controle. Nesta perspectiva, globalização é um conceito
relacionado às idéias de “compressão” de tempo e espaço, de comunicação em tempo real
e dissolução de fronteiras geográficas, de multilateralismo político e de policentrismo
decisório.
Por seu caráter polissêmico, globalização também é um conceito impreciso e por
vezes enganoso, que há duas ou três décadas tem sido recorrentemente utilizado quer na
mídia quer nos meios acadêmicos para designar os mais variados tipos de fenômenos.
Alguns são novos, outros são antigos – mas todos esses fenômenos guardam algum grau de
conexão entre si, a partir do extraordinário desenvolvimento de serviços de alto valor
agregado em termos de conhecimento intelectual, informatização dos sistemas de gestão e
produção, desregulamentação dos mercados financeiros e internacionalização do setor
bancário, transnacionalização dos capitais, substituição da hierarquia pela idéia de rede
como forma organizacional, movimentação cada vez mais livre de mercadorias, serviços,
tecnologia e informações, da intensificação das relações sociais e aumento na abrangência
geográfica das interações sociais localmente relevantes.
Entre os fenômenos mais conhecidos no campo econômico, destacam-se, por
exemplo, as novas formas de configuração de poder decorrentes do aumento do
intercâmbio comercial em mercados intercruzados e da internacionalização do sistema
financeiro; a universalização e acirramento da concorrência em escala planetária; o
avanço da mercantilização da propriedade intelectual e do patrimônio genético
constitutivo da biodiversidade; a concentração do poder empresarial e a subseqüente
consolidação de um sistema de corporações mundiais cujas redes formais e informais de
negócios tendem a enfraquecer progressivamente o poder dos Estados; a mobilidade quase
ilimitada alcançada pela circulação dos capitais e o crescente peso da riqueza financeira na
riqueza total. No centro dos novos processos econômicos, além das atividades
especificamente produtivas comerciais e financeiras, encontram-se atividades de seguro,
88
consultoria técnica e contábil, publicidade, desenho e marketing, relações públicas,
segurança, software, gestão de sistema de informação e serviços legais.
Entre os fenômenos mais conhecidos no plano institucional, destacam-se a
crescente internacionalização das decisões econômicas; a subseqüente dificuldade do
sistema político convencional de estabelecer regras do jogo estáveis e consistentes; uma
crescente porosidade na linha de demarcação entre o Estado e a sociedade; e, por fim, o
esvaziamento da idéia de território como fundamento e objeto do Estado e, por tabela, a
relativização da importância das fronteiras territoriais, uma vez que as atividades sociais,
comerciais e financeiras passam a depender de pessoas, coisas e ações dispersas pelos
cinco continentes. Na medida em que a globalização é assimétrica, conduz à
interdependência e à regionalização e provoca uma diversificação crescente dentro de cada
região, ela introduz novas lógicas espaciais e também cria novas dinâmicas intra e interregionais, estimulando com isso a expansão de formas de coordenação política nãohierárquicas e com geometrias variáveis.
Entre os fenômenos mais conhecidos no campo cultural, destaca-se a expansão das
fronteiras eletrônicas que dá a indivíduos e grupos sociais condições de estabelecer
contatos muito além das fronteiras territoriais, propiciando novos marcos de significado,
independentemente do contato direto com as pessoas. Do mesmo modo, a disseminação
correio eletrônico e o advento de comunidades virtuais no espaço cibernético permite a
esses mesmos indivíduos e grupos acessar uma gama de novas experiências sociais e
culturais, o que abre caminho para a articulação de ações conjuntas entre diversos atores e
instâncias, possibilitando respostas oportunas e problemas comuns. E quanto mais esse
processo se aprofunda, mais tende a alterar as configurações de crença, fidelidade e
lealdade, desafiando a idéia de um mundo centrado no Estado-nação e, com isso, pondo
em xeque as concepções tradicionais de cidade.
Como se vê, globalização não é necessariamente um destino – pelo contrário, é
uma extensa gama de problemas, dilemas e aporias. Assumindo-a assim como um
processo multicausal, multidimensional, multitemporal e multicêntrico, que relativiza as
escalas nacionais ao mesmo tempo em que amplia e intensifica as relações econômicas,
sociais e políticas, o objeto deste trabalho é verificar como a globalização -especificamente
a econômica- vem afetando a estrutura, a funcionalidade e o alcance do direito positivo.
Isto porque normas jurídicas editadas e aplicadas no âmbito de uma realidade dominada
por forças e dinâmicas globais, que ultrapassam os marcos institucionais nacionais
tradicionais, tendem a perder a capacidade de ordenar, moldar, conformar e regular a
economia e de reduzir incertezas, estabilizar expectativas e gerar confiança na sociedade.
Leis e códigos, em face dos novos paradigmas de produção, das novas tecnologias de
informação e dos novos canais de comunicação, enfrentam dificuldades para promover o
acoplamento entre um mundo virtual emergente e as instituições do mundo real.
Instrumentos jurídicos destinados a corrigir os desequilíbrios produzidos pelas operações
de mercado, preservar a livre concorrência, coibir monopólios e promover orientações
sociais, entre outras funções, já não se revelam eficazes.
Diante do número cada vez maior de sistemas de interação econômica, social e
política fora de seu controle, por um lado, e da crescente complexidade tecnológica da
sociedade contemporânea, por outro lado, o Estado não tem capacidade técnica para ser o
único centro normativo em questões complexas, e que exigem expertise e tratamento
internacional unificado em matéria de finanças, moeda, comércio, clima,biotecnologia,
proteção ambiental, combate ao terrorismo e segurança, por exemplo. Com isso, ele é
89
obrigado a delegar poder normativo e, mais importante ainda, a se render ao fato de que os
atores sociais cada vez mais se regulam a si próprios.
Dentre os fatores responsáveis por essa crise de funcionalidade do direito positivo,
apenas dois serão apontados neste trabalho (quanto aos demais, ver Faria: 2009). O
primeiro fator é o aumento, em ritmo de progressão geométrica, do processo de
diferenciação sócio-econômica da sociedade contemporânea. O segundo fator está
relacionado ao chamado fenômeno da “relocalização industrial”. Ou seja, às novas formas
de organização econômica, aos novos padrões de acumulação, à universalização das
disputas comerciais, ao advento das offshore factories e às alterações nos paradigmas
tecnológicos resultantes do avanço dos sistemas de comunicação e transportes após a crise
do petróleo nas três décadas finais do século 20 – o maior choque econômico após o
término da Segunda Guerra Mundial.
No que se refere ao primeiro fator, cada vez mais os sistemas técnico-científicos,
produtivos, financeiros e comerciais tendem a se especializar e a se diferenciar
funcionalmente com base em novas especializações. E, ao atuar em áreas crescentemente
específicas, eles produzem suas próprias regras, elaboram seus próprios procedimentos e
forjam suas próprias racionalidades, regulando suas operações. Em outras palavras, são
sistemas funcionalmente autônomos -cognitivamente abertos, mas operativamente
fechados- que geram dentro de si os sentidos que os especificam. Essa tendência dos
diferentes sistemas à autonomia por sua vez amplia extraordinariamente a complexidade
do sistema jurídico. Ela também dificulta o trabalho de produção normativa por parte do
legislador tradicional, na medida em que corrói os princípios de representação
institucional, legal e política de caráter universalista e unitário. E ainda leva a legislação
por ele editada a ter sua efetividade condicionada à aceitação de suas prescrições
justamente pelos distintos sistemas e subsistemas que ela deveria disciplinar, enquadrar,
regular e controlar, pondo assim em xeque a centralidade dos poderes públicos. Posta a
questão de outro modo, se a autonomia é, por definição, auto-regulação, como seria
possível a efetividade do direito positivo, enquanto regulação externa dos sistemas?
No que se refere ao segundo fator, relativo à reordenação dos espaços econômicos
e das novas formas organizacionais do capitalismo globalizado, o que merece destaque é a
fragmentação da produção. Ela é particularmente importante porque, no âmbito da nova
divisão internacional do trabalho, o acirramento e a universalização da competição
levaram grandes empresas e conglomerados mundiais a procurarem extrair todas as
vantagens possíveis da localização de suas atividades produtivas, especialmente as
intensivas de mão-de-obra. Graças à substituição das enormes e rígidas plantas industriais
de caráter fordista-taylorista por plantas mais leves, enxutas, flexíveis e multifuncionais,
empresas e conglomerados podem distribuir entre distintas cidades, regiões, nações e
continentes as diferentes fases de fabricação de seus bens. Essa facilidade de transferir
suas plantas industriais lhes dá um extraordinário poder para barganhar o lugar de sua
instalação com as diferentes instâncias dos poderes públicos de qualquer Estado, em troca
de incentivos fiscais, isenções tributárias, empréstimos com juros subsidiados, infraestrutura a custo zero e adaptação das legislações social, trabalhista, previdenciária,
ambiental e urbanística às suas necessidades e interesses. Com isso, as disputas para atrair
investimentos diretos muitas vezes acabam ganhando contornos por vezes verdadeiramente
selvagens e predatórios, em termos de renúncia, pelas diferentes instâncias do poder
público, de parte de sua autonomia decisória e de sua soberania fiscal.
90
Diante do policentrismo que hoje caracteriza a economia globalizada, por um lado
rompendo a congruência entre Estado nacional, economia nacional e cidadania, e, por
outro, pondo em xeque os princípios básicos da soberania (como supremacia,
indivisibilidade e unidade do Estado), o direito positivo e instituições judiciais passam a
enfrentar enormes limitações estruturais. Uma delas é redução de parte de sua jurisdição.
Como foram concedidos para atuar dentro de limites territoriais precisos, com base nos
instrumentos de violência monopolizados pelo Estado, o direito positivo e os órgãos
encarregados de aplicá-lo têm seu alcance reduzido na mesma proporção em que as
barreiras geográficas vão sendo superadas tanto pela expansão das tecnologias de
informação e produção, das redes de comunicação e dos sistemas de transportes quanto
pela justaposição e intercruzamento de novos centros de poder. Com isso, direitos sociais e
direitos econômicos associados à regulação dos mercados nacionais perdem eficácia à
medida que a globalização altera as condições materiais de proteção de seus detentores
formais.
Quanto maior é a velocidade desse processo, mais o direito positivo e os tribunais
tendem a ser atravessados no seu papel garantidor de controle da legalidade por
normatividades paralelas. As normatividades emergentes nos espaços infra-estatais
(municipais ou provinciais), surgidas das necessidades reais de diferentes setores sociais
cujos interesses substantivos e expectativas normativas não encontram a acolhida
necessária nas instituições jurídico-judiciais formais. E as normatividades que têm sido
forjadas nos espaços supra-estatais (regionais ou mundiais), fortemente condicionadas
pelos processos de harmonização legislativa, unificação normativa e disciplinamento
organizacional inerentes ao fenômeno da globalização econômica e às experiências de
integração regional.
No primeiro caso, por exemplo, estão florescendo os mais variados procedimentos
para-estatais de resolução de conflitos, sob a forma de mecanismos de mediação,
conciliação, arbitragem, auto-composição de interesses e auto-resolução de divergências
(além da imposição da lei do mais forte nas áreas periféricas das grandes regiões
metropolitanas que -como é o caso do Rio de Janeiro, Caracas ou Johannesburgo- são
controladas pelo narcotráfico e por milícias). No segundo caso, vão sendo reformulados e
ampliados em progressão geométrica os mecanismos reguladores e controladores dos mais
diversos organismos multilaterais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional, a Organização Mundial do Comércio, o Banco para Compensações
Internacionais ou a União Européia, o Nafta, o Mercosul, etc.
Paralelamente, e de modo igualmente veloz, também vão se expandindo as
agências de classificação de risco, que atuam como verdadeiros tribunais na avaliação das
políticas econômicas nacionais, bem como a normatividade auto-produzida por
conglomerados empresariais, por instituições financeiras e por redes de comercialização de
bens e serviços para disciplinar suas atividades. Trata-se de uma normatividade peculiar,
que não tem jurisdição sobre territórios – na realidade, ela recai sobre mercados e cadeias
produtivas, independentemente de sua localização físicas. Em outras palavras, se os
mercados são mundiais, cada segmento, setor ou ramo de atividade exige um tratamento
jurídico uniforme, concebido na medida de suas especifidades. Operando por meio de um
corpo de regras técnicas, códigos de auto-conduta, memorandos de entendimento e práticas
e princípios mercantis forjados nas redes transnacionais de produção e comércio, este tipo
ou padrão de normatividade tem por objetivo de regular o acesso a mercados, balizar e
disciplinar transações e propiciar critérios, métodos e procedimentos para a resolução de
litígios, por meio de mecanismos arbitrais.
91
Atualmente, pelo menos 1/3 das atividades das 65 mil corporações transnacionais
atuantes na economia globalizada, por meio de 850 mil firmas e subsidiárias, empregando
54 milhões de pessoas em todo mundo e com vendas internas e externas estimadas em US$
19 trilhões, é realizado por elas próprias (Adda: 2006). Como conseqüência, isto faz do
comércio intra-firmas uma importante fonte autônoma de princípios, regras e
procedimentos jurídicos - ou seja, de produção privada de direitos. Dito de outro modo, as
relações contratuais entre essas corporações constituem uma forma de organização privada
da produção, da comercialização e da distribuição, estabelecendo situações de poder
desiguais e de dependência, com uma lógica de subordinação, domínio, solidariedade e
cooperação. São relações contratuais contínuas, que se prolongam no tempo e que forjam
usos, costumes, obrigações de lealdade e hierarquias informais. Com seus esquemas de
coerção disciplinar e controle operacional assegurando sua coesão funcional, essa
organização privada das atividades produtivas e comerciais encerra assim mecanismos
difusos e relacionais de poder, ramificados por formas locais e regionais que se
materializam nas práticas organizacionais das empresas com atuação transnacional,
ultrapassando os limites das normas e procedimentos do ordenamento jurídico dos
Estados-nação.
Outra limitação estrutural do direito positivo e suas instituições judiciais diz
respeito à incompatibilidade entre seu perfil arquitetônico e a já mencionada complexidade
da sociedade contemporânea. Suas normas tradicionalmente padronizadoras, editadas com
base nos princípios da impessoalidade, da generalidade, da abstração e do rigor semântico
e organizadas sob a forma de um sistema unitário, lógico, fechado, hierarquizado, coerente
e postulado como isento de lacunas e antinomias, são singelas demais para dar conta de
uma pluralidade de situações sociais, econômicas, políticas e culturais cada vez mais
diferenciadas. Seu formalismo impede a visão da complexidade sócio-econômica e da
crescente singularidade dos conflitos. Seus princípios gerais, suas regras e seus
procedimentos não mais conseguem regular e disciplinar, guardando a devida coerência
sistêmica, fatos multifacetados e heterogêneos. No entanto, como o Estado não pode deixálos sem algum tipo de controle, ele se vê obrigado a editar normas ad hoc para casos
altamente específicos e singulares. E quanto mais sua produção normativa caminha nessa
linha, aumentando o número de textos legais com um potencial de aplicação bastante
circunscrito no tempo e no espaço, mais o direito positivo vai se expandindo de maneira
confusa e desordenada. As micros-racionalidades surgidas com essa expansão caótica
revelam-se incapazes de convergir em direção a uma racionalidade macro, de tal modo
que, numa situação-limite de “hiperjuridicização” ou “sobrejuridificação”, o direito
positivo já não conta mais com uma hierarquia de normas e leis minimamente articulada e
com princípios integradores compatíveis entre si. Deste modo, face à sua pretensão de
abarcar uma intrincada e contraditória pluralidade de interesses, disciplinar
comportamentos altamente particularísticos e balizar a ação de uma enorme multiplicidade
de operadores e atores jurídicos, ela acaba perdendo sua organicidade programática, sua
racionalidade sistêmica, sua força diretiva – numa palavra, toda sua potencial efetividade.
Diante da integração dos sistemas produtivo e financeiro em escala mundial, do
enfraquecimento da capacidade de controle e intervenção sobre os fluxos internacionais de
capitais pelos bancos centrais, da porosidade entre poderes locais, regionais e supranacionais e interesses empresariais, da crescente autonomia de setores econômicos
funcionalmente diferencializados e da interpenetração da política internacional com a
política doméstica, o Estado hoje se encontra diante de um impasse (Wilke, 1986;
Teubner, 1997; Jessop, 2003; e Araújo, 2006). Por um lado, já não consegue mais regular a
sociedade e a economia apenas e tão somente por meio de seus instrumentos jurídicos
92
tradicionais e de suas soluções homogêneas ou padronizadoras. Com as intrincadas tramas
e entrelaçamentos promovidos pelos diferentes setores sócio-econômicos no âmbito dos
mercados transnacionalizados e com o advento de situações novas e não padronizáveis
pelos paradigmas jurídicos vigentes, o direito positivo e os tribunais têm um alcance cada
vez mais reduzido e uma operacionalidade cada vez mais limitada. Por outro lado, sem
condições de assegurar uma eficaz regulação direta e centralizadora das situações sociais e
econômicas e pressionado pela multiplicação das fontes materiais de direito, o Estado
perde o controle da coerência sistêmica das leis ao substituir normas abstratas e genéricas
por normas particularizantes e específicas. E acaba, igualmente, vendo seu ordenamento
submetido a uma competição com outros ordenamentos, o Estado atinge os limites de sua
soberania político-jurídica.
A consciência desse impasse pelos legisladores e pelos próprios governantes os tem
levado a rever sua política e técnica legislativas, por um lado almejando desvincular o
Estado de suas atividades controladoras, reguladoras e planejadoras da economia, e, por
outro, rendendo-se à oposição do pluralismo ao monocentrismo jurídico, da diversidade e
da flexibilidade normativa à rigidez hierárquica dos códigos e leis. Para reformular a
estrutura do direito positivo e redimensionar o campo de ação de suas instituições
judiciais, legisladores governantes estão recorrendo a amplas e ambiciosas estratégias de
desformalização, implementadas paralelamente à promoção da ruptura dos monopólios
estatais, alienação de empresas públicas, privatização de serviços essenciais, abdicação do
poder de interferência na fixação de preços, salários e de limites nas contratações
trabalhistas e nas condições de trabalho e cortes nos gastos sociais.
Essa estratégia tem sido justificada, entre outros fatores, por uma espécie de cálculo
de custo/benefício. Sem ter como ampliar quer a complexidade estrutural de seu
ordenamento jurídico quer a complexidade organizacional de seu aparato judicial ao nível
equivalente de complexidade e diferenciação funcional dos diferentes sistemas sócioeconômicos, legisladores e dirigentes governamentais passam então a agir numa linha
pragmática. Afinal, se quanto mais tentam controlar, disciplinar, regular e intervir menos
conseguem ser eficazes, obter resultados satisfatórios e manter a coerência lógica de seu
direito positivo, não lhes resta outro caminho para preservar sua autoridade funcional:
quanto menos procurarem controlar, disciplinar, regular e intervir, menor será o risco de
acabarem desmoralizados pela inefetividade de seu poder regulatório e de seus
mecanismos de controle.
As conseqüências desse processo de descentralização, deformalização,
deslegalização e desconstitucionalização têm sido contraditórias. Por um lado, a
desregulamentação em alguns setores –como no plano econômico-financeiro, por
exemplo- vem sendo promovida paralelamente ao aumento da regulamentação em outros –
como na esfera penal. Muitas vezes, além disso, os projetos de desregulamentação exigem,
como condição básica de sua implementação, uma produção legislativa específica e
altamente minudente (Chevalier, 1998, e Araújo, 2006). Por outro lado, longe de conduzir
a uma situação de vazio jurídico ou de vácuo normativo, a desformalização, a
deslegalização e a desconstitucionalização têm aberto caminho para uma intrincada
articulação de sistemas e subsistemas sócio-econômicos internos e externos, como já se viu
anteriormente.
Desta maneira, a desregulamentação e a deslegalização ao nível do Estado nada
mais são do que uma outra forma de regulamentação e legalização. Esta é uma das facetas
paradoxais da metamorfose que o Estado e seu ordenamento jurídico sofreram.
93
Desregulamentação e deslegalização não significam menos direito – significam, sim,
menos direito positivo e menos mediação das instituições políticas na produção de regras,
em benefício de uma normatividade emanada de diferentes formas de contrato e da
tendência dos diferentes setores da vida social e econômica à auto-regulação e à autocomposição dos conflitos. Ainda que continue permanecendo como referência básica para
os cidadãos, na prática os institutos legais tradicionais perderam sua centralidade e
exclusividade. Eles estão deixando de ser a fonte de legitimação e legitimidade de sistemas
normativos auto-centrados nos limites de um território, abrindo-se progressivamente a
regimes normativos oriundos de organismos multilaterais, entidades internacionais, blocos
regionais e poderes locais, bem como de agentes de mercado que, valendo-se de seu poder
econômico e de seu peso financeiro, muitas vezes convertem faticidade em normatividade.
Com isso, códigos e leis deixam de ser o eixo de um sistema normativo único para se
tornar parte de um poli-sistema (Ladeur, 2004), com fontes supranacionais (como os
organismos multilaterais), fontes privadas (que envolvem práticas regulatórias
desenvolvidas por redes de empresas), fontes técnicas (baseadas na expertise científica) e
fontes comunitárias (fundadas na capacidade de mobilização da sociedade, por meio de
ONGs e movimentos sociais) de direito; mais precisamente, um sistema multi-nível (multi
level system), com regras de alcance local, regional, nacional e trasnacional.
Desregulamentação e deslegalização no âmbito do Estado, portanto, configuram
assim outro modo de regulamentação e legalização em âmbitos não-estatal (Chevalier,
1987; e Santos, 1995 e 2006; e Slaughter, 2004 e 2005). Em termos concretos, trata-se de
uma re-regulamentação e de uma relegalização que ocorrem tanto no âmbito no âmbito de
organismos interestatais e supranacionais, com princípios, valores, lógicas, racionalidades,
procedimentos deliberativos e velocidades decisórias distintos dos órgãos e procedimentos
legislativos dos Estados, quanto no interior dos próprios sistemas e subsistemas sócioeconômicos.
Nesta perspectiva, em suma, os Estados nacionais deixam de ser atores exclusivos e
privilegiados para se converterem num marco político e administrativo, entre vários outros,
nas negociações econômicas e financeiras, por exemplo (Scholte, 2004; e Sassen, 2004)).
Demasiadamente lentos com relação à velocidade das transações globais, seu poder real
somente lhes permite adequar-se a um quadro complexo, que muito o transcende (Ladeur,
2004, e Villechner, 2009). Deste modo, o arcabouço funcional do direito é o de um
conjunto de inúmeros micro-sistemas legais e distintas cadeias normativas que se
caracterizam pela extrema multiplicidade e variedade de suas regras e mecanismos
processuais; pela provisoriedade e mutabilidade de suas engrenagens normativas, uma vez
que as regras já não são mais estáveis, modificando-se no curso dos problemas e
acontecimentos; pela tentativa de acolhimento de uma pluralidade de pretensões
contraditórias e, na maioria das vezes, excludentes; pela geração de conflitos e discussões
complexas, em matéria de hermenêutica, exigindo dos operadores e intérpretes
conhecimentos especializados não apenas de direito positivo mas, igualmente, de macro e
microeconômica, engenharia financeira, contabilidade e compliance, ciências atuariais,
tecnologia de informações e análise de riscos de crédito, mercado, liquidez, tecnológico e
sistêmico.
Num sistema normativo com essas características, e levando-se em conta que
muitos temas, questões e marcos das políticas públicas cada vez mais tendem a ser ditados
por mercados globalizados, alguns conceitos jurídicos tradicionais, como bem comum, fim
social e interesse geral, já não conseguem mais exercer o papel de “princípios unificadores
ou totalizadores” destinados a catalisar, articular, integrar e harmonizar interesses
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específicos em comunidades pluralistas, mas socialmente divididas. Por causa de seu forte
potencial comunicativo e persuasivo, esses conceitos podem continuar sendo
simbolicamente preservados na política legislativa e nos textos legais, sobrevivendo aos
processos de desregulamentação, flexibilização, deslegalização e desconstitucionalização.
Com tudo, já não têm mais o forte peso ideológico e funcional detido à época do advento
do Estado constitucional, da democracia representativa, das modernas declarações de
direitos e das redes jurídicas de proteção social.
Que futuro poderá ter esse tipo de ordenamento jurídico? Se levarmos em conta que
estes últimos anos registraram mudanças profundas na concepção arquitetônica dos
sistemas legais, na quantidade e na complexidade das regulações normativas, na natureza e
no alcance dos conflitos sócio-econômicos, nas estruturas, no conteúdo e nos objetivos dos
códigos e das leis, no volume de informações sobre o direito e na velocidade de sua
circulação e, por fim, nas próprias categorias epistemológicas das diferentes teorias
jurídicas, seria irresponsável tentar oferecer uma resposta objetiva, clara e precisa passa
essa indagação. O máximo que se pode fazer, com a devida prudência e sob o risco de
avaliações precipitadas, é (a) apreender as novas linhas arquitetônicas do Estado, (b)
identificar dez importantes tendências e (c) levantar um problema.
Do tipo de Estado que prevaleceu no século 20, o que resta, além do
reconhecimento das garantias fundamentais, das liberdades públicas, dos direitos de
propriedade e do enforcement dos contratos, são duas linhas de intervenção na economia e
na sociedade. Não são funções secundárias ou residuais – pelo contrário, são papéis que
propiciam “espaços de jogo” para as decisões dos atores sociais e dos agentes econômicos,
ao mesmo tempo em que também estão abertos a diretrizes vinculantes e formas de
coordenação advindas de outras fontes normativas; mais precisamente, são papéis
fundamentais de organização, coordenação, mediação, controle, correção e orientação que
o Estado pode exercer no contexto de uma ordem econômica mundial multicêntrica, onde
o maior desafio é o manejo das interconexões dos mercados de bens e crédito.
A primeira linha se traduz por normas de direito administrativo, antitruste e penaleconômico, envolvendo o estímulo ao livre jogo de mercado, a regulação da concorrência,
a definição das formas e níveis aceitáveis de concentração empresarial, o combate ao
abuso do poder econômico, o controle das condutas anti-concorrenciais e a proteção dos
cidadãos contra o poder de monopólio. A segunda linha é de caráter social e pressupõe a
substituições da idéia de ‘direitos universais’ por estratégias de ‘focalização’, que
concentram os gastos sociais num público-alvo bem definido, selecionado em situaçãolimite de sobrevivência, de forma a assegurar a maximização da eficiência alocativa de
recursos escassos. Ou seja, são medidas compensatórias, algumas mais pontuais do que
estruturais, sob a forma de programas ‘focalizados’ de assistência social aos setores
excluídos e, por conseqüência, disfuncionais, uma vez que os riscos de determinadas
iniciativas por parte de movimentos sociais (como invasão de terras, ocupação de imóveis
urbanos e resistência a ordens de despejo), conjugados com o aumento da violência
criminal e insegurança pública, são considerados dissuasivos da inversão financeira
internacional. Com isso, a idéia de universalização, pela qual o poder público oferece
serviços essenciais e concede benefícios sociais financiados por impostos a toda a
população, indistintamente, cede vez a programas de renda mínima de integração.
Uma vez definidas essas duas linhas, formando uma espécie de um piso social e de
um teto econômico, tudo o que estiver entre elas é passível de livre negociação e de autocomposição de interesses. Em outras palavras, o Estado impõe dois limites ou marcos
95
regulatórios e, dentro deles, os atores econômicos, sociais e políticos têm ampla liberdade
para desenvolver as mais variadas e criativas formatações contratuais e optar pelos regimes
mais adequados às suas expectativas e interesses. Eles podem, inclusive, promover acordos
corporativos, dando nova configuração às relações entre capital e trabalho, e firmar pactos
‘sociais’ orientados por objetivos de produtividade, aumento de competitividade, metas de
sustentabilidade, etc. Na época do Estado de Direito de feições liberais clássicas, de
inspiração kelseniana, uma das máximas jurídicas enfatizava que tudo o que não era
formalmente proibido estava automaticamente permitido. Hoje, tudo é permitido - a
condição é não ultrapassar o piso social e o teto econômico.
Concebido com base na premissa de que normas reguladoras podem ser benéficas
em algumas circunstâncias, mas ineficazes e contraproducentes em outras, este modelo
encerra algumas sutilezas. Uma delas é a distância entre o piso social e o teto econômico,
que tende a ser retrátil. Ou seja, ela pode ser ampliada ou reduzida conforme os problemas
de instabilidade sistêmica da economia e da sociedade. Em termos funcionais, essa
retratilidade é um dos instrumentos a que o Estado pode recorrer para tentar promover uma
articulação estratégica e descentralizada da vida econômica e da vida social. Em termos de
linha arquitetônica do Estado e do arcabouço funcional de seus institutos jurídicos,
portanto, o que se tem é uma ordem normativa que não provém mais exclusivamente da
verticalidade de autoridades nacionais ou mesmo de uma autoridade mundial mas,
basicamente, dos efeitos irradiadores de diferentes decisões tomadas em distintos níveis e
espaços, em diferentes sistemas e subsistemas funcionalmente diferenciados.
A partir daí, fica mais fácil identificar as tendências de mudança no que “resta” do
direito positivo.
A primeira tendência é de ampliação da incompatibilidade entre a concepção de
tempo adotada pela legislação processual civil e pela legislação processual penal e a
concepção de tempo prevalecente no processo decisório no âmbito dos mercados
transnacionalizados. Com o desenvolvimento da informática, a revolução da microeletrônica e o avanço das telecomunicações, esse processo decisório é cada vez mais
instantâneo. Ou seja, o tempo na economia globalizada não respeita fusos horários. É o
tempo real, o tempo da simultaneidade. A legislação processual civil e a legislação
processual penal, no entanto, continuam sendo basicamente regidas pelo tempo diferido,
isto é por etapas que se articulam de maneira sucessiva, por fases que se sucedem
cronologicamente. Daí a propensão dos agentes econômicos – conglomerados, bancos
comerciais, bancos de investimentos, companhias seguradoras, fundos de pensão, etc. – a
evitar os tribunais na resolução de seus conflitos, optando por mecanismos mais ágeis e
dinâmicos, como a mediação e a arbitragem.
Decorrente da anterior, a segunda tendência diz respeito à expansão hegemônica
dos padrões legais anglo-saxônicos. Sua rapidez, seu pragmatismo e sua flexibilidade cada
vez mais têm sido contrapostos às normas e aos procedimentos altamente ritualizados dos
modelos franco-românicos, considerados pouco objetivos, lentos e incompatíveis com os
imperativos da globalização. Fundados nos valores da eficiência, produtividade,
competitividade e acumulação, como já se viu, esses imperativos simplesmente
desqualificam o formalismo justificado por estes últimos modelos em nome da “garantia
do processo”, da “certeza jurídica” e da “segurança do direito”. Iniciativa desta tendência é
a abertura de linhas de financiamento, tanto pelo Banco Mundial quanto pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pela Agência Interamericana de
96
Desenvolvimento (AID), para a reforma dos sistemas jurídico e judicial de países
periféricos e semi-periféricos cujo direito não está vinculado aos padrões anglo-saxônicos.
A terceira tendência é a de expansão das “jurisdições funcionais” do direito,
paralelamente à tradicional concepção de “jurisdição territorial”, de caráter westfaliano.
Associado à crescente diferenciação funcional da economia, este é um fenômeno
relativamente recente e ainda não muito nítido, que envolve a transição do espaço dos
lugares para o espaço dos fluxos; mais precisamente, questões e conflitos que não são
localizáveis dentro da jurisdição de um Estado territorial e que não conseguem ser
dirimidos pelas leis e códigos por ele editados. Neste tipo de normatividade, o “valor
jurídico” não está na proximidade geográfica, mas na co-imbricação ou interdependência
dos atores econômicos em determinados campos ou marcos estruturais - como cadeias
produtivas e segmentos especializados de mercados globalizados. Dito de outro modo,
com o advento de regimes normativos que operam no âmbito de diferentes demarcações
espaciais onde nenhum deles é dominante nem colidente com a ordem jurídica estatal,
algumas áreas e matérias acabam sendo submetidas a jurisdições funcionalmente
diferenciadas, de caráter transterritorial, e definidas basicamente por critérios técnicos e
sistêmicos. Aqui, o foco se desloca da noção de hierarquia para a de heterarquia; da idéia
de estruturas jurídicas rígidas para processos normativos flexíveis e interdependências em
rede; de princípios institucionais como o da tripartição dos poderes para modos e formas
pós-territoriais de diferenciação político-jurídica; da titularidade legislativa dos
parlamentos para os interstícios de corpos sociais e organizações não-políticas. É este o
caso, por exemplo, das padronizações técnicas e contábeis de interesse comum dos agentes
econômicos destinadas a reduzir custos de transação, facilitar comparações de balanços e
permitir às empresas fragmentar mundialmente suas atividades produtivas em busca de
vantagens comparativas, ficam a cargo de órgãos privados sem fins lucrativos, que agem
por delegações de governos ou ocupam espaços vazios deixados pelos poderes públicos
nas áreas e matérias de extrema complexidade técnica.
Esse também é um dos fatores que tem levado à proliferação de formulações
normativas setoriais, que substituem parte dos ordenamentos jurídicos nacionais, sem um
mecanismo de poder que as articule de modo efetivo. Esse é o cenário de um direito
impulsionado por sistemas parciais da sociedade contemporânea, em cuja produção os
órgãos legislativos tradicionais dos Estados nacionais pouco interferem e em cuja
aplicação as cortes arbitrais internacionais tendem a se sobrepor sobre os tribunais
nacionais (Teubner, 2004, e Mölers, 204). Como os atores são suficientemente
independentes uns dos outros, de tal modo que nenhum deles pode impor uma solução por
si, sendo suficientemente interdependentes para que eles sejam todos perdedores se
nenhuma solução for encontrada, os conflitos são intersistêmicos. Por negociação, são
obtidos acordos satisfatórios que levam em conta a complexidade dos problemas e a
existência de poderes múltiplos. Deste modo, a expansão de redes funcionalmente
especializadas, muitas das quais organizadas e definidas de modo estreito, esvazia o papel
da sanção e das normas padronizadas como elementos-chave para a definição do direito e
para a delimitação das fronteiras entre a esfera nacional e a esfera global. Em outras
palavras, a resolução de conflitos não seria mais de responsabilidade exclusiva dos Estados
nacionais, uma vez que os atores, conscientes da necessidade de perseguir o equilíbrio
ecológico dos sistemas e subsistemas em que atuam, buscariam extrair responsavelmente
um interesse comum e colaborar para a concretização das escolhas coletivas.
A quarta tendência é a da progressiva redução do grau de coercibilidade do direito
positivo. Com os já mencionados processos de desregulamentação, deslegalização e
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desconstitucionalização e com a superposição de novas esferas de poder, muitas das
normas que restam já não mais se destacam por seu enforcement, ou seja, por sua
capacidade de atuar como um comando incontrastado. Elas se caracterizam, justamente,
por sua baixa “imperatividade”, pela abdicação das soluções heterogêneas; pela renúncia a
qualquer “função promocional”. Na medida em que abandonam a pretensão de promover
uma regulação direta, limitando-se a estabelecer premissas para decisões, a estimular
negociações e entendimentos e a viabilizar soluções adaptáveis para cada situação
específica, essas normas introduzem no ordenamento jurídico uma flexibilidade
desconhecida pelos padrões legais prevalecentes desde o advento do Estado moderno. Elas
não estabelecem a priori as regras do jogo nem asseguram determinadas garantias
fundamentais (papel básico da Constituição no âmbito do Estado liberal clássico). E
também não impõem a obtenção compulsória de determinados resultados (papel básico do
direito social e econômico no âmbito dos Estados intervencionistas ou keynesianos). São
normas que substituem as tradicionais racionalidades formal e material por uma
racionalidade nova, de caráter meramente procedimental, aspirando, apenas e tão somente,
uma regulação indireta; são normas que, reconhecendo a autonomia decisória de sistemas
sociais econômicos diferenciados e auto-regulados, procuram apenas promover uma
articulação entre eles. Sua baixa imperatividade, contudo, não deve ser entendida como
ausência de coercibilidade na inteligente e eficaz estratégia de reforço dos controles social
pelo recurso, por exemplo, a mecanismos policiais privados, sob a forma de esquemas de
vigilância, retenção de documentos pessoais, fechamento de espaços públicos, etc.
A quinta tendência é da “reprivatização” do direito. Após a extraordinária expansão
do direito e de suas normas controladoras, reguladoras e diretivas, culminando nas
“constituições-dirigentes” tão em voga nas décadas de 60 e 70, o que agora se vê com os
processos de descentralização, desformalização, desregulamentação, deslegalização e
desconstitucionalização é um movimento de retorno ao direito civil. Mas, como já foi
entreaberto na primeira tendência, com uma diferença significativa. Dada a substituição da
tutela governamental pela livre negociação e a subseqüente expansão das relações
contratuais entre redes de empresas e cadeias produtivas, esse ressurgimento tem ocorrido,
basicamente, à margem do Estado. Enquanto o direito civil posterior à Revolução Francesa
surgiu no bojo de um processo de eliminação dos particularismos locais, de força crescente
do poder nacional nas sociedades em modernização, de expansão da economia monetária,
de afirmação de obrigações gerais com validade universal e de institucionalização da
propriedade, da autonomia da vontade e da igualdade formal (Bendix, 1977), o direito civil
deste final de século está surgindo na dinâmica de um processo de mudanças tecnológicas,
de novas formas de propriedade, de transnacionalização dos mercados, de transferência de
riqueza, de concentração dos capitais financeiros e esvaziamento da capacidade de autodeterminação política dos Estados (Romano: 2005).
Nesse refluxo do direito público, a própria idéia de Constituição ganha novas
feições. Ela deixa de ser um estatuto organizatório definidor de competências e regulador
de processos no âmbito do Estado, passível de ser visto como “norma fundamental” e
reconhecido como centro emanador do ordenamento jurídico. E assume a forma de uma
carta de identidade política e cultural, atuando como um centro de convergência de valores
em cujo âmbito teriam caráter absoluto apenas duas exigências fundamentais. Do ponto de
vista substantivo, os direitos de cidadania e a manutenção do pluralismo axiológico,
mediante a adoção de mecanismos neutralizadores de soluções uniformes e medidas
capazes de bloquear a liberdade e instaurar uma unidade social amorfa e indiferenciada.
Do ponto de vista procedimental, as garantias para que o jogo político ocorra dentro da lei,
isto é, de regras jurídicas estáveis, claras e acatadas por todos os atores.
98
Ainda na mesma tendência de refluxo do direito público, o direito administrativo, a
exemplo do direito constitucional, também sofre alterações paradigmáticas. A principal
delas é a relativização da premissa em torno do qual foi originariamente organizado: a
idéia de limitação do poder e racionalização formal de seu exercício. Com a revogação dos
monopólios públicos e a progressiva privatização dos serviços essenciais, essa premissa
tende a ser considerada como obstáculo aos processos de racionalização gerencial. Com a
redução tanto do tamanho quanto do alcance do Estado, o controle formal de suas decisões
passa a ser combinado com premissas voltadas à lógica do mercado, como a eficiência de
gestão e a valorização dos resultados. Deste modo, em vez de condicionar os modos de
agir do Executivo, estabelecendo suas prerrogativas e suas obrigações com base nos
princípios da legalidade e da discricionariedade, o direito administrativo se converte em
instrumento de gestão de uma máquina governamental que, após a conversão dos serviços
públicos em negócios regido pelo critério da rentabilidade, cada vez mais encara os
cidadãos não como portadores de direitos subjetivos, mas como simples “clientes” ou
consumidores.
De algum modo vinculada com o refluxo do direito público, a sexta tendência é de
enfraquecimento progressivo do Direito do Trabalho, enquanto conjunto de normas e
procedimentos forjado a partir de conquistas históricas na dinâmica de expansão do capital
industrial com a finalidade de circunscrever, controlar e dirimir os conflitos laborais. Seu
alcance e sua estrutura têm sido profundamente afetados pela volatilidade e mobilidade
dos capitais e pelas mudanças ocupacionais e organizacionais subjacentes ao fenômeno da
globalização econômica. Com a crescente informatização das linhas de produção, o avanço
da terceirização e o advento de novos modos de inserção no mundo do trabalho, a mão-deobra progressiva se desloca para o setor de serviços e a idéia de “emprego industrial”
subjacente à legislação trabalhista entra em crise. Como o setor de serviços se caracteriza
pela flexibilidade operativa e pelos diferentes critérios de aferição de produtividade, ele
tende a exigir formas mais maleáveis de contratação e formalização das relações
trabalhistas do que as vigentes no âmbito do setor industrial. Essa combinação entre
flexibilidade operativa, heterogeneidade das estruturas de emprego no setor terciário e
despadronização nas formas jurídicas de contratação trabalhista atinge a essência da
legislação laboral. Na medida em que se multiplicam os contratos a termo, a
subcontratação, o trabalho a domicílio e formas novas de remuneração com base na
produtividade,levando o antigo trabalhador com carteira assinada a assumir a figura
jurídica de micro-“empresário”, a proteção assegurada aos “hipossuficientes” é esvaziada
pela livre negociação entre as partes formalmente “iguais”. Deste modo, quanto mais os
contratos de locação de serviços moldados na melhor tradição do direito privado tomam o
espaço anteriormente ocupado pelas normas padronizadoras da legislação laboral, mais o
Direito do Trabalho tende a se desfigurar e a se “civilizar” – ou seja, mais se confunde e se
funde com o Direito Privado.
A sétima tendência é de aprofundamento institucional dos blocos de integração
comercial e processos de regionalização, com a expansão de experiências de “multisoberania”, a partir de uma divisão horizontal e vertical de competências legislativas, de
repasse voluntário de aspectos da soberania pelos países-membros. O paradigma é o da
União Européia. Em quatro décadas, ela evoluiu exitosamente de três “comunidades”
setoriais -a do carvão e aço, a de energia nuclear e a econômica- para um espaço único, co
m moeda própria, livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas com
políticas agrícola, comercial, concorrencial e de transportes comuns, mas acabou
enfrentando problemas com o veto do eleitorado francês e holandês no referendo do
Tratado Constitucional da União Européia, em 2005, e com a surpreendente recusa do
99
eleitorado irlandês de ratificar o Tratado de Lisboa, em 2008, que fora concebido sete anos
para ampliar as matérias que poderiam ser aprovadas por maioria, em vez da unanimidade
dos países-membros. À medida que o processo de unificação avançou, com a transferência
da esfera intergovernamental para o esquema comunitário de diversos aspectos das
políticas de imigração, de cooperação judiciária e de atuação policial e a criação de um
Conselho de Ministros, um Comitê Executivo e um Parlamento, seus princípios
orientadores passaram a ser concretizados por meio de regulamentos, diretivas e pareceres.
Os regulamentos são obrigatórios em seu conteúdo e impostos como um todo, sendo uma
de suas características a aplicabilidade direta na ordem jurídica interna de cada paísmembro, sem a exigência de qualquer ato de recepção. As diretivas criam somente
obrigação aos seus destinatários de tomar decisões e praticar atos necessários ao
cumprimento de objetivos pré-estabelecidos; os meios e procedimentos usados para
alcançar esses objetivos são deixados à livre-disposição dos países-membros. No limite,
esse modelo se caracteriza por uma tensão entre confederação de Estados relativamente
centralizada (uma união de Estados soberanos) e uma federação relativamente
descentralizada (uma comunidade de Estados interdependentes de caráter unitário e
relacional).
uma construção jurídica, política e administrativa que tenta conjugar
diferenciação e integração, reduzindo as assimetrias de poder econômico entre os paísesmembros (uma redução baseada numa redistribuição proporcional, mas não numa
equiparação do poder institucional, com o ocorre na União Européia). Nesse modelo, os
países-membros delegam poderes e competências “para cima”, ou seja, para um comitê
supranacional ou, então, para um “órgão federal”, e “para baixo”, onde as tarefas são
entregues a escalões inferiores, a poderes locais e a entidades surgidas do próprio processo
de descentralização político-administrativa. Depois da crise econômica de 2008, o
problema agora é saber o nível de tensão institucional e política a que União Européia
poderá suportar caso os países mais duramente atingidos e vulneráveis à depressão, como
Grécia, Irlanda, Itália e Espanha, se deixem levar pela idéia de abandonar a moeda única.
Em tese, isso lhes permitiria restabelecer a soberania monetária e depreciar sua moeda,
ajudando as exportações e a retomada do crescimento. Por mais que essa estratégia seja
arriscada, podendo resultar em fuga de capitais e desvalorização excessiva da nova moeda
nacional, ela foi discutida no Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, em janeiro
de 2009.
Associada à tendência anterior, a oitava tendência é a de uma transformação
paradigmática no conteúdo programático do Direito Internacional, seja em função do
advento de redes de Estados associados em blocos comerciais e econômicos, seja como
decorrência de pressões de grandes corporações por uma regulação transnacional, seja por
causa da crescente concessão de espaços a governos locais e regionais e a organizações
não-governamentais, por parte dos organismos multilaterais, na expectativa de obter maior
legitimidade. Embora formalmente continue sendo produzido pelos Estados-Nação, sob a
forma de acordos, convenções e tratados, com o fenômeno da transnacionalização dos
mercados suas normas cada vez mais vão sendo interpretadas pela Lex Mercatoria e pelo
Direito da Produção. Como conseqüência, o caráter público do Direito Internacional acaba
sendo progressivamente relativizado ou mesmo desfigurado, na medida em que muitos de
seus dispositivos atendem e tutelam interesses específicos, de natureza privada, revestidos
da forma pública. Paralelamente, as experiências de integração vão abrindo caminho para
o surgimento de um sistema normativo novo, autônomo, distinto e superior às ordens
jurídicas dos Estados – o Direito Comunitário.
Ao contrário do Direito Internacional Público, formalmente resultante de
negociações inter-governamentais, voltado à coordenação das soberanias e baseado na
100
regra do consentimento, o Direito Comunitário se expande com o surgimento e
adensamento das zonas de preferência tarifária, zonas de livre comércio, união aduaneira e
união monetária. Ao servir de base legal para a institucionalização de “mercados comuns”,
onde circulam livremente bens, serviços, capitais e pessoais, esse direito tem como uma de
suas características fundamentais e supranacionalidade. Além de seus efeitos
especificamente econômicos, o Direito Comunitário, que não se confunde nem com o
direito interno dos Estados-nação nem com o Direito Internacional Público convencional,
tem igualmente profundas implicações políticas e sociais. Forjado a partir das necessidades
dos processos de constituição de mercados comuns e blocos econômicos, o Direito
Comunitário tende a ser muito mais complexo, flexível, maleável e aberto do que o direito
interno e o Direito Internacional.
A nona tendência é de aumento no ritmo de regressão dos direitos sociais e dos
direitos humanos. Como estes últimos nasceram contra o Estado, para coibir sua
interferência arbitrária na esfera individual, e como as garantias fundamentais somente
conseguem ser instrumentalizada de modo eficaz por meio do próprio poder público, do
ponto de vista jurídico-positivo os direitos humanos correm o risco de acabar sendo
enfraquecidos na mesma proporção e velocidade em que esse poder for comprometido pela
relativização da soberania do Estado. O mesmo acontece com os direitos sociais (Santos,
1995). Concedidos para se concretizar basicamente por meio de políticas governamentais
de caráter distributivo, e justificados como direitos humanos de segunda geração, eles
também têm sido mortalmente atingidos pelos processos de desformalização,
desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, pela abdicação de
determinadas funções públicas do Estado mediante o avanço dos programas de
privatização e pelo crescente condicionamento de todas as esferas da vida pelos valores do
mercado. Os princípios básicos inerentes aos direitos humanos e sociais -liberdade,
dignidade, igualdade e solidariedade, por exemplo- estão levando a pior na colisão frontal
com os imperativos categóricos da economia globalizada, como a produtividade e a
competitividade levadas ao extremo. Com isso, os “excluídos” no plano econômico
convertem-se também nos “sem-direitos” no plano jurídico, não mais parecendo como
portadores de direitos subjetivos públicos.
Associada à anterior, na medida em que os “sem-direito” jamais são dispensados
das obrigações e responsabilidades estabelecidas pela ordem jurídica, a décima tendência é
a de uma transformação paradigmática do direito penal. Como a produtividade na
economia globalizada vem sendo obtida às custas da degradação salarial, da rotatividade
no emprego, do aviltamento das relações trabalhistas, da informação da produção e do
subseqüente fechamento dos postos convencionais de trabalho, a sinergia entre a
marginalidade econômica e a marginalidade social tem levado o Estado a reformular seus
esquemas de controle e prevenção dos delitos, a esvaziar o processo penal de suas feições
garantistas e a incorporar no âmbito das políticas penais os problemas e as situações
criadas tanto pela deslegalização e desconstitucionalização dos direitos sociais quanto pela
ausência de políticas distributivas e compensatórias. Criminalizando esses problemas e
essas situações com o apoio difuso de uma sociedade assustada com o aumento da
insegurança e por um sentimento de modo vocalizado demagogicamente pela mídia, e
também agindo sob pressão dos países centrais empenhados em declarar “guerra aberta”
ao tráfico de drogas nos países periféricos, cada vez mais o Estado amplia o caráter
punitivo-repressivo das normas penais, desconsiderando os fatores políticos, sócioeconômicos e culturais inerentes nos comportamentos por elas definidos como
transgressores. O objetivo é torná-las mais abrangentes e severas para, quase sempre sob o
pretexto de ampliar a eficiência no combate ao crime organizado, ao narcotráfico, à
101
fraudes financeiras, às demais fases de corrupção ao terrorismo e às operações de lavagem
de dinheiro obtido ilicitamente, disseminar o medo e o conformismo no seu público-alvo –
os excluídos (Adorno, 1996; e Machado, 2007)). Por isso, enquanto nos demais ramos do
direito positivo vive-se um período de desregulamentação, deslegalização e
desconstitucionalização, no direito penal verifica-se o inverso. Ou seja: a definição de
tipos de delito cada vez mais intangíveis e abstratos; a criminalização de várias atividades
e comportamentos em inúmeros setores da vida social; a eliminação dos marcos mínimos e
máximos na imposição das penas de privação de liberdade, para aumentá-las
indiscriminadamente; a relativização dos princípios da legalidade e da tipicidade, mediante
a utilização de regras com conceitos deliberadamente indeterminados, vagos e ambíguos,
ampliando extraordinariamente a discricionariedade das autoridades policiais e com isso
lhes permitindo invadir esferas de responsabilidade do Judiciário; e, por fim, a redução de
determinadas garantias processuais, mediante a substituição de procedimentos acusatórios
por mecanismos inquisitórios, da qual o melhor exemplo é a inversão do ônus da prova,
passando-se a considerar culpado quem não provar sua inocência.
Quanto à dúvida levantada páginas atrás, ela diz respeito ao alcance do pluralismo
jurídico que aqui foi descrito de modo bastante esquemático. Com o estilhaçamento dos
espaços políticos e sociais anteriormente unidos pelos mecanismos coercitivos das
instituições estatais, a redução do tamanho e do alcance do direito positivo, a paralela
expansão do Direito Internacional, a emergência do Direito da Integração Regional ou
“Comunitário”, o ressurgimento da Lex Mercatoria, a proliferação de normas técnicas
produzidas por organismos multilaterais e a normatividade autoproduzida em guetos
quarto-mundializados, como a hoje vigente nos morros do Rio de Janeiro, nas favelas de
Lima ou na periferia miserável de Bogotá e Caracas, a ordem jurídica contemporânea
encontra-se inexoravelmente fragmentada em diferentes sistemas normativos
independentes e, por vezes, colidentes entre si? Ou, pelo contrário, existe entre eles a
possibilidade de algum tipo de sincronia? Neste caso, como ocorre o enlace entre eles?
Pondo-se a questão em outros termos, esses sistemas são autônomos em termos absolutos,
cada um sendo eficaz no espaço que é capaz de jurisdicionar e regular? Ou será possível
esperar o aparecimento de um “direito dos direitos”, com normas de reconhecimento,
mudança e adjudicação capazes de promover algum tipo de ligação lógica e sistêmica entre
eles? Neste caso, em que termos podem ser formulados princípios jurídicos capazes de
assegurar um mínimo de coerência a esse cenário de pluralismo normativo?
Diante dessas indagações, e assumindo-se a história como um processo, numa
dialética de continuidades e rupturas, de constrangimentos de necessidades e de luta por
conquistas civilizatórias, pelo direito a ter direitos, o problema é saber se podemos
continuar agindo e pensando com base nos paradigmas de inspiração romanística que
sempre foram hegemônicos nos cursos jurídicos de países como Itália, Portugal, Espanha e
os de praticamente toda a América Latina. As crescentes dificuldades desses cursos para
acompanhar a evolução da complexidade social, econômica, política e cultural e as
próprias mudanças dos sistemas legais induzem, a meu ver, uma resposta negativa.
Todavia, isto nos conduz a uma outra discussão tão complexa e escorregadia como a aqui
travada.
102
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LXXXII.
104
BRASILEIROS NO JAPÃO: DIREITOS E CIDADANIA
Lili Kawamura
Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo-USP
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo
Livre-Docente em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, onde é atualmente
professora aposentada e pesquisadora da Instituição
Pós-doutora pela Universidade de Nagoya (Japão-1993-94)
Foi professora visitante na Universidade de Tenri (1994); professora colaboradora da
Universidade de Estudos Estrangeiros de Kioto (1994); professora do mestrado em
América Latina da Universidade de Tsukuba(1997-2000)
I. INTRODUÇÃO
A longa trajetória centenária dos japoneses e seus descendentes fora do Japão,
desde o início do século XX até os dias atuais, constitui-se em um movimento circular de
migração do Japão ao Brasil e deste ao Japão. Nesse processo, essa população, em sua
maioria denominada ``nikkey``[1], passou por experiências de inserção econômico-social,
cultural e política, as mais variadas, em ambas as sociedades (Brasil e Japão),
constituindo-se em grupos sociais diferentes tanto dos seus ancestrais japoneses quanto da
população da sociedade abrangente dos dois países. Evidentemente, a população ``nikkey``
mostra uma diversidade social e cultural internamente, decorrente dos caminhos
diferenciados de inserção dos migrantes no trabalho, na vida social , cultural e escolar, de
forma complexa e desigual.
Os japoneses que migraram ao Brasil, como no caso dos demais imigrantes,
criaram estratégias próprias para enfrentar os desafios colocados pelas diferenças culturais
e condições sociais e políticas. Suas experiências cotidianas trouxeram formas de pensar,
sentir e fazer herdadas de seu background social e cultural e das influências da sociedade
brasileira abrangente. A ênfase cultural herdada contribuiu fortemente na diferenciação
interna dos grupos da população nikkey , ao lado das condições de vida que se lhes
colocaram na vivência na sociedade brasileira. A familiaridade com a cultura nipônica veio
também influenciar acentuadamente a vivência dos atuais grupos que migram para o
Japão.
Como os atuais descendentes de japoneses enfrentam os desafios de vivência numa
sociedade, que embora ligada aos seus ancestrais, apresenta-se tão ``estranha`` e diferente?
Esses grupos foram socialmente e culturalmente formados no balanço das influências
culturais do Japão dos avós, tataravós e pais e dos valores, visão de mundo, educação,
comportamentos e atitudes vigentes na sociedade brasileira. Que estratégias foram
encontradas por esses brasileiros imigrantes no Japão em face dos desafios da
modernidade e tradição que se lhes apresentaram na sociedade japonesa?
Duas décadas de migração de brasileiros ao Japão apontam mudanças nas formas
de inserção dos migrantes no trabalho, na vida social, cultural e escolar, de forma
diferenciada e desigual, trazendo-nos à tona uma questão fundamental relativa à inserção
105
dessas pessoas como cidadãos.[2] As mudanças ocorridas não trouxeram um avanço
significativo na questão da cidadania e dos direitos sociais e, muito menos, dos direitos
políticos de migrantes brasileiros, mesmo considerando-se o conceito de cidadania no
conceito liberal e de reconhecimento formal de direitos pelo Estado. A questão se agrava
ao se conceber cidadania como a condição de os agentes sociais poderem reconhecer e
definir o que consideram seus direitos e lutar pelo seu reconhecimento. (Bobbio,1986;
Santos,1998). Nessa concepção, a cidadania dos migrantes conpreenderia uma estratégia
conforme seus próprios interesses em busca do direito à igualdade e do direito à diferença.
Essa visão está estreitamente associada com mudanças de padrões culturais tanto dos
migrantes quanto de setores da sociedade abrangente.
De modo geral, a busca da cidadania está condizente com os objetivos iniciais da
migração: busca de oportunidades de trabalho e de ganhos financeiros por parte dos
brasileiros e busca de mão-de-obra estrangeira para suprir a falta de trabalhadores
japoneses. A ênfase econômica dos objetivos da migração limitou o avanço dos direitos ao
âmbito corporativo, em detrimento dos direitos sociais, culturais e políticos. A
identificação de problemas de direitos esbarra nas condições políticas locais dos países
envolvidos (Brasil e Japão) e em suas relações internacionais, além da própria natureza do
processo migratório e as condições e os interesses dos agentes da migração.
Cada país é regido por sua própria legislação, interesses, valores e condições
econômicas, sociais, culturais e políticas e, no caso particular do Brasil e Japão, há uma
distância historicamente construída, não somente geográfica, mas nos aspectos cultural ,
social e político que interferem nas relações internacionais entre ambos os países. A
população da sociedade nipônica, mesmo na instância governamental, não conhece
adequadamente a atual realidade brasileira, o mesmo ocorrendo com o Brasil em relação
ao Japão.
Hoje, de modo diferente da antiga migração japonesa para o Brasil, em vista
daglobalização, a disseminação das novas tecnologias e as condições propícias à interação
e movimentação não só de materiais, os símbolos, valores, as crenças e artes, mas
principalmente de pessoas, levam a caracterizar a migração internacional como circular,
onde os migrantes vão e vêm continuamente, além de terem acesso rápido e sistemático às
informações relativas a seu país e familiares. Assim, os migrantes em trânsito vivem em
um espaço próprio inter-fronteiriço entre ambos os países, cujas regras não estão definidas
nem de acordo com as do Brasil, nem com as do Japão. É sob essa concepção de migração
internacional que se faz necessário entender a questão da cidadania e dos direitos sociais
dos migrantes, sem desconsiderar, é claro, a influência dos contextos específicos das
sociedades em interação e as condições que fortalecem ou enfraquecem a permanência e a
movimentação de migrantes, bem como a sua ascensão econômica e social.
Neste trabalho, procuro destacar alguns processos e características significativas da
migração de brasileiros ao Japão, relacionadas com a questão da cidadania e direitos
sociais, especialmente as práticas sociais, culturais e políticas que favoreceram ou
cercearam a sua construção junto aos migrantes.
106
II. MIGRAÇÃO, TRABALHO E DIREITOS SOCIAIS
A migração de brasileiros ocorreu, desde seu início em 1986, sob uma política
seletiva de trabalhadores estrangeiros adotada pelo Japão, perspectiva que veio se
confirmar oficialmente na medida legal decretada em junho de 1990, alterando a legislação
sobre a entrada de estrangeiros para trabalho no país. Segundo a emenda da Lei de
Migração, sómente poderiam entrar no Japão , para fins de trabalho, japoneses e seus
descendentes, além dos cônjuges de qualquer nacionalidade, posição que privilegiava os
brasileiros nipo-brasileiros em relação aos brasileiros de outras origens. A medida legal
fortalecia também a posição dos migrantes descendentes de japoneses em relação aos
migrantes de outras nacionalidades que já trabalhavam anteriormente no Japão. Essa
condição colocou, a priori, a desigualdade dentre os trabalhadores estrangeiros no mercado
japonês, onde grupos de trabalhadores provenientes de outros países asiáticos foram
deslocados em favor dos migrantes nikkey[3], a maioria relegada à situação de
indocumentados.(Komai, 2004, Kajita, 1994)
Apesar da entrada privilegiada no mercado de trabalho, a maioria dos brasileiros
ocupa posições nos estratos inferiores da sociedade, empregados em trabalhos
desqualificados rejeitados pelos trabalhadores nipônicos altamente escolarizados.
Em sua maioria, os brasileiros não eram contratados segundo a legislação
trabalhista vigente no país, mas de acordo com a total conveniência dos empregadores ou
seus intermediários, estes conhecidos como “broka”(brokers) pelos japoneses e
empreiteiras[4] pelos brasileiros. Os migrantes eram considerados pelas empresas
japonesas trabalhadores temporários que logo voltariam para seu país de origem; não
havendo portanto, na visão dos empregadores, a necessidade de contratos, nem de
treinamento ou benefícios sociais, senão apenas a documentação necessária exigida pelo
governo para a residência, uso de bancos , correios, escolas, etc...Atualmente, a ascensão
econômico-social de uma minoria de brasileiros e a tendência à permanência de
significativa parcela de migrantes no país podem significar possibilidades de obtenção de
alguns direitos, pelo menos no âmbito econômico-social.
A precariedade nas relações de trabalho traz implicações no emprego e desemprego
dos migrantes, principalmente em períodos de crise econômica, pois esses trabalhadores
eram os primeiros a serem desligados da empresa. Assim, a exclusão desses brasileiros dos
benefícios trabalhistas, como férias remuneradas, seguro-saúde e seguro aposentadoria,
deixavam os trabalhadores migrantes, principalmente os desempregados, excluídos do
mercado e da vida social, mesmo com as atuais incipientes medidas de inclusão que vem
sendo tomadas pelo governo japonês. O acesso aos benefícios sociais de brasileiros no
Japão tornava-se um problema individual dos trabalhadores migrantes.
No início do processo migratório, a maioria dos migrantes era jovem com a
expectativa de retorno breve ao Brasil e sem preocupação com a aposentadoria ,
frequentemente postergada e associada com a volta ao Brasil. Hoje, a presença crescente
de migrantes com idade superior a 50 anos , traz à tona a questão previdenciária dentre os
migrantes, governos e associações civis, como mostra o Manifesto de Hamamatsu(2002),
assinado por 13 prefeitos de cidades com as maiores concentrações de brasileiros.[5]
Na medida em que o objetivo fundamental tem sido a busca de dinheiro para
adquirir condições de vida favoráveis no Brasil, motivo que ainda perdura de modo
107
significativo na atualidade, os próprios brasileiros assumem, ainda que no imaginário, a
transitoriedade de sua estadia no país estrangeiro, alegando a necessidade de se adequarem
às condições, mesmo adversas e exploradoras, a que são submetidos. Essa perspectiva leva
a ausência de questionamentos da parte dos migrantes, mesmo com uma visão crítica de
sua própria realidade, tornando assim mais importante manter as condições de trabalho
dadas do que adotar formas de enfrentamento contra as ações exploradoras.
Atualmente, a presença de empreendimentos brasileiros no Japão, voltados
principalmente para atender ao mercado de consumo formado por migrantes brasileiros e
demais latino-americanos, possibilitou a criação de condições facilitadoras para a vivência,
em vista da construção de espaços próprios de brasileiros, permitindo relações e
comunicação entre os migrantes conforme o modo de vida adotado no Brasil, mesmo com
a inclusão de aspectos da cultura local em seu modo de viver. Tais núcleos foram se
multiplicando em diferentes regiões do país, facilitando a movimentação regional dos
brasileiros em busca de novas oportunidades de trabalho, uma vez que se constituíam em
uma infra-estrutura brasileira para os migrantes.
A disponibilidade de produtos brasileiros, de serviços de informação, comunicação
e documentação exigidas para trabalhar e viver no Japão, de escolas brasileiras,
restaurantes, bares e outras atividades de diversão veio favorecer tanto a mobilidade
quanto a permanência dos migrantes brasileiros na sociedade japonesa, por se constituírem
em um contexto “conhecido , familiar e seguro” inserido numa sociedade “desconhecida e
diferente”. Além disso, as redes de migrantes brasileiros internas e internacionais
construídas por empresários, profissionais, famílias e amigos funcionam como suporte de
assistência mútua, principalmente para cuidar de crianças e jovens, de sua casa, bens e
negócios em ambos os países, favorecendo o fortalecimento dos espaços próprios, onde os
migrantes podem viver de acordo com os códigos conhecidos de seu país de origem. Esse
contexto e a crescente busca de trabalhadores brasileiros , inclusive por empresas
brasileiras no país, vêm possibilitando o aumento da tendência à permanência de
brasileiros no Japão. Além disso, a volta ao país de origem pode significar o enfrentamento
de um mundo desconhecido, principalmente àqueles com longa vivência na sociedade
japonesa.
Nesse contexto, ao mesmo tempo em que o brasileiro expressa uma alta
competitividade em relação aos demais migrantes, especialmente em momentos de crise de
emprego, manifestos em competições acirradas , até mesmo destrutivas, nos locais de
trabalho e na moradia, manifesta também ações basicamente solidárias. Porisso, desde o
período inicial da migração, surgiram grupos que buscaram mobilizar outros trabalhadores
contra algumas práticas de exploração, como o não pagamento correto dos salários, a
cobrança de despesas e outras dívidas supostamente assumidas pelos empregadores e
empreiteiras. Esses grupos não conseguiram se fortalecer e embora se constituíssem em
associações de luta pelos direitos trabalhistas, desenvolveram apenas atividades de ajuda e
orientação aos migrantes sobre documentação, meios de transporte, serviços bancários,
serviços de comunicação, educação e, até mesmo, atividades culturais. Promoviam
encontros sociais entre os próprios brasileiros, principalmente no início da migração,
quando havia dificuldades de se obter informações sobre o Brasil e participar em
atividades de lazer. Seguiam assim, a tendência da própria sociedade nipônica que evita
atitudes conflituosas para a defesa de direitos no trabalho, uma vez que os sindicatos e
grupos contestatórios foram enfraquecidos em face do poder empresarial e
governamental.(Kamata,1985)
108
III. VIDA COTIDIANA:DIREITO À MORADIA, SAÚDE E COMUNICAÇÃO
De modo geral, a vida cotidiana dos migrantes brasileiros no Japão não se encontra
integrada à sociedade nipônica, contrariando a expectativa de empresários e governantes
japoneses, no início da migração, de que a busca de trabalhadores dentre os grupos de
origem japonesa no Exterior permitiria uma rápida integração social e cultural dos
migrantes, por julgarem equivocadamente que estes teriam assimilado a cultura do país
nascente. A questão não seria tão facilmente solucionada apenas pela existência de uma
identidade cultural, pois persistiriam os problemas de ordem social, como a condição
social baixa em função de os migrantes exercerem atividades rejeitadas pelos trabalhadores
japoneses. Cabe lembrar que historicamente grupos de japoneses, moradores do
“buraku”[6], foram discriminados por exercerem atividades rejeitadas pela população;
bem como os moradores de Okinawa, no pós-guerra, por ter sido a ilha controlada por
norte-americanos, além dos vários grupos mafiosos (Yakuza), e mais recentemente, os
imigrantes estrangeiros.
O aumento do número de “espaços próprios” dos brasileiros formados por
moradias e empreendimentos comerciais, de serviços e produção de mercadorias
brasileiras em função da crescente demanda dos migrantes, em vista do crescimento da
mobilidade de brasileiros, em busca de novas oportunidades por diferentes regiões do país,
definiu os pontos de conexão por onde transitam brasileiros. Ao mesmo tempo,
constituíram-se em locais de integração social entre brasileiros e de separação destes da
população japonesa.
A existência desses espaços próprios favorece a maioria dos brasileiros que
desconhece tanto a língua quanto a cultura local, pois não se exige, nesse âmbito, uma
mudança cultural para atender aos padrões da sociedade envolvente. No imaginário dos
brasileiros tais espaços se constituem em um “porto seguro”, onde podem relacionar-se uns
com os outros com os mesmos códigos adotados no Brasil, extravasar suas emoções, além
de contarem com a infra-estrutura básica para sua existência. De acordo com depoimentos
obtidos pela autora em pesquisa (2001), a existência desses núcleos de brasileiros permite
prescindir do envolvimento social e cultural com o país hospedeiro, uma vez que a
comodidade está em poder deslocar-se de algum lugar do Brasil diretamente para esses
espaços e retornar para o país de origem, sem a necessidade do esforço para aprender
aspectos da cultura local. No entanto, essa comodidade pode levar os migrantes a se
isolarem cada vez mais da sociedade abrangente, trazendo dificuldades em seu
relacionamento com a vizinhança nipônica e limitando as possibilidades de inserção no
contexto social das cidades, em particular quanto aos direitos sociais.
Desde o início da migração, quando a maioria dos brasileiros afirmaram manter
com os vizinhos japoneses uma relação de mero cumprimento, alguns com total ausência
de comunicação, não terem sido correspondidos nas tentativas de saudações, o
relacionamento entre imigrantes e nipônicos ainda continua distante, seja por medo do
desconhecido, por desinteresse ou até mesmo hostilidade recíproca, que ainda reforçam os
preconceitos de ambas as partes. Vem reforçar esse hiato não apenas o desconhecimento
do idioma e dos costumes locais, mas a condição social nos estratos inferiores da
sociedade e o destaque dado pela mídia aos atos dolosos de autoria de alguns migrantes.
A moradia[7] dos trabalhadores brasileiros era definida pelos empregadores ou seus
intermediários, conforme a conveniência do serviço, sem considerar os interesses, os
109
costumes e os valores dos migrantes. Famílias foram desmembradas para morarem em
vagas diferentes nos alojamentos (ryoo) para trabalhadores sob severas regras de
convivência, de responsabilidade de empregadores ou empreiteiras. As dificuldades de
acesso à moradia por estrangeiros no Japão, manifestam diferentes formas
discriminatórias, como a não locação por motivos variados até exigências contratuais bem
mais severas do que em relação a inquilinos japoneses.(Kawamura,2001)
Com o passar do tempo, parte dos migrantes conseguiram alugar suas próprias
moradias, desde que atendida a exigência de um avalista japonês, em bairros periféricos,
que, ao lado dos alojamentos alocados aos trabalhadores brasileiros, formaram os “espaços
próprios” de grupos de brasileiros. A atual crise de emprego no Japão deixa fora do
mercado de trabalho crescente parcela de migrantes brasileiros (e outros latinoamericanos), vagando pelas ruas, dormindo embaixo das pontes, em estações de metrô ou
dentro de carros. Estes sem-teto (homeless dekasegui[8]), junto com os desempregados,
com os adolescentes fora da escola e do trabalho e os jovens que se envolvem com drogas
e prostituição, constituem os marginalizados dentre os próprios migrantes.
Paralelamente, a ascensão de alguns migrantes para a condição de proprietário de
empreendimentos de produção, comercialização de produtos brasileiros, da mídia, de
escolas, de empreiteiras e prestação de serviços técnicos, de beleza e lazer, possibilitou o
acesso de uma minoria de brasileiros a moradias confortáveis e bem localizadas, transporte
próprio, opções de escolarização de padrão elevado em instituições japonesas ou
brasileiras, atividades culturais e lazer.
Esse contexto traz para os grupos brasileiros no Japão a desigualdade social
vigente no Brasil, destoando com a semelhança das condições de vida da população
japonesa.
As dificuldades de acesso à atenção médica por migrantes passa pela questão da
forma precária do contrato de trabalho, com o predomínio da informalidade e a condição
de trabalho temporário. Nessa situação, empregadores têm se eximido da obrigação de
inclusão dos migrantes ao sistema de seguro-saúde e previdência social, o que não ocorre
com os trabalhadores japoneses. Por outro lado, poucos brasileiros e demais latinoamericanos conhecem o sistema do seguro-saúde e a legislação de segurança e higiene no
trabalho. (Kavano,1997 apud Moriya,2000)
A possibilidade de seguro-saúde (kokumin hoken) da prefeitura não foi
generalizada dentre os trabalhadores brasileiros por seu alto custo. Desse modo, ficar
doente ou sofrer um acidente significaria perder o emprego, ter que retornar a seu país ou
permanecer no Japão enfermo e em condições de vida precárias, sem assistência médica.
Nessa situação, o migrante enfrentaria outros problemas decorrentes relacionados ao
sustento da família, educação dos filhos, moradia, transporte, etc..., enfim, a exclusão
social se estenderia a família.
A natureza do trabalho perigoso, pesado e sujo em longo período diário facilita a
ocorrência de distúrbios de saúde de várias modalidades, desde lesões, contusões, doenças
respiratórias e cardiovasculares, alergias até estresse e doenças psíquicas, que
acompanham os migrantes em sua volta ao Brasil. Dados sobre pacientes migrantes de
psiquiatras no Brasil apontam a ocorrência destacada de mania de perseguição com riscos
de suicídio, irritabilidade, perda de concentração e ansiedade.( Galimbertti,2002; Kavano,
apud Morya, 2000; Nakagawa, D.,1996).
110
A falta de acesso ao sistema médico ao aprofundar as consequências da persistência
das doenças, leva a exclusão do migrante de outras formas de participação social no
trabalho e na vida cotidiana, quando não à incapacidade física e mental ou à morte. O
problema de saúde ainda depende da ação individual/familiar dos migrantes, sendo
protelada a atenção ao problema para “quando voltar ao Brasil”.
A dificuldade de acesso aos bens culturais expressa uma exclusão à participação
cultural que depende não apenas da possibilidade de pagamento, mas principalmente da
capacitação de leitura e entendimento do idioma local, uma vez que a maioria das
indicações e informações constantes em museus, centros culturais e afins estão apenas na
língua japonesa, desconhecida para a maioria dos migrantes brasileiros e demais latinoamericanos. Também quase todos os programas de TV e rádio usam o idioma japonês.
Apenas os centros turísticos famosos apresentam informações também na língua inglesa.
A maioria dos migrantes desconhece a língua e cultura local; assim, as oportunidades de
lazer para migrantes estão nos próprios espaços de brasileiros, com seus bares,
restaurantes, eventos, jornais, revistas e TV, onde os mesmos se sentem livres para
expressar-se conforme os padrões culturais anteriormente vividos no Brasil. Tais
empreendimentos vêm desenvolvendo conexões de complementaridade com filiais ou
sedes no Brasil, formando redes econômicas, sociais e culturais ligando ambos os países,
facilitando tanto o movimento quanto a permanência de brasileiros no Japão.[9]
Cabe ressaltar aqui que as atividades de formação cultural geral, numa perspectiva
da educação continuada da população local e o intenso uso desses recursos para o
aperfeiçoamento quanto a formação tecnológica, artística, social e cultural em geral,
progressivamente assumida por centros culturais, associações civis, instituições e
universidades(Makino, 1996), ao lado de uma efetiva escolarização no sistema
educacional, estão fora do alcance da maioria dos migrantes. Atualmente, os brasileiros e
outros latino-americanos vêm mostrando interesse em atividades culturais e de
aprendizado de língua em centros culturais.
Uma vez que a obrigatoriedade da escolarização básica (até o curso ginasial do
sistema escolar japonês) para a população nipônica não se estende aos estrangeiros
residentes no país, o acesso à educação também constitui-se uma questão de opção
individual, o que facilita a desistência da escolarização dos filhos, ocorrida por motivos
variados. A crescente presença de crianças e adolescentes, inclusive aqueles nascidos no
Japão, põe em destaque a questão da desescolarização e o “abandono” de menores e da
violência infanto-juvenil, que vem ocorrendo acentuadamente dentre os migrantes
brasileiros. Mesmo a crescente instalação de escolas brasileiras não consegue solucionar
essa exclusão principalmente por seu alto custo para os trabalhadores.
Atualmente, em escolas situadas em cidades com alta concentração de brasileiros,
como Toyota, Hamamatsu, Toyohashi, Oizumi e Ota, escolas primária e ginasial estão
contratando professores ou agentes intermediários, com fluência na língua japonesa e
portuguesa, para assessorar as escolas na comunicação com estudantes e pais e
desenvolver atividades de integração dos alunos aos princípios, normas e condutas
estabelecidas pelo sistema educacional.
Em face dos desafios da vivência no Japão, ressalta-se o caráter “temporário” e
“efêmero” da estada dos brasileiros na condição de migrante internacional, na medida em
que as “soluções” para questões básicas como a educação dos filhos, moradia definida,
atenção a saúde, organização familiar, passam a ser protelados para um futuro no país de
origem. Paradoxalmente, quando já de volta ao Brasil, por enfrentar dificuldades na
111
readaptação[10], o olhar do migrante volta-se novamente para o Japão, onde pensa poder
resolver aquelas questões fundamentais; e assim, sucessivamente.
A grande diferença cultural que se expressa entre brasileiros migrantes e a
população nipônica ____mesmo considerando-se a elevada presença da cultura global
(Featherstone,1995; Ortiz, 2000)____dificulta o entendimento e a comunicação mútua.
Contudo, o hiato cultural está acompanhado do preconceito mútuo, em face ao
“diferente”. A imagem de auto-suficiência da sociedade nipônica, baseado no esforço
social para a reconstrução do país até a condição de potência mundial e a idéia de
homogeneidade racial e cultural, de um lado e, de outro, a posição inferior dos migrantes
na estrutura social do Japão, contribuem fortemente para a discriminação e exclusão social
e cultural destes últimos. O distanciamento está manifesto na rejeição às atitudes ,
comportamentos e valores expressos pelos brasileiros, principalmente quando destoam ou
incomodam a “paz social” dos cidadãos locais. Muitas vezes, o desconhecido passa a ter
uma interpretação diferente do sentido original sob o olhar da própria cultura e significar
ameaça na visão da população local, como por exemplo, desobedecer o sistema de coleta
de lixo, falar e rir alto, ouvir música em volume elevado, significam baderna, indisciplina,
desrespeito.
IV. MIGRAÇÃO , CIDADANIA E DIREITOS POLÍTICOS
Em todo o período da migração de brasileiros ao Japão há uma ênfase na procura
de trabalho e ganhos financeiros sem uma preocupação com a busca da cidadania e
participação política na sociedade. Contribuem para essa postura, a idéia de estadia
temporária no país e o adiamento da solução de problemas, da concretização de seus
objetivos por uma vida melhor e realização de seus sonhos subjetivos, para um futuro não
muito distante, quando em seu retorno ao país de origem.
A sociedade receptora, por sua vez, com uma auto-imagem de homogeneidade
étnica e cultural, teme e dificulta a inserção de estrangeiros em seu interior, em outras
áreas além do trabalho, como lazer, atividades culturais e políticas, através da omissão de
órgãos governamentais ou, de modo silencioso, mediante a discriminação por parte de
setores da sociedade civil. Assim, mesmo ao nascer no país, o filho do estrangeiro não
pode ser registrado como cidadão japonês, senão conforme a nacionalidade do país de
origem. Outros grupos imigrantes após várias gerações no Japão, como os coreanos e
chineses, também estão excluídos dos registros de nascimento local, exceto se um dos pais
for de origem nipônica ou naturalizado.(Komai,2001;Oka,1994)
Atualmente, a ascensão de alguns migrantes a cargos qualificados, a presença de
profissionais e o aumento de empresários brasileiros no país, trouxe a expectativa de
residência permanente ou de longo prazo. Esta perspectiva fêz emergir neles um interesse
no debate sobre os desafios da residência permanente e seus desdobramentos, que
esbarram na questão da cidadania e direitos humanos.
No entanto, apesar de os brasileiros terem construído espaços próprios, com infraestrutura volta da para seus interesses e costumes, a maioria não conseguiu integrar-se a
sociedade abrangente; ao contrario, permaneceu à margem dela. Dessa forma, quanto
112
maior a integração dos brasileiros entre si em suas “comunidades” , menor a sua aderência
á sociedade local, decorrente de ausência de políticas de inserção da diferença na
sociedade abrangente. Contudo, a consolidação dos espaços específicos dos brasileiros,
levando-os à permanência a longo prazo, seja pela natureza de suas atividades, seja pela
integração dos filhos à cultura nipônica ou por dificuldades de reinserção na sociedade
brasileira, induz os migrantes a desejarem a condição de cidadãos, mesmo que restrita a
um simples reconhecimento formal de suas práticas, para que possam enfrentar, ao menos,
os desafios decorrentes de suas próprias ações individuais ou grupais.
Na visão da população japonesa, condutas divergentes dos padrões nipônicos
devem ser mantidas em espaços próprios dos estrangeiros para não incomodar a
tranqüilidade e a segurança da população local. Observa-se nesse aspecto um cerceamento
sócio-cultural inibindo a expressão da própria identidade dos migrantes.
O hiato entre os migrantes e a população japonesa é aprofundado também pela
visão preconceituosa dos brasileiros em relação aos japoneses, apesar da admiração pela
modernidade local e outros aspectos inexistentes no Brasil, como segurança, organização,
limpeza dos espaços públicos e pouca incidência da criminalidade.
Voltar para o país de origem pode significar para o migrante ter que reinserir-se em
um contexto social “estranho” e até hostil, em vista do alto desemprego e dificuldades de
vivência, apesar da imagem romântica do Brasil longínquo que paira em seu imaginário.
A perspectiva de vivência permanente no Japão aponta para a necessidade de lutar por
condições de trabalho, de moradia, de educação e pela não discriminação, enfim , pela
cidadania, o que levou alguns brasileiros a se organizarem, mesmo que precariamente, para
a defesa de seus interesses.
A luta por direitos sociais e políticos no Japão veio se arrefecendo durante longos
anos de repressão de movimentos sociais e a difusão ideológica no sentido da harmonia,
paz e segurança em pról do reerguimento do Japão de pós-guerras. A maioria dos
japoneses, conforme depoimentos de Kamata (1985), submeteu-se a “um certo modo de
consumo” a “um certo modo de segregação social que permite enormes disparidades”…
“um certo modo de apego ao trabalho e de valorização do imperativo da concorrência e da
competitividade.” A submissão irrestrita à gestão das organizações, inclusive da vida
pessoal e familiar, com a suposição da necessidade da adesão coletiva a um modelo de
desenvolvimento considerado natural e sem outra alternativa.(Kamata, 1985,p.17).
Contribuiu para a construção dessa mentalidade, o fato de a renda per capita ter crescido
estrondosamente e o país ocupar a posição dos mais desenvolvidos no mundo.(Kamata,
1985, Kagami,1993; Ishihara, 1991; Torres Filho, 1995) O atual estado de “paz social” no
país, em diferentes instâncias da sociedade, principalmente no trabalho e as perspectivas
repressivas contra ações contestatórias intimidaram os migrantes na luta coletiva por
direitos, principalmente considerando sua posição social precária no país.
A ascendência nipônica da maioria dos migrantes, uma exigência legal do
Japão[11], traria ao país, na visão equivocada de empresários e governantes japoneses,
trabalhadores étnica e culturalmente próximos da população local. Realmente, não há
referências históricas de significativa participação de descendentes de japoneses em
recentes movimentos contestatórios no Brasil, além das manifestações de grupos que não
aceitaram a derrota do Japão na II Guerra Mundial (Morais,2000, Mita,1999), pois, de
modo geral, suas associações específicas orientavam-se para a expressão cultural,
esportiva, religiosa e de lazer (Cardoso, 1959). O esforço desse segmento populacional
113
orientou-se para a busca da ascensão social, o que exigia uma integração social, levando a
maioria para posições nas classes médias brasileiras. (Watanabe, 1995)
A iminência da perda do status quo , com a crise econômica e social brasileira,
principalmente nos anos 80 e 90 (Singer,1983 e 1996 e Draibe,1990) levou trabalhadores a
procura de alternativas que surgiam fora do país, principalmente no Primeiro Mundo, pela
necessidade de estrangeiros para exercer as funções rejeitadas pela população local.
Nesse contexto, a precariedade das poucas associações criadas por brasileiros no
Japão, em vista da “paz social” que paira no imaginário da sociedade e da posição
específica dos migrantes na periferia da economia e da estrutura de classes, levou as
entidades a se restringirem à ação assistencial, como informação sobre documentação,
orientação sobre uso de serviços básicos das cidades e atividades de lazer para estabelecer
uma convivência entre os conterrâneos para enfrentar os desafios do cansaço, saudade,
tristeza e solidão. Em grupos buscavam participar de eventos populares organizados por
prefeituras levando suas danças, culinária e música, chegando, em outras ocasiões a
organizarem seus próprios eventos como expressão cultural do Brasil, nos espaços
próprios(shopping centers brasileiros, bares , casas noturnas, etc.), sob uma ótica
romântica e saudosista do país de origem.
No final da década de 90, novos grupos associativos surgiram para enfrentar
problemas específicos que passaram a se manifestar dentre os migrantes, relacionados com
a crescente violência, a presença de “meninos de rua”, com o acesso a escolarização e a
atenção a saúde[12]. Nesse processo, participam também funcionários de órgãos
governamentais do Japão, empresários brasileiros e outros migrantes, com vistas a buscar
soluções e alternativas para os problemas, muitas vezes preocupados com o sucesso dos
seus negócios e com a segurança dos brasileiros e , principalmente, dos vizinhos
japoneses. Com esse propósito, foram criados grupos de debates sobre educação dos filhos
de migrantes brasileiros, que, embora se reunissem esporadicamente, possibilitaram
levantar questões e alternativas, que não saíram do papel. Também foram criados grupos
para a prevenção da violência local, reunindo brasileiros e japoneses, que passaram a
debater a questão.
Grupos de brasileiros voluntários ligados a diferentes religiões[13] procuram, de
alguma forma, dar assistência aos migrantes brasileiros (e demais latino-americanos),
principalmente áqueles em situação precária, como os sem-teto, que dormem em estações
de metrô, debaixo de pontes, em parques e carros de colegas. Nesse aspecto é importante
citar ainda a participação de ONGs japonesas que dão assistência aos sem-tetos, com
roupas, cobertores, alimentos, etc...Também buscam desenvolver uma atenção especial á
educação de crianças que estão fora das escolas, atraindo-as para atividades de estudo em
áreas cedidas por escolas japonesas.
O governo japonês, mediante a ação das prefeituras das cidades com alta presença
brasileira, vem adotando medidas para a adaptação de migrantes às regras de convivência e
aos valores da sociedade nipônica. Geralmente, as providências são tomadas quando se
manifestam atitudes e comportamentos que perturbam a ordem estabelecida na empresa,
vizinhança, escola, etc...O mutirão da limpeza do bairro, o sistema de coleta seletiva do
lixo, o cumprimento das regras escolares e da vida cotidiana consistem em temas de
orientação detalhada aos migrantes pelas prefeituras, em língua portuguesa, com vistas a
transmitir as normas, os valores e as condutas esperadas pela sociedade abrangente.
114
Determinadas associações civis, como a Associação Internacional de Toyota, a
Associação Internacional de Nagoya e centros culturais dos diversos bairros, colaboram na
difusão desses valores, normas e comportamentos, reforçando o papel dos órgãos
governamentais. Paralelamente, desenvolvem atividades artísticas, de ensino do idioma
local, de aspectos da cultura nipônica, como culinária, canto, pintura e arte floral, além de
promoverem eventos comemorativos da cultura local.
O agravamento do desemprego, dos problemas sociais, de saúde , educacionais e
das manifestações de violência (roubos, brigas e vadiagem) levou o governo japonês a
organizar um simpósio internacional para debater questões sociais relativas aos brasileiros
no país. Prefeitos das treze cidades de maior concentração de brasileiros reuniram-se na
cidade de Hamamatsu (com maior índice de brasileiros), para debater, com a presença de
estudiosos dos migrantes, políticos, jornalistas e representantes de entidades voltadas para
os migrantes, questões sobre a violência de jovens migrantes, a desescolarização de
crianças e adolescentes brasileiros, a necessidade de medidas sobre a garantia do segurosaúde e da aposentadoria, com o envelhecimento de significativa parcela da população
migrante.
O encontro que se constituiu na primeira manifestação do governo nipônico em
pról da busca de alternativas para os problemas expressos na migração de brasileiros,
resultou em um documento denominado “Manifesto de Hamamatsu”, onde os prefeitos
assinaram um compromisso para solucionar os graves problemas sociais que ocorrem
dentre os migrantes brasileiros. A grande preocupação estava em deter o avanço dos
problemas decorrentes da migração que pudessem perturbar a ordem local, principalmente
das cidades com elevada proporção de brasileiros.[14] No entanto, o debate e a busca de
alternativas para políticas não teve uma significativa participação dos migrantes, senão
enquanto observadores.
As ONGs do Japão colaboram na manutenção da ordem social, através dos serviços
assistenciais prestados aos excluídos da sociedade, dentre os quais estão migrantes
brasileiros desempregados e em condições precárias de vivência, como os migrantes semteto. Embora haja um grande número de ONGs atuando no país[15], são pouquíssimas as
entidades voltadas para os migrantes brasileiros e outros latino-americanos.[16]
V. TENDÊNCIAS E SUGESTÕES
O movimento migratório de brasileiros ao Japão se mantém ativo com o vai-e-vem
dos migrantes e com a inserção de novos brasileiros, em geral jovens, que sem
perspectivas no Brasil, buscam alternativas no Exterior, atraídos pela modernidade e a
imagem que têm sobre os países do norte, como fonte de realização de seus sonhos de
ascensão econômica e social, que não conseguiriam no país, pela crescente exclusão social.
A migração seletiva privilegiando a ascendência nipônica já exclui outros candidatos em
potencial ao mercado de trabalho japonês, apesar dos vários “disfarces” utilizados para
burlar essa exigência, como casamentos fictícios, adoção de “filhos” temporariamente,
mudança de nomes, etc...Familiares, amigos, vizinhança ao lado de intermediários
(agências de viagens, empreiteiras e outros) viabilizam esse movimento migratório, que é
115
fortalecido pela existência de espaços próprios de brasileiros, em várias cidades do Japão,
com infra-estrutura para uma vivência “á maneira brasileira”.
Com o crescimento e a complexização da migração, os problemas sociais e
culturais dentre os migrantes apresentam alta visibilidade___ esta reforçada pela ação da
mídia local___ aumentando o preconceito e a discriminação da população do país em
relação aos brasileiros. De acordo com Komai (2001), a Constituição no Japão reconhece
os direitos apenas aos japoneses, excluindo, por princípio, os direitos de cidadania dos
estrangeiros.
A maioria dos brasileiros, ainda em funções desqualificadas, rejeitadas por
trabalhadores nipônicos altamente escolarizados, lutam para sobreviver no mercado de
trabalho e na vida cotidiana, sem tempo para cuidar dos próprios filhos e muito menos para
atuar em associações para a defesa de seus direitos sociais e humanos em terra estrangeira,
principalmente considerando sua posição social e política precária decorrente de sua
posição nos estratos inferiores da sociedade. A situação dos migrantes pode explicar a
fragilidade das associações que surgiram (e desapareceram) no decorrer do processo
migratório, levando-as a uma prática mais assistencialista do que reivindicatória dos seus
direitos, esta dependendo da ação individual e informal de parentes e amigos.
As atuais associações voltadas para os brasileiros sediadas no Japão, orientam-se
para debater e propor medidas para solucionar problemas específicos e imediatos, como a
violência dentre os adolescentes e jovens migrantes, a escolarização dos filhos de
brasileiros, a defesa dos empreendimentos brasileiros, a prevenção da AIDS, dentre outros,
que vêm preocupando o governo e a sociedade local.
A fraca ação do governo brasileiro e a ausência de uma política específica para a
questão migratória, aliada à fragilidade dos poucos grupos civis de atenção aos migrantes,
contribuem para adiar a obtenção dos direitos sociais e a cidadania para os brasileiros e dos
demais latino-americanos no Japão, principalmente considerando-se o contexto
preconceituoso e discriminatório da sociedade em face da presença estrangeira no mercado
de trabalho do país. Vem reforçar essa tendência o fato de as entidades formadas por
brasileiros estarem mais voltados a ações para a defesa dos empreendimentos e a imagem
brasileira no Japão, além da reorientação dos recursos financeiros dos migrantes
retornados, do que para a defesa dos direitos sociais e de cidadania dos brasileiros no
Exterior e no Brasil.
A obtenção da efetiva cidadania, desses brasileiros em trânsito na rota Brasil-Japão,
requer uma mudança de orientação das práticas sociais que vêm se preocupando com a
situação dos migrantes, no sentido de sua real participação para incluir nos projetos e
políticas os interesses dessa população, em sua vivência nos dois países envolvidos. A
luta por direitos compreende tanto o direito á igualdade como o direito á diferença, o que
significa a necessidade de mudança cultural também em ambas as sociedades envolvidas.
Por exemplo, no Brasil, em vista da origem étnica oriental, os migrantes são considerados
“japoneses” e, no Japão, são vistos como brasileiros, com todo o peso do preconceito e da
discriminação que acompanham essa visão.
Não bastam apenas medidas e políticas para atender aos interesses dos
empregadores dessa mão-de-obra e das economias dos países envolvidos, pois a questão da
cidadania necessita ações para além da simples inclusão social, conforme os padrões
culturais estabelecidos, mas garantindo o direito à igualdade e o direito à diferença, que
variam conforme a especificidade dos grupos sociais em ambos os contextos históricos.
116
Nesse contexto, torna-se importante o papel da mídia brasileira no Japão, para a
formação do imaginário dos migrantes, no sentido de formar opiniões sobre a própria
“comunidade”brasileira, sobre a sociedade japonesa e sobre o país de origem, numa
perspectiva crítica da migração e da busca da cidadania. Também destaca-se a necessidade
de articulação de grupos de debate e ação, ao menos no âmbito dos espaços dos brasileiros
no Japão, contra a discriminação e a defesa de direitos humanos. A participação de grupos
de japoneses nesse sentido seria de fundamental importância.
Embora os problemas sociais e culturais atinjam ambas as sociedades, em vista do
intermitente vai-e-vem dos migrantes, as ações para resolver as questões estão limitadas äs
leis, normas, regras e valores de cada um dos países. Nessa perspectiva, na medida em que
os problemas extrapolam o âmbito de cada sociedade, as políticas e práticas poderiam ser
definidas a partir da interação entre governos, ONGs e grupos de migrantes, conectando-se
em redes entre ambos os países, como já vem ocorrendo com as atividades comerciais, de
mídia e escolares sob a responsabilidade de brasileiros.
[1] Nikkey denomina os descendentes de japoneses no Exterior.
[2] Para análises detalhadas sobre as mudanças no trabalho, na vida social, cultural e de
escolarização dos filhos de migrantes brasileiros no Japão ver da autora :Para onde vão os
brasileiros?, Ed. Unicamp, 2a. ed. Revista, 2003
[3] Têrmo que se refere aos japoneses e seus descendentes residentes fora do Japão.
[4] Empreiteiras são pequenas empresas de intermediação de mão-de-obra brasileira e de
outros latino-americanos para trabalho em empresas japonesas. Há diferentes categorias de
empreiteiras, desde atividades informais até empresas constituídas por japoneses ou
brasileiros, instaladas no Japão e no Brasil. Também esses empreendimentos se
diferenciam quanto a idoneidade das atividades, coexistindo estabelecimentos legalmente
constituídos com o exercício das funções de recrutamento, seleção e administração de
determinados setores da empresa, que ficam sob sua responsabilidade mediante contrato de
terciarização desses serviços e empreiteiras com atividades de intermediação enganosa.
(Kitagawa,1993; Kawamura,1994)
[5] As cidades com maior concentração de brasileiros no Japão são: Hamamatsu, Hekita,
Kosai, Toyohashi, Toyota, Yokkaichi, Suzuka, Ogaki, Kani, Minokamo, Ota, Oizumi e
Iida.Ver o Programa do Hamamatsu International Symposium, 19-20 de outubro de 2001,
p.10 (em japonês)
[6] Pessoas que exerciam atividades rechaçadas pela população no passado, como
açougueiro, coveiro, lixeiro,etc. viviam discriminadas em áreas periféricas das cidades,
que passaram a se chamar buraku.
[7] A moradia era considerada problema para os próprios japoneses, em decorrência da
dimensão do país (cerca de 25 vezes menor que o Brasil) em relação a densidade
populacional (com uma quantidade de habitantes semelhante a do Brasil). Os altos custos e
a carência de habitação levam as empresas a manterem sob seu controle, para seus
trabalhadores, moradias de várias modalidades, principalmente em casos de trabalhadores
estrangeiros, para quem as dificuldades de acesso são maiores.
117
[8] Autodenominação obtida pela autora em entrevista com sem-tetos vivendo na estação
de metrô no centro da cidade de Hamamatsu,Japão, em outubro de 2001.
[9] Para análises sobre redes econômicas, sociais e culturais e suas implicações na
migração, ver da autora: Redes Sociales y Culturales de Migrantes Brasileños en la Ruta
Brasil-Japón: Movimiento y Permanencia, in Emigración Latinoamericana in Comparación
Interregional entre América del Norte, Europa y Japón, org. Mutsuo Yamada, JCAS
Symposium Series, no. 19,The Japan Center for Area Studies, National Museum of
Ethnology, Osaka, Japan, 2003, p.407-420 e Sasaki,E. :Redes Sociales de Migrantes
Brasileños descendientes de Japoneses de Maringá para Japón, in Emigración
Latinoamericana in Comparación Interregional entre América del Norte, Europa y
Japón,op.cit.p.421-453
[10] Sobre problemas psicológicos que os migrantes brasileiros trazem em sua volta ao
Brasil, ver o estudo de P. Galimbertti, “O caminho que o dekassegui sonhou”, São
Paulo,Editora da PUC-S.P., 2002 ,R. M. Morya, Fenômeno Dekassegui,Londrina, Edições
CEFIL, 2000 e Nakagawa, D.: Distúrbios Psíquicos dos Dekassegui, in O Futuro da
Comunidade Nikkey, org.M. Ninomiya, São Paulo, Mania de Livro,1996, p.187-193
[11] Emenda da Lei de Imigração, de junho de 1990, segundo a qual era permitida a
entrada no Japão, para fins de trabalho, estrangeiros descendentes de japoneses e seus
cônjuges.
[12] Na área da educação foi criada a Fundação Amigos Latino-Americanos(FALA) em
Kanagawa (Reis, 2001)
[13] Destacam-se a ação da Igreja Católica, Seicho-no-Iê, Tenrikyo,MOA , Igreja
Universal do Reino de Deus e centros espíritas, dentre outras.(Reis, 2001)
[14] O Simpósio Internacional de Hamamatsu realizou-se em 19-20 de outubro de 2001,
na cidade de Hamamatsu. A autora esteve presente como palestrante convidada pelo
Ministério das Relações Exteriores do governo japonês.
[15] Komai(2001) cita em seu estudo Foreign Migrants in Contemporary Japan, algumas
ONGs atuando no Japão, como HELP Asian Women’s Shelter (Tóquio), Kalabaw no
Kai(Yokohama), Asian Laborers Solidarity (Nagoya), Asian People’s Friendship Society
(Tóquio), International Movement Against Discrimination Based on Race (sediada em
Genebra), além de grupos de voluntários ensinando o idioma japonês, inicialmente
concentrados em torno de Tóquio e atualmente difundidos por todo o país. Um
levantamento do Cultural Affairs Agency, registrava, em novembro de 1998, 336
organizações privadas, com 6.511 voluntários trabalhando como professores, ensinando a
cerca de 83.086 estrangeiros.
[16] Entrevista realizada, pela autora, em novembro de 2001, com o presidente de uma
ONG sediada na cidade de Toyohashi, que se constitui atualmente na segunda cidade com
maior concentração de brasileiros.Além disso, a autora teve a oportunidade de participar
de um encontro das ONGs na cidade de Hamamatsu, em 18.10.2001
118
O DESENVOLVIMENTO DA MODERNA REGULAÇÃO DA ECONOMIA NO
BRASIL E NA UE - ANTES E DEPOIS DA CRISE ECONÓMICA
INTERNACIONAL
Luís Silva Morais
Doutor em Direito - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDL)
Professor Associado da Faculdade de Direito de Lisboa (FDL)
Advogado
1. - Crise e reforma do Estado intervencionista e desenvolvimento de modelos de
regulação da economia.
2. - O conceito técnico-jurídico de regulação da economia proposto.
3. - Perspectiva sistemática geral sobre os principais corpos jurídicos de regulação da
economia: (i) Regulação dirigida à abertura de mercados e à criação de condições
concorrenciais de funcionamento dos mercados; (ii) Regulação dirigida à salvaguarda de
determinados interesses públicos cuja tutela é imposta pela constituição económica em
cada ordenamento (interesses públicos específicos que podem encontrar-se em tensão com
valores dirigidos à abertura dos mercados).
4. - O fenómeno regulatório e o desenvolvimento de Autoridades Reguladoras Autónomas
nos EUA e na UE - A possível influência dos modelos norte-americano e da UE sobre o
progressivo desenvolvimento deste tipo de Autoridades no Brasil.
5. - Os diferentes planos de actuação das Autoridades Reguladoras Autónomas - poderes
de regulamentação; poderes de supervisão e poderes sancionatórios.
6. - Modelos de autonomia das Autoridades Reguladoras Sectoriais crescentemente
questionados - aspecto agudizado pelo contexto da crise financeira sistémica internacional
e pelas possíveis falhas de regulação verificadas. O problema da responsabilização e
escrutínio (“accountability”) destas Autoridades.
7. - Os diferentes planos materiais de actuação das Autoridades Reguladoras numa
perspectiva material ou funcional - Um quadro geral de referência das técnicas ou
instrumentos de actuação das Autoridades Reguladoras - As sínteses propostas por
GIANDOMENICO MAJONE e por outros autores (a posição de EDUARDO PAZ
FERREIRA E LUÍS SILVA MORAIS na doutrina portuguesa).
8. - Os limites de expansão da denominada regulação económica independente e as
insuficiências estruturais da regulação - em busca de novos equilíbrios. Os processos de
auto-regulação e a interacção entre esferas públicas e privadas de regulação da economia o desenvolvimento das denominadas constelações complexas de regulação (envolvendo
verdadeiras ‘parcerias’ entre entidades públicas e privadas para o exercício de funções de
regulação). As perspectiva de reforma de modelos de regulação da economia na sequência
das falhas identificadas com a crise económica internacional.
119
9. - Perspectiva de reforma de modelos de regulação da economia na sequência das falhas
identificadas com a crise económica internacional - continuação. Algumas áreas
paradigmáticas de reforma em especial: A reforma da regulação financeira - principais
tendências internacionais, nos EUA, na UE, na América Latina (em particular no Brasil).
10. - Outros casos sectoriais paradigmáticos de intervenção pública reguladora na UE e no
Brasil - Da regulação das comunicações electrónicas e dos sectores energéticos em
particular.
11. - Síntese conclusiva e visão prospectiva sobre a regulação da economia nos EUA, na
UE e no Brasil. A articulação entre múltiplos domínios de regulação sectorial e o direito da
concorrência.
120
PROBLEMAS ATUAIS DE DIREITO AUTORAL EM FACE DA INTERNET
Manoel J. Pereira dos Santos
Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo
Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo
Coordenador e professor do Curso de Especialização em Propriedade Intelectual da
Fundação Getúlio Vargas - SP.
A Internet acarretou uma nova dimensão ao processo de utilização das obras
intelectuais, o que tem suscitado intensa discussão sobre seu enquadramento jurídico. No
primeiro momento, indagava-se se a legislação criada para o mundo convencional poderia
ser aplicada ao ambiente digital e se o Direito de Autor sobreviveria ao desafio da
tecnologia da informação. Esse questionamento está superado há pelo menos uma década.
Há um consenso de que as novas tecnologias, se podem multiplicar a capacidade de
circulação e de acesso da obra intelectual, podem também servir para vigiar ou limitar
essas atividades.
Vive-se hoje uma Internet com muitos espaços controlados e a perspectiva da
Internet livre mostrou-se um mito mesmo no ambiente livre. Estamos assistindo ao
processo de gradativa regulação do mundo virtual e com esse objetivo criam-se
mecanismos para assegurar que a legislação de Direito Autoral seja aplicada de forma cada
vez mais eficaz. Os tribunais investiram contra o uso da tecnologia para a disseminação
incontida das obras, como no caso dos sites e softwares de compartilhamento de arquivos –
o chamado P2P, e alguns países já estão implementando normas visando o monitoramento
das atividades do usuário que utiliza a rede, como, por exemplo, para o “download” de
arquivos. É o caso da França e agora da Inglaterra.
Existe, porém, outro lado da experiência da Internet. Nem todos se servem desse
ambiente apenas para compartilhar arquivos de obras de terceiros. Como observa Castells
(2007), a Internet é “self-generated in content, self-directed in emission, and self-selected
in reception by many that communicate with many“. A comunicação social não é mais
como no passado um processo unidirecional, em que há o pólo comunicador e o pólo
receptor. A internet é um sistema de comunicação de massa que se auto-alimenta (“mass
self-communication web”), porque o usuário não só interage continuamente, mas também
se expressa ativamente. O internauta é usuário de serviços e de conteúdo, mas é também
um emissor de conteúdo por meio de redes sociais (como Twitter), blogs e plataformas
abertas (como YouTube e Wikipedia).
Há, pois, uma nova dinâmica social em que a ação colaborativa dos vários agentes
é dirigida para uma criação coletiva, seja no aspecto comunicativo, seja no aspecto
artístico ou intelectual: de um lado, (a) possibilitou-se a implantação de plataformas que
emulam o mundo real mediante a utilização dos recursos de interatividade, tornando
factível o mundo virtual que antes era mero elemento conceitual, e, de outro lado, (b)
desenvolveu-se intenso processo de criação colaborativa em que uma variedade grande de
pessoas pode contribuir para conteúdos específicos disponibilizados na rede sem que cada
contribuição seja necessariamente uma obra completa ou fechada. Essa temática constitui
121
o que se poderia chamar de segunda geração de questionamento do Direito de Autor em
face do impacto da tecnologia da informação:
Um mundo virtual como o Second Life, que verdadeiramente recria a realidade com
sua diversidade de elementos, situações e acontecimentos, tanto sociais quanto
econômicos, suscita inúmeras questões legais, incluindo com relação à prática de delitos
típicos do mundo convencional (como, por exemplo, jogos de azar).
Do ponto de vista técnico, Second Life nasceu como um jogo operado por software
que, instalado no computador do usuário e mediante acesso à Internet, permite que os
usuários se relacionem num ambiente digital a partir de conteúdos predefinidos que são
completados pelos usuários, mediante a construção de objetos e a interação com outros
usuários em tempo real. Nesse sentido, o Second Life é a mais completa realização técnica
do que há muito se convencionou chamar de ciberespaço.
Do ponto de vista do Direito Autoral, a estrutura básica do Second Life é composta
de três tipos de criações: (a) a plataforma virtual, representada por um site e implementada
por um software, que constituem criações tecnológicas típicas, gozando de tutela legal
autônoma; (b) o jogo que roda nessa plataforma, também implementado por um software e
representado por uma obra audiovisual, além das regras do jogo, que não são suscetíveis
de proteção autoral; e, finalmente, (c) as diferentes criações individuais que são
sobrepostas e que podem ser obras originárias ou derivadas.
O sistema de aportes individuais para compor o conjunto é similar ao que ocorre
com o modelo colaborativo implementado pelo Wikipedia, a chamada “enciclopédia livre”,
ou seja, uma enciclopédia on line de conteúdo aberto em que os usuários são convidados a
inserir ou editar verbetes. Como o site é disponibilizado nos termos de uma “licença de
documentação livre GNU” (GNU FDL – Free Documentation License), as diferentes
contribuições podem ser creditadas a seus autores, mas o conteúdo da enciclopédia será
sempre reproduzido e distribuído livremente, desde que sejam seguidas algumas regras
simples. O Wikipedia não pretende ser um “forum de debates”, ou seja, não se trata de uma
portal de “blogs” mas de um conjunto orgânico, razão pela qual os verbetes devem refletir
o consenso geral das idéias.
Do ponto de vista do processo criativo, poder-se-ia dizer que existe uma obra
coletiva, que resulta da colaboração de diferentes pessoas, mas cujas contribuições se
fundem em um conjunto ainda que se mantenha a autonomia das criações singulares (Art.
5°, VIII, “a” da Lei de Direitos Autorais brasileira). Segundo o regime da legislação
brasileira, a titularidade do conjunto pertenceria ao organizador da obra coletiva, sem
prejuízo da titularidade das criações individuais, expressamente reconhecida aos usuários
quando se destacarem do conjunto.
Contudo, Oliveira Ascensão, analisando a participação dos colaboradores nos
modelos colaborativos, entende que “todos são, conjuntamente, organizadores em relação
àquele projeto” e, portanto, “ocupam assim a função e o lugar do organizador” (2008).
Resultaria dessa premissa a existência de uma titularidade coletiva com relação ao
conjunto. Na verdade, a qualificação jurídica desses experimentos pode variar em função
das características próprias de cada projeto.
Por exemplo, a Linden Lab expressamente declara que o Second Life é apenas uma
plataforma de comunicação – por meio do qual é prestado um serviço – e que o provedor
não tem controle efetivo sobre o conteúdo postado. É o que consta do item 1.2 dos “Terms
122
of Service” a respeito da natureza das atividades da Linden Lab. Nesse caso, o Second Life
funcionaria de maneira similar ao YouTube, razão pela qual poder-se-ia indagar se
efetivamente a Linden Lab é o organizador de uma obra coletiva e, como tal, titular dos
direitos autorais sobre o conjunto. Seria mais adequado concluir que todos os participantes
são, conjuntamente, organizadores com relação àquele projeto?
A Wikipedia é gerenciada e financiada pela Wikimedia Foundation, mas ela
também se apresenta como “uma associação voluntária de indivíduos e grupos que estão
desenvolvendo um repositório comum do conhecimento humano”. Não obstante, o controle
sobre o conteúdo disponibilizado na Wikipedia parece ser mais restrito do que ocorre no
Second Life e, nesse sentido, obedece a regras diferentes de um portal de comunicação.
Embora esse conteúdo seja de livre utilização nos termos da licença GFDL, o projeto como
um todo reveste-se de autonomia conceitual e legal. Também aqui poderíamos dizer que
todos os colaboradores são organizadores do conjunto? Ou pelo fato de organizar e
divulgar a enciclopédia em seu nome, a Wikimedia Foundation seria o organizador e
titular dos direitos sobre o conjunto?
A própria eficácia das licenças colaborativas, tipo GFDL ou Creative Commons,
constitui matéria sujeita a controvérsia. Há quem discuta o efeito legal das cláusulas que
estabelecem obrigações ou renúncias permanentes e da restrição ao exercício dos direitos
autorais sobre as obras derivadas, bem como sua relação com o direito moral de autor.
Poderá o autor revogar a qualquer momento a licença Creative Commons? Poderá o
licenciante exigir que o criador da obra derivada somente utilize sua obra sob a
modalidade de uma licença Creative Commons? As amplas autorizações para modificação
da obra violam a natureza irrenunciável do direito moral de autor? Pode o autor conceder
previamente uma licença geral de uso de sua obra futura. Há, enfim, certa incerteza
jurídica quanto à plena eficácia das licenças colaborativas.
123
"A JURISCONSTRUÇÃO BRASILEIRA FRENTE AOS DESAFIOS DA
ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA A NÍVEL NACIONAL E INTERNACIONAL"
Professor Marcelino Meleu
Advogado
Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI Campus Santo Ângelo
Pesquisador em mediação e praticas restaurativas
Coordenador da Especialização em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da
Faculdade Meridional – IMED
Professor das Escolas de Direito e Administração da Faculdade Meridional
Breve resumo: Estão ocorrendo mudanças no cenário interno e internacional, no que tange
ao modelo de jurisdição, admitindo-se assim, outras formas de resolução/tratamento de
conflitos, além da forma judicial (alicerçada na intervenção do juiz e, no processo
judicial). Essa mudança de paradigma evidenciada, acaba por fortalecer institutos como a
mediação de conflitos, a justiça restarativa, entre outras formas não-adversarias de
resolução de conflitos.
124
OS TRABALHADORES BRASILEIROS NO JAPÃO E AS QUESTÕES
JURÍDICAS QUE ENFRENTAM
Masato Ninomiya
Doutor em Direito pela Universidade de Tóquio
Professor da Universidade de São Paulo
1. Histórico do fenômeno chamado Decasségui
A ida dos brasileiros para o Japão se deveu a combinação de dois fatores: a crise na
economia brasileira, principalmente o congelamento das contas bancárias no início do
governo Collor e a falta de mão de obra no Japão, principalmente no segmento
denominado de 3 K (kitsui, kitanai, kiken), ou seja trabalhos duros, sujos e perigosos.
2. Artigo 206 do Código Penal brasileiro de 1940 como fator inibidor do fenômeno
Houve muitas prisões sem condenações pela tentativa de aplicar o citado
dispositivo legal, pela Polícia Federal, causando grandes transtornos para os brasileiros que
pretendiam viajar naquela noite, com apreensão de passaportes e eventuais moedas
estrangeiras que pretendiam levar consigo. A questão só foi resolvida com a reforma do
citado dispositivo legal pela iniciativa do Deputado Federal Diogo Nomura.
3. Problemas enfrentados com empreiteiras de má fé
Acenavam com possibilidades de empregos nas grandes empresas japonesas, cujos
nomes todos conhecem, mas na verdade, iam trabalhar nas pequenas e médias empresas
que prestavam serviços àquelas empresas maiores. Não eram registrados como
empregados regulares, nem eram inscritos nos chamados Seguros Sociais, causando
grandes transtornos quando ficavam doentes ou sofriam acidentes.
4. Estudo comparado das legislações trabalhistas do Brasil e do Japão
A legislação brasileira é extemamente protecionista. São parecidas na medida em
que seguem as convenções e recomendações da OIT, mas o conteúdo é bem diferente, por
exemplo, na questão de gozo de férias após um ano de trabalho.
5. Questões previdenciárias dos trabalhadores brasileiros no Japão
Devido a falta de inscrição da maioria dos trabalhadores nos chamados Seguros
Sociais, o governo brasileiro propôs a negociação de um acordo bilateral de previdência
por ocasião da visita do Presidente Lula em maio de 2005.
6. Problemas enfrentados pelas crianças brasileiras nas escolas japonesas e
brasileiras
Desde o início do fenômeno, soube-se das dificuldades de adaptação das crianças
brasileiras nas escolas japonesas, principalmente na faixa etária em torno de 10 anos, onde
se sentia maiores dificuldades pela falta de conhecimento da língua e o estágio avançado
125
em que se encontravam as aulas. Houve no início, casos de discriminação contra crianças
brasileiras por parte dos colegas japoneses, quer pela falta de conhecimento da língua, quer
pelas crianças mestiças, ou ainda, pela diferença na bagagem cultural que levavam.
7. Jovens brasileiros como campeões de delinquencia juvenil no Japão
Jovens que sofriam discriminação nas escolas ou os que não conseguiam
acompanhar o curso, acabavam desistindo de frequentar as escolas japonesas. Como as
escolas brasileiras são particulares e cobravam mensalidades da ordem de 400 a 500
dólares mensais, então, havia muitos que não frequentavam nem a uma, nem a outra.
Ficavam em casa enquanto os pais trabalhavam de dia, e acabavam se agrupando e
partiam, inicialmente para as pequenas delinquencias como furtos, mas acabavam
praticando delitos maiores. Enquanto que os brasileiros adultos ocupam o segundo lugar
no índice de criminalidade entre os estrangeiros no Japão, os jovens estão em primeiro
lugar.
8. Criminalidade dos brasileiros no Japão. Suspeitos brasileiros foragidos no Brasil.
Constatou-se, desde o início do fenômeno decasségui, a ocorrência de crimes de
autoria de brasileiros. Havia, outrossim, crimes onde os brasileiros eram vítimas de
japoneses, de outros estrangeiros, ou então, dos próprios patrícios. Fala-se que há mais de
1000 brasileiros cumprindo penas nas prisões japonesas.
Recentemente, houve constatação de muitos crimes dolosos ou culposos que
ocorreram, principalmente na província de Shizuoka, onde os criminosos dolosos planejam
cuidadosamente o crime que praticam no dia anterior ao embarque para o Brasil,
escapando, assim, da busca da polícia japonesa. Levando em consideração que a CF de
1988 proíbe a extradição de nacionais para o exterior, optou-se pela aplicação
extraterritorial da legislação penal brasileira, que possibilita o julgamento e a aplicação da
pena contra crimes cometidos por brasileiros no exterior. Já houve dois casos julgados no
Brasil, um em Belo Horizonte outro em São Paulo. O primeiro caso foi de latrocínio
seguida de tentativa de incendio, onde o réu foi condenado a 34 anos e 5 meses de
reclusão, encontrandos-se o caso em grau de recurso. O segundo caso foi de homicídio
culposo seguido de omissão de socorro, onde o réu foi condenado a 4 anos de detenção,
mas foi substituída por pena alternativa de prestação de serviços e o pagamento de uma
pena pecuniária, inicialmente de 100 SM, reduzida, posteriormente para 10 SM.
9. Questões emergentes das ações de movidas no Brasil e as Cartas Rogatórias.
Há numerosas ações de alimentos movidas por filhos menores de brasileiros que
vão trabalhar no Japão e deixam de enviar notícias para seus familiares, tendo muitas vezes
consituído novas famílias no Japão. A Justiça brasileira tem dificuldades em citar estas
pessoas, pois intencionalmente ou não, mudam de endereços com muita frequencia, ou os
endereços não estão corretos, o que dificulta a citação.
126
Integracion de Argentina y Brasil por Medio Del Mercosur
Pablo Oscar Gallegos Fedriani
Abogado egresado de la Universidad de Buenos Aires
Doctor en Derecho y Ciencias Jurídicas por la Universidad de Buenos Aires, área
“Derecho Administrativo” 2008
Vocal de la Excma. Cámara Nacional de Apelaciones en lo Contencioso Administrativo
Federal
Profesor Adjunto Regular de Derecho Administrativo en la Facultad de Derecho y Cs.
Sociales de la U.B.A.
Profesor invitado por la Facultad de Derecho de Pau (Francia, 1994)
Profesor titular de Derecho Administrativo en la Facultad de Derecho de la Universidad
Nacional de la Patagonia San Juan Bosco – Sede Esquel
La idea que me trajo aquí es la idea de descubrir históricamente las relaciones
entre dos países hermanos, Argentina y Brasil, Brasil y Argentina.
En el caso de Argentina y Brasil tenemos padres comunes y nacimos a la
independencia en forma similar. Napoleón invadió la Península Ibérica, la corte
portuguesa vino a Brasil mientras que el rey español quedó preso de Napoleón. De ahí que
al mismo tiempo que nacía el imperio o el reino de Brasil nacía la Argentina.
No solo nuestros países nacieron juntos, sino que además tienen una lengua muy
parecida, tienen un derecho casi idéntico, el derecho brasilero deviene del derecho romano
y el derecho romano se transmitió a Portugal y se transmitió a España.
Tuvimos como hermanos, guerras. La Argentina tuvo una guerra con Brasil en
1820 que dio nacimiento a un hijo incestuoso que es la República Oriental del Uruguay.
Nos peleamos durante años por la colonia del Sacramento y siempre estaba la República
Oriental del Uruguay entre Brasil y la Argentina.
Otro de los temas que nos une desde siempre son nuestras fronteras comunes.
Gran parte de nuestro país, la Provincia de Corrientes, la Provincia de Misiones y la
Provincia de Entre Rios tienen fronteras con el Brasil.
Pero la idea de que estos pueblos hermanos se unieran no fue siempre así.
Nuestros comunes gobiernos militares, tanto de un lado de la frontera como de otro
hicieron que la Argentina y Brasil se tuviesen desconfianza, es decir se miraran con ojos
de desconfianza. Tanto es, que las provincias limítrofes con Brasil no tenían rodovia en
Argentina para frenar una posible invasión brasilera, no teníamos puentes que cruzaran el
127
río Uruguay, ni puentes que cruzaran el río Paraguay y lo que nosotros llamamos nuestra
Mesopotamia, que quedaba aislada de todo el territorio argentino por la posible invasión
brasilera. Esto era algo que se decía normalmente. El único paso que teníamos era Paso de
los Libres Uruguayana que era la única frontera pero para llegar a Paso de los Libres
nosotros teníamos que cruzar el Río Paraná, teníamos que hacerlo en barco porque no
teníamos puente.
Hoy en día eso ha desaparecido. El Mercosur es una realidad pero durante
muchísimos años más que amigos, más que hermanos fuimos casi enemigos
Otro de los problemas que tuvimos fue la Guerra de la Triple Alianza. La
Argentina lucho junto a Brasil y junto a Uruguay contra la República del Paraguay y se
produjo también por una cuestión de límites. El Paraguay quiso entrar en Brasil, pero para
entrar en Brasil tenía que cruzar la Provincia de Corrientes. La Argentina le dijo que no,
los paraguayos cruzaron igual y a partir de allí la Argentina le declaró la guerra.
Terminada la Guerra de la Triple Alianza tuvimos un conflicto de límites con Brasil que se
resolvió por la intermediación del gobierno norteamericano, por supuesto nosotros
pensamos que perdimos y que Uds. nos sacaron territorio y Uds deben pensar exactamente
lo contrario. Lo cierto es que hubo una división de límites en una zona que no existe río.
Hay una parte entre Argentina y Brasil donde el río Uruguay pasa a territorio brasilero y
desaparece, es lo que se llama frontera de tierra seca.
Durante 30 años nosotros tuvimos un gobernador que fue Juan Manuel de Rosas
que impidió algo que era fundamental para España e Inglaterra, las dos potencias
mundiales en el siglo XIX, que era la libre navegación de los ríos Uruguay y Paraná.
Ambos ríos nacen en Brasil pero prácticamente todo su recorrido lo hace en territorio
argentino, son ríos binacionales pero desembocan en el Río de la Plata que en ese entonces
era de los dos lados argentino.
De ahí que cuando Rosas en 1852 es derrocado quien viene a derrocar a Rosas es
el Imperio de Brasil, que ayudó a los gobernadores del interior de nuestro país para
permitir la formación de nuestra república. Nuestra Constitución es de 1853 y el ejército se
llamo Ejercito Grande estaba integrado por Brasil, la Provincia de Entre Ríos y la
Provincia de Corrientes, contra la Provincia de Buenos Aires y una de las primeras
cláusulas que existieron en esa Constitución fue la libre navegación de los ríos, de los
llamados ríos interiores.
Para llegar a San Pablo y otras regiones del Brasil resultaba mucho más fácil ir
por el Río de la Plata, subir por el río Paraná hasta Paraguay que se llega al Mattogrosso o
subir por el río Uruguay que dobla y llega prácticamente a la zona de San Pablo, de lo
contrario deberían acostar en lo que sería Guaruja, cruzar toda la cordillera atlántica y
llegar a San Pablo, que en aquel entonces era una ciudad muy pequeña y sin la importancia
que tiene hoy.
De ahí que Brasil está en nuestra Constitución, esta en nuestra historia, participa
de una zona común, tenemos un territorio común y tenemos algo que muy pocos países
tienen, una historia parecida.
Nuestras dictaduras militares han coincidido con gobiernos democráticos a
posteriori y existió un plan Cóndor, que fue un plan que unió a todas las dictaduras de
América Latina de ese momento. Pinochet en Chile, Stroessner en Paraguay, la dictadura
128
en Argentina y la Brasilera y los uruguayos. Mediante ella los 4 países perseguían a los
movimientos revolucionarios de cada uno de ellos y si un natural de un país era tomado
prisionero en alguno de ellos, sin ningún tipo de extradición ni de intervención de ningún
abogado era llevado clandestinamente al país de origen donde era torturado o matado. El
plan Cóndor funcionó con Brasil, funcionó con Paraguay, funcionó con Uruguay,
funcionó con Chile y también con Bolivia, es decir toda la América del Sur estaba
incluida en un plan para destruir al enemigo de ese entonces que era la guerrilla marxista.
Toda esta historia la explico para decir que el Mercosur no es algo que nació de la
nada, es algo que estaba entre nosotros y que la globalización mundial nos obligó a
adoptar.
El Brasil es sin duda el país más importante de América latina, y uno de los más
importantes del mundo.
China tiene mil doscientos millones de habitantes a Uds. les faltan unos mil
millones para llegar a tener la población de China o la población de la India y a la
Argentina le faltan muchísimo más. De ahí que la creación de un bloque que englobe a 4
países en el cual Brasil sea el motor o la locomotora del tren y Argentina sea quien la
acompaña es algo que visionaron, por lo menos, un gran presidente argentino como fue
Alfonsín y un presidente -que creo también importante porque ustedes retornaban a la
democracia- que era el Dr. Sarney. Ambos firmaron un tratado, y luego se firmó el tratado
de Asunción.
¿Que es el Mercosur?
Es el libre tránsito dentro del territorio de personas bienes y servicios, lo que
implica la inexistencia de alfandegas, de aduanas, es decir nuestros comercios ya sea de
personas, yendo de un lugar a otro, de bienes o de servicio debe ser igual a cero, no debe
pagarse ni exigirse ningún condicionamiento fuera de estos cuatro países mas Chile,
Bolivia y Venezuela que estarían por integrar el MERCOSUR. Crea una zona de libre
comercio que alcanza para instaurar un mercado suficiente para que el Brasil con sus
productos tenga donde vender y la Argentina, con sus productos tenga a quien vender. En
la actualidad el primer comprador de los productos argentinos es Brasil porque nuestras
economías son complementarias y así debe serlo, no tiene sentido tener dos fábricas de
automóviles iguales en los dos países o fabricar lo mismo cuando se puede hacer en uno y
complementar en otro. La mayoría de los automóviles hechos en Argentina tienen partes
hechas en Brasil y la mayoría de los construidos en Brasil tienen partes hechas en
Argentina, sobre todo las cajas de cambio los frenos y un montón de cosas más.
Todo mercado común tiene como primera premisa una unión aduanera; la
segunda es una unión cultural. Esto significa, entre otras cosas, unificar los títulos
universitarios, es decir que un medico brasilero pueda trabajar en la Argentina y que un
médico argentino pueda trabajar en Brasil. Que los Doctorados de los distintos países
sirvan tanto en uno como en otro, que los alumnos de una universidad como esta puedan
cursar algunas asignaturas en la Universidad de Buenos Aires y viceversa. Es decir que
alumnos de la UBA o de cualquier universidad del país puedan venir a Brasil a practicar.
Porque si no hay un complemento cultural si las cabezas no se abren, open mind
dicen los norteamericanos, nunca vamos a poder llegar a la concretización de algo que sea
real.
129
Lo que no se conoce, no se quiere. Sólo se quiere aquello que se conoce. Pongo
un ejemplo, nadie a los cinco minutos de conocer a otra persona puede decir estoy
enamorado; si lo dice está bebido o la otra persona es muy bonita y no está enamorado,
tiene otra intención. Lo cierto es que para querer hay que conocer y para hay conocer hay
que estar cerca del objeto.
¿Cuál es le método por el cual los pueblos se conocen?
Por el intercambio, por los viajes, por los cambios culturales, por venir los
argentinos aquí e ir los brasileros allá, por tener reuniones de este tipo.
Nosotros, por ejemplo, tenemos la Asociación de Derecho Administrativo que
hace una sesión anual todos los años. Desde que yo voy hay uno o dos profesores
brasileros. Celso Antonio Bandeira de Mello participa del mismo y otros profesores que
vienen a hablar.
El último punto es la unión política. Y la unión política implica un concepto muy
moderno pero que todos los días lo estamos usando. Es la introducción del
derecho internacional dentro del derecho nacional. Cada país no puede decir que por su
soberanía su derecho es el único que se aplica. Tanto Brasil como Argentina han firmado
muchas convenciones con otros países que pasan a formar parte de su derecho interno.
Nuestra Corte Suprema de Justicia lo ha aplicado recientemente en el caso de la
imprescriptibilidad de la acción contra los delitos de lesa humanidad. Ello quiere decir que
a 30 años de producidos los hechos militares de desaparición de personas, la Argentina
está juzgando (en este momentos) a los militares que actuaron reprimiendo (como
represión del Estado) sobre la base de una jurisprudencia internacional que determina que
los crímenes de lesa humanidad son imprescriptibles, es decir que incorporamos del
derecho internacional al nuestro y para conocer nuestro derecho debemos también conocer
el derecho internacional.
En mi carácter de juez (hace 25 años que lo soy, primero de primera instancia y
ahora de segunda instancia) de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Contencioso
Administrativo resuelvo cuestiones de tipo aduanero, tributario, administrativo, bancario,
debo interpretar la norma y lo más difícil de la interpretación de la ley es cuando la ley cae
en manos de una persona que no sabe pensar, que puede hacer un desastre enorme. Porque
la interpretación literal de ley es la peor de todas, porque toda ley debe ser interpretada y
debe ser interpretada sobre la base de lo que es la media normal y sobre la base de lo que
son los valores existentes en ese momento.
Piensen ustedes respecto de jueces que resuelven litigios entre los particulares y el
Estado que posición ideológica tiene que tener ese juez. Hay jueces que son oficialistas, no
importa cual sea el gobierno y están siempre a favor del gobierno y otros que están
siempre en contra. Eso no es un avance metodológico en la interpretación del derecho sino
un prejuicio ideológico que hace que antes de resolver ya sepa de que parte estoy.
Esto nos lleva por último, porque no quiero extenderme más de lo posible, a lo
que tiene que formarse en toda unión, un Tribunal Superior, es decir un Tribunal que
resuelva los conflictos que se puedan presentar entre los países y entre los ciudadanos de
un país y el otro. Porque no es lo mismo que un argentino venga a litigar contra el estado
brasilero que si ese argentino va a litigar a un Tribunal Superior donde el derecho va a ser
visto no solamente desde la base del derecho argentino o brasilero sino desde un derecho
130
común que se va formando a través de la jurisprudencia de los tribunales. En Europa no se
puede estudiar derecho propio de un país solamente, hoy en día en Francia, Italia, España o
donde vaya, se estudia derecho comunitario y el derecho interno del país que corresponda.
El Tribunal Superior existe pero es nada más que un tribunal arbitral, no es un
tribunal obligatorio. Los jueces no son lo mismo que los árbitros. El árbitro trata de
solucionar conflictos, pero los jueces deciden.
Este Tribunal tiene su sede en Asunción del Paraguay y tiene un representante de
cada uno de los países que lo integran y los conflictos pueden solucionarse a través de
tribunales arbitrales ad hoc para el caso, o bien desde el Tribunal Superior, cuando este
tribunal empiece a funcionar, a decidir, los el Superior Tribunal de Justicia brasilero, la
Corte Suprema Argentina, la Corte Suprema Uruguaya y la paraguaya deberán tomar
como obligatorio aquello que ha resuelto aquél, es decir que por encima del derecho
nacional está el derecho supranacinal.
A Europa le llevo 60 años llegar a una moneda única. Nosotros los argentinos y
ustedes los Brasileros somos ansiosos, queremos todo pronto, ya, en forma inmediata.
Porque somos pueblos jóvenes que tenemos mucha sangre mezclada, para ir para adelante
Pero solamente yendo paso a paso se podrá avanzar. Primero tenemos que tener un cambio
cultural mientras los estados federales y los estado regionales aquí, y las provincias
argentinas no entiendan que por encima de su país existe una unión todo se va a seguir
complicando.
Desde mi experiencia judicial, resuelvo conflictos. Voy a contarles uno o dos
casos, para que vean como esto funciona.
Todo producto brasilero que entre a la Argentina tiene -por ser un producto de
dentro del Mercosur- un arancel cero, alícuota cero, es decir que no paga un peso siempre
que demuestre que el bien es de producción brasilero. Hay una serie de documentación,
entre ellos, está la factura comercial.
Cada factura comercial debe llevar la signatura, la firma original del vendedor, si
falta en alguno de los productos que pasan la frontera, inmediatamente no son
considerados como pertenecientes a productos del Mercosur. El tribunal que integro dijo
que, si se puede probar por otros medios corresponde que ese producto sea considerado
como perteneciente al MERCOSUR. Lo que quiere la ley es que el intercambio sea cada
vez más fluido y no cada vez menos fluido, por lo tanto si podemos encontrar el espíritu de
la ley y demostrar que este producto es brasilero (porque está en conocimiento, el
embarque si viene por barco, factura de origen etc.) y por una firma que no está no puede
pasar y la Aduana Argentina interpreta que tiene que pagar 30% o 40% de alícuota o no lo
deja pasar. El Tribunal que integro lo revocó y la Corte Suprema dijo que estaba bien que
tenía que pagar la alícuota del 30%. Es decir que un funcionario de décima categoría,
porque faltaba una firma impidió que la integración mínima del mercado funcionara.
Mientras esas mentalidades de la aduana o esas mentalidades de nuestro derecho
no cambien no podemos decir que hay una verdadera unión aduanera.
Por último quería decir que hace poco hemos fundado el Unasur, la Unión
Nacional de Naciones del Sur y se ha elegido al ex presidente Kirchner.
131
El Unasur es un nuevo organismo internacional que se agrega a la OEA, al Pacto
Andino, a las Naciones Unidas pero los únicos que pueden crear una unión es el Mercosur.
En síntesis de lo que he expuesto para que el MERCOSUR funcione
correctamente debe darse, primero una libre circulación de personas bienes y servicios y
segundo una unión cultural con el aprendizaje del portugués en Argentina (que esta ya en
funcionamiento) y del español en Brasil como segunda lengua después del inglés
La unificación de los títulos, es decir que los títulos de grado, posgrado,
especialización, maestrías o doctorados, sean similares y que haya equivalencia entre unos
y otros.
En la actualidad si un medico brasilero quiere ir a trabajar a la Argentina tiene que
hacer toda la carrera de medicina de nuevo y de igual forma si un médico argentino quiere
venir a trabajar a Brasil, lo que no tiene ningún sentido.
Y por último una apertura de mentalidades como ha sido esta invitación que me
han hecho y que ha sido para mi un placer.
132
OS CONVÊNIOS INTERNACIONAIS ASSINADOS PELO BRASIL PARA
EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO E A EVASÃO FISCAL.
Pollyana Mayer
Mestre em Direito Tributário pela Universidade Mackenzie.
Doutora pela Universidade de Salamanca (Espanha)
Consultora tributária da WTS Brasil
Professora do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET)
O Brasil encontra-se hoje em posição privilegiada no mercado financeira sendo
considerado um pólo importante para investimentos estrangeiros e uma potência como
investidor mundial. Com a expansão das negociações comerciais e conseqüentemente o
aumento do fluxo de pessoas, bens e capitais, cresce também a preocupação em relação a
temas relacionados à dupla tributação e evasão fiscal.
A dupla tributação internacional é certamente encarada como obstáculo às relações
econômicas internacionais. Além das medidas unilaterais adotadas para mitigar os efeitos
da imposição tributária entre dois países envolvidos em operações comuns, acordos
bilaterais e multilaterais são firmados entres as Nações Soberanas com o intuito de evitar
essa carga fiscal dobrada.
Os Convênios Internacionais, segundo a convenção de Viena de 1969, são acordos
internacionais celebrados por escrito entre os Estados e regidos pelo Direito Internacional,
inserido em um único instrumento, ou em dois ou mais instrumentos conexos, de acordo
com a sua designação específica.
A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
desenvolveu um Modelo de Convênio para evitar a dupla tributação internacional e
prevenir a evasão fiscal, o qual é adotado pela maioria dos países com grande expressão
econômica. Atualmente, o Brasil possui 29 convenções internacionais em matéria
tributária firmadas com outros países, e apesar de não ser membro efetivo deste Organismo
segue em todos eles o modelo sugerido.
A OCDE conta, atualmente, com um total de 30 países membros que compartilham
as idéias de um governo democrático e de uma justa economia de mercado. Além disso,
tem relações com mais de 70 paises não membros, O.N.G.s e Sociedades Civis, e tem um
alcance global em tudo o que faz. Todos os trabalhos emanados desse organismo podem
ser considerados fontes de informação comparativa de análises e revisões com vistas ao
fortalecimento da cooperação multilateral. Tem como principais funções fomentar a
adoção de medidas que assegurem o crescimento e a estabilidade econômica, favorecer a
cooperação entre governos, fomentar os investimentos internacionais, lutar contra a
corrupção e a lavagem de dinheiro e garantir a equidade e a transparência dos sistemas
impositivos.
Além do intuito de evitar a dupla tributação, outra questão relevante abordada nos
convênios internacionais diz respeito à prevenção quanto ao planejamento tributário
133
ilegítimo envolvendo operações internacionais, em outras palavras “evasão fiscal” e
“elisão fiscal ilícita”. Nos Modelos de Convenio atuais, tanto da OCDE como os da ONU e
U.S, encontramos cláusulas para evitar a utilização de possíveis instrumentos de
planejamento indesejados pelas Autoridades Fiscais como: o treaty shopping, o rule
shopping, o uso abusivo dos preços de transferência e os casos de utilização de paraísos
fiscais para acobertar determinadas operações. Estas cláusulas, incluindo a de intercambio
de informação entre os países, são de extrema importância e devem ser observadas
atentamente por todos os países que pretendam assinar Convênios e que queiram se
proteger de condutas astutas evitando assim planejamentos tributários ilegítimos.
134
GOVERNANÇA DA INTERNET: CONCEITO, ATORES, MECANISMOS E
PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA.
Raquel Fortes Gatto e Antonio Marcos Moreiras
Raquel Fortes Gatto
Advogada
Mestre em Direito do Estado pela Pontífica Universidade Católica de São Paulo
Antonio Marcos Moreiras
Engenheiro Elétrico pela Universidade de São Paulo
Mestre em Engenharia Elétrica pela Universidade de São Paulo
Supervisor de Projetos do Núcleo de Informação e Coordenação do .br e Professor da
Universidade Cidade de São Paulo.
Com pouco mais de 30 anos, a Internet tem inegável influência no dia-a-dia de
nossa sociedade. Sob o prisma técnico, a Internet define-se como a rede entre
computadores, de abrangência mundial, que adota determinados protocolos padrão, em
especial o TCP/IP, para transmissão de dados em pacotes.
Para usuários não-técnicos, essa definição pouco lhes dirá, visto que a Internet é
vista como uma abstração, uma ferramenta ou mesmo uma sociedade paralela. Em outras
palavras, não se restringe ao conjunto de padrões e protocolos.
Portanto, para um entendimento mais completo do conceito de Internet, faz-se
necessário ir além da tecnologia: a Internet também envolve aspectos legais, regulatórios,
econômicos, de desenvolvimento social e cultural..
Por sua vez, a Governança da Internet também engloba todos os aspectos da rede,
na maneira como são percebidos pelos diversos atores envolvidos e nas formas existentes
ou necessárias para gerenciá-los. Essa governança não se confunde com governo no
sentido Estado, mas sim a gestão, gerência, administração da estrutura e processos da
Internet. Portanto, deve-se entender Governança da Internet como a Administração da
Rede Mundial entre Computadores, que alcança também a sociedade e, portanto, deve
incluir os reflexos sociais (mundo virtual, novos costumes, inclusão digital), jurídicos
(contratos, impostos, jurisdição) e econômicos (comércio eletrônico, valores virtuais).
O Grupo de Trabalho composto pela Organização das Nações Unidas, na fase
preparatória à segunda versão da reunião da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação
(ou, no acrônimo em inglês, WSIS), propôs a seguinte definição:
“Governança da Internet é o desenvolvimento e a execução pelos Governos,
sociedade civil e iniciativa privada, em seus respectivos papéis, de princípios,
135
normas, regras, procedimentos decisórios e programas compartilhados que
delineassem a evolução e o uso da Internet”.
Nesse contexto, o item 35 da TUNIS AGENDA FOR THE INFORMATION
SOCIETY propõe que o gerenciamento da Internet englobe questões técnicas e políticas
públicas, envolvendo todos os atores.
Esse mesmo documento clama, em seu item 38, pelo fortalecimento das instituições
regionais de gestão dos recursos da Internet, para garantir os interesses nacionais e os
direitos desses países a gerir os próprios recursos da Internet, ao mesmo tempo em que
mantém a coordenação global.
136
Alguns mecanismos existentes para a Governança da Internet
Diversas entidades e organizações têm atuado no campo das telecomunicações e
das redes de dados, com variável participação e importância no que se refere ao seu papel
na Governança da Internet. Destacamos a seguir alguns desses mecanismos:
IEEE e ITU: Padrões para a infra-estrutura de Telecomunicações e Redes.
A UIT, União Internacional de Telecomunicações ou, em inglês, ITU, International
Telecommunication Union, antigamente conhecida como CCITT (Comité Consultatif
International Téléphonique et Télégraphique), criada em 1865 e responsável pela
padronização na área de telecomunicações. Em 1947, a ITU passou a ser ligada
diretamente à ONU, funcionando como uma Agência Especializada – uma entidade
autônoma que coordena suas atividades com outras Agências do mesmo gênero (outros
exemplos de Agência Especializadas da ONU são a FAO, a UNESCO, o FMI, a WIPO,
etc) e com a própria ONU, através do Conselho Econômico e Social da entidade.
O IEEE (Institute of Electrical and Electronics Engineers), responsável, por
exemplo, pelos padrões elétricos das interfaces de comunicação é uma instituição sem fins
lucrativos criada em 1884 nos Estados Unidos.
IETF: Os padrões para a infra-estrutura da Internet.
A IETF (Internet Engineering Task Force) é a responsável pela arquitetura básica
de funcionamento da Internet. Padrões como o TCP/IP, protocolos de email, DNS, entre
outros, são responsabilidade dessa organização. É a entidade de normatização com o
processo mais aberto existente na atualidade, com a participação de pesquisadores,
cientistas, técnicos de empresas comerciais, operadores e projetistas de redes de
computadores, preocupados com a evolução da arquitetura e a interoperabilidade da
Internet.
IANA e os endereços IP.
A IANA (Internet Assigned Number Authority) que, numa tradução livre, significa
Autoridade sobre a Delegação de Números na Internet, foi criada principalmente para o
gerenciamento dos números IP, mas englobando outras atividades, como o gerenciamento
do sistema de domínios. Atualmente integra-se nas atividades da ICANN.
ICANN: os nomes de domínio na Internet.
A ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), considerada
por muitos como a principal entidade de Governança da Internet da atualidade configurase como uma organização plural, onde há representação diversos setores da sociedade
interessados na gestão de nomes de domínio e de números IP, incluindo-se aí um comitê
137
de representação de governos (o GAC – Governmental Advisory Comitee) e, em seus
estatutos, consta a necessidade de diversidade regional em seus diferentes comitês.
WSIS e WGIG: a Governança da Internet como preocupação mundial
A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação foi proposta ainda na década
de 1990, por conta da preocupação de muitos países com o crescimento da Internet. A ITU
foi uma das principais promotoras do evento e possivelmente havia a intenção, por sua
parte, de assumir alguns aspectos da Governança da Internet para si própria.
A forma como a Cúpula foi conduzida, com a participação da sociedade civil,
governos e empresas, propiciou uma discussão ampla e produtiva, Ela foi realizada em
duas etapas, a primeira em Genebra, em 2003, e a segunda em Túnis, em 2005. Esse
formato afastou-se um pouco de uma reunião diplomática convencional.
Foi a WSIS quem colocou oficialmente a questão da Governança da Internet nas
agendas diplomática. Como resultado da Cúpula foram propostas algumas ações nesse
campo, inclusive o estabelecimento de um Grupo de Trabalho sobre Governança da
Internet na ONU (GTGI) (em inglês WGIG, ou Working Group on Internet Governance).
O WGIG formulou também quatro modelos estruturais para a governança global
que foram usados como referências ou exemplos nas discussões de Túnis. Um dos
resultados mais importantes da conferência de Túnis, em 2005, foi a criação do IGF
(Internet Governance Forum), tratado à seguir.
IGF
O Fórum de Governança da Internet (IGF – Internet Governance Forum) foi criado
por decisão da segunda fase da WSIS. De acordo com o mandato previsto nos parágrafos
72-78 da Agenda de Túnis, documento operativo aprovado ao final da WSIS, o IGF deve
reunir-se periodicamente por um prazo inicial de cinco anos, podendo ser prorrogado
indefinidamente por decisão do Secretário Geral das Nações Unidas, e é composto por
representantes de governos, sociedade civil, iniciativa privada e organizações
internacionais, cabendo o Secretário Geral convocá-lo, convidar os participantes e zelar
pelo equilíbrio de representação geográfica na representação.
A primeira reunião foi realizada em Atenas, de 30 de novembro a 2 de outubro de
2006, a segunda reunião no Rio de Janeiro, em novembro de 2007. A terceira, em
dezembro de 2008, na Índia. A quarta, em novembro de 2009, no Egito, e a quinta, será em
setembro de 2010, na Lituânia.
O Fórum, a princípio, não tem a intenção de sobrepor-se ou vir a substituir os
mecanismos de governança hoje existentes ou que venham a ser criados. Mas sim,
coordenar-se com eles com o propósito de promover ampla participação em suas
atividades, sugerir-lhes questões, emitir recomendações de caráter não-vinculante e
estimular a incorporação dos princípios da WSIS a seus processos decisórios.
O Governo brasileiro e o CGI.br têm participado ativamente do IGF, inclusive
tendo sediado uma das reuniões. Sua atuação, no IGF – assim como nos demais foros
internacionais dedicados à governança da Internet – tem sido pautada pela observância das
138
diretrizes conceituais estabelecidas na Agenda de Túnis (AT), assim como pela defesa da
implementação rápida e abrangente de suas decisões.
O modelo de governança brasileiro - o Comitê Gestor da Internet - CGI.br
O Brasil foi pioneiro na idealização e na implantação de um modelo inédito nessa
área. A Internet no Brasil originou-se das iniciativas da área acadêmica nos anos 80. Redes
acadêmicas importantes, como a RNP, a ANSP e outra foram as responsáveis pela
disseminação de redes como a BITNET, a HEPnet e, finalmente, a Internet.
Assim, tanto o registro de nomes sob o .br, alocado em abril de1989, quanto a
distribuição de nomes IP estiveram alocados à iniciativa acadêmica brasileira. Com o
amadurecimento da rede e o interessa que despertou em setores da iniciativa privada e do
governo, em maio de 1995 foi criado o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que
era originalmente composto por nove membros escolhidos pelo governo, vindos do próprio
governo, da área acadêmica, de operadoras de telecomunicações, de provedores de acesso
e um representante dos usuários.
O CGI.br foi criado com a função de exercer a coordenação e a governança da
infra-estrutura lógica da Internet no país, incluindo a administração dos nomes de domínio
sob o ccTLD (Country code Top Level Domain) “.br” e a distribuição dos números IP no
país. Os nomes “.br” foram definidos, logo de início, como um bem da comunidade, que
deveria preservar e estimular o uso da identidade do Brasil na Internet. Uma anuidade foi
estabelecida em 1997 com o objetivo de cobrir os custos de operação e desenvolvimento
do sistema de governança. Essa estratégia mostrou-se, ao longo do tempo, ser acertada. Os
domínios .br foram amplamente adotados e cumprem com a função de identificar a
presença brasileira na rede. Além disso, evitou-se, até certo grau, a formação de um
mercado especulativo com base nos nomes de domínios, como ocorre internacionalmente.
Em 2003, o CGI sofreu uma importante reestruturação, que era uma reivindicação
de vários setores da sociedade. Os membros passaram de nove para vinte e um, onze dos
quais de fora do governo, eleitos por mandatos de 3 anos por suas próprias bases. O
governo federal passou a escolher oito conselheiros. As secretarias estaduais de Ciência e
Tecnologia escolhem um conselheiro.
Não há uma forma de participação direta da sociedade nas decisões do CGI.br,
muito embora a representatividade dos principais setores envolvidos esteja plenamente
assegurada. Além dos representantes do governo, as entidades do terceiro setor elegem
quatro conselheiros. Associações de empresas (provedores, telecomunicações, etc)
escolhem também quatro conselheiros. Associações acadêmicas escolhem três
conselheiros. E um conselheiro de notório saber no campo é escolhido por consenso
O CGI.br não se constitui um órgão do governo, nem recebe dele financiamento
para suas atividades. O CGI não tinha personalidade jurídica, o que, até 2005, dificultava
suas ações. Foi criada, então, uma sociedade civil sem fins lucrativos, sob a supervisão do
CGI, chamada de Núcleo de Informação e Coordenação do .br (NIC.br), que passou a ser o
braço executivo do Comitê para várias de suas atribuições.
O NIC.br é dividido em núcleos, a começar pelo Registro.br, responsável pelos
nomes “.br” , pela distribuição dos endereços IP, no país, e também por cuidar dos
servidores raiz do DNS aqui presentes.
139
Por fim, fazemos nossas as palavras de um dos pioneiros e atual conselheiro
representante do Terceiro Setor, o ilustre Carlos Afonso (2005):
“ (...) A abordagem brasileira para a governança da Internet é uma conquista
inovadora em gestão pluralista de bens da comunidade. O CGI.br não cobre todos
os temas da governança da Internet, atualmente objeto de discussão mundial
através do Fórum de Governança da Internet da ONU (IGF). No entanto, através
de Comissões de Trabalho voluntárias, busca acompanhar esses temas (conteúdo,
acesso, inclusão digital, privacidade, regulação, uso indevido, entre outros). É
importante destacar que o CGI.br participa em forma destacada dos principais
fóruns, conferências, organismos e eventos internacionais relacionados ao
desenvolvimento e governança da Internet, entre os quais as reuniões da ICANN e
do IGF.”
Considerações Finais
Há múltiplos mecanismos de governança da Internet hoje existentes que deveriam
assegurar o equilíbrio entre os interesses dos diversos atores envolvidos, bem como a
continuidade e crescimento dos benefícios trazidos pela Internet à sociedade em geral e aos
indivíduos.
É interessante notar que nas instituições como o IETF e nos fóruns como o IGF,
mesmo a participação de indivíduos, sem que representem alguma entidade específica, é
possível e valorizada. Essa é a expressão do modelo pluralista (em inglês multistakeholder)
que privilegia a participação de múltiplos atores no processo de construção da gestão, em
contraposição ao modelo de governança tradicionalmente adotado, sobretudo no cenário
internacional.
Outro elemento que merece destaque no cenário da Governança da Internet remete
ao processo de decisório marcado pela estrutura “bottom-up”, ou seja, a partir da
deliberação desses múltiplos atores que se chega às regras concernentes à Internet, modelo
que igualmente contrapõe à estrutura tradicional de decisões vindas das autoridades para a
sociedade.
A Governança da Internet deveria ser exercida sempre de forma transparente,
pluralista e democrática. A Internet foi construída com base na colaboração de muitos
indivíduos e instituições e este caráter pluralista deve ser refletido e preservado na forma
como ela é gerida, sob pena de se perder o cerne daquilo que se logrou o sucesso da rede: a
colaboração global.
A Internet deveria ser sempre uma ferramenta de incentivo ao desenvolvimento
humano, ajudando a sociedade a se tornar cada vez mais inclusiva. Todos deveriam ter o
acesso à rede mundial de computadores assegurado, independentemente da origem
cultural.
A Governança da Internet deveria salvaguardar princípios como a liberdade de
expressão, a privacidade dos indivíduos e à dignidade da pessoa humana, na medida em
que consistem em alicerces do próprio desenvolvimento sustentável da rede mundial de
computadores.
140
Os mecanismos de Governança da Internet deveriam assegurar que haja um
ambiente propício à inovação, favorecendo também a competição e a colaboração criativa,
assegurando sua evolução contínua. Esses foram pilares que garantiram a rápida
propagação da Internet e devem ser mantidos para que haja constante evolução das
tecnologias, em sintonia com a nova era denominada Sociedade da Informação.
Referidos mecanismos de Governança da Internet deveriam valorizar e preservar a
segurança e a estabilidade da rede. Tal como exposto, principalmente, no cenário do
usuário leigo que, em geral, não se preocupa com as características técnicas tampouco com
o que está atrás do computador, é importante que haja conexão à Internet segura e estável,
ou seja, que a Internet funcione sem interrupções.
Por fim, deveriam existir instrumentos para coibir o uso da Internet com fins
ilícitos.
Todavia, a exemplo do coloquial provérbio “não mate o mensageiro”, não se
deveria admitir que a Internet seja culpada pelas práticas ilícitas nela perpetradas, visto que
consiste tão-somente no meio que carregou a informação, sendo o usuário responsável
pelos atos que pratica – seja no mundo real ou no virtual.
Aliás, é importante comentar que recentes decisões judiciais nos tribunais
brasileiros, tal como o caso Cicarelli, optaram por adotar um “caminho fácil, mas
tecnicamente nocivo”, na medida em que decidiram pela exclusão do conteúdo da rede,
fato impossível porque no mundo virtual a informação se multiplica. Nesse caso, se houver
um culpado, deve-se recorrer ao agente que postou a informação e não no instrumento que
a propagou. Vale lembrar que o tráfego na rede é livre e, portanto, não existe a censura no
coração dela, restando às pontas – usuários – elaborarem os bloqueios.
Ademais, já se mencionou inúmeras vezes que a Internet não tem fronteiras o que
significa que quaisquer medidas devem ser construídas de forma colaborativa e pautandose no contexto global, sob penas de não terem eficácia. Em suma, a rede mundial de
computadores em si, ou seja, enquanto infra-estrutura composta de meios de acesso e
transporte, não deveria ser responsabilizada pelos atos de seus usuários.
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(2009).
Documentação
e
relatórios.
143
OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI E A QUARTA DIMENSÃO DOS DIREITOS DO
HOMEM:
O BIODIREITO E A TUTELA DA VIDA HUMANA FRENTE AOS AVANÇOS DA
BIOMEDICINA.
Renata da Rocha
Doutoranda em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo - PUC/SP. Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia
Universidade Católica - PUC/SP e Especialista em Direito Contratual pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professora Associada do IBDC - Instituto
Brasileiro de Direito Constitucional; Membro da Comissão de Biodireito, Bioética e
Biotecnologia - OAB/SP; Membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo;
Pesquisadora do LEI-USP - Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da Universidade
de São Paulo e Pesquisadora do Programa Institutos do Milênio do CNPQ. Autora do livro
O Direito à Vida e a Pesquisa com Células-Tronco: Limites Éticos e Jurídicos. Rio de
Janeiro: Campus, 2008 – Coleção Biodireito/Bioética.
1. A Modernidade e os Desafios do Século XXI
Enfrentar o tema acima proposto é, sem dúvida alguma, uma tentativa de decifrar a
época em que vivemos, um exercício de reflexão no sentido de saber de que modo nosso
tempo será visto pela posteridade. Trata-se, na verdade, de uma especulação filosófica das
mais fecundas na contemporaneidade. Não apenas porque este tipo de investigação seduz o
homem desde que ele teve consciência da sua historicidade. Mas, principalmente, pelo fato
de que temos sido testemunhas de acontecimentos que redimensionaram o tempo e a
história da humanidade de uma forma extraordinária nas últimas décadas.
E se nos referimos às últimas décadas, referimo-nos, necessariamente, ao século
XX. Constatação que nos remete a outra indagação: quando nos referimos ao século XX,
estaríamos ainda na Modernidade ou esta só pode ser compreendida como aquele período
que, para efeitos de estudos, determinamos que tem início com a descoberta do caminho
marítimo para as Índias, em 1498, e que se estende até o advento da Revolução Francesa
em 1789?
Quando falamos em século XX, falamos em Modernidade ou em PósModernidade, como quer o pensador francês Jean Baudrillard, que se vale de conceitos
como desconstrução e descontinuidade ao se referir ao século XX. Quando falamos em
século XX, falamos em Modernidade ou em Hipermodernidade, como quer Gilles
Lipovetsky, filósofo francês que se recusa a admitir o fim da Modernidade e o advento de
um período posterior a ela – defendendo que o que vivemos até hoje seria uma espécie de
rabeira do que foi e ainda seria a Modernidade. Quando falamos em século XX, falamos
em Modernidade ou em era das incertezas, como refere o economista norte-americano
John Kenneth; em Modernidade ou em era dos extremos, como quer o historiador Eric
144
Hobsbawn, adjetivando o que ele chama de breve século XX destacando os anos de 19141991 e, neste caso, as datas falariam por si mesmas.
Enfrentar os desafios do Século XXI é, portanto, e sem sombra de dúvida, um
esforço no sentido de compreender o Século XX, objetivo este que ainda não nos
determinamos a empreender e, no que concerne ao Biodireito, este esforço perpassa
necessariamente pelo enfrentamento de temas relacionados à biomedicina, à
bioengenharia, às reproduções humanas assistidas, às pesquisas com células-tronco
embrionárias, à clonagem terapêutica ou reprodutiva, às técnicas de diagnóstico genético
pré-implantacional, às terapias gênicas, às eugenias ditas positivas em contraposição
àquelas realizadas na Alemanha nazista, à eutanásia, à ortotanasia, à diastanasia, entre
outros.
2. O Biodireito, a Biociência e o Biomercado
São estas, em apertada síntese, as questões que permeiam o Biodireito, consagrado
como direito de quarta geração, como informa Norberto Bobbio a seguir:
... já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de
direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais
traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações no
patrimônio genético de cada indivíduo[1].
Destarte, partindo do pensamento de Norberto Bobbio, afirmamos que o Biodireito
é, em sentido amplo, um novo ramo da ciência jurídica, que surge em razão dos poderes
alcançados pela biociência, pela medicina genética, pela bioengenharia, entre outras áreas
do conhecimento humano que permitem a manipulação de patrimônio genético, e que tem
por fim estabelecer as normas e os princípios relacionados à origem, ao desenvolvimento e
ao término da vida humana.
Destacamos que, em sede nacional, alguns autores têm preferido valer-se do termo
dimensão em lugar de geração para reproduzir a idéia de uma evolução dos direitos
fundamentais em etapas sucessivas, entre eles podemos citar Ingo Sarlet[2]. Contudo,
informamos que não pretendemos nos ater, nesta oportunidade, à questão da nomenclatura,
bem como deixaremos para outra ocasião a questão de saber se estes direitos podem ser
considerados novos direitos, ou se constituem um mero retorno àqueles direitos ditos de
primeira dimensão ou geração, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, entre
outros.
O que nos interessa, por ora, é chamar atenção para o fato de que os direitos dos
homens são direitos históricos, o que vale dizer que não são reconhecidos todos de uma só
vez, mas gradualmente, à medida que as sociedades experimentam transformações, sejam
elas econômicas, culturais, políticas ou científicas[3].
Neste sentido, no que diz respeito às transformações no âmbito da ciência,
poderíamos elencar, levando-se em consideração aspectos como ousadia e complexidade,
conforme preconiza Barchifontaine, três grandes feitos científicos, três grandes projetos
que nos dão a tônica do pensamento científico no século XX[4].
O primeiro é o Projeto Manhattan. Através dele os físicos descobriram e utilizaram
a energia nuclear, produziram a bomba atômica que destruiu Hiroshima e Nagazaki em
1945, colocando fim à Segunda Guerra Mundial. A ciência descobriu o coração da
matéria, o átomo.
145
O segundo grande projeto foi o Projeto Apollo, que jogou o ser humano no coração
do cosmos. A data símbolo é o primeiro passo do homem na Lua em 1969. A ciência
possibilita que o ser humano comece a viajar interplanetariamente.
O terceiro e mais recente, o Projeto Genoma, iniciou-se na década de 1990 e, em 26
de junho de 2000, foi anunciado o mapeamento do código genético humano. A ciência
alcança, a partir de então, o núcleo da célula humana e desvenda, para utilizarmos
expressão cunhada por Maria Garcia, o segredo bioquímico da vida, ou seja, o DNA.
Doravante a vida humana é reduzida a um código – o código genético - e, ato
contínuo, a um produto – haja vista a questão das patentes de material genético humano – e
aqui fazemos questão de destacar, mais atual do que nunca, o emprego daquela razão
instrumental tão peculiar à época moderna, o emprego do método cartesiano, segundo o
qual se decompõe o todo em partes, desmontando-o e desconstruindo-o, para que dele
possamos nos apropriar com maior autoridade, para, em seguida, remontá-lo com vistas a
atender aos interesses dominantes que, em uma sociedade como a nossa – capitalista - não
são outros senão aqueles relacionados ao lucro e ao mercado.
Neste sentido, Fábio Konder Comparato adverte:
Chegamos, portanto, nesta passagem de milênio, ao apogeu do
capitalismo, no preciso sentido etimológico do termo, isto é, à fase
histórica em que ele se coloca na posição de maior distanciamento da
Terra e da Vida ... neste tipo de civilização, toda a vida social, e não
apenas as relações econômicas, fundam-se na supremacia absoluta da
razão de mercado ... na verdade, para a mentalidade capitalista, somente
aquilo que tem preço no mercado possui valor na vida social ... e com a
geral admissibilidade do patenteamento de genes, inclusive de genes
humanos, para exploração da indústria farmacêutica chegamos ao ponto
culminante da ânsia capitalista: institui-se a propriedade sobre as
matrizes da vida[5].
146
Poderiam objetar no sentido de que nenhum cientista até o presente momento
tentou obter patente para um homo sapiens mutante. Não obstante, François Ost assevera:
...em contrapartida, são requeridas e obtidas patentes sobre “material
genético humano: genes manipulados, células, linhas celulares, tecidos,
tanto mais fáceis de manipular quanto o seu aspecto menos evoca o ser
humano vivo[6].
Prova desta realidade é fornecida por Craig Venter, cientista cofundador da
empresa norte-americana de biotecnologia Celera Genomics, que solicitou, em 1998, junto
ao Escritório de Patentes dos Estados Unidos – patentes sobre uma linha celular humana
extraída de uma tribo indígena da Nova Guiné. O pedido constava de 2.750 sequências
parciais de DNA humano e, em meados do ano 2000, o escritório de patentes norteamericano atendeu à solicitação da empresa[7].
Assim, acreditamos ser bastante oportuno trazer à cola, neste momento, notícias
divulgadas em periódicos de grande circulação no país, capazes de nos fornecer um retrato
fiel da lógica mercantil que tem norteado muitas das práticas científicas atuais, da ética que
temos adotado com relação ao poder técnico-médico-científico que conquistamos
recentemente, em resumo, ao biomercado que emerge das práticas biomédicas no limiar
deste novo século, entre as quais destacamos:
Revista Exame de 04 de junho de 2008, que traz na capa a manchete Seu
DNA vale bilhões: a genética começa a se transformar em produto de
consumo e, evidente que deveria nos causar estranheza o fato de uma
matéria sobre ciência e saúde ser veiculada em uma publicação
direcionada ao empresariado, que trata de assuntos relacionados a
negócios, a finanças; notícia divulgada em fevereiro de 2000 no jornal O
Globo informa que o governo da Islândia vendeu, pela quantia de U$ 16
milhões, o direito de exploração do DNA de toda a população do país,
cerca de 270 mil pessoas, à deCode, empresa norte-americana de
biotecnologia, cujo dono é um islandês radicado nos EUA; em agosto de
2006, o jornal Folha de S.Paulo informa que É proibido vender chicletes
de hortelã em Cingapura. Mas células-tronco podem ser compradas por
R$ 12 mil reais o frasco; revista Veja, em 2005, informa Mercado inclui
bizarrices, como tratamento antienvelhecimento à base de injeções de
células-tronco extraídas de fetos. Quatro sessões ao custo total de U$
50.000 seriam capazes de eliminar rugas, aumentar a disposição,
eliminar a calvície e manter a libido a mil. Mulheres jovens e pobres em
sua maioria são incentivadas a interromper a gravidez por volta do
terceiro mês para vender o feto. O preço: U$ 200 cada um. Para
ganharem um dinheiro extra, algumas delas engravidam apenas para
abortar. Biofábricas.
147
3. A Ética Utilitarista e a Dignidade Humana
Constatada esta realidade, inferimos, juntamente com Hannah Arendt, estarmos
vivendo atualmente uma crise de sentidos. E esclarecemos, então, a noção de sentido
conforme o uso que fazemos dela. Para tanto, valemo-nos da lição de Tércio Sampaio
Ferraz, para quem a expressão sentido tem relação com a orientação dos seres humanos no
mundo. Assim o autor ensina:
É importante não confundir, porém, sentido, com objetivo ou finalidade.
Esta última tem relação com a função das coisas, aquilo para que elas
servem.
Desse modo, o autor correlaciona a finalidade à sua utilidade, remetendo-nos à
ética utilitarista, segundo a qual uma atitude é útil e, portanto, ética, justa e correta quando
traz mais felicidade que sofrimento aos atingidos. E prossegue:
Contudo, como nota Hannah Arendt (1981:167), o sentido das coisas não
se reduz àquilo para que elas servem [...] Sentido tem relação com a valia
das coisas, com sua dignidade intrínseca [...] a perda de sentido não
altera a factualidade da existência, pois algo ou alguém ou uma atividade
qualquer pode continuar a existir em que pese ter perdido o sentido. A
perda do sentido afeta, porém, a orientação homem no mundo.
Ao fazermos menção à valia e à dignidade intrínseca, voltamos, uma vez mais, de
acordo com Ingo Sarlet[8], ao pensamento de Immanuel Kant e com ele à noção da
autonomia ética do ser humano, auto - nómos - capacidade de determinar normas a si
mesmo – a autonomia assim concebida, além de ser considerada o fundamento da
dignidade do homem, conduz ao imperativo categórico[9] de que o ser humano não pode
ser tratado, nem mesmo por ele próprio, como mero objeto, posto que, ao contrário do que
ocorre com os outros seres, no homem sua natureza racional reserva-lhe o reino dos fins, e
não o dos meios.
De igual importância o conceito de autonomia formulado por Ernst Cassirer[10],
segundo o qual:
A autonomia é aquela vinculação da razão teórica e da razão moral em
que esta tem a consciência de vincular-se a si mesma. A vontade não se
submete nela a outra regra senão a que ela mesmo estabelece e acata
como norma geral. Somente entramos no campo problemático da ética
ali onde se alcança esta forma, onde as apetências e os desejos
individuais se sabem submetidos a uma lei válida, sem exceção, para
todos os sujeitos éticos e onde, ao mesmo tempo e por outro lado, o
sujeito compreende e afirma esta lei como ‘sua própria’.
Nicola Abbagnano[11] elucida:
Por princípio da dignidade humana entende-se a exigência enunciada por
Kant como segunda fórmula do seu imperativo categórico: ‘age de tal
forma que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como
meio’. Esse imperativo estabelece que todo homem, aliás, todo ser
148
racional, como fim em si mesmo, possui um valor não relativo (como é,
p. ex., um preço), mas intrínseco, ou seja, a dignidade. ‘O que tem preço
pode ser substituído por outra coisa equivalente; o que é superior a
qualquer preço, e por isso não permite nenhuma equivalência, tem
dignidade’. Substancialmente, a dignidade de um ser racional consiste no
fato de ele ‘não obedecer a nenhuma lei que não seja também instituída
por ele mesmo.’
Nas palavras de Immanuel Kant[12]:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio.
Do plano filosófico à esfera jurídica, José Afonso da Silva[13] refere-se à
dignidade da pessoa humana como “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os
direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.
Celso Bastos[14] anota igualmente que a referência à dignidade da pessoa humana
“parece englobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais
clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social”.
Maria Garcia[15] considera que “a dignidade da pessoa humana corresponde à
compreensão do ser humano na sua integridade física e psíquica, como autodeterminação
consciente, garantida moral e juridicamente.”
Assim, resta evidente que, quando nos referimos à valia, afirmamos valores e não
preços. Valor é diferente de preço. Aquilo que tem preço admite equivalência,
substituição, compra, venda, troca, pertence ao “reino dos meios”, serve para alcançar
determinado fim. O ser humano, por ser autônomo, isto é, por ter capacidade de se
autogovernar, não pertence ao reino dos meios, pertence ao reino dos fins. É fim em si
mesmo. Não pode ser considerado, qualquer que seja a fase de desenvolvimento em que se
encontra sua vida, como instrumento.
4. A vida humana como valor
A vida humana mencionada acima deve ser compreendida na acepção grega do
termo, no sentido de biós, que quer designar um desenvolvimento contínuo no tempo, ou
ainda, um processo vital como José Afonso da Silva preconiza:
Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é
aqui que se corre o grave risco de ingressar no campo da metafísica
suprarreal, que não nos levará a nada. Mas alguma palavra há de ser dita
sobre esse ser que é objeto de direito fundamental. Vida, no texto
constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido
biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria
orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza
significativa é algo de difícil compreensão, porque é algo dinâmico, que
149
se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais
um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou
germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade,
até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte.
Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante
contraria a vida[16].
Desse modo, percebemos, de um lado, o esforço para que o ser humano,
independentemente do estágio em que se encontre, zigoto, embrião, feto, criança,
adolescente e adulto, não seja reduzido, em hipótese alguma, à condição de matéria-prima.
Porém, de outro lado, verificamos que vivemos nos dias atuais ainda sob os ditames da
Modernidade, da lógica Moderna, e sentimos isso quando constatamos que impera, ainda
na contemporaneidade, a ética do homo faber arendtiano. Nesse sentido, a autora ensina:
...entre as principais características da era moderna, desde o seu início até
o nosso tempo, encontramos as atitudes típicas do homo faber: a
instrumentalização do mundo, a confiança nas ferramentas e na
produtividade do fazedor de objetos artificiais; a confiança no caráter
global da categoria de meios e fins e a convicção de que qualquer
assunto pode ser resolvido e que qualquer motivação humana pode ser
reduzida ao princípio da utilidade; a soberania que vê todas as coisas
dadas como matéria-prima e toda a natureza como um imenso tecido do
qual podemos cortar qualquer pedaço e tornar a coser como
quisermos[17].
A autora prossegue advertindo:
A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que
sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de
oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e
respirar sem esforço nem artifício. O mundo – artifício humano – separa
a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida,
em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem
permanece ligado a todos os organismos vivos. Recentemente, a ciência
vem-se esforçando por tornar ‘artificial’ a própria vida, por cortar o
último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo
desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida
numa proveta, no desejo de misturar ‘sob o microscópio, o plasma
seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de
produzir seres humanos superiores’ e ‘alterar (-lhes), o tamanho, a forma,
a função’; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente
na esperança de prolongar a duração da vida humana para além dos cem
anos. Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em
menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a
existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do
nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por
algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar que sejamos
capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de
nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica na Terra. A
questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso conhecimento
científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios
150
científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não
deve ser decidida por cientistas profissionais[18]...
A esse respeito, assinala Daury César Fabriz: [19]
Se às ciências da vida cabe o livre exercício do espetacular em torno das
várias possibilidades dos elementos que integram, cabe ao Direito
proceder ao enquadramento legal, no sentido de preservar a integridade
da vida e da pessoa humana [...] a vida é a premissa maior, donde tudo o
mais deve ser derivativo.
Em consonância com o exposto, Dalmo de Abreu Dallari[20] informa:
...entre os valores inerentes à condição humana está a vida [...] sem ela a
pessoa humana não existe como tal, razão pela qual é de primordial
importância para a humanidade o respeito à origem, à conservação e à
extinção da vida.
Assim, se dissemos alhures que ao Biodireito cumpre, em sentido amplo,
estabelecer as normas e os princípios relacionados à origem, ao desenvolvimento e ao
término da vida humana, cumpre–nos frisar que, em sentido estrito, isto é, no que diz
respeito somente à origem da vida, o Biodireito procura alcançar os domínios
cronologicamente anteriores ao nascimento completo e com vida, projetando-se para além
do termo personalidade jurídica.
Nesse sentido, Paulo Otero assevera:
... não é a personalidade jurídica que justifica a titularidade de direitos
por parte do ser humano, antes é a qualidade de ser humano que envolve
a natural titularidade de certos direitos e que, consequentemente, justifica
o reconhecimento da personalidade jurídica: a personalidade jurídica é
sempre uma consequência e nunca a causa da titularidade de direitos
inatos ao ser humano[21].
Desse modo, temos que o desafio do século XXI consubstancia-se em consagrar a
dignidade do ser humano frente aos poderes titânicos da biociência e da biomedicina, em
fazer prevalecer o valor da vida humana frente ao lucro do biomercado e, por fim, em
afirmar conforme Maria Garcia: [22]
... onde há vida (biologia) e coexistência (bioética), há de haver proteção
(biodireito). De tudo remanescem como princípios fundamentais do
biodireito: que a Humanidade é constituída de indivíduos iguais em
dignidade e direitos e, ao mesmo tempo, diferentes na sua
individualidade; que todo ser humano é livre, único, incondicional e
irrepetível; que o reconhecimento de sua diversidade implica,
simultaneamente, a aceitação de sua liberdade, igualdade e
individualidade; que a dignidade do ser humano sobrepaira acima de
tudo.
151
5. Referências Bibliográficas
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ARENDT. Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 10ª ed. 2003.
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promulgada em 05 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 1.
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Genoma Humano. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. (Org.). Biodireito:
Ciência da vida, novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
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OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil
constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados. 5ª Ed. 2005.
SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,
16ª ed. 1999.
[1] BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6.
[2] Para maior conhecimento do tema consultar: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos
direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados. 5ª Ed. 2005.
[3] Cf. BOBBIO. A era dos direitos, p. 5. Registre-se que seguimos com Norberto Bobbio
a tese da historicidade dos direitos em certa medida. A ressalva que fazemos diz respeito
ao direito à vida. Entendemos que o direito à vida não decorre das transformações
experimentadas pela sociedade. Acreditarmos que a vida é o pressuposto e o requisito para
o exercício dos demais direitos. Por esta razão afirmamos ser a vida um bem supremo,
152
intangível, inviolável, irrenunciável e imprescritível, e defendemos, em virtude disto, que
ao Estado cabe apenas e tão somente preservá-la, assegurá-la, garantir-lhe dignidade e
respeito).
[4] BARCHIFONTAINE, Cristian de Paul de. “Genoma humano e bioética” In:
BARCHIFONTAINE, Cristian de Paul de; PESSINI, Leo (orgs.) Bioética:alguns desafios.
2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 243-244
[5] KONDER, Fabio. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 4ª
ed., 2005, p. 536 e ss.
[6] OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia a prova do direito. Lisboa:
Instituto Piaget, 1995, p.87
[7] (patente US 5,397,696), útil no tratamento e diagnóstico de pessoas infectadas por uma
variante do vírus HLTV – I24 associado à leucemia. A comunidade internacional
preocupa-se com o interesse manifestado neste caso, pelas forças armadas americanas. A
preocupação é pertinente, sobretudo, por razões históricas recentes, Cf. GOMES, Celeste
Leite dos Santos Pereira e SORDI, Sandra. Aspectos Atuais do Projeto Genoma Humano.
In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. (Org.). Biodireito: Ciência da vida,
novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p: 190.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 114.
[9] “Um imperativo se denomina hipotético quando se limita a indicar quais os meios deve
empregar-se ou querer-se para realizar outra coisa que se pressupõe como fim; e se
denomina categórico quando constitui um postulado incondicional cuja vigência não tem
por que derivar-se nem se deriva da de outro fim, senão que vai implícita dentro de si
mesma, na afirmação de um valor último e certo por si mesmo.” Ibid, p. 289.
[10] CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. México: Fondo de Cultura Económica,
1993, p. 287. (tradução livre da autora).
[11] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 2003, p.
276.
[12] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70,
2005, p. 69.
[13] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 105, 197 e 198.
[14] “Em última análise, a dignidade tem uma dimensão também moral [...] o Estado se
erige sob a noção da dignidade da pessoa humana.” BASTOS, Celso; MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 05 de outubro de
1988. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 1, p. 425.
[15] GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da
responsabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 211.
[16] SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros, 16ª ed. 1999, p. 200.
[17] ARENDT. Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 10ª ed.
2003, p. 318.
153
[18] ARENDT, Hannah. Op. cit,, p. 10 e 11
[19] FABRIZ, Daury César. Op. cit.,p. 273.
[20] DALLARI, Dalmo de Abreu. Bioética e direitos humanos: a vida como valor ético.
In: GARRAFA, Volnei; FERREIRA, Sergio Ibiapina. (Orgs.). Iniciação à bioética.
Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 231.
[21] OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um
perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999, p. 83-102).
[22] GARCIA, Maria. Op. cit., 176.
154
LOCALISATION OU DÉLOCALISATION DE L’ARBITRAGE
INTERNATIONAL?
LA PERSPECTIVE BRÉSILIENNE
Sylvain Bollée
Professeur à l’Ecole de droit de la Sorbonne (Université Paris I)
Professeur à l’Université de Reims Champagne-Ardenne
Agrégation de droit privé et sciences criminelles
Doctorat en droit – Université Paris I Panthéon-Sorbonne
DEA droit international privé et droit du commerce international – Université Paris I
Panthéon-Sorbonne
Master of Laws in International Business Legal Studies – Université d’Exeter, GrandeBretagne
Maîtrise Sciences et Techniques juriste d’affaires franco-britannique (2e année) –
Université de Rennes
Maîtrise Sciences et Techniques juriste d’affaires franco-britannique (1re année) –
Université de Rennes
Licence en droit – Université de Rennes
C’est aujourd’hui un lieu commun que de le rappeler : le recours à l’arbitrage est
devenu, en quelques décennies, le mode ordinaire de résolution des litiges dans le domaine
du commerce international. Ce mode de résolution des litiges, qui permet aux parties de
faire juger leur différend par des personnes privées choisies par elles, n’a d’ailleurs pas
seulement conquis les praticiens, les opérateurs du commerce international ; on peut
ajouter, sans exagération, que l’arbitrage international a suscité une véritable fascination
doctrinale. Très tôt, le besoin a été ressenti de l’intégrer dans un cadre théorique
permettant d’en donner une représentation intellectuelle cohérente, et de disposer d’un fil
d’Ariane pour résoudre des problèmes juridiques concrets. Le phénomène a été d’une
ampleur particulière en France, où il a été copieusement alimenté, dès les années soixante
et les travaux de Goldman67, par les importantes querelles doctrinales suscitées par à la
théorie de la lex mercatoria. Les termes de la discussion ne sont plus tout à fait les mêmes
aujourd’hui, mais le fond de la controverse tourne toujours, fondamentalement, autour de
l’alternative entre localisation et délocalisation de l’arbitrage international. En termes
simples, faut-il considérer que l’arbitrage est soumis à l’ordre juridique de l’État où il a
son siège (i.e. celui sur le territoire duquel l’arbitrage se déroule), de sorte que cet État a
une vocation prépondérante à réglementer l’arbitrage et à encadrer son fonctionnement ?
Ou faut-il au contraire considérer que l’État du siège de l’arbitrage n’a pas une vocation
plus forte à imposer son point de vue que n’importe quel autre État avec lequel l’arbitrage
pourrait entrer en contact (par exemple, si une partie tente d’y faire exécuter la sentence) ?
Cette interrogation fondamentale a, à vrai dire, une double dimension. D’un point
de vue logique, la question première est de savoir comment on doit se représenter les
67
V. not. « Frontières du droit et lex mercatoria », Arch. phil. droit. 1964, t. 9, p. 177 ; « La lex mercatoria
dans les contrats et l’arbitrage internationaux : réalité et perspectives », JDI, 1979.475.
155
rapports entre l’arbitrage et l’État sur le territoire duquel il se déroule. Est-ce que l’arbitre
international est uni par un lien juridique intime à l’État dans lequel il exerce ses fonctions,
tout comme l’est un juge judiciaire ? Où est-ce qu’au contraire l’analogie entre l’arbitre et
le juge étatique mérite d’être rejetée, du fait que l’arbitre est a priori une personne privée
désignée par d’autres personnes privées ? C’est là une première facette du problème. Mais
l’alternative entre localisation et délocalisation a aussi une autre dimension, qui se situe au
niveau des rapports entre les États eux-mêmes. En effet, derrière le problème du choix
entre une conception localisatrice et une conception délocalisatrice, se dessine le problème
de la répartition des rôles entre les États, en tant qu’ils sont voués à être les acteurs de la
réglementation et du fonctionnement de l’arbitrage. Comment faut-il concevoir,
concrètement, l’interaction des ordres juridiques des divers États qui peuvent entrer en
contact avec un arbitrage international ? Faut-il considérer, et alors jusqu’à quel point, que
l’État du siège de l’arbitrage a une vocation prépondérante, une légitimité plus grande à
intervenir et à imposer son point de vue à l’égard de l’arbitrage qui se déroule sur son
territoire ?
Ces questions, qui sont fondamentales, se posent inévitablement à tout État qui se
dote d’un droit de l’arbitrage international. Elles se sont posées en France, où elles
reçoivent aujourd’hui des réponses assez originales et même isolées en droit comparé ; ces
réponses sont très fortement marquées du sceau de la délocalisation. Qu’en est-il du
Brésil ? La question mérite d’être posée, pour au moins deux raisons.
La première est naturellement liée au contexte de ce colloque, qui justifie
amplement que l’on s’interroge sur le point de savoir comment le Brésil, à travers son droit
de l’arbitrage international, conçoit sa propre place en ce qui concerne l’encadrement et le
contrôle de l’arbitrage international. Concrètement, Brésil entend-il jouer un rôle
prépondérant lorsque le siège de l’arbitrage est situé sur son territoire, quitte à s’effacer
dans le cas contraire ? Où estime-t-il à l’inverse que la localisation du siège de l’arbitrage
compte peu, et que cette variable ne doit pas conditionner l’importance du rôle qu’il se
propose de jouer vis-à-vis des arbitrages internationaux ?
La seconde raison qui donne un intérêt particulier au sujet tient à ce qu’il existe
depuis une quinzaine d’années au Brésil, comme d’ailleurs dans les autres pays
d’Amérique latine, une certaine effervescence autour de l’arbitrage international. Cette
effervescence s’est traduite par des évolutions spectaculaires au niveau des sources mêmes
du droit brésilien. On rappellera spécialement, à cet égard, que le Brésil s’est doté d’une
nouvelle loi sur l’arbitrage le 23 septembre 1996, et a ratifié en 1996 et 2002 deux
conventions internationales importantes : la Convention interaméricaine sur l’arbitrage
commercial international du 30 janvier 1975 (dite Convention de Panama), et surtout la
Convention de New York du 10 juin 1958 pour la reconnaissance et l’exécution des
sentences arbitrales étrangères. De l’avis de tous les commentateurs, ces épisodes ont
véritablement marqué l’entrée du droit brésilien de l’arbitrage dans une ère moderne,
tranchant avec l’état du droit antérieur qui était très défavorable à l’arbitrage et qu’un
auteur brésilien a même qualifié de « préhistoire de l’arbitrage » 68 . On insistera, en
particulier, sur l’importance de la ratification de la Convention de New York ; en effet, il
en résulte que toute sentence rendue au Brésil bénéficie désormais du régime de
reconnaissance instituée par cette convention dès lors qu’elle est invoquée dans l’un des
quelques 143 autres États contractants. C’est là un très net progrès pour la circulation
68
J.B. Lee, « Le nouveau de régime de l’arbitrage au Brésil », Rev. arb. 1997.1999, n° 4.
156
internationale des sentences rendues au Brésil, et la levée d’un obstacle réel au
développement de la place d’arbitrage brésilienne.
Le droit de l’arbitrage brésilien est donc une construction récente, qui selon toute
vraisemblance s’enrichira encore de nouveaux développements, notamment
jurisprudentiels, au fur et à mesure que la pratique de l’arbitrage elle-même se développera
au Brésil.
Toutes ces considérations justifient largement que l’on s’arrête sur les orientations
du droit brésilien de l’arbitrage international, et spécialement sur les réponses que ce droit
apporte au problème le plus fondamental : celui du choix entre une conception
« localisatrice » et une conception « délocalisatrice » de l’arbitrage international. À la
vérité, il apparaît assez nettement que le droit brésilien, à la différence du droit français, est
inspiré par la première de ces conceptions plutôt que par la seconde. C’est ce que je
commencerai par expliquer, avant donner un aperçu des mérites, et peut-être aussi des
limites, de cette conception « localisatrice » qui paraît être au coeur du droit brésilien. Tels
seront les deux volets de mon exposé : l’influence de la conception « localisatrice » sur le
droit brésilien, en premier lieu, l’appréciation critique de cette conception, en second lieu.
I. – Pour établir l’influence de la conception « localisatrice » sur le droit brésilien de
l’arbitrage international, il est de bonne méthode de commencer par expliquer précisément
en quoi consiste cette conception. Et pour ce faire, le mieux est sans doute de partir de
l’expression la plus célèbre – et la plus classique – de cette représentation théorique de
l’arbitrage, que l’on doit au juriste anglais Mann. L’idée essentielle développée par Mann,
dans un article fameux paru en 1967, est que l’arbitre ne peut exercer sa fonction
juridictionnelle que par délégation de l’État sur le territoire duquel est localisé le siège de
l’arbitrage. Pour justifier cette affirmation, Mann met en avant la compétence qui
appartient à tout État souverain pour réglementer les activités se déroulant sur son
territoire ; Mann en déduit que « les arbitres sont inévitablement soumis à la compétence
législative du pays dans lequel le tribunal arbitral fonctionne. Quelles que puissent être les
intentions des parties, les autorités législatives et judiciaires du siège contrôlent
l’existence, la composition et les activités du tribunal » 69 . Selon Mann, il en résulte « une
similarité prononcée entre le juge national et l’arbitre en ce que tous deux sont soumis au
souverain local » 70 . Cela ne veut pas nécessairement dire que ce sont les mêmes règles qui
doivent s’appliquer aux arbitres et aux juges judiciaires, mais le point essentiel est que les
uns comme les autres sont soumis de la même manière à la loi du souverain local.
Différentes conséquences pratiques sont attachées à ce présupposé ; naturellement,
toutes sont inspirées par l’idée que l’État du siège doit se voir confier un rôle prépondérant
dans le fonctionnement et le contrôle de l’arbitrage. Il est intéressant d’évoquer les
principales de ces conséquences en les rapprochant des solutions du droit de l’arbitrage
international brésilien, car ce rapprochement montre que le droit brésilien a été inspiré, de
manière consciente ou inconsciente, par cette conception.
69
F.-A. Mann, « Lex facit arbitrum », Liber amicorum for Martin Domke, 1967, p. 161 (le passage
cité est, comme les suivants, librement traduit à partir de l’anglais).
70
Ibid., p. 162.
157
La première des conséquences qui s’attachent à la conception « territorialiste » est,
bien sûr, que l’arbitre et la procédure arbitrale sont nécessairement soumis à la loi de l’État
du siège de l’arbitrage. Éventuellement, cet État peut prescrire à l’arbitre de suivre la
volonté des parties ; il peut même décider de soumettre à la loi d’un autre État tel ou tel
aspect ; mais en dernière analyse, c’est toujours l’État du siège qui a la maîtrise du régime
juridique de l’arbitrage. Retrouve-t-on, en droit brésilien, cette idée d’une soumission de
l’arbitrage à la loi du pays du siège ? La réponse apparaît positive, dans la mesure où
l’économie générale de la loi du 23 septembre 1996 repose sur une distinction
fondamentale entre d’une part, les arbitrages qui se déroulent au Brésil, sur lesquels le
législateur brésilien a concentré son attention – c’est à ces arbitrages que s’appliquent les
dispositions des cinq premiers chapitres de la loi –, d’autre part les arbitrages qui se sont
déroulés à l’étranger et ont donné lieu au prononcé d’une sentence qui se trouve invoquée
au Brésil – de telles sentences relèvent du Chapitre VI de la loi, intitulé « De la
reconnaissance et de l’exécution des sentences arbitrales étrangères ». Les dispositions de
ce Chapitre VI seront loin de toujours s’appliquer en pratique, il est vrai, dans la mesure où
la loi de 1996 réserve expressément la primauté des conventions internationales. Or, très
souvent, la Convention de Panama où la Convention de New York devrait pouvoir être
invoqué par la partie demandant l’exequatur de la sentence étrangère. Mais outre que les
dispositions de ces conventions et celles du Chapitre VI de la loi sont pratiquement
identiques, on observera que la summa divisio demeure : il y a d’un côté les arbitrages qui
se déroulent au Brésil, soigneusement réglementés par le législateur, et de l’autre côté les
arbitrages qui ont eu lieu à l’étranger et qui relèvent d’un autre régime, centré sur les
conditions de reconnaissance de la sentence – sentence qui, d’ailleurs, est
significativement qualifiée de sentence « étrangère ».
Seconde incidence de la conception territorialiste que l’on signalera : si la
constitution du tribunal arbitral soulève une difficulté, seules les juridictions de cet État
pourront être saisies pour y remédier, car on n’imaginerait pas qu’une personne chargée de
rendre la justice au nom du souverain local puisse être nommée ou récusée par un tribunal
d’un autre État. On retrouve cette idée dans la loi brésilienne, dont les articles 7 et 16
permettent au juge brésilien d’intervenir pour résoudre certaines difficultés de constitution
du tribunal arbitral ; cette intervention sera possible, semble-t-il, si et seulement si
l’arbitrage se déroule au Brésil.
Troisième exemple, particulièrement significatif : si les juridictions du siège de
l’arbitrage viennent à prononcer l’annulation de la sentence, celle-ci se trouvera privée de
toute existence juridique et ne pourra donc plus être reconnue dans aucun autre pays. Plus
généralement, la reconnaissance sera impossible chaque fois que la sentence sera privée de
force obligatoire dans « son » ordre juridique, c’est-à-dire celui du siège de l’arbitrage. Il
est intéressant de relever que ces solutions se retrouvent très précisément dans le régime –
ou les régimes – de reconnaissance des sentences étrangères en vigueur au Brésil. En effet,
l’article 38 § VI de la loi brésilienne prévoit qu’une sentence étrangère ne sera pas
reconnue si elle « n’a pas force obligatoire pour les parties, si elle a été annulée ou, encore,
si elle a été suspendue par une instance judiciaire du pays où elle a été rendue ». On
retrouve la même solution à l’article V § I e) de la Convention de New York et dans son
article jumeau de la Convention de Panama 71 .
Ces exemples montrent que le droit de l’arbitrage brésilien a suivi la logique
« territorialiste » défendue notamment par Mann. Ceci n’est à vrai dire pas surprenant,
71
Article V § 1 e) également.
158
dans la mesure où cette vision théorique de l’arbitrage a longtemps été très dominante en
droit comparé et elle pèse encore lourd dans un grand nombre de pays. Elle a d’ailleurs
inspiré la plupart des conventions internationales relatives à la reconnaissance des
sentences arbitrales, y compris la plus importante d’entre elles, la Convention de New
York du 10 juin 1958 72 . Le droit brésilien, en épousant une logique « territorialiste », est
donc en bonne compagnie.
Cela étant dit, il faut reconnaître que l’approche « localisatrice » est contestée
aujourd’hui et certains droits – dont le droit français est le chef de file – n’hésitent pas à
s’en écarter très franchement. La manifestation la plus spectaculaire de cette tendance
« délocalistrice », en France, est la jurisprudence Hilmarton-Putrabali qui permet la
reconnaissance d’une sentence arbitrale annulée à l’étranger, par les juridictions du pays
du siège de l’arbitrage 73 . Pour justifier cette solution la Cour de cassation affirme que « la
sentence internationale [...] est une décision de justice internationale », « qui n’est
rattachée à aucun ordre juridique étatique » 74 . C’est consacrer là une logique résolument
différente de celle qui inspire le droit brésilien. Faut-il y voir un progrès ? La question
mérite d’être posée, et c’est pourquoi il apparaît légitime de soumettre à une appréciation
critique la conception localisatrice sur laquelle l’attention à jusqu’ici été portée.
II. – En France, où les orientations du droit positif portent la marque de la
« délocalisation » de l’arbitrage international, un important courant doctrinal soutient cette
conception avec force. Le point de départ de cette vision « délocalisatrice » réside dans
une affirmation d’ordre théorique : contrairement à la thèse défendue notamment par
Mann, l’arbitrage international n’est pas spécialement intégré dans l’ordre juridique du
siège de l’arbitrage. Et de fait, il faut reconnaître que l’on peut adresser de sérieuses
objections à la conception de Mann. Ces objections tiennent essentiellement à ce que
l’arbitre n’a pas été investi de fonctions juridictionnelles par la volonté de l’État du siège,
mais par celle des parties en litige qui sont généralement de simples personnes privées ; il
n’est donc pas possible de voir en lui un représentant de l’État au même titre qu’un juge
judiciaire, ni par conséquent de voir en la sentence une décision étatique. Plus
radicalement, il n’y a pas de nécessité absolue, si l’on y réfléchit, à ce que l’arbitrage soit
soumis à la loi du pays où il se déroule. On admet bien, par exemple, qu’un contrat conclu
ou devant s’exécuter dans un certain pays peut être soumis à la loi d’un autre pays ;
pourquoi ne pourrait-il pas en aller de même s’agissant d’un arbitrage ?
Au-delà de cette critique d’ordre théorique, il est difficile de ne pas être sensible à
certains inconvénients pratiques de la thèse suivant laquelle l’arbitrage serait intégré dans
72
V. S. Bollée, Les méthodes du droit international privé à l’épreuve des sentences arbitrales, Economica,
2004, n° 58 et s.
73
Cass. civ. 1re, 23 mars 1994, Hilmarton, Rev. arb. 1994.327, note Ch. Jarrosson ; Rev. crit. DIP 1995.359,
note B. Oppetit ; JDI 1994.701, note E. Gaillard ; Rev. trim. dr. com. 1994.702 obs. J.-C. Dubarry et E.
Loquin ; Cass. civ. 1re, 29 juin 2007, Putrabali, Rev. arb., 2007.507, rapport J.-P. Ancel, note E. Gaillard ;
P.A., 2007, n° 192, p. 20, note M. de Boisséson ; JDI, 2007.1236, note T. Clay ; Gaz. Pal,. 21-22 novembre
2007, n° 326, p. 14, note Ph. Pinsolle ; JCP, 2007 I 216, obs. Ch. Seraglini ; Rev. crit. DIP, 2008.109, note S.
Bollée.
74
Cass. civ. 1re, 29 juin 2007, Putrabali, préc.
159
l’ordre juridique du siège. On a notamment insisté sur le caractère néfaste, dans certains
cas de figure, de la solution voulant qu’une sentence arbitrale annulée par les juridictions
de l’État du siège ne soit plus susceptible d’être reconnue nulle part. En effet, la sentence
peut avoir été annulée pour une mauvaise raison : on peut par exemple imaginer que le
droit local connaisse des motifs d’annulation archaïque, ou même que le juge ait été
partial ; l’expérience montre que le risque de partialité existe bien dans certains pays,
surtout lorsque l’une des parties est une collectivité ou une entreprise publique locale.
Lorsque la décision d’annulation est à ce point contestable, il n’est certainement pas
satisfaisant qu’elle ait un rayonnement mondial. C’est pourtant une conséquence
inéluctable de la conception territorialiste : par exemple, personne ne songerait à
reconnaître un jugement étranger cassé par une juridiction supérieure dans son pays
d’origine, même si la cassation est intervenue pour un motif critiquable ; cela reviendrait à
donner effet à une norme qui n’existe plus. Dans la perspective territorialiste, la situation
est exactement la même lorsque la sentence a été annulée par les juridictions de son pays
d’origine.
Que penser de ces critiques adressées à la conception « localisatrice » ? Dans une
certaine mesure, elles sont justes. Mais les conséquences qui en sont tirées par le droit
français sont sans doute trop extrêmes. Certes, d’un point de vue pratique, il n’y a pas une
nécessité absolue à ce que l’arbitrage soit considéré comme soumis à l’ordre juridique du
pays où se trouve son siège. Et d’un point de vue pratique, cette soumission a certainement
des inconvénients si elle est systématique et inconditionnelle. Mais à ces considérations,
on peut en opposer deux autres, qui sont symétriques. D’abord, il n’y a certes pas de
nécessité, mais il n’y a pas non plus d’impossibilité théorique à ce que l’on confie un rôle
prépondérant à l’ordre juridique du pays du siège de l’arbitrage, si cela apparaît utile et
opportun. Ensuite, il est vrai que les conséquences attachées à la vision « territorialiste »
classique sont sans doute, à certains égards, trop radicales. Mais comme on le dit en
français, il ne faut pas jeter le bébé avec l’eau du bain. Il reste souhaitable, en général, que
dans le domaine de l’arbitrage international les ordres juridiques des États, plutôt que
d’intervenir tous de façon désordonnée et pagailleuse, confient à l’un d’eux un rôle central.
Or cet ordre juridique tenant lieu de centre de gravité ne peut guère être, en pratique, que
celui du siège de l’arbitrage. Le critère du siège de l’arbitrage ne s’impose d’ailleurs pas
seulement faute de véritable alternative. Au contraire, il existe des raisons fortes de le
retenir. L’État du siège a un rapport objectif de proximité avec l’arbitrage, et il n’est pas
désigné par hasard : ce sont normalement les parties qui fixent le siège, au moment où elles
rédigent la convention d’arbitrage. Faire de l’État du siège de l’arbitrage le centre de
gravité pour le contentieux pré-, péri- et post-arbitral est donc, du point de vue des parties,
un gage de sécurité juridique.
Cette attribution d’un rôle prépondérant à l’État du siège de l’arbitrage constitue
aujourd’hui encore l’approche dominante en droit comparé. Dans de nombreux États, en
effet, c’est la localisation du siège qui détermine si les juridictions locales peuvent
connaître, notamment, du contentieux relatif à la constitution du tribunal arbitral ou des
recours contre la sentence. Il est vraisemblable que cela soit en partie dû à une survivance
plus ou moins consciente de la thèse territorialiste défendue par Mann, mais c’est sans
doute avant tout que ce système est perçu comme fonctionnant avec efficacité. D’ailleurs,
même en France où la tendance est à l’amoindrissement du rôle donné à l’ordre juridique
du siège, le choix du lieu de l’arbitrage reste important : c’est normalement lui qui
détermine la compétence du juge français pour résoudre les difficultés de constitution du
tribunal arbitral, ou encore la possibilité d’exercer devant les juridictions françaises un
160
recours en annulation contre la sentence 75 . Dans ces conditions, on peut d’ailleurs se
demander s’il y n’a pas un certain illogisme à ce que la jurisprudence refuse de tenir
compte d’une décision étrangère d’annulation, lorsqu’elle a été prononcée par les
juridictions de l’État du siège de l’arbitrage. On a d’ailleurs souligné que cette
jurisprudence avait de lourds inconvénients pratiques : elle porte atteinte à l’harmonie
internationale (la sentence sera reconnue dans un pays et pas dans les autres ; par
conséquent, une partie pourra être considérée comme créancière dans un pays et pas dans
un autre), et elle porte atteinte aux prévisions des parties (qui, ont volontairement fixé le
siège de l’arbitrage dans un pays donné, en sachant que ce choix leur ouvrirait les voies de
recours du droit local). C’est pourquoi il serait bon de considérer que, sauf dans les cas
exceptionnels où l’annulation prononcée dans le pays du siège est choquante, cette
annulation fait obstacle à la reconnaissance de la sentence dans les autres pays ; c’est, par
exemple, l’approche de la jurisprudence néerlandaise76 . En définitive, quant au traitement
des sentences annulées à l’étranger, la meilleure solution serait donc, sans doute, une
solution intermédiaire entre celle du droit français et du droit brésilien. Il reste à savoir si
c’est la jurisprudence française ou la jurisprudence brésilienne qui, la première, fera un pas
dans cette direction.
VERSÃO TRADUZIDA POR: DANIEL DAMÁSIO BORGES
Localização ou deslocalização da arbitragem internacional ? A perspectiva brasileira
Atualmente é um lugar comum lembrar : o recurso à arbitragem tornou-se, em
alguns decênios, o modo ordinário de solução de litígios no âmbito do comércio
internacional. Aliás, esse modo de solução de litígios, que permite às partes fazer julgar
sua controvérsia por pessoas privadas por elas escolhidas, não apenas conquistou os
práticos, os operadores do comércio internacional; pode-se acrescentar, sem exagero, que a
arbitragem suscitou um verdadeiro fascínio doutrinal. Muito cedo, sentiu-se a necessidade
de integrá-la a um quadro teórico que lhe permita uma representação intelectual coerente e
de dispor de um fio de Ariana para resolver alguns problemas jurídicos concretos. O
fenômeno foi de uma extensão particular na França, onde ele foi copiosamente alimentado,
desde os anos sessenta e os trabalhos de Goldman 77 , pelas importantes querelas
doutrinárias suscitadas pela teoria da lex mercatoria. Os termos da discussão não são mais
inteiramente os mesmos atualmente, mas o fundo da controvérsia gira ainda,
fundamentalmente, em torno da alternativa entre localização e deslocalização da
75
V. les articles 1493 alinéa 2 et 1504 alinéa 1er du Code de procédure civile.
76
Cour d’appel d’Amsterdam, 28 avril 2009, Yukos, Rev. arb. 2009.557, note S. Bollée.
77
V. not. « Frontières du droit et lex mercatoria », Arch. phil. droit. 1964, t. 9, p. 177 ; « La lex mercatoria
dans les contrats et l’arbitrage internationaux : réalité et perspectives », JDI, 1979.475.
161
arbitragem internacional. Em termos simples, deve-se considerar que a arbitragem é
submetida à ordem jurídica do Estado onde ela tem a sua sede (i.e. aquele em cujo
território a arbitragem se desenrola), de sorte que esse Estado tenha uma vocação
preponderante para regulamentar a arbitragem e enquadrar o seu funcionamento? Ou devese, ao contrário, considerar que o Estado da sede da arbitragem não tem uma vocação mais
forte para impor o seu ponto de vista que qualquer outro Estado com o qual a arbitragem
poderia entrar em contato (por exemplo, se uma parte tenta executar a sentença no
território desse último)?
Essa interrogação fundamental tem, na verdade, uma dupla dimensão. De um ponto
de vista lógico, a primeira questão é de saber como se deve se representar as relações entre
a arbitragem e o Estado em cujo território ela desenrola. O árbitro internacional é unido
por um liame jurídico íntimo ao Estado no qual ele exerce suas funções, assim como o juiz
do Poder Judiciário? Ou, ao contrário, a analogia entre o árbitro e o juiz estatal merece ser
rejeitada, em razão do fato de o árbitro ser a priori uma pessoa privada designada por
outras pessoas privadas? Essa é a primeira faceta do problema. Mas a alternativa entre
localização e deslocalização tem também uma outra dimensão, que se situa no nível das
relações entre os próprios Estados. Com efeito, por detrás do problema da escolha entre
uma concepção localizadora e uma concepção deslocalizadora, desenha-se o problema da
repartição dos papéis entre os Estados, na qualidade de entes que são destinados a serem os
atores da regulamentação e do funcionamento da arbitragem. Como se deve conceber,
concretamente, a interação das ordens jurídicas de diferentes Estados que podem entrar em
contato com uma arbitragem internacional? Deve-se considerar, e então até que ponto, que
o Estado sede da arbitragem tem uma vocação preponderante, uma legitimidade maior para
intervir e impor seu ponto de vista com relação à arbitragem que se desenrola em seu
território?
Essas questões, que são fundamentais, colocam-se inevitavelmente a todo Estado
que se dota de um direito da arbitragem internacional. Elas se colocaram na França, onde
elas recebem hoje algumas respostas assaz originais e mesmo isoladas em direito
comparado; essas respostas são fortemente marcadas pelo selo da deslocalização. E o que
dizer do Brasil? A questão merece ser posta, por pelo menos duas razões.
A primeira é naturalmente ligada ao contexto desse colóquio, que justifica
amplamente que se interrogue sobre como o Brasil, por meio de seu direito da arbitragem
internacional, concebe o seu próprio lugar no que concerne ao enquadramento e ao
controle da arbitragem internacional. Concretamente, o Brasil pretende desempenhar um
papel preponderante quando a sede da arbitragem é situada em seu território, com o risco
de retrair-se no caso contrário? Ou ele estima que, de modo inverso, a localização da sede
da arbitragem conta pouco, e que essa variável não deve condicionar a importância do
papel que ele se propõe a desempenhar com relação às arbitragens internacionais?
A segunda razão que dá um interesse particular ao tema deve-se ao fato de que
existe no Brasil já faz uns quinze anos, como, aliás, em outros países da América latina,
uma certa efervescência em torno da arbitragem internacional. Essa efervescência
traduziu-se em evoluções espetaculares em relação à próprias fontes do direito brasileiro.
Lembrar-se-á especialmente, a esse respeito, que o Brasil se dotou de uma nova lei sobre a
arbitragem, em 23 de setembro de 1996, e ratificou em 1996 e em 2002 duas convenções
internacionais importantes: a Convenção interamericana sobre a arbitragem comercial
internacional de 30 de janeiro de 1975 (conhecida como Convenção do Panamá) e,
sobretudo, a Convenção de Nova Iorque de 10 de junho de 1958 pelo reconhecimento e a
162
execução das sentenças arbitrais estrangeiras. Na opinião de todos os comentadores, esses
episódios marcaram verdadeiramente a entrada do direito brasileiro da arbitragem em uma
era moderna, rompendo com o estado do direito anterior que era muito desfavorável à
arbitragem e que um autor brasileiro chegou a qualificar de « pré-história da
arbitragem » 78 . Insistir-se-á, em particular, na importância da ratificação da Convenção de
Nova Iorque; com efeito, resulta dessa convenção que toda sentença proferida no Brasil
beneficia doravante do regime de reconhecimento instituído por essa convenção, desde que
ela seja invocada em um dos outros, aproximadamente, 143 Estados contratantes. Isso é
um nítido progresso para a circulação internacional das sentenças proferidas no Brasil e a
superação de um real obstáculo ao desenvolvimento do Brasil como um centro onde são
realizadas as arbitragens.
O direito da arbitragem brasileiro é, portanto, uma construção recente, que,
segundo tudo faz crer, se enriquecerá ainda mais com novas evoluções, notadamente
jurisprudenciais, na medida em que a prática da própria arbitragem se desenvolva no
Brasil.
Todas essas considerações justificam amplamente que se abordem agora as
orientações do direito brasileiro da arbitragem internacional e especialmente as respostas
que esse direito traz ao problema mais fundamental: o da escolha entre uma concepção
« localizadora » e uma concepção « deslocalizadora ». Na verdade, apresenta-se como
assaz nítido que o direito brasileiro, diferentemente do francês, é inspirado antes pela
primeira dessas concepções que pela segunda. Isso é o que eu começarei a explicar, antes
de dar um panorama dos méritos, e talvez também dos limites, dessa concepção «
localizadora » que parece estar no cerne do direito brasileiro. Esses são os dois eixos da
minha exposição: a influência da concepção « localizadora » sobre o direito brasileiro,
em primeiro lugar, a apreciação crítica dessa concepção, em segundo lugar.
I. Para estabelecer a influência da concepção « localizadora » sobre o direito brasileiro da
arbitragem internacional, deve-se, seguindo-se o bom método, começar explicando
precisamente em que consiste essa concepção. E para fazê-lo, o melhor é certamente partir
da expressão mais célebre – e mais clássica – dessa representação teórica da arbitragem,
que se deve ao jurista inglês Mann. A ideia essencial desenvolvida por Mann, em um
famoso artigo publicado em 1967, é que o árbitro pode apenas exercer a sua função
jurisdicional por meio da delegação do Estado em cujo território é localizada a sede da
arbitragem. Para justificar essa afirmação, Mann utiliza como argumento a competência
que pertence a todo Estado soberano de regulamentar as atividades que se desenrolam
sobre o seu território; Mann deduz daí que « os árbitros são inevitavelmente submetidos à
competência legislativa do país no qual o tribunal arbitral funciona. Quaisquer que sejam
as intenções das partes, as autoridades legislativas e judiciárias da sede controlam a
existência, a composição e as atividades do tribunal » 79 . Segundo Mann, disso resulta «
uma similaridade pronunciada entre o juiz nacional e o árbitro no sentido de que todos os
dois estão submetidos ao mesmo soberano local » 80 . Isso não quer dizer necessariamente
78
J.B. Lee, « Le nouveau de régime de l’arbitrage au Brésil », Rev. arb. 1997.1999, n° 4.
79
F.-A. Mann, , « Lex facit arbitrum », Liber amicorum for Martin Domke, 1967, p. 161 (a passagem
citada é, como as seguintes, livremente traduzidas a partir do inglês). V. também R. Goode, op. cit., p. 24,
que faz repousar a solução sobre o direito internacional público.
80
Ibid., p. 162.
163
que são as mesmas regras que devem se aplicar aos árbitros e aos juízes do Poder
Judiciário, mas o ponto essencial é que uns como os outros estão submetidos da mesma
maneira à lei do soberano local.
Diferentes consequências práticas estão ligadas a esse pressuposto; naturalmente,
todas são inspiradas pela ideia de que o Estado da sede deve se ver confiar um papel
preponderante no funcionamento e no controle da arbitragem. É interessante evocar as
principais dessas consequências aproximando-as das soluções do direito brasileiro da
arbitragem internacional, pois essa aproximação mostra bem que o direito brasileiro foi
inspirado, de maneira consciente ou não, por essa concepção.
A primeira das consequências que se liga à concepção territorialista é,
evidentemente, que o árbitro e o procedimento arbitral estão necessariamente submetidos à
lei do Estado da sede da arbitragem. Eventualmente, esse Estado pode prescrever ao
árbitro que ele siga a vontade das partes; ele pode mesmo decidir submeter à lei de um
outro Estado esse ou aquele aspecto da arbitragem; mas, em última análise, é sempre o
Estado da sede que tem o domínio do regime jurídico da arbitragem. Pode-se reencontrar,
no direito brasileiro, essa ideia de submissão da arbitragem à lei do país da sede? A
resposta apresenta-se como positiva, na medida em que a economia geral da lei de 23 de
setembro de 1996 repousa sobre uma distinção fundamental entre, de uma parte, as
arbitragens que se desenrolam no Brasil, sobre as quais o legislador brasileiro concentrou a
sua atenção – é sobre essas arbitragens que se aplicam as disposições dos cinco primeiros
capítulos da lei –, e, de outra parte, as arbitragens que se desenrolaram no estrangeiro e
deram lugar ao proferimento de uma sentença que se acha invocada no Brasil – tais
sentenças estão no âmbito do Capítulo VI da lei, intitulado « Do reconhecimento e da
execução das sentenças arbitrais estrangeiras ». As disposições desse Capítulo VI estão
longe de sempre serem aplicadas na prática, é verdade, na medida em que a lei de 1996
reserva expressamente a primazia às convenções internacionais. Ora, muito
frequentemente, a Convenção do Panamá ou a Convenção de Nova Iorque deveria poder
ser invocada pela parte que pede o exequatur da sentença estrangeira. Mas além do fato de
que as disposições dessas convenções e aquelas do Capítulo VI da lei serem praticamente
idênticas, observar-se-á que a summa divisio permanece: existe de um lado as arbitragens
que se desenrolam no Brasil, cuidadosamente regulamentadas pelo legislador e, de outro
lado, as arbitragens que ocorrem no estrangeiro e a que se aplicam um outro regime,
centrado sobre as condições de reconhecimento da sentença – sentença que, aliás, é de
modo significativo qualificada de sentença « estrangeira ».
Segunda incidência da concepção territorialista que se assinalará: se a constituição
do tribunal arbitral apresenta uma dificuldade, somente as jurisdições desse Estado
poderão ser acionadas para remediá-la, pois não se imaginaria que uma pessoa encarregada
de fazer justiça em nome do soberano local possa ser nomeada ou recusada por um tribunal
de um outro Estado. Reencontra-se essa ideia na lei brasileira, cujos artigos 7 e 16
permitem ao juiz brasileiro intervir para resolver certas dificuldades da constituição do
tribunal arbitral; essa intervenção será possível, parece-nos, se e somente se a arbitragem
se desenrole no Brasil.
Terceiro exemplo, particularmente significativo: se as jurisdições da sede da
arbitragem vierem a se pronunciar pela anulação da sentença, essa última achar-se-á
privada de toda existência jurídica e não poderá, portanto, ser reconhecida em nenhum
outro país. De um modo mais geral, o reconhecimento será impossível cada vez que a
sentença for privada de força obrigatória por « sua » ordem jurídica, isto é, aquela da sede
164
da sentença. É interessante ressaltar que essas soluções se reencontram muito precisamente
no regime – ou nos regimes – de reconhecimento das sentenças estrangeiras em vigor no
Brasil. Com efeito, o artigo 38 § VI da lei brasileira prevê que uma sentença não será
reconhecida se ela « não tiver força obrigatória para as partes, se ela tiver sido anulada ou,
ainda, se ela tiver sido suspensa por uma instância judiciária do país em que ela foi
proferida ». Reencontra-se a mesma solução no artigo V § I (e) da Convenção de Nova
Iorque e no seu artigo gêmeo da Convenção do Panamá 81 .
Esses exemplos mostram que o direito da arbitragem brasileiro seguiu a lógica «
territorialista » defendida notadamente por Mann. Isso não é, na verdade, surpreendente,
na medida em que essa visão teórica da arbitragem tem sido por um longo período muito
dominante em direito comparado e em que ela influencia muito, ainda, um grande número
de países 82 . Ela, aliás, inspirou a maior parte das convenções internacionais relativas ao
reconhecimento das sentenças arbitrais, inclusive a mais importante dentre elas, a
Convenção de Nova Iorque de 10 de junho de 1958 83 . O direito brasileiro, ao esposar a
lógica « territorialista », está, portanto, em boa companhia.
Dito isso, deve-se reconhecer que a abordagem « localizadora » é hoje contestada e
certos direitos – dos quais o direito francês é o líder – não hesitam em dela se afastar muito
abertamente. A manifestação mais espetacular dessa tendência deslocalizadora, na França,
é a jurisprudência Hilmarton-Putrabali que permite o reconhecimento de uma sentença
arbitral anulada no estrangeiro, pelas jurisdições do país sede da arbitragem 84 . Para
justificar essa solução a Corte de cassação afirma que « a sentença internacional [...] é uma
decisão de justiça internacional », « que não está conectada a nenhuma ordem jurídica
estatal » 85 . Isso é consagrar uma lógica diferente daquela que inspira o direito brasileiro.
Deve-se ver nisso um progresso? A questão merece ser posta, e por essa razão que se torna
legítimo submeter a uma apreciação crítica a concepção localizadora sobre a qual a
atenção foi até aqui focalizada.
II. – Na França, onde as orientações do direito positivo têm a marca da « deslocalização »
da arbitragem internacional, uma importante corrente doutrinária sustenta essa concepção
com vigor. O ponto de partida dessa visão « deslocalizadora » reside em uma afirmação de
81
82
Artigo V § 1 e) igualmente.
V. também R. Goode, « The Role of the Lex Loci Arbitri in International Commercial arbitration », Arb.
Int. 2001, vol. 17, p. 17, esp. p. 28 e s. ; W.W. Park, « The Lex Loci Arbitri and International Commercial
Arbitration », ICLQ 1983.21, esp. p. 22 e s. ; J.-F. Poudret, « Quelle solution pour en finir avec l’affaire
Hilmarton ? », Rev. arb. 1998.7, esp. p. 23.
83
84
V. S. Bollée, op. cit., n° 58 e s.
V. Cass. civ. 1re, 23 mars 1994, Hilmarton, Rev. arb. 1994.327, note Ch. Jarrosson ; Rev.
crit. DIP 1995.359, note B. Oppetit ; JDI 1994.701, note E. Gaillard ; Rev. trim. dr. com.
1994.702 obs. J.-C. Dubarry e E. Loquin ; Cass. civ. 1re, 29 juin 2007, Putrabali, Rev. arb.,
2007.507, rapport J.-P. Ancel, note E. Gaillard ; P.A., 2007, n° 192, p. 20, note M. de Boisséson ; JDI,
2007.1236, note T. Clay ; Gaz. Pal,. 21-22 novembre 2007, n° 326, p. 14, note Ph. Pinsolle ; JCP, 2007 I
216, obs. Ch. Seraglini ; Rev. crit. DIP, 2008.109, note S. Bollée
85
Cass. civ. 1re, 29 juin 2007, Putrabali, préc.
165
ordem teórica: contrariamente à tese defendida notadamente por Mann, a arbitragem
internacional não é especialmente integrada à ordem jurídica da sede da arbitragem. E de
fato, deve-se reconhecer que se podem fazer sérias objeções à concepção de Mann. Essas
objeções decorrem essencialmente do fato de o árbitro não estar investido de funções
jurisdicionais pela vontade do Estado da sede, mas pela vontade das partes em litígio que
são geralmente simples pessoas privadas; não é, portanto, possível ver nele um
representante da vontade do Estado da mesma maneira que um juiz do Poder Judiciário,
nem, por conseguinte, ver na sentença uma decisão estatal. Mais radicalmente, não há
necessidade absoluta, se se reflete sobre isso, de a arbitragem ser submetida à lei do país
em que ela se desenrola. Admite-se perfeitamente, por exemplo, que um contrato
concluído ou devendo ser executado em um certo país possa ser submetido à lei de um
outro país; por que não se poderia ir na mesma direção em se tratando de uma arbitragem?
Para além dessa crítica de ordem teórica, é difícil não ser sensível a certos
inconvenientes práticos da tese segundo a qual a arbitragem seria integrada à ordem
jurídica da sede. Insistiu-se notadamente no caráter nefasto, em certas hipóteses, da
solução que pretende que uma sentença arbitral anulada pelas jurisdições do Estado da
sede não seja mais suscetível de ser reconhecida em nenhum lugar. Com efeito, a sentença
pode ter sido anulada por uma razão equivocada: pode-se, por exemplo, imaginar que o
direito local conheça motivos de anulação arcaicos, ou mesmo que o juiz tenha sido
parcial; a experiência mostra que o risco de parcialidade existe realmente em certos países,
sobretudo quando uma das partes é uma coletividade ou uma empresa pública local.
Quando a decisão de anulação for a esse ponto contestável, não é certamente satisfatório
que ela tenha uma influência mundial. Essa é, no entanto, uma consequência inevitável da
concepção territorialista: por exemplo, ninguém pensaria em reconhecer um julgamento
estrangeiro cassado por uma jurisdição superior no país de origem, mesmo se a cassação
ocorreu por um motivo criticável; isso equivaleria a dar efeito a uma norma que não existe
mais. Na perspectiva territorialista, a situação é exatamente a mesma quando a sentença foi
anulada pelas jurisdições de seu país de origem.
O que pensar das críticas endereçadas à concepção « localizadora »? Em uma certa
medida, elas são justas. Mas as consequências que o direito francês tira disso são
seguramente extremas demais. É certo que, do ponto de vista prático, não existe uma
necessidade absoluta de a arbitragem ser considerada como submetida à ordem jurídica do
país onde se encontra a sua origem. E do ponto de vista prático, essa submissão tem
certamente inconvenientes se ela for sistemática e incondicional. Mas a essas
considerações, pode-se opor duas outras, que são simétricas. De início, não há, é certo,
uma necessidade, mas também não há uma impossibilidade teórica em se confiar um papel
preponderante à ordem jurídica do país sede da arbitragem, se isso apresentar-se como útil
e oportuno. Em seguida, é verdade que as consequências ligadas à visão « territorialista »
clássica são certamente, sob certos aspectos, radicais demais. Mas como se diz em francês,
não se deve jogar o bebê com a água do banho. Permanece sendo desejável, de um modo
geral, que no âmbito da arbitragem internacional, as ordens jurídicas dos Estados, em vez
de intervir de um modo desordenado e confuso, confie a uma delas um papel central. Ora,
essa ordem jurídica que ocupa o lugar de centro de gravidade dificilmente pode ser outra,
na prática, que aquela da sede da arbitragem. O critério da sede da arbitragem não se
impõe, aliás, apenas em razão da falta de uma verdadeira alternativa. Ao contrário, existem
fortes razões para retê-la. O Estado da sede da arbitragem tem uma relação objetiva de
proximidade com a arbitragem e ele não é designado por acaso: são normalmente as partes
que fixam a sede, no momento em que elas redigem a convenção de arbitragem. Fazer do
166
Estado da sede da arbitragem o centro de gravidade para o contencioso, pré, peri e pósarbitral é, portanto, do ponto de vista das partes, uma garantia de segurança jurídica.
Essa atribuição de um papel preponderante ao Estado da sede da arbitragem
constitui ainda hoje a abordagem dominante em direito comparado. Em numerosos
Estados, com efeito, é a localização da sede que determina se as jurisdições locais podem
conhecer, notadamente, do contencioso relativo à constituição do tribunal arbitral ou das
ações contra a sentença. É verossímil que isso se deva em parte à sobrevivência mais ou
menos consciente da tese territorialista defendida por Mann, mas isso se deve certamente
antes de tudo à percepção de que esse sistema funciona com eficácia. Aliás, mesmo na
França onde a tendência é a diminuição do papel dado à ordem jurídica da sede, a escolha
do lugar de arbitragem permanece sendo importante: é notadamente ele que determina a
competência do juiz francês para resolver as dificuldades da constituição do tribunal
arbitral, ou ainda a possibilidade de entrar diante das jurisdições francesas como uma ação
de anulação contra a sentença 86 . Nessas condições, pode-se, aliás, perguntar se é
verdadeiramente lógico que a jurisprudência francesa se recuse em levar em conta uma
decisão estrangeira de anulação, quando ela foi pronunciada pelas jurisdições do Estado da
sede da arbitragem. Sublinhou-se, aliás, que essa jurisprudência tinha pesados
inconvenientes : ela atenta contra a harmonia internacional (a sentença será reconhecida
em um país e não em outros; por conseguinte, uma parte poderá ser considerada como
credora em um país e não em um outro) e ela atenta contra as previsões das partes (que
voluntariamente fixaram a sede da arbitragem em um dado país, sabendo que essa escolha
lhes abria as vias de ações do direito local). É por essas razões que seria bom considerar
que, salvo nos casos excepcionais em que a anulação pronunciada no país da sede é
chocante, essa anulação obsta o reconhecimento da sentença nos outros países; c’est, par
exemple, l’approche de la jurisprudence néerlandaise87 . Em definitivo, quanto ao
tratamento das sentenças anuladas no estrangeiro, a melhor solução seria certamente,
portanto, uma solução intermediária entre a do direito francês e a do direito brasileiro.
Resta saber se será a jurisprudência francesa ou a jurisprudência brasileira que, pela
primeira vez, dará um passo nessa direção.
86
87
V. os artigos 1493 alínea 2 e 1504 alínea 1 do Código de processo civil.
Cour d’appel d’Amsterdam, 28 avril 2009, Yukos, Rev. arb. 2009.557, note S. Bollée.
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INSERÇÃO DO BRASIL NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Umberto Celli Junior
Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo
Professor associado de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP e do
Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da USP
Professor-convidado da Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne) (2009)
Coordenador na USP do UNCTAD Virtual Institute
1. Mudanças na ordem internacional: os atores emergentes em uma sociedade multipolar
2. Governança global: ausência de legitimidade da ONU, FMI, Banco Mundial e outras
instituições internacionais.
3. A participação do Brasil na sociedade multipolar
3.1. ONU (Conselho de Segurança),FMI, Banco Mundial
3.2. G20
3.3. OMC
3.4. Os BRICS
4. Perspectivas para o Brasil
168
TESES APROVADAS PELA COMISSÃO CIENTÍFICA
JORNADA DE TRABALHO E CRIAÇÃO DE POSTOS DE TRABALHO:
EXPERIÊNCIA BRASILEIRA E ESTRANGEIRA
Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho
Mestre e doutorando em Direito do Trabalho pela USP. Professor de Direito do Trabalho e
Processo do Trabalho em diversos cursos de graduação e pós-graduação. Membro
pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior. Advogado.
No início do último ano do segundo mandato do Presidente Luís Inácio Lula da
Silva, retomou-se a discussão acerca da redução da duração semanal do trabalho de 44
para 40 horas, sem diminuição dos salários, e o pagamento do adicional de 75% sobre o
valor da hora extra trabalhada (Projeto de Emenda Constitucional 231/95). Acredita-se que
a redução da jornada, medida bastante popular entre os proletários por lhes conferir mais
tempo para o lazer e a família, reduziria o desemprego por forçar as empresas a novas
contratações. Há que se refletir, contudo, sobre esta conclusão. A redução da jornada e o
aumento do valor do adicional de horas extras podem, a bem da verdade, gerar mais
desemprego. Para se resguardar do aumento de custo gerado pela redução da jornada é
possível que as empresas de maior porte substituam trabalhadores por máquinas. Nas de
menor porte, por sua vez, corre-se o risco de que o aumento no custo da mão de obra
reduza o faturamento e acabe resultando na dispensa de alguns empregados e na
conseqüente retração da produção. E não se pode deixar de reconhecer que a maior parte
dos postos de trabalho no Brasil está justamente em micro e pequenas empresas, muitas
das quais possivelmente não terão como arcar com a elevação das folhas de pagamento
provocada pela mudança proposta.
O presente estudo foi desenvolvido a partir da análise da experiência de outros
países com a redução do limite legal da jornada de trabalho, como França, Espanha e
República Tcheca, e da própria experiência pregressa do Brasil que em 1988 o reduziu de
48 para 44 horas semanais. Buscou-se com este estudo verificar se as medidas em questão
geraram a criação de novos postos de trabalho ou não.
Na França a redução da jornada de 40 para 35 horas não provocou o aumento
esperado de empregos e ainda causou uma fuga de investimentos para países da União
Européia com jornadas de trabalho maiores e legislações trabalhistas mais flexíveis, como
Espanha e República Tcheca. A Espanha, por sua vez, tem uma das menores jornadas de
trabalho do Velho continente e ainda assim apresenta aproximadamente 20% da população
economicamente ativa desempregada. No Brasil tivemos uma redução considerável da
jornada com o advento Federal de 1988. A redução da jornada de 48 para 44 horas não
gerou aumento no número de postos de trabalho nos anos imediatamente seguintes.
169
É preciso reconhecer que o que gera a criação de mais empregos é a combinação de
crescimento econômico elevado e sustentável e o aumento na qualificação dos
trabalhadores. Da mesma forma que a desregulamentação da legislação trabalhista e a
retirada de benefícios dos trabalhadores aumentam a margem de lucro dos empresários,
mas não necessariamente geram a criação de novos postos de trabalho, a redução da
jornada aumenta o custo da produção, o que pode refletir no preço dos produtos
produzidos por elas, e diminui a competitividade das empresas brasileiras em relação às
suas concorrentes que operam no exterior.
Não se quer com isso afirmar que a jornada de 40 horas seja impraticável. Muitas
empresas a adotam espontaneamente ou a partir de solução coletivamente pactuada com o
sindicato. Há inúmeros Acordos e Convenções Coletivas estabelecendo dita jornada. O que
não parece adequado é a imposição dela pelo Estado justamente em um momento em que
ainda se vive a “ressaca” de uma crise econômica global.
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NEGOCIAÇÕES COLETIVAS NO BRASIL: CENÁRIO PÓS-CRISE
ECONÔMICA
Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho
Mestre e doutorando em Direito do Trabalho pela USP. Professor de Direito do Trabalho e
Processo do Trabalho em diversos cursos de graduação e pós-graduação. Membro
pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior. Advogado.
Conquanto os índices de desemprego permaneçam altos e se tema pela saúde
financeira dos chamados Piigs, há consenso de que o pior da crise econômica global
passou. A combinação de baixa inflação e expectativa de crescimento da economia cria um
cenário de melhora nas perspectivas dos trabalhadores em 2010. Muitos sindicatos
operários têm reivindicado neste ano uma espécie de compensação pelo sacrifício a que se
submeteram no ano passado, quando renunciaram a novos benefícios e até mesmo abriram
mão de alguns que já haviam sido incorporados. É preciso, contudo, refletir sobre a
viabilidade de se buscar de uma só vez os benefícios que deveriam ter sido concedidos nos
últimos dois anos. Há que se questionar se uma empresa recém saída de um cenário
econômico desfavorável pode, de uma só vez, conceder todos os benefícios e
compensações reputadas justas. O objeto do presente trabalho é analisar o resultado obtido
por algumas categorias em sua negociação coletiva e a forma como as reivindicações de
reajustes tarifados podem gerem problemas.
O presente trabalho foi desenvolvido a partir da análise da pauta de reivindicações
de algumas categorias cuja data-base para negociação coletiva ocorreu no primeiro
trimestre de 2010, quando a economia apresentava visíveis sinais de recuperação, os
acordos e convenções coletivas já firmados, e do confronto entre os dados obtidos com os
elaborados no mesmo período do ano passado quando a crise global estava em seu apogeu.
As principais fontes de pesquisas foram os periódicos Valor Econômico e Folha de São
Paulo e a Rede Mundial de Computadores, em particular os sítios dos sindicatos cujas
categorias negociaram suas condições de trabalho entre janeiro e março de 2010. O
objetivo era confrontar as reivindicações das negociações que tomaram corpo no período
de crise com as negociações realizadas após a estabilização econômica.
No sul e no sudeste do país verificou-se nos primeiros meses do ano significativo
número de campanhas salariais vitoriosas, com negociações mais rápidas e reajustes acima
da inflação. Na Bahia, os trabalhadores da construção civil conseguiram acerto salarial de
8,0%, em um cenário de inflação estimada em 4,11 %, além de plano de saúde e aumento
da cesta básica de R$ 45,00 para R$ 75,00. No vizinho estado do Ceará os comerciários
conseguiram adequação de 7,75% e aumento do piso salarial de R$ 465,00 para R$
560,00. Outras categorias, como a dos bancários e a dos correios, optaram por fazer greve
por não conseguir negociar as melhorias almejadas
A pesquisa demonstra que a mudança no cenário econômico alterou as perspectivas
de negociação. Durante o apogeu da crise os representantes dos empregados optaram, em
muitos casos, por abrir mão de garantias já conquistadas ou por reduzir salários e jornada
em prol da manutenção do número de postos de trabalho. As greves realizadas no ano
171
passado buscavam impedir perdas. No início deste ano as reivindicações e paralisações são
direcionadas para a obtenção de mais benefícios, em alguns casos a correção dos salários
com base nos índices de inflação dos dois últimos anos.
Constatou-se que os sindicatos das categorias profissionais que não tiveram
reajuste ou que o tiveram abaixo da inflação agora lutam por correções acima da
estimativa de perda salarial do último ano, em alguns casos somando esta à perda salarial
do período da crise. Esta reivindicação, contudo, mostra-se preocupante porquanto nem
todos os segmentos da economia e nem todas as empresas do mesmo segmento
enfrentaram recuperação semelhante. Ademais a própria idéia de indexação, ou de
vinculação dos reajustes à índices econômicos consiste em reminiscência dos anos 80,
época da megainflação. Naquela época, a indexação reinava e mantinha a economia
funcionando. Em um cenário de estabilidade monetária, não deveria subsistir qualquer tipo
de indexação, por consistir ela um perigoso combustível para a inflação. As cláusulas de
eventual proteção de valores e reajustes de contratos, em especial os contratos de trabalho,
deveriam ser resultado de negociação, com prevalência das especificidades e
circunstâncias, e não dos índices. Dever-se-ia ter em conta as possibilidades e necessidades
das categorias envolvidas e não cálculos matemáticos feitos com base em demonstrações
estatísticas.
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