2-1 2. C O N C E I T O S D E B I O Q U Í M I C A E QUÍMICA ORGÂNICA Para estudos com moléculas orgânicas, principalmente aquelas com atividade biológica, é necessário o conhecimento de alguns conceitos básicos químicos e bioquímicos. Neste capítulo iremos apresentar alguns desses conceitos que serão importantes para a compreensão do nosso trabalho. 2.1. Grupos funcionais Para o estudo de biomoléculas, é importante conhecer bem as funções químicas e os grupos funcionais que as determinam. Grupos funcionais são grupamentos de átomos que conferem aos compostos orgânicos características químicas específicas, criando um centro reativo e definindo uma função química nessas moléculas. Portanto cada função química possui um conjunto de características comuns e seu conhecimento compreensão de como essas moléculas interagem. é fundamental para a CONCEITOS 2-2 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA I r e m o s a p r e s e n t a r n e s t a s e ç ã o , d e f o r m a s u c i n t a 1, a l g u n s g r u p a m e n t o s químico-orgânicos que serão relevantes para nosso estudo. As figuras que seguem mostram exclusivamente o grupo funcional, onde nos traços de ligações podem ser conectadas cadeias carbônicas ou átomos de hidrogênio, conforme o caso. 2.1.1. Hidrocarboneto Compostos formados exclusivamente por átomos de carbono e hidrogênio são conhecidos por hidrocarbonetos. Estes compostos são a base para a formação de todas as outras substâncias orgânicas. Os hidrocarbonetos se classificam, quanto ao grau de saturação, em saturados (alcanos), em que os átomos de carbono fazem apenas ligações simples, e insaturados, onde um ou mais átomos de carbono podem fazer ligações duplas (alcenos) ou triplas (alcinos). Os radicais correspondentes a cada categoria possuem na sua nomenclatura o sufixo –ila, formando assim grupamentos alcanila, alcenila e alcinila. Podem também ser classificados quanto ao tipo de cadeia, podendo ser de cadeia normal ou cíclica (formando anéis estáveis). C C (a) C C (b) C (c) Figura 2.1:Grupamento de (a) alcanila, (b) alcenila e (c) alcinila 2.1.2. Hidroxila O grupamento hidroxila é formado por um átomo de oxigênio ligado a um átomo de hidrogênio. Este grupamento define a função álcool. Os álcoois são 1 Para informações adicionais e mais detalhadas funcionais, consultar as referências [25] e [26] sobre química orgânica e grupos GRUPOS FUNCIONAIS 2-3 classificados em primários, secundários ou terciários dependendo se o carbono conectado à hidroxila está ligado a um, dois ou três átomos de carbono. OH Figura 2.2: Grupamento hidroxila 2.1.3. Carbonila A carbonila é formada por um átomo de oxigênio que realiza uma ligação dupla com um átomo de carbono. Esse grupamento pode definir as funções aldeído (se localizado nas extremidades) ou cetona (se localizado no meio) dependendo somente de sua localização na cadeia carbônica,. O C Figura 2.3: Grupamento carbonila 2.1.4. Carboxila A carboxila é uma fusão entre uma carbonila e uma hidroxila. A função definida por este grupamento é o ácido carboxílico. Esse nome é dado porque a ligação entre o átomo de oxigênio e o átomo de hidrogênio na carboxila é extremamente polar, dando um grande caráter ácido ao hidrogênio. Isso faz c o m q u e q u a n d o c o l o c a d a s e m á g u a , s o b c e r t a s c o n d i ç õ e s d e p H 1, a l g u m a s substâncias carboxiladas podem se ionizar doando prótons (H+) para o meio e se tornando negativas. O C OH Figura 2.4: Grupamento carboxila 1 pH é defindo como sendo −log10[H+] CONCEITOS 2-4 2.1.5. DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA Éster O grupo funcional éster é um derivado da carboxila onde o hidrogênio da hidroxila é substituído por um radical carbônico. Este grupamento define a função química éster A reação de formação dos ésteres é uma das mais freqüentes em sistemas biológicos. A esterificação consiste na reação de ácido carboxílico com álcool e resulta na produção de um éster e de uma molécula de água. A ligação simples entre o átomo de carbono e o oxigênio é conhecida como ester linkage (ligação éster). O C O Figura 2.5: Grupamento éster 2.1.6. Amino Amina é a função química definida pelo grupamento amino. Este é constituído principalmente pela presença do átomo de nitrogênio efetuando ligações simples. A classificação das aminas depende de quantos átomos de carbono estão ligados diretamente ao nitrogênio, podendo ser primárias (um carbono), secundárias (dois carbonos) ou terciárias (três carbonos). O grupo amino possui caráter básico e em solução aquosa este grupo pode captar prótons (H+) do meio e tornar-se positivo. Como ocorre com a carboxila, isso acontece sob condições específicas de pH. N Figura 2.6: Grupamento amino GRUPOS 2.1.7. 2-5 FUNCIONAIS Amida O grupamento amida é um derivado da carboxila em que a hidroxila é substituída por um grupo amino. A função química amida é defina pelos grupos amida. A ligação entre o carbono e o nitrogênio é extremamente estável e é denominada amida linkage (ligação amida). Ela é formada quando há a reação química entre ácido carboxílico e amina, produzindo uma amida e uma molécula de repetidamente água. unindo Esse tipo pequenas de ligação moléculas é normalmente (meros), dando encontrada origem a macromoléculas poliméricas. As proteínas são um dos principais exemplos de polímeros onde encontramos esse tipo de ligação. Pequenos aminoácidos se unem formando peptídeos que se por sua vez unem formando polipeptídios e proteínas. Devido a esse fato, em bioquímica, esse tipo de ligação amida é mais comumente conhecido como ligação peptídica. O C N Figura 2.7: Grupamento amida 2.1.8. Éter O grupamento éter é definido quando o átomo de oxigênio possui dois ligantes carbônicos. Uma conseqüência interessante desse fato é que não ocorre a formação de ligações de hidrogênio nesse oxigênio [25]. A função química éter é determinada por este grupamento e seus compostos são pouco reativos. O Figura 2.8: Grupamento éter CONCEITOS 2-6 2.1.9. DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA Epóxido O grupamento epóxido é um éter cíclico. Os epóxidos, ou oxiranos, são, diferentemente dos éteres, bastante reativos, principalmente devido à forte tensão no anel. O C C Figura 2.9: Grupamento epóxido 2.1.10. Imino O átomo de nitrogênio fazendo uma dupla ligação é o que caracteriza o grupamento imino. Esse grupo define a função química imina, que é um derivado de compostos que contém carbonila. C N Figura 2.10: Grupamento imino 2.1.11. Sulfidrila A sulfidrila é caracterizada por um átomo de enxofre ligado a um átomo de hidrogênio. A função química determinada por esse grupo é a função tiol. Existe certa semelhança na química dos tióis (também conhecidos como mercaptanas) e dos álcoois, já que o enxofre e o oxigênio pertencem ao sexto grupo da tabela periódica e portanto possuem a mesma configuração eletrônica da camada externa. Entretanto, há também inúmeras diferenças. Dentre elas podemos citar a formação estável de compostos sulfurados conhecidos como dissulfetos (R−S−S−R), o que geralmente não ocorre com os peróxidos (R−O−O−R) pois a ligação entre os átomos de oxigênio é consideravelmente GRUPOS 2-7 FUNCIONAIS mais fraca que a ligação entre os átomos de enxofre. Essa estabilidade dos dissulfetos é um fator muito importante na estrutura de proteínas, podendo existir a formação de pontes dissulfeto entre aminoácidos sulfurados (cisteínas). SH Figura 2.11: Grupamento sulfidrila 2.2. Enzimas: estrutura Enzimas são proteínas que tem a capacidade de catalisar reações metabólicas dos seres vivos e por isso são essenciais para a vida. Nesta seção vamos abordar a constituição e a estrutura das proteínas em geral. Na seção 2.3 iremos discutir a questão de cinética enzimática. 2.2.1. Aminoácidos e peptídios Aminoácidos são pequenas moléculas que tem certas características especiais, dentre as quais a capacidade de polimerização. Isso se deve ao fato de que essas moléculas possuem nas extremidades dois grupos funcionais: um grupamento amino (−NH2) e uma carboxila (−COOH), que, como vimos na seção 2.1.7, podem reagir formando uma ligação C−N do tipo amida e que nesse caso também é chamada de ligação peptídica. Um peptídeo é a união de alguns poucos aminoácidos e a união destes formam os polipeptídios e proteínas. Existem também aminoácidos e derivados que não são constituintes das proteínas e possuem alguma outra função biológica. Como exemplos podemos citar alguns antibióticos e hormônios. A estrutura geral de um aminoácido pode ser vista na Figura 2.12. Existe um carbono central conhecido como carbono alfa (Cα). Ligados a este carbono existem um hidrogênio, os grupamentos amínico e carboxílico e uma cadeia lateral “R”, que diferencia cada aminoácido e confere a eles identidades e características distintas. A Figura 2.13 mostra os vinte tipos de aminoácidos usualmente encontrados em proteínas. O carbono central normalmente tem CONCEITOS 2-8 BIOQUÍMICA DE E QUÍMICA ORGÂNICA quatro ligantes distintos e portanto também possui atividade ótica. Os aminoácidos biologicamente ativos possuem configuração ótica levógira (Laminoácidos) H C (a) H2N H R α H3N COOH R α + C (b) CO O Figura 2.12: Estrutura geral de um aminoácido: (a) em vácuo e (b) zwiteriônico Apolares O O H3C H2 C H C C H C CH3 H2 C OH H2C Leucina (Leu) Prolina (Pro) CH3 O H 3C C H OH C H C H3C Valine (Val) H C O H2 C C H2 H C C OH CH Fenilalanina (Phe) C NH2 CH O H2 C C H H C HC Triptofano (Trp) H C HC H2 C N H Metionina (Met) HC O H C C H NH2 H C OH C NH2 Alanina (Ala) S O H C NH2 H3C OH NH C H2 NH2 C H C NH2 C CH3 OH H3C C H2 C H O H C C NH2 Isoleucina (Ile) Figura 2.13: Os vinte tipos de aminoácidos encontrados em proteínas OH OH ENZIMAS: 2-9 ESTRUTURA Polares O O H C H C H2 C OH HO NH2 O O H2 C C H C H2 C H2N OH C H2 NH2 NH2 OH O O OH C H C H2 C HS H C OH C NH2 NH2 Treonina (Thr) Cisteína (Cys) O O H2 C H C HC C OH H2 C N H C C OH HC CH HO C Glutamina (Gln) OH H C H C NH2 Asparagina (Asn) C H OH Serina (Ser) O H3C C NH2 Glicina (Gly) O H C NH2 C H N H Tirosina (Tyr) CH NH2 Histidina (His) Básicos NH H2N H2 C C H2 O H2 C C H2 H C C H2N OH N H H2 C O H2 C C H2 NH2 H C NH2 Lisina (Lys) Arginina (Arg) C OH 2-10 CONCEITOS DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA Ácidos O O H2 C O OH O H C C HO OH C H2 NH2 Ácido Aspártico (Asp) H2 C H C C OH NH2 Ácido Glutâmico (Glu) Na seção anterior vimos que tanto os grupamentos amínicos como os carboxílicos podem estar carregados quando em solução aquosa, ou seja, o grupo amino na forma −NH3+ e a carboxila na forma −COO−. Um aminoácido isolado possui ambos grupamentos e sendo assim, sob certas condições de pH, pode apresentar separação de cargas com neutralidade elétrica. Essa forma é conhecida como forma zwiteriônica (Figura 2.12 (b)). Também pode acontecer da molécula, mesmo em solução aquosa, permanecer neutra sem separação de cargas e portanto estar na configuração encontrada em vácuo (Figura 2.12 (a)). Os aminoácidos possuem então pelo menos dois hidrogênios que podem se dissociar, podendo haver mais hidrogênios dissociáveis nas cadeias laterais (grupo R). Com isso estas moléculas podem assumir diversos estados de carga dependendo do ambiente químico em que se encontram. Podemos analisar o que ocorre numa solução aquosa de um aminoácido que não possui hidrogênios dissociáveis nas cadeias laterais. Existem então apenas dois hidrogênios que podem se dissociar da molécula, localizados nos terminais amínico e carboxílico. Inicialmente, o pH da solução é bem baixo. O meio está ácido e ambos grupamentos estão protonados (−COOH e −NH3+). Nesse estado portanto a molécula possui carga total positiva. À medida que se eleva o pH da solução (com a adição de hidróxido, por exemplo), percebemos a dissociação do hidrogênio da carboxila. A molécula de aminoácido resultante dessa reação é neutra, porém apresentando separação de cargas (forma zwiteriônica), já que agora a carboxila se encontra na forma −COO− e o grupo amino na forma −NH3+. Continuando a elevar o pH da solução, temos também a dissociação do hidrogênio do grupamento amínico, que então se altera para a ENZIMAS: 2-11 ESTRUTURA forma neutra −NH2. A molécula agora possui uma carga global negativa. Esses três estados de carga estão esquematizados na Figura 2.14. H COOH + H3N C H + H CO O + H 3N R (a) C + H CO O H 2N R (b) C H R (c) Figura 2.14: Os três possíveis estados de carga de um aminoácido sem ionização de cadeias laterais: (a) forma catiônica, (b) zwiteriônica e (c) aniônica Podemos escrever essas reações e suas constantes, denotando por AA+, AA0 e AA− os três estados de carga que o aminoácido pode assumir. A reação referente à primeira dissociação (carboxila) é → + 0 AA + ← AA + H e a sua constante K1 é escrita como K 1= [ AA 0 ][ H + ] [ AA + ] (2.1) A segunda reação, referente à outra dissociação (grupo amino), é dada pela expressão → − + AA 0 ← AA + H e a constante K2 pode ser escrita como K 2= [ AA − ][ H + ] [ AA 0 ] (2.2) CONCEITOS 2-12 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA É possível obter experimentalmente os valores das constantes de reação1 K1 e K2 e determinar assim os pKa2 dos aminoácidos. Da mesma forma também podemos determinar as constantes de dissociação de átomos de hidrogênio presentes em cadeias laterais (R) e por conseguinte o pKa correspondente. Os valores de pKa dos aminoácidos mais comuns estão mostrados na Tabela 2.1. Tabela 2.1: Valores de pKa dos aminoácidos mais comuns [27] pKa Aminoácido −COOH −NH3+ grupo R Ácido Aspártico 2.1 2.2 2.4 2.2 2.0 1.7 1.8 2.2 2.3 1.8 2.4 2.4 2.2 2.3 2.1 2.2 2.6 2.4 2.2 2.3 9.8 9.7 9.7 9.0 8.8 10.8 9.1 9.1 9.6 9.2 9.7 9.6 9.0 9.2 10.6 9.2 10.4 9.4 9.1 9.6 3.9 4.3 12.5 8.3 6.0 10.5 ≈13 ≈13 10.1 - Ácido Glutâmico Alanina Arginina Asparagina Cisteína Fenilalanina Glutamina Glicina Histidina Isoleucina Leucina Lisina Metionina Prolina Serina Treonina Triptofano Tirosina Valina Como podemos verificar, os aminoácidos que não possuem cadeias laterais com hidrogênio dissociável estão em grande parte na forma zwiteriônica em solução aquosa a pH fisiológico (pH 7). Contudo, é bom lembrar que mesmo nessas condições, pode ocorrer que algumas moléculas 1 Através da construção de uma curva de titulação 2 pKa é definido como sendo −log10Ka ENZIMAS: 2-13 ESTRUTURA permaneçam na configuração de vácuo. Existem diversos estudos que discutem esse tipo de comportamento nos aminoácidos e proteínas [9] [28] [29] [30]. 2.2.2. Proteínas Proteínas são moléculas compostas por um ou mais polipeptídios. Estes são polímeros lineares (não ramificados) de aminoácidos unidos por ligações peptídicas. As proteínas são sintetizadas dentro das células de um modo bem engenhoso. De maneira bem resumida, podemos descrever como é esse p r o c e s s o 1. P r i m e i r a m e n t e h á a l e i t u r a d e u m s e g m e n t o d e D N A , m o l é c u l a o n d e ficam codificadas todas as i n f o r ma ç õ e s genéticas dos seres vivos, e estabelecida a seqüência de bases de nucleotídeos do gene a ser expresso. Toda a informação é armazenada num tipo específico de molécula mensageira chamada mRNA. Essa fase de leitura do DNA e armazenamento de informações é conhecida como transcrição. Acontece então a fase de leitura da fita de mRNA e o início da síntese de polipeptídios. Em seres mais complexos, existe uma fase de preparação da molécula de mRNA antes que esta seja lida. Cada conjunto de três bases nitrogenadas do mRNA é capaz de identificar um aminoácido específico. À medida que ocorre essa leitura, uma molécula especial de transporte de aminoácidos conhecida por tRNA identifica esse conjunto de três bases e transporta o aminoácido correspondente, conectando-o através de uma ligação peptídica ao restante da cadeia. Essa fase de construção dos peptídeos é chamada de tradução. A conformação final de uma proteína é algo bem específico. Fazer uma previsão dessa estrutura com base apenas na seqüência de aminoácidos é ainda um problema muito complexo [32]. Uma proteína pode conter centenas e centenas de resíduos por cadeia polipeptídica, o que torna realmente muito difícil prever a conformação biologicamente ativa. Vamos olhar algumas características da ligação peptídica. O termo “backbone” de uma proteína consiste na repetição da seqüência −N−Cα−C−, onde N é o nitrogênio da amida, Cα é o carbono central dos aminoácidos e C é 1 Para maiores informações sobre síntese protéica, consultar as referências [27] e [31] CONCEITOS 2-14 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA o carbono da carbonila que está conectado ao N da amida do próximo aminoácido. Em princípio, no backbone, temos três ligações simples que possuem rotação livre, N−Cα, Cα−C e C−N (Figura 2.15 (a)), observando que existe uma ligação dupla na carbonila (C=O). Essa representação não está de acordo com os fatos pois é sabido que não há rotação em torno da ligação C−N. Existe uma forma ressonante em que a ligação entre C e N possui caráter de ligação dupla (C=N), deixando um elétron livre no oxigênio (Figura 2.15 (b)) que passa a fazer uma ligação simples com o carbono (C−O). Desse modo a ligação C=N não teria a possibilidade de rotacionar. Isso também não acontece de fato pois existiria uma separação de cargas muito grande nessa região. O que ocorre é um estado intermediário entre as duas formas ressonantes mencionadas acima (Figura 2.15 (c)) e isso traz conseqüências importantes no caráter estrutural. α C H C O (a) α C H C N α C N (b) O α C + α C δ δ+ N C (c) O H α C Figura 2.15: Estrutura eletrônica do backbone: ((a) e (b)) formas ressonantes e (c) forma intermediária Para tentar facilitar o entendimento do problema conformacional, são definidos alguns níveis de estrutura que são mostrados abaixo. Estes níveis dividem em categorias os tipos de organização estrutural das proteínas. • Estrutura Primária: É a seqüência de aminoácidos de uma proteína. Por exemplo: −Lys−Glu−Thr−Ala−Ala−Ala−Lys−Phe−; • Estrutura Secundária: Os aminoácidos adjacentes podem interagir e se conectar por ligações de hidrogênio, formando nas fitas de peptídeos um certo tipo bem característico de estrutura. Esses padrões são conhecidos por estruturas regulares e o conjunto dessas estruturas é a estrutura secundária de uma proteína. Os dois exemplos mais comum de estruturas regulares são a α-hélice e a folha β, que podem ser vistos em destaque na Figura 2.16 (b); ENZIMAS: • 2-15 ESTRUTURA Estrutura Terciária: A interação entre as estruturas regulares das cadeias polipeptídicas leva uma estrutura tridimensional mais bem definida. Esta estrutura é conhecida como estrutura terciária. Basicamente existem dois tipos de forma tridimensional que as proteínas podem assumir. As proteínas fibrosas, que tem um papel estrutural nas células, possuem as cadeias polipeptídicas organizadas paralelamente ao longo de um eixo, produzindo tanto longas fibras como largas folhas. Já as proteínas globulares, que são a grande maioria e desempenham diversas funções, são aquelas que se empacotam e tem formas aproximadamente esféricas. Essa forma pode ser entendida já que as proteínas globulares existem na maioria dos casos em solução aquosa. Exemplos de estrutura terciária de proteínas fibrosas e globulares podem ser vistos na Figura 2.16; • Estrutura Quaternária: Existem muitas proteínas que são constituídas por duas ou mais cadeias polipeptídicas, cadeias essas que já possuem uma estrutura terciária definida. A interação entre essas cadeias, também conhecidas como subunidades, é a estrutura quaternária. (a) (b) Figura 2.16: Exemplo de (a) proteína fibrosa (fibra de colágeno [33]) e (b) globular (flavodoxina [34]). A tonalidade indica o tipo de estrutura secundária. CONCEITOS 2-16 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA As interações envolvidas na conformação final das proteínas são de origem não covalente. Apenas a estrutura primária é definida pela ligação covalente entre os aminoácidos. As forças envolvidas na organização das demais estruturas são ligações de hidrogênio, interações hidrofóbicas, interações eletrostáticas e forças de van der Waals. Existem contudo alguns tipos de proteínas que estabilizam a estrutura terciária formando pontes dissulfeto entre os resíduos de cisteína, como é citado na seção 2.1.11. As proteínas possuem inúmeras funções diferentes, mas a grande maioria delas tem a função enzimática. 2.2.3. Enzimas Como vimos, enzimas são uma classe de proteínas que desempenham um papel fundamental no metabolismo. Elas possuem capacidade catalítica podendo acelerar muito a velocidade das reações bioquímicas e por isso são catalisadores biológicos. Em uma reação desse tipo, os reagentes, também conhecidos por substratos, interagem com a enzima transformando-se em produtos e assim liberando o catalisador para outra interação. Esta interação do substrato com a enzima ocorre numa região bem específica, conhecida como sítio ativo. O sítio ativo é uma porção relativamente pequena da enzima. Ele tem uma estrutura bem determinada que é normalmente um pouco mais rígida que o restante da molécula. Essa estrutura é uma característica fundamental para determinar o reconhecimento mútuo entre enzima e substratos. Podemos fazer uma analogia com um sistema de chave e fechadura, em que para funcionar corretamente deve existir compatibilidade. As enzimas se classificam essencialmente quanto ao tipo de reação que catalisam. Existem seis classes principais que depois se dividem em muitas outras. Uma enzima pode ser caracterizada basicamente por três fatores: poder catalítico, regulação e especificidade. ENZIMAS: • 2-17 ESTRUTURA Poder catalítico: é a relação entre as constantes de velocidade da reação catalisada e da reação não catalisada. Valores do poder catalítico podem ser números extremamente grandes, indicando que as enzimas podem amplificar muito as a velocidades das reações. • Regulação: é o conjunto dos diversos fatores que afetam o funcionamento enzimático. Esses fatores são muitos e variam desde a quantidade enzimática produzida até a interação das enzimas com moléculas ativadoras ou inibidoras de atividade. Dois fatores muito importantes na atividade são o pH do meio e a temperatura e serão discutidos a seguir. • Especificidade: representa a seletividade de uma enzima tanto em relação aos substratos com os quais ela interage quanto em relação a reação que ela catalisa. A estrutura do sítio ativo é uma peça fundamental na especificidade. 2.3. Enzimas: cinética Mesmo que uma reação química seja energeticamente favorável, ela pode não ocorrer ou ser extremamente lenta devido a uma alta barreira de energia de ativação, sendo assim cineticamente proibida. As enzimas diminuem essa barreira de energia fazendo com que essas reações se tornem viáveis e muitas vezes mais rápidas (Figura 2.17). 2.3.1. Cinética química Antes de começarmos o estudo de cinética de reações catalisadas por enzimas, é interessante analisar resumidamente os conceitos básicos de cinética química geral [35]. Consideremos a reação elementar e irreversível R → P Podemos expressar a velocidade v dessa reação como a quantidade de produtos (P) formados ou a quantidade de reagentes (R) consumidos por 2-18 CONCEITOS DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA unidade de tempo e relacionar a velocidade v com a concentração. Essa relação é determinada experimentalmente e é conhecida como lei de velocidade (Equação (2.3)). A constante de proporcionalidade k que conecta os dois membros da equação é chamada de constante de velocidade. v= d [ P] d [R ] =− = k[R ] dt dt (2.3) A ordem de um reagente numa reação é definida como o seu expoente na lei de velocidade. A ordem global da reação é dada pela soma das ordens de cada regente envolvido. Um outro conceito é o de molecularidade, que está relacionado com o número de moléculas de reagente que interagem entre si durante o processo. No exemplo acima temos uma reação unimolecular de primeira ordem. Podemos resolver (2.3) facilmente para este exemplo. A solução da equação é dada por [ R ] = [ R ]0 e − kt (2.4) com [R]0 sendo a concentração de R no instante t=0. Olhando para a equação (2.4), vemos que a concentração de R decai exponencialmente com o tempo a partir do valor inicial [R]0. Essa expressão pode ser linearizada, tomando a forma ln[ R ] = ln[ R ]0 − kt (2.5) Fazendo medidas de concentração ao logo do tempo, é possível traçar uma reta utilizando a expressão (2.5) e obter o valor experimental de k. Podemos construir um diagrama de energia livre para essa reação. O estado inicial é dado pela energia livre média dos reagentes e o estado final é definido pela energia livre média dos produtos. Para ocorrer a reação, parte das moléculas de reagente adquire uma certa quantidade de energia tornandose reativas e atingindo um estado intermediário conhecido como estado de transição ou complexo ativado. Esse estado corresponde ao máximo da curva de energia. O diagrama de energia livre é mostrado na Figura 2.17. Quando a molécula está no estado de transição, ela pode ou decair para formar produtos ENZIMAS: CINÉTICA 2-19 ou relaxar de volta para reagentes. A altura do pico de energia, ou seja, a diferença de energia entre o estado de transição e os reagentes, é conhecida como energia livre de ativação. Figura 2.17: Diagrama de energia livre Os catalisadores são substâncias que participam do processo de reação alterando seu mecanismo para que haja uma redução na altura da barreira de energia de ativação (Figura 2.17). Com isso temos um aumento significativo na velocidade da reação. Apesar de participarem do processo, os catalisadores não são consumidos, sendo então regenerados após cada ciclo. 2.3.2. Cinética de reações enzimáticas Vamos agora analisar a cinética de reações catalisadas por enzimas. Esse tipo de reação possui uma cinética muito particular. No caso anterior, a lei de velocidade da reação era uma reta. No caso da cinética enzimática, a lei de velocidade é mais complexa e sua expressão ainda não é bem conhecida. Contudo, o comportamento experimental da curva é bem estabelecido. CONCEITOS 2-20 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA Uma lei de velocidade para reações enzimáticas foi proposta por L. Michaelis e M. L. Menten [36]. Esta lei era consistente com os resultados experimentais e era baseada na formação de um complexo ativado entre enzima e substrato. k1 → k2 E + S ← ES → E+P k−1 Para se chegar à equação de Michaelis-Menten, é necessário assumir duas condições. A primeira é a hipótese de estado estacionário. Essa proposição assume que a formação e a dissociação do complexo ativado ES possuem velocidades equivalentes, de forma que d [ ES] =0 dt (2.6) A segunda é a hipótese de velocidade inicial. Esta simplificação ignora a reação de formação do complexo ativado ES a partir de E+P. Isso se justifica já que no início, a concentração de P é muito pequena e a reação de volta é proporcional a esta concentração. É interessante definir a constante Km, que é conhecida por constante de Michaelis. Ela é definida como Km = ( k −1 + k 2) k1 (2.7) Utilizando os conceitos acima, é muito simples chegar a equação de Michaelis-Menten [27], que é dada pela expressão v= Vmax [S] K m + [S] (2.8) em que Vmax é definido como sendo Vmax = k 2 ([ E] + [ ES]) = k 2 [ E total ] (2.9) Vmax pode ser interpretada como a velocidade máxima que uma reação enzimática pode atingir. Isso acontece quando a concentração de substrato é grande o suficiente para saturar todas as moléculas de enzimas do sistema. ENZIMAS: 2-21 CINÉTICA Podemos interpretar a constante Km de uma forma mais operacional. Ela pode ser entendida como a concentração de substrato [S] em que a velocidade da reação é a metade da velocidade máxima, ou seja quando Vmax 2 (2.10) [S] = K m (2.11) v= então Isso pode ser verificado substituindo (2.10) na equação (2.8). A curva descrita pela equação (2.8) é uma hipérbole e se ajusta muito bem aos resultados experimentais. No entanto, para se determinar os parâmetros experimentais Km e Vmax, é interessante realizar a linearização dessa equação. Existem diversas formas de se efetuar essa operação. Uma dessas maneiras é a linearização de Lineweaver-Burk [37] (Figura 2.18). Sua expressão pode ser facilmente obtida tomando o inverso dos dois membros de (2.8) 1 K m + [S] K m 1 1 = = + v Vmax [S] Vmax [S] Vmax Figura 2.18: Gráfico de Lineweaver-Burk (2.12) CONCEITOS 2-22 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA Também é usual definir outra constante, kcat, chamada de número de turnover. Essa constante representa uma medida da atividade catalítica máxima de uma enzima e por isso também é chamada de atividade molecular. Ela é definida como sendo o número de moléculas de substrato convertidas em produtos por molécula de enzima por unidade de tempo quando a enzima está saturada com substrato. Ela pode ser facilmente obtida no caso em que a equação de Michaelis-Menten é valida. Quando temos saturação de substrato, pelas equações (2.8) e (2.9), temos (2.13) v = Vmax = k 2 [ E total ] k2 = Vmax = kcat [ E total ] (2.14) Contudo, sob condições fisiológicas, as concentrações de substrato são muito baixas e dificilmente existe a saturação da enzima. Para se obter uma medida da atividade catalítica enzimática nessas condições, é utilizada a razão k cat Km Existem inúmeros fatores que podem alterar a velocidade de uma reação enzimática. Como visto anteriormente, o conjunto desses fatores formam a regulação da enzima. Dois fatores muito importantes que alteram a atividade são o pH e a temperatura. A atividade enzimática e o reconhecimento de substratos são extremamente dependentes do pH do meio na maioria dos casos. Como já vimos, os aminoácidos são sensíveis a variações de pH e isso é determinante na estrutura final das proteínas. Qualquer modificação estrutural, principalmente no sítio ativo pode alterar o funcionamento das enzimas. Outra questão é que até mesmo os substratos podem possuir grupos ionizáveis e uma forma iônica pode ter preferência sobre a outra na interação com a enzima. Em geral as enzimas possuem atividade somente em um intervalo específico de pH, possuindo ainda um pH ideal onde sua atividade é máxima (Figura 2.19). ENZIMAS: 2-23 CINÉTICA Figura 2.19: Efeito do pH na atividade enzimática [27] A temperatura possui dois efeitos principais sobre as reações catalisadas por enzimas. O primeiro é o aumento natural da velocidade das reações com a e l e v a ç ã o d a t e m p e r a t u r a . É e m p i r i c a me n t e c o n h e c i d o q u e c a d a a u m e n t o d e 10ºC na temperatura leva a uma duplicação da velocidade da reação [35]. O segundo efeito é que quando é atingida uma determinada temperatura, a proteína se desnatura, ou seja, perde sua estrutura nativa e isso resulta em um decréscimo de atividade. A comparação entre a estrutura nativa e a estrutura desnaturada de uma proteína é ilustrada na Figura 2.20. Os efeitos da temperatura na atividade enzimática podem ser vistos na Figura 2.21. (a) (b) Figura 2.20: Formas (a) nativa e (b) desnaturada de uma proteína [38] CONCEITOS 2-24 DE BIOQUÍMICA E QUÍMICA ORGÂNICA Figura 2.21: Efeito da temperatura na atividade enzimática [27] 2.4. Inibidores enzimáticos Existem diversos tipos de moléculas que podem alterar a atividade das enzimas e a cinética de suas reações. Inibidores são compostos que diminuem a atividade enzimática, enquanto que os ativadores a aumentam. Nesta seção iremos apresentar os efeitos dos inibidores nas reações catalisadas por enzimas. Inibidores enzimáticos são moléculas muito estudadas nos dias de hoje, principalmente por possuírem um potencial muito grande de aplicação como fármacos. A indústria farmacêutica investe muito na descoberta e no desenvolvimento de novas moléculas com propriedades inibitórias. Os inibidores enzimáticos podem ser separados em duas classes de acordo com a natureza da interação destes com a enzima. Os inibidores reversíveis são aqueles que formam exclusivamente ligações de caráter nãocovalente (ligações de hidrogênio, por exemplo) enquanto que os inibidores irreversíveis possuem, além desse tipo de ligação, uma associação covalente com a enzima. Os inibidores reversíveis ainda podem ser divididos em competitivos ou não-competitivos. Os competitivos são aqueles que competem com o substrato ENZIMAS: 2-25 CINÉTICA pelo mesmo sítio ativo (chamado de sítio de ligação S). Dessa forma, existe uma dependência da afinidade da enzima pelo substrato com a concentração deste. Temos então que k1 → k2 E + S ← ES → E+P k3 → E + I ← EI k− 3 k−1 Como tanto substrato como inibidor interagem no mesmo sítio, não é p o s s í v e l a f o r m a ç ã o d o c o m p l e x o I E S . U ma o u t r a c o n s e q ü ê n c i a d e s s e f a t o é que ambos devem ter uma grande similaridade estrutural. Podemos também obter uma expressão para a lei de velocidade incorporando o efeito do inibidor ao que foi feito anteriormente. Temos então que v= Vmax [S] , [I] + [S] K m 1 + K I KI = (2.15) k− 3 k3 Notamos que na ausência de inibidor, a equação (2.15) se transforma em (2.8). O termo adicional que multiplica a constante Km no denominador faz com que o tempo para se atingir Vmax (que nesse caso não é alterado) seja maior e pode ser considerado um valor aparente de Km maior que o real. Os outros tipos inibidores reversíveis são os não-competitivos. Estes inibidores atuam em sítios diferentes do sítio S dos substratos, podendo então interagir tanto com a enzima E como com o complexo ES. As reações possíveis para o inibidor são então k3 → E + I ← EI k− 3 ' k3 → ES + I ← IES , k −' 3 KI = k− 3 k3 K I' = k −' 3 k3' A inibição não-competitiva pode ser pura ou mista. Na inibição pura, a ligação do inibidor à enzima não afeta a ligação do substrato, enquanto que na mista, a ligação do inibidor influencia a ligação do substrato na enzima. No c a s o p u r o t e m o s q u e K I' = K I e a l e i d e v e l o c i d a d e é 2-26 CONCEITOS DE BIOQUÍMICA v= E QUÍMICA ORGÂNICA Vmax [S] [I] 1 + ( K m + [S]) K I (2.16) N o c a s o m i s t o , K I' ≠ K I . e a l e i d e v e l o c i d a d e t e m a e x p r e s s ã o v= Vmax [S] [ I ] [I] K m + 1 + ' [S] 1 + KI KI (2.17) Uma coisa que é interessante notar é que no caso puro, apenas Vmax é alterado, não havendo modificação no valor de Km. Isso não ocorre no caso misto, em que tanto Km como Vmax são modificados em relação ao valor real, ou seja, existe um valor aparente para essas constantes. Podemos também o b s e r v a r q u e s e K I' = K I e m ( 2 . 1 7 ) , e s t a s e t r a n s f o r m a n a e q u a ç ã o ( 2 . 1 6 ) . Existem ainda os inibidores irreversíveis, que realizam uma ligação covalente estável com a enzima, inutilizando-a. O efeito global desse tipo de inibição é portanto uma gradual diminuição na quantidade de enzima ativa. O padrão para a velocidade da reação observado é semelhante ao caso de inibição reversível não-competitiva pura, mas com uma diminuição da atividade ao longo do tempo.