Histórias Cruzadas: percursos femininos de leitura das alunas da

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Histórias Cruzadas: percursos femininos de leitura das alunas da EJA
Leidinalva Amorim Santana das Mercês
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Resumo
Este texto apresenta as reflexões iniciais sobre o estudo das práticas de leitura de estudantes afrodescendentes da Educação de Jovens e Adultos – EJA, de uma escola pública na cidade de Salvador,
levando em conta as condições sócio-econômicas adversas em que estas mulheres têm estado inseridas. A
importância da leitura para uma sociedade letrada, como o Brasil, é incontestável, embora, participar de
grupos de leitura ou comprar livros periodicamente, seja aqui, privilégio de poucos. A escola tem a
função de preparar os educandos para o mundo, sendo facilitadora da aquisição da leitura e da escrita,
mas, no nosso país, particularmente, são muitos os problemas que invalidam esta perspectiva educacional.
Nesse contexto, as diferenças que caracterizam a pluralidade cultural, são desconsideradas, dando lugar a
uma situação de extrema desigualdade. Buscando compreender os percursos de leitura e tentando
observar a influência que esta prática tem exercido na formação das identidades das mulheres da EJA, a
metodologia desta pesquisa será centrada em uma análise qualitativa, na vertente (auto) biográfica. Para o
campo empírico, será organizado um grupo focal, pois se pretende trabalhar o tema da leitura, a partir de
uma rede de interações, oportunizando trocas em um processo participativo. Para a fundamentação teórica
serão utilizadas as idéias de Paulo Freire, Josso, Chartier, Bourdieu, dentre outros estudiosos.
Palavras-chave: Práticas Culturais de Leitura – Desigualdade – Alunas da EJA.
Abstract
The article presents some initial reflections regarding the study of the reading practice of Afro-Brazilian
students who attend EJA (Young adult and Adult Education) classes in public schools in Salvador. It
takes into account the adverse socio-economical situation in which these women are included. Reading is
of utmost importance in literate societies such as the Brazilian society. However, taking part in reading
groups and buying books is a privilege of a few chosen ones. One of the school’s role is to prepare
students for the world, serving as facilitator in the acquisition of reading and writing skills. In our
country, nevertheless, there are too many problems which make this role inexistent. In this context, the
differences which characterize cultural plurality are not considered giving place to a situation of extreme
inequality. The methodology used in this research is of a qualitative autobiographical nature. In addition,
a focus group will be organized in order to work with reading from an interactional network perspective,
thus giving the participants, the opportunity to exchange ideas in a participative process. Paulo Freire’s,
Josso’s, Chartier’s and Bourdieu’s ideas will serve as theoretical background for this paper.
Keywords: Reading cultural practices – Inequality - EJA female students.
Problematica
Analisar a realidade educacional dos alunos é tarefa relevante na vida de um
educador. Durante muito tempo, uma grande parte da população brasileira esteve
excluída do sistema de ensino. O alto índice de analfabetismo sempre foi motivo de
vergonha. Muitos projetos tentaram resolver este problema. No decorrer da nossa
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história, homens e mulheres tentaram vencer as dificuldades para fazer parte do mundo
letrado, buscando adquirir o domínio da leitura e da escrita.
A importância da leitura para uma sociedade letrada, como a brasileira, é
incontestável, embora, participar de grupos de leitura ou comprar livros periodicamente,
seja aqui, privilégio de poucos. A escola tem a função de preparar os educandos para o
mundo, sendo facilitadora do letramento, mas no nosso país, são muitos os problemas
que invalidam esta perspectiva educacional. Assim, as diferenças que caracterizam a
pluralidade cultural, são desconsideradas, dando lugar a uma situação de extrema
desigualdade.
As desigualdades sociais, no Brasil, interferem no desenvolvimento da educação
escolar e, por conseguinte, interfere nas práticas culturais de leitura. Limites são
impostos e um discurso hegemônico parece silenciar gerações diferentes de uma
população desfavorecida sócio-economicamente. A história, durante muito tempo,
retratou a mulher como submissa, “mãe e esposa abnegada, para quem o lar era o altar
no qual se depositava sua esperança de felicidade (...), sendo o casamento sua principal
aspiração” (ALMEIDA, 1998, p.18). Vivendo sob limites severos, as “mulheres,
guardadas zelosamente por pais, irmãos e maridos, mantidas intencionalmente na
ignorância, não poderiam, senão por meio da educação, ter condições de comandar suas
vidas e inserir-se no ainda limitado espaço público” (id, ibid,) Como relata Almeida
(ibid), as moças que tivessem boas condições econômicas, poderiam se garantir, por
meio do casamento ou da fortuna familiar. Mas o que acontecia às moças que nasciam
em famílias de classes sociais menos favorecidas? Almeida responde a este
questionamento, afirmando que:
Para as mulheres do povo, a ausência de instrução e o trabalho pela
sobrevivência sempre foram uma dura realidade. O mesmo pode ser dito
a respeito da raça e, para as mulheres negras, o estigma da escravidão
perdurou por muito tempo, só lhes restando os trabalhos de nível inferior
e a total ausência de instrução. (ALMEIDA, 1998, p. 35)
A questão da desigualdade entre classes sociais, gênero e raça, dentre outros
tipos, provocam a produção de mecanismos excludentes, que levam à discriminação.
Fazendo um recorte de gênero, destacando a atuação e a construção da identidade da
mulher negra na formação do povo brasileiro, algumas características/conseqüências
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desta problemática podem ser levantadas: a falta de escolarização; o acesso tardio à
escola; apropriação tardia da leitura e da escrita; a posse desigual dos livros, em
comparação às pessoas de outros extratos sociais.
Questões norteadoras
Considerando os aspectos aqui relacionados, alguns questionamentos podem ser
feitos: como foram construídas as práticas de leitura das mulheres da Educação de
Jovens e Adultos – EJA, em condições sócio-econômico-culturais tão adversas? Como
estas práticas influenciaram a vida pessoal e profissional destas mulheres? Quais são as
formas de aprendizagem da leitura no contexto familiar, escolar, entre outros? Como se
deu a recepção delas em relação aos textos e que usos elas fizeram das leituras? Que
imagens e representações estas mulheres têm de leitura e leitor?
Objetivos
Os questionamentos acima pretendem nortear este trabalho de pesquisa, que terá
como base a Abordagem (Auto) biográfica, que trabalha com as histórias de vida como
prática reflexiva. Pretende-se fazer um inventário das histórias, buscando-se analisar
como se dá o cruzamento entre recepção, leitor, texto e autor, procurando-se descrever
como as histórias de leitura podem ser influenciadas pelo lugar que cada um ocupa na
sociedade e pelas condições materiais de inserção no mundo letrado. Este trabalho de
pesquisa, na realidade, intenta questionar as estudantes, a partir de atividades com textos
literários, visto que a literatura é capaz de afetar o leitor, emocional e cognitivamente,
além de proporcionar novas experiências de vida e/ou fazer relembrar antigas
experiências.
Aportes Teóricos
São muitos os trabalhos que entrelaçam práticas de leitura, histórias de vida e
condições sócio-culturais.
A leitura é um fenômeno social, presente em todos os
grupos, mesmo nas comunidades orais, uma vez que o ato de ler não constitui apenas a
mera decodificação de sinais gráficos, mas a interpretação e a compreensão do mundo
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interior e também exterior. Concebendo-se a leitura desta maneira, o conceito de texto é
ampliado, deixando de ser delimitado apenas como documento escrito. O domínio do
código lingüístico escrito, historicamente, tem possibilitado acesso aos mais variados
textos, informativos e literários.
O sujeito que sabe ler um texto escrito é capaz de reconhecer e compreender as
realizações humanas registradas através da escrita, ainda que esses acontecimentos
tenham ocorrido há milhares de anos. A cultura e a ciência de um povo se mostram de
forma progressiva, assim, ler pode significar participar mais ativa e criticamente da
comunicação humana. Mas, o que acontece ao indivíduo que não detém o controle da
leitura, em uma sociedade que privilegia a leitura do texto escrito, como a brasileira?
Silva (1987) argumenta, asseverando que “ao analfabeto, em outras palavras,
fica vedada a possibilidade de fruição dos bens culturais que compõem o patrimônio
literário da sociedade”. De fato, o analfabeto fica impossibilitado de usufruir os
conteúdos científicos e culturais impressos em documentos, a não ser que dependa de
pessoas que saibam ler textos escritos. Entretanto, é correto afirmar que os analfabetos
não sabem ler? Paulo Freire afirma que a leitura de mundo antecede a leitura da palavra.
No trecho a seguir, Freire (1986) demonstra a sua opinião:
Toda leitura da palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda
leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal
maneira que ‘ler mundo’ e ‘ler palavra’ se constituam um movimento em
que não há ruptura, em que você vai e volta. E ‘ler mundo’ e “ler
palavra”, no fundo, para mim, implicam “reescrever” o mundo.
Reescrever com aspas, quer dizer, transformá-lo. (FREIRE, 1986:15)
Paulo Freire fundamenta o conceito mais amplo de texto, estabelecendo a
compreensão crítica do ato de ler, que não deve ser limitada à decodificação da
linguagem escrita, mostrando que, desde a infância, todas as pessoas são leitores em
formação, mesmo aqueles que não são alfabetizados. Aprender a ler e a escrever é, antes
de qualquer coisa, aprender a ler o mundo, desvendando a relação existente entre
realidade e linguagem. A leitura crítica, assim, é concebida como a relação entre o texto
que está sendo lido e as experiências de vida do leitor, em que há a contínua atribuição
de significados. Desta maneira, o ambiente onde se vive; os acontecimentos da infância,
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juventude e velhice; os costumes, as crenças, os gostos, os receios, os valores, tudo
constitui o contexto que influencia diretamente o ato de ler.
Chartier (2001) procura examinar as condições possíveis para uma história das
práticas de leitura. Sua análise parte das aquisições e também dos limites do que tem
sido a história do impresso, até hoje. Como em outros estudos sobre a historia do livro,
Chartier procura avaliar a produção impressa e as medições de sua posse desigual por
parte dos diferentes extratos sociais.
Da relação de diferença entre as classes sociais é produzido um quadro de
desigualdade, que influencia diretamente a educação escolar. Bourdieu (1998) propõe
uma discussão sobre a reprodução e legitimação das desigualdades sociais no sistema
escolar. Bourdieu (ibid.) chama a atenção de que os alunos são atores socialmente
constituídos e trazem, em larga medida incorporada, uma bagagem social e cultural
diferenciada. A bagagem transmitida pela família inclui certos componentes que passam
a fazer parte da subjetividade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural na sua forma
"incorporada".
Freire (2005), para falar da importância do ato de ler, retoma momentos
fundamentais de sua prática, guardados na memória: experiências da infância,
adolescência e mocidade. Como Freire, este projeto pretende utilizar as histórias de
vida, fazendo um recorte específico para as histórias de leitura das estudantes da EJA.
Desta forma, a pesquisa busca suporte nas idéias de Josso (2004), que a partir de
reflexões teóricas e metodológicas, utiliza as histórias de vida para desenvolver uma
tomada de consciência de variadas experiências vividas por cada um(a). Nessa
perspectiva, o reconhecimento dos saberes adquiridos das estudantes servirá de base
para um inventário que procurará descrever como estas mulheres têm construído suas
identidades.
Bibliografia Básica
Além dos autores citados acima, uma bibliografia básica está sendo reunida.
Alguns nomes podem ser, neste momento, destacados: a) Almeida (1998); Del Priore
(1997), que discutem a condição feminina, na perspectiva do nosso país; b) Silva
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(2001), que apresenta experiências de leitores num contexto escolar; c) Lontra (2006),
que apresenta a história de seus alunos leitores; d) Leite (2005), que relata as memórias
de leitura e escritas femininas na Bahia de 1870 a 1920; e) Lacerda (2003), pois retrata a
histórias de leitura de mulheres; f) Sanches Neto (2004), que conta da sua relação com a
biblioteca; g) Manguel (1997), que tem um trabalho riquíssimo sobre a história da
leitura.
O Percurso Metodológico
A metodologia será centrada em uma análise qualitativa, privilegiando a vertente
(auto) biográfica. Para a coleta de dados serão utilizados como recursos metodológicos:
uma pesquisa bibliográfica, realizada a partir da identificação, localização e compilação
dos dados escritos em livros (PÁDUA, apud CARVALHO,1989, p.154); uma
“observação sistemática e participante”, visto que um dos objetivos desta pesquisa é
“observar uma parte da realidade, natural ou social, a partir de uma proposta de trabalho
e das próprias relações que se estabelecem entre os fatos reais” (id.,ibid., p.157).
Para realização das atividades, será utilizado como instrumento de pesquisa um
grupo focal, pois busca-se “privilegiar uma rede de interações, (...) que embora focado
em um tema, oferece a oportunidade de trocas (...) em um processo participativo flexível
entre os participantes” (GATTI, 2005). Serão coletados dados a partir de atividades
propostas com textos literários, que possam provocar novas experiências de vida e/ou
fazer rememorar antigas experiências de leitura, fomentando a livre participação. Serão
anotadas as atitudes e as falas das alunas em um diário de pesquisa e/ou serão feitas
gravações.
Etapas da Pesquisa
Neste momento inicial, a pesquisa pode ser dividida em três etapas:
1) leitura bibliográfica: aporte teórico e metodológico e de textos literários para
subsidiar o trabalho empírico;
2) definição dos critérios para seleção dos sujeitos: três gerações de leitoras;
3) planejamento do trabalho com o grupo focal:
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definição do grupo focal;
seleção do acervo literário;
definição de procedimentos de leitura com os textos literários como
estímulo à refacção da memória, o dialogo entre gerações, o cruzamento
dos diferentes saberes e experiências;
definição dos registros da observação (gravador, áudio, fotos...) e outras
formas de intervenção (perguntas, provocações, entrevistas coletivas,
visitas às residências...)
Referências
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e Educação: a paixão pelo possível.São Paulo:
UNESP, 1998.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
CHARTIER, Roger (org.). Práticas de leitura. Trad. Cristiane Nascimento. São Paulo:
Estação Liberdade, 20001.
FREIRE, Paulo ; BETTO, Frei. Essa Escola Chamada Vida: depoimentos ao repórter
Ricardo Kotscho. 4a ed. São Paulo: Ática, 1986.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 46ª ed.
São Paulo: Cortez, 2005, p.11-21.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas.
Brasília: Líber Livro: 2005.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
LACERDA, Lilian de. Álbum de Leitura. São Paulo: UNESP, 2003.
LEITE. Márcia Maria da Silva Barreiros. Entre a tinta e o papel: memórias de leitura e
escritas femininas na Bahia (1870-1920). Salvador: Quarteto, 2005.
LONTRA, Hilda Orquídea H.(org.). Histórias de leitores. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2006.
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MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. O trabalho monográfico como iniciação à
pesquisa científica. In: CARVALHO, Maria Cecília M. de. (org.) Construindo o saber.
2a ed. Campinas: Papirus, 1989.
SANCHES Neto, Miguel. Herdando uma biblioteca. Rio de Janeiro: Record, 2004.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova
pedagogia da leitura. 4a ed. São Paulo: Cortez, 1987.
SILVA. Lílian Lopes Martin da. Entre leitores: alunos, professores. Campinas: Komedi,
2001.
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