A FUNÇÃO EDUCATIVA DE CONTAR HISTÓRIA

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A FUNÇÃO EDUCATIVA DE CONTAR HISTÓRIA
Bertulino José de Souza123
Maria da Conceição Xavier de Almeida, Orientadora
Wani Fernandes Pereira, Co-Orientadora
O texto trata do relato de uma experiência pedagógica realizada na cidade de
Caicó/RN, no contexto de um projeto de extensão e do conteúdo da disciplina
Antropologia, ministrada no ano de 1999. Foi a oportunidade de vivenciar uma
estratégia educativa, utilizando como ferramenta cognitiva a contação de histórias de
vida, tendo por atores os alunos da UFRN e os idosos, do Clube Senhora Sant’Ana
daquela cidade. Vivência essa que será descrita detalhadamente ao final.
Para dar conta dessa experiência, entendendo-a como um ato pedagógico, capaz de
exercitar uma noção de educação transformadora, nos ancoramos em algumas das idéias dos
seguintes autores: PAULO FREIRE, EDGAR MORIN e CLARISSA PINKOLA ESTES. São
eles que nos oferecem indicadores para refletir sobre a educação enquanto processo, e a forma
com que este pode ser introjetado pelo sujeito, seja no seu cotidiano, seja no âmbito do ensino
básico.
Entendemos que educar, demanda esforços de um coletivo que não está circunscrito
somente ao âmbito da educação formal, na transmissão de conteúdos. Requer compreender e
intervir numa realidade sócio-econômica e política que as vezes mascarada, dá a falsa
impressão de normalidade. Para PAULO FREIRE implica em, se os homens são os
produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os
condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens.
(1975:23)
Com esse mote, nossa análise da obra Freireana, está centrada em Pedagogia do
oprimido. Essa escolha se justifica pelo seu papel de vanguarda da história da educação
brasileira na segunda metade do século XX. Trata-se de um ensaio marcado pelas condições
específicas impostas a sociedade brasileira, durante o regime militar que culminou com o
golpe de 1964. Tais condições reforçam os antagonismos político-econômicos no país,
exacerbando a alienação da sociedade em geral e das classes populares em particular.
Baseado nisso, consideramos a conscientização e a transformação das condições
de vida, categorias de um processo de libertação de uma consciência que reconheça a
influência exercida pelo dominador. Assim, para PAULO FREIRE(1975) o processo de
conscientização é o processo de libertação do sujeito. Para isto, se faz necessário uma
aprendizagem mediatizada, ou seja, uma aprendizagem em que possa ser acolhida a
partir de condições mais humanas, pautadas pelo respeito e dignidade pelo mundo
circundante, que é ao mesmo tempo o das palavras, da subjetividade política através do
descortinar das possibilidades proporcionadas pelo exercício da libertação e dos signos,
revigorando princípios de uma educação que não se reduz à mera capacitação técnica,
mas influi o esforço do homem em se decifrar, conhecer-se a si próprio e o mundo tendo,
portanto, como principal meta, a superação e emancipação do indivíduo enquanto ser
social e, por conseguinte, ser político. Espera – se que com isso, sejam ampliadas e
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Mestrando do CCSA/CCS/UFRN.
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diversificadas as relações sociais acentuando uma melhoria das suas condições gerais de
vida e que possam ser traduzíveis através de uma experiência estética que ressoe na
formação do indivíduo.
PAULO FREIRE analisa a relação opressor-oprimido, realizando um exercício de
pensar o homem, de forma pedagógico-antropológica, recuperando e criticando várias
interfaces do processo educacional chamando a atenção para a restauração da
intersubjetividade, a generosidade autêntica, humanista. Adverte ainda, que a pedagogia
partindo dos interesses egoístas dos opressores, faz dos oprimidos objetos de seu
humanitarismo, instrumento de desumanização, assim pensar o homem numa relação
educador-educando, significa compreender um processo que adquire a configuração de
reivindicação. Atitude que implica em uma mudança de postura e enfrentamento pela qual as
classes populares devem adotar, para transformar as estruturas sócio-políticas incorporadas
pelo modelo de sustentação econômico. Modelo que tem associado às suas metas
educacionais diretrizes específicas de uma intencionalidade embutida nas diversas práticas
sociais, sejam elas de caráter doutrinário ou disciplinador (FREIRE, 1975).
A provocação de Paulo Freire adquire contornos mais precisos de
redimensionamento das práticas educativas, e, por conseguinte políticas ao nos convidar
à mobilização, na medida que tomamos consciência das deficiências da formação
individual, perceberemos talvez, as lacunas do convívio coletivo. Tais deficiências são
alimentadas por um elemento bastante presente no cotidiano o “medo da liberdade”, ou
seja, o que se fazer com a liberdade. Isso representa, sobretudo, a preparação para o
convívio coletivo e a adoção de responsabilidades decorrentes dessa relação.
Portanto, cumpre entender como se articulam os diversos segmentos que
compõem o universo educacional e também como estes adquirem contornos políticos de
requintada elaboração, talvez por ser a educação através do espaço escolar, mais que a
convergência de conteúdos disciplinares, circunscrevendo-se no âmbito de um ato
político que ao construir–se coletivamente realimenta aspirações e projetos individuais.
A educação precisa ser um investimento rigoroso que busque a eficácia de um projeto
mais duradouro de homem e sociedade, requisitando, necessariamente, o diálogo com as
mais diversas interfaces da atuação e reflexão humanas. Acreditamos que somente
assim, um projeto libertário poderá ser cumprido, onde a educação poderá ser discutida
na essência da problemática. O que ainda não se pode vislumbrar no contexto da
história e educação Brasileira. Ao invés de problematizar-se acerca de um projeto
político-pedagógico transformador, insiste-se em “administrar” tal questão através de
decretos e leis que na prática, mostram-se cada vez mais ineficazes. Alguns deles ainda
refletem no cotidiano nacional, mais precisamente circunscritos à História da Educação
do que realmente a uma prática política libertária. A exemplo disso podemos citar, O
Movimento dos Pioneiros, A Lei de Diretrizes e Bases 58/60, a 5692/71 e, as recentes, Lei
de Diretrizes e Bases da Educação/88, assim como os PCNs – Parâmetros Curriculares
Nacionais124 implantados nacionalmente e que buscam adequar a diversidade
educacional brasileira aos seus eixos norteadores, a saber: pluralidade cultural, meio
ambiente, saúde, ética e sexualidade. Temas que são tratados como transversais e que
buscam o redimensionamento das práticas educacionais nos mais diferentes espaços
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Os PCNs foram implantados no Estado do Rio Grande do Norte em 1998 pela Secretaria Estadual de
Educação Cultura e Desporto e atendem às disposições previstas pelo projeto a nível nacional através do
documento oficial produzido pela equipe do MEC – Ministério da Educação e Cultura – Brasília/ DF
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educacionais brasileiros. Atitude provocativa que encontrou certa ressonância na
sociedade embora, particularmente restrita aos meios educacionais oficiais.
E assim, por se tratar da discussão em torno da educação, competências, categoria
problematizada por Luis Carlos Menezes como escrever uma carta, realizar cálculos
elementares e resolver questões domésticas, são habilidades que fazem parte de uma
estratégia que pode recuperar o papel da conscientização, apontando um caminho que
descortine um processo educacional que fortaleça uma relação mais integradora com
elementos do cotidiano do sujeito. Atitude que supõe a emergência de um diálogo com os
saberes instituídos de forma crítica e libertadora. Encontramos assim, no diálogo, a
possibilidade de ultrapassar o imediatamente vivido, incorporando uma visão mais
totalizadora a partir do contexto porta–vozes e o recrutamento de saberes distintos. É a arte do
diálogo que Paulo Freire valida como uma estratégia para se respeitar o saberes dos outros.
Para EDGAR MORIN significa a valorização dos saberes da tradição em permanente diálogo
com a cultura científica e a cultura humanista. Os saberes da tradição assim, adquirem
relevância e podem intervir no espaço da escola enquanto instituição, recuperando e
realimentando o cotidiano do sujeito, permitindo que este possa ser transformado,
possibilitando talvez, uma reforma da educação e do homem.
Para MORIN (1997;1998) existe uma lacuna nos ensinamentos postos para o 3º
milênio que precisam ser revistas. Essa reforma, que é ao mesmo tempo um projeto e uma
utopia, é defendida pelo autor e tem na noção de Complexidade a perspectiva de revigorar a
subjetividade, a criatividade, o imaginário e a emoção. Aposta na configuração de um
contexto bioantropológico que recupera o homem imaginário/imaginante através de mitos,
arquétipos e histórias. Esse exercício pode partir do ensino da poesia como atitude integradora
do ensino nas escolas.
O autor entende que a relação ensino-aprendizado está, a cada momento, mais
fragilizada e esta fragilidade pode ser analisada sob os mais diferentes aspectos: pela forma de
educar, muitas vezes baseada em atitudes nitidamente superadas; pelos conteúdos que
envolvem as disciplinas escolares, invariavelmente com um alcance pouco eficaz e
desvinculado da realidade do educando; pela formação dos educadores, muitos deles
desestimulados com suas carreiras e na sua grande maioria, pouco atualizados com a
vanguarda educacional nacional e internacional que se preocupa em fortalecer as condições de
aprendizado; seja pela noção de educação que tem educadores, educandos e instituições num
contexto social mais ampliado e também de um projeto humanista melhor definido, que
contemple não somente as necessidades da cognição, mas também que alimente a alma e se
transforme numa prática superadora.
Como já foi dito, reconhecemos que a educação não deve estar circunscrita apenas ao
ambiente escolar e que os conteúdos que são por ela ministrados, não devem fazer parte de
conteúdos rígidos. Ao contrário, esses conteúdos representam um conjunto de eventos,
experiências e histórias de vida que fortificarão e sustentarão o educando, para que ele possa
desenvolver-se com maior segurança e responsabilidade enquanto sujeito de sua própria
história.
Nossa argumentação, associada a um diálogo com FREIRE e MORIN, passa a ser
aqui implementado com a psicanalista junguiana CLARISSA PINKOLA ESTÉS.
Segundo a hipótese da autora, o ato de contar história cumpre três funções importantes
na constituição do sujeito e da socialidade, são elas: a) transformar as histórias de cada
indivíduo em histórias coletivas, b) torna-las eternas, uma vez que elas sobrevivem para
além da vida dos grupos que contam, c) criar laços de solidariedade que tecem redes
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conviviais mais fecundas e duradouras. Com base nestas três funções, o projeto procura
discutir a possibilidade de um diálogo pedagógico que leve em conta a história de cada
sujeito. Essa investigação parte de nossa experiência enquanto professor universitário e
na coordenação de projeto de extensão. Estavam envolvidos nesse contexto e processo o
grupo de idosas do Clube do Idoso Senhora Sant’Ana , os alunos da graduação em
História da disciplina Antropologia e três outros professores universitários que atuaram
como colaboradores institucionais. A nós coube o papel de facilitador desses diversos
atores-contadores. Esta experiência ocorreu no Campus de Caicó/RN, no ano de 1999, e
tratou de registrar as histórias de vida. Tentamos com essa estratégia refletir sobre o
formato e a condução da educação nos espaços institucionais, podendo isso ocorrer
desde a educação básica até ensino superior. Esse momento representou uma tentativa
de superação do modelo educacional vigente que permanece ancorado no paradigma
cientificista e fragmentário que insiste em desqualificar competências e os saberes da
tradição. Foi o que constatamos a partir dos relatos de história de vida compartilhados.
A estratégia utilizada serviu também para que emergissem o que EDGAR
MORIN reconhece como “reservas antropológicas” próprias do homo sapiens demens
como citada em Amor, poesia e sabedoria(1998:7), “manifestar uma afetividade extrema,
convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; carregar consigo
uma fonte permanente de delírio; em crer na virtude de sacrifícios sanguinolentos, a dar
corpo, existência e poder a mitos e deuses de sua imaginação”. Esse entendimento
converge para as ilustrações das narrativas interpretadas por CLARISSA PINKOLA
ESTÉS(1992; 1996; 1998). São essas reservas que alimentam os mananciais de histórias,
mitos, ritos e arquétipos. É a partir disso que consideramos possível romper e produzir
rearticulações que comprometam a estrutura atual de relações estagnadas e ineficazes.
A acreditar nos mitos e no imaginário como “uma profunda realidade humana”. A
pensar a existência humana como uma aposta na superação das limitações pessoais.
Com esse itinerário, que assemelha-se ao mote do poeta Antônio Machado “o caminho
se faz ao caminhar”, foi constituída uma situação acadêmica que nos permitiu abordar fatos
do cotidiano das pessoas ao mesmo tempo que procurávamos investir numa forma de perceber
como se opera a interpretação de mundo de cada um, assim como nas diversas situações
sociais, principalmente no âmbito familiar. Nossa perspectiva foi ao registrar eventos de uma
vida, atuávamos como facilitadores das relações de vida de cada indivíduo, num processo de
valorização e ampliação das experiências individuais. Procuramos alimentar através dos
relatos de histórias de vida, o que para nós significou uma forma de intervenção educacional
como sugere PAULO FREIRE (1975) e EDGAR MORIN (1997; 1998) atitude que procurou
realimentar o cotidiano dos sujeitos envolvidos.
Nesse sentido nosso projeto buscou nos relatos, uma forma de realimentar um
processo de educação que permitisse visualizar um diálogo entre o conhecimento instituído
com o universo das tradições. Isso nos possibilitou um exercício de práticas sociais e políticas
que encontram eco também nas dúvidas, incertezas, divergências e diferenças. Buscamos,
sobretudo, um diálogo mais eficiente e comprometido com o educando.. Investimos em
atitudes de reconstrução do sujeito pela educação onde houvesse o abraço e entrelaçamento
das mais diversas expectativas de superação humanas. Com isso, emergiram situações em que
a articulação com temas e situações relacionados aos conteúdos característicos dos meios
educacionais, pudessem fornecer de maneira satisfatória, um encontro com a realidade do
educando, representando uma modalidade educativa com significativa ressonância. Diante da
possibilidade de proporcionar no aprendizado uma prática pautada na reconstrução do
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educando enquanto sujeito, procuramos adotar a partir da experiência com o projeto de
extensão e as atividades acadêmicas da universidade, uma reflexão mais aprofundada das
relações que permeiam o ato de educar, procurando com isso, refletir sobre nossas ações.
Consolida-se assim, um diálogo responsável, crítico e insubmisso com todas as interfaces
possíveis das relações sociais. Sejam elas no espaço familiar, escolar, religioso ou político.
Referências Bibliográficas
ESTÉS, Clarissa Pinkola Mulheres que correm com os lobos: Mitos, histórias e arquétipos da
mulher selvagem. 11ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 627p.
_____________________ O dom da história: Uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998. 39p.
_____________________ O jardineiro que tinha fé. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 92p.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
MORIN, Edgar. Para lá da complicação: a complexidade. In: Ciência com Consciência.
Portugal: Europa – América, 1982.
____________. Amor, poesia e sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 72p.
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