Artigo Completo

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AS IDÉIAS DE DEWEY, KERSCHENSTEINER, TEIXEIRA E AZEVEDO EM
CONTEXTO: HISTORICIDADE E COMUNIDADE NO PENSAMENTO
ESCOLANOVISTA
Sandro Nandolpho
Universidade Federal do Espírito Santo
[email protected]
Johelder Xavier Tavares
Universidade Federal do Espírito Santo
[email protected]
Palavras-chave: História da Educação; Comunidade; Movimento Escolanovista.
O final do século XIX foi marcado pelo processo de democratização, ou seja, a
“eleitorização” da política com a crescente participação dos “homens comuns”. Este processo
de constituição da política de massas via processos de eleitorização, está profundamente
atrelada, a tentativa de legitimação do próprio Estado. A produção de uma “nova”
legitimidade estaria garantida a partir – em escala ampliada – de uma identificação do “povo”
com a nação, representada pelo Estado, e sua principal estratégia para a produção de uma
“consciência nacional” estaria em sua modernização.
O governo estatal precisava investir em uma maquina administrativa, por meio da qual teria
acesso ao cidadão em sua vida cotidiana. Os funcionários que movimentariam essa máquina
iriam de carteiros, policiais a professores – estes últimos inseridos num processo de
estatização e escolarização da educação, sendo a escola um lugar privilegiado de propaganda
do arcabouço simbólico do Estado-nação e de produção de subjetividades. Emergindo durante
a fundação de tais Estados, o processo de escolarização das massas e a formação de seus
profissionais foram profundamente marcados pelo ideário nacionalista. Em meio à
emergência da educação escolar enquanto espaço estratégico para a legitimação do poder a
partir do sentimento nacionalista, um forte discurso de democratização social e liberdade se
desenvolve na segunda metade do século XIX (HOBSBAWN, 2007).
O final do século XIX também foi marcado por um grande progresso científico e tecnológico
“[...] a Europa atingiu um nível de progresso técnico e de desenvolvimento econômico mais
alto do que nunca até então” (JOLL, 1982, p. 49). No âmbito das ciências humanas
destacamos a psicologia a sociologia que tiveram uma forte influência nos processos
educativos.
Em tal contexto, surgem inúmeras experimentações escolares visando o desenvolvimento de
didáticas ativistas, fundamentadas e abordagens científicas das ciências sociais e da
psicologia. A construção de métodos ativos na educação se constitui como experiências
ocorridas em vários países, mas que ganham no decorrer do tempo, o caráter de movimento,
sendo posteriormente denominado de movimento escolanovista.
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Em 1899, graças aos esforços de Adolphe Ferrière, foi fundado em Genebra um centro
chamado Bureau International des Écoles Nouvelles, cuja finalidade era coordenar a
expansão das escolas novas que derivaram da experiência realizada por Cecil Reddie na
Inglaterra durante a segunda metade do século XIX. Para Reddie o ensino devia ser mudado
para se adequar às exigências da sociedade moderna, neste sentido a escola deveria se tornar
um pequeno mundo real e prático, tal perspectiva de ensino fundamentava-se nos
desenvolvimentos das ciências sócias e principalmente nas descobertas da psicologia sobre a
psique infantil seu dinamismo motor e psíquico.
Fundamentados em um forte discurso que exaltava a modernidade de suas concepções e de
seus métodos, em oposição às concepções e métodos tradicionais de ensino, o escolanovismo
ganhou força e expressão. O Bureau possibilitou sua consolidação enquanto movimento, e
uma maior articulação entre pesquisadores e as diversas experiências realizadas nas Américas
e na Europa ocidental. A onda escolanovista foi marcada pela divulgação dos métodos ativos
que emergiram das diversas experiências realizadas em vários países.
Embora as “escolas novas” nasçam e se desenvolvam como experimentos
isolados, ligados a condições particulares e a personalidades excepcionais de
educadores, elas, justamente porque tiveram imediatamente ampla
ressonância no mundo educativo propiciaram uma série de pesquisas no
campo da instrução, destinadas transformar profundamente a escola, não só
no seu aspecto organizativo e institucional, mas também, e talvez sobretudo,
no aspecto ligado aos ideais formativos e aos objetivos culturais (GAMBI,
1999).
Em meio à expansão internacional das idéias renovadoras, foi realizado um grande
investimento intelectual entre 1889 e 1930, por meio de ensaios, revisão de doutrinas e
elaboração de teorias. O movimento escolanovista se expandiu por inúmeros países europeus
e americanos, propondo uma educação renovada embasada, em novos métodos científicos que
investigavam não só o indivíduo e o meio social, como a relação entre ambos. No decorrer do
inicio do século XX, os métodos ativos tomam vulto nos discursos reformistas de vários
países e, de modelos experimentais com fundamentações cientificas, ganharam as entranhas
do Estado fomentando inúmeras reformas educacionais em várias partes do mundo.
No Brasil, o pensamento escolanovista foi introduzido por inúmeros intelectuais que, nos anos
20, foram protagonistas de inúmeras reformas educacionais, conhecidas como reformas da
instrução pública, em vários estados brasileiros. A primeira dessas reformas regionais foi
realizada por Sampaio Dória em São Paulo, no entanto, além da reforma paulista de1920
outras foram realizadas cabendo registra:
[...] a reforma cearense, em 1922, encabeçada por Lourenço Filho; no Paraná
a reforma de Lysímarco Ferreira da Costa e Prieto Martinez, em 1923; a
reforma de José Augusto iniciada em 1924 no Rio Grande do Norte; a
reforma baiana, dirigida por Anísio Teixeira em 1925, que segundo Nagle
(1974, pp. 194-195), fecha o primeiro ciclo de reformas da década de 20,
“representando a consolidação das normas já estabelecidas”. Após essa
reforma abre-se um novo ciclo marcado pela introdução mais sistemática das
idéias renovadoras: a reforma mineira de 1927 realizada por Francisco
Campos e Mario Casasanta; a reforma do Distrito Federal, Realizada por
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Fernando de Azevedo em 1928; e a reforma pernambucana, em 1929, de
iniciativa de Carneiro Leão (SAVIANI, 2007, p. 177).
Ao analisar a historicidade deste processo, buscamos problematizar a visão hegemônica na
historiografia da educação brasileira de que: as bases teóricas do escolanovismo encontram-se
exclusivamente em teorias liberais sejam elas progressistas ou conservadoras desprezando
influências teóricas não liberais. Essa visão surge de uma análise aligeirada da historicidade
da produção intelectual e das reformas realizadas pelos escolanovistas.
As reformas realizadas no Brasil tiveram como fundamentação, as experimentações e
produções teóricas ocorridas no movimento escolanovista internacional. As fundamentações
teóricas que marcaram tais reformas ocorreram a partir de leituras seletivas de autores
internacionais. As leituras seletivas realizadas pelos reformadores incorporaram ao seu
pensamento “renovador”, que por si só estavam inseridas em contextos regionais distintos,
métodos e experiências produzidas em diferentes países, marcadas por configurações políticas
e culturais diferenciadas.
Esta leitura seletiva, ou seja, o ecletismo é uma faceta bastante presente na tradição do
pensamento político brasileiro, que impregnou outras formas de pensamento brasileiro como
o econômico, o religioso e o educacional, percorrendo a nossa história intelectual até os dias
atuais. O que entendemos por ecletismo, corresponde a um método filosófico:
[...] que consiste em escolher, dentre as doutrinas de diferentes filósofos, as
teses mais apreciadas, sem se preocupar com a coerência dessas teses entre si
e com sua conexão aos sistemas de origem (ABBAGNANO, 2000, p. 298).
Boa parte da produção historiográfica brasileira, em suas análises sobre o movimento
escolanovista no Brasil, compartilha de uma visão, na qual, o liberalismo constitui o cerne das
bases teóricas do escolanovismo. No entanto, é importante ressaltar que a característica
eclética do pensamento escolanovista brasileiro, tende a esconder, minimizar e até mesmo
distorcer as implicações políticas de inúmeros conceitos cujas raízes semânticas e os cenários
nas quais são movimentadas distanciam-se conceitual e politicamente do liberalismo.
Dentre os vários conceitos utilizados pelos intelectuais escolanovistas, destacamos o conceito
de comunidade, para analisarmos as inflexões que este conceito toma em autores, que
realizaram suas obras em contextos históricos distintos. Um dos grandes problemas das
pesquisas historiográficas sobre as idéias, as produções intelectuais, é minimizar os laços
existentes entre conceitos teóricos e concepções políticas, que por sua vez, estão enraizadas a
correlações de forças sociais, culturais, políticas e econômicas de determinadas conjunturas
históricas. A noção de comunidade é investida, pelos autores, de valores e sentimentos que
muito revelam do sentido proposto pelos mesmos, sendo tecida nos respectivos contextos por
fios teóricos oriundos não só do liberalismo, como também do socialismo e do pensamento
aristocrático.
Destacaremos no presente artigo quatro autores, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e os
autores que respectivamente os influenciaram, o americano John Dewey e o alemão Georg
Michael Kerschensteiner. As fontes utilizadas na pesquisa realizada correspondem a obras dos
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autores citados, nas quais o conceito de comunidade é explicitado, já método corresponde ao
contextualismo lingüístico proposto por Quentin Skinner.
Em tal método, leva-se em consideração não apenas o texto interpretado, mas também os
contextos lingüísticos específicos, os jogos de linguagens que governam o mundo mental e o
vocabulário conceitual empregados pelos autores num dado tempo e lugar histórico, suas
crenças, percepções, valores e ideologias compartilhadas.
Ao desenvolver uma metodologia de análise para o trabalho de investigação histórica das
idéias, Quentin Skinner procurou demonstrar que tanto os procedimentos analíticos
textualistas quanto os contextualistas empregados nos anos 60, eram inadequados a
interpretação histórica de textos.
Para Skinner (2005) só é possível compreender os significados de um dado texto, um
enunciado ou uma idéia qualquer, recuperando as intenções do autor no ato da escrita e
reconstruindo o contexto das convenções lingüísticas disponíveis num determinado tempo
histórico
Apesar das revisões realizadas por Quentin Skinner desde os seus primeiros textos sobre o
contextualismo lingüístico nos anos 60, seus argumentos e conclusões não sofreram mudanças
significativas. O núcleo de seu pensamento sobre a metodologia proposta continua de pé
problematizar a dimensão da interpretação dos significados contidos em textos passados,
procurando para isso compreender em que termos autores, textos, contextos e linguagem
devem ser articulados pelo historiador ao investigar uma obra histórica, um conjunto de
idéias, um enunciado ou o pensamento de um determinado autor.
De acordo com Skinner (2005), o fundamento central da historia das idéias está na
compreensão de que a produção de significado se dá através do uso da linguagem, e que para
interpretar o significado dos textos, respeitando minimamente os contextos lingüísticos
originais de sua produção, deve-se procurar compreender quais eram as intenções e
motivações dos autores ao pronunciarem uma determinada palavra, frase ou enunciado.
Compreender as intenções e motivações de um autor, equivale a entender a natureza e a
extensão dos atos lingüísticos que o escritor poderia ter desenvolvido no momento em que
escrevia ou enunciava suas idéias.
De acordo com Skinner (2005), para compreender um ato lingüístico como ação política e
recuperar as intenções de um autor ao enunciar uma determinada idéia, é preciso estabelecer a
relação entre o dado enunciado e o amplo contexto lingüístico disponível e utilizado naquele
momento, ou seja, o repertório de idéias com o qual ele dialoga e o conhecimento das
convenções lingüísticas que historicamente contextualizam o texto.
Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles [autores]
apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em
que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou ás vezes até
ignoravam (de forma polêmica), as idéias e convenções então predominantes no
debate político. Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando
tão-somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões
específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. E, a fim de
reconhecer a direção e a força exata de seu argumento, necessitamos ter alguma
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apreciação do vocabulário político mais amplo de sua época (SKINNER, 1978,
p.13)
O primeiro autor com o qual trabalharemos é John Dewey (1859-1952), que construiu uma
carreira prolífica e centrou-se num vasto leque de preocupações que abrangiam áreas como a
filosofia, a educação, a psicologia, a sociologia e a política. Seus escritos e posições políticas
têm sido sujeitas a uma e reinterpretação por um sem número de estudiosos. Existe uma
literatura suficientemente volumosa sobre ele, ou escrita por ele mesmo, com avaliações
profundamente distintas sobre a natureza e impacto do seu trabalho.
O entendimento sobre a forma como Dewey compreendia o conceito de comunidade passa
pela sua filosofia pragmática de sobre a educação, que tinha por finalidade desenvolver a
autonomia, o espírito crítico e métodos de inteligência mais amplos no indivíduo, calcados na
reflexão investigativa. Sua filosofia da educação demonstra uma preocupação com o
desenvolvimento de um determinado tipo de comunidade, a comunidade democrática, esta
forma de comunidade propiciaria uma democracia genuína na qual todas as esferas da vida
estariam dinamicamente envolvidas nos processos democráticos de forma ativa.
Para Dewey (1966), o individuo na sociedade passa a existir a partir do contrato, que o
garante como tal e legitima sua autonomia, na comunidade o indivíduo é instituído, não a
partir do contrato, mas das relações e sentimentos estabelecidos com a comunidade, sua
autonomia é legitimada por relações constituídas e partilhadas.
Na perspectiva teórica de Dewey, os novos métodos e processos buscavam formar sujeitos
publicamente articulados para a crítica social, de forma a manter uma comunidade
democrática e resgatar os laços morais e espirituais que estavam entrando em colapso em uma
sociedade marcada pela nova ordem industrial e urbana (APPLE, TEITELBAUM, 2001).
John Dewey formula sua concepção de indivíduo a partir da tensão entre sociedade e
comunidade. Enquanto a sociedade é concebida a partir da instituição de relações
preponderantemente econômicas, contratuais, impessoais e individualistas, a comunidade é
pensada a partir de relações estreitas e coesas, enraizadas na família, no lugar e na tradição. A
concepção de Dewey de comunidade e sociedade fundamenta-se em uma tradição do
pensamento sociológico sobre o tema, iniciado por Ferdinand Tönies com o livro
Gemeinschaft und Gesellschaft de 1887, passando por sociólogos americanos como Talcott
Parsons, Robert E. Park, Louis Wirth, Robert Redfield e Grahan Wallas. Segundo Outhwaite
e Bottomore, para Tönies comunidade representa relações enraizadas na família, no lugar e na
tradição e sociedade ou associação, corresponde a relações preponderantemente econômicas e
contratual, indeterminadas, urbanas, dotadas de mobilidade e individualistas. Tal abordagem
para os autores foi marcada por uma visão nostálgica e romântica do passado, em que a
coesão emocional e a “vida boa” da comunidade tradicional foram usadas em comparações
desfavoráveis com o anonimato, isolamento e alienação da moderna sociedade de massa
(1996).
Frente ao avanço do liberalismo, dos processos de industrialização e urbanização, Dewey, um
profundo critico deste modelo de desenvolvimento hegemônico, busca no passado um modelo
de comunidade que emerge do espírito pioneiro da conquista do oeste e a respectiva coesão
características da vida comunitária nesse contexto.
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A conquista do Oeste, iniciado no governo de Andrew Jackson, ira lançar as bases de uma
experiência social que ira proporcionar um aprofundamento da democracia nas instituições e
vida da sociedade americana.
[...] foi freqüentemente ela que determinou o curso da história geral do povo
americano por suas repercussões sobre todos os aspectos principais de sua
existência: a imigração para aí afluiu; a economia cujo desenvolvimento ela
estimulou por seus recursos e seu espaço; a relação das forças políticas, cujo
equilíbrio ela rompeu, fazendo pender a balança em favor do Norte; a questão do
negro que ela exacerbou; o impulso democrático que precipitou; em suma, o caráter
nacional que ela marcou tão fortemente. Sem contar que forneceu um alimento
inesgotável para a imaginação e deu aos Estados Unidos sua grande epopéia
nacional [...] (RÉMOND, 1990, p. 41-42).
Pelas próprias características da expansão as sociedades que se formavam no Oeste, era
marcada por um igualitarismo, nenhuma diferença de fortuna, menosprezavam as
superioridades sociais baseadas no nascimento ou na herança, cada homem valia a força de
seus braços, sua tenacidade, resistência ou habilidade. Os novos estados que emergiam destas
sociedades, outorgavam-se constituições nitidamente democráticas, onde o sufrágio universal
era a regra geral, sendo as primeiras sociedades organizadas a fazer essa experiência
(RÉMOND, 1990).
O vocabulário político, as convenções lingüísticas da tradição sociológica com as quais John
Dewey dialogava, como também seu ato lingüístico enquanto ato político ao escrever seus
textos, tornam não só a forma como o mesmo compreendia o conceito o conceito de
comunidade, como também as tradições teóricas e políticas que fundamentavam seus textos.
Dewey falava e escrevia romanticamente sobre uma comunidade democrática, fruto de uma
experiência história específica do passado norte-americano, cuja força de ligação não emergia
do contrato, mas, de relações e sentimentos, para contrapor e combater o tipo de sociedade
liberal na qual ele vivia. O conceito de comunidade em John Dewey encontra-se no conjunto
de seu texto, de seu ato lingüístico e político como uma critica ao liberalismo clássico e uma
defesa da democracia liberal.
O alemão Georg Michael Kerschensteiner (1854-1932), por sua vez, desenvolveu boa parte de
seu trabalho pedagógico e reformas escolanovistas em Munique, na Alemanha, aonde
desenvolveu e defendeu uma escola do trabalho em oposição à escola do livro. Todo seu
trabalho estava embasado nos métodos ativos do movimento escolanovista, no entanto,
universo intelectual e político da sociedade alemã nos fins do século XIX e início do XX,
propiciou inflexões específicas ao trabalho do reformador, no que tange aos fundamentos
teóricos e implicações políticas que o distanciariam tanto do liberalismo clássico como do
liberalismo democrático ao qual o pensador John Dewey estava vinculado.
Para Kerschensteiner somente o trabalho, concebido como o caminho para o desenvolvimento
do espírito público e do serviço social e não como treinamento profissional para o emprego,
propiciaria uma educação cívica. Para o reformador, a educação cívica objetivava ligar os
interesses do individuo com os interesses do Estado, conseguir através da formação pelo
trabalho a formação de um caráter, de uma coragem moral, de uma mentalidade política na
juventude alemã, uma subordinação livre a pequena comunidade escolar compreendida como
Staatsleben im Kleinen, literalmente: “vida do Estado em microcosmo”.
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[...] antes de tudo a escola do caráter [...] Não tanto para que as crianças
aprendam a aplainar, serrar, limar, furar, coser, tecer, cozinhar é que temos
nossas salas de trabalho, nem mesmo para que gostem do trabalho manual,
mas antes de tudo para educar homens que possam colher nas raízes o
sentimento e o benefício da associação no Estado (Kerschensteiner, Apud:
LEIF; RUSTIN, 1960, p. 216).
O objetivo de tal educação era a preparação para servir a grande comunidade, ou seja, o
Estado. Era uma educação voltada para a eliminação dos conflitos, as propostas de
Kerschensteiner para uma educação cívica pelo trabalho, tinha como objetivo a formação de
um cidadão útil ao Estado. As diferenças culturais são reconhecidas e os conflitos sociais são
eliminados nas fundamentações teóricas trabalhadas pelo autor, que visivelmente demonstra
estarem estreitamente ligada às fundamentações teóricas do nacionalismo alemão como ao
cenário político nacional do país.
Enquanto que para Kerschensteiner, comunidade é concebida como “vida do Estado em
microcosmo”, Dewey a compreende como uma comunidade democrática, ambas as
concepções emergem de bases diversas e possuem implicações políticas muito diferentes
entre si. A concepção de comunidade democrática em Dewey fundamenta-se nas
experiências democráticas ocorridas nas comunidades que emergiram no oeste americano
fruto do movimento expansionista ocorrida no século XIX. A concepção de comunidade
proposta por Kerschensteiner possui fundamentos em uma concepção de Estado-ético
inspirado na filosofia idealista de Hegel e na teoria dos valores desenvolvidos na filosofia
alemã, que se articulam a um nacionalismo inspirado nas tipologias conservador
tradicionalista e cultural romântico.
Em Kerschensteiner, a força progressista dos métodos escolanovistas é atravessada pelo
resgate de valores oriundos da cultura aristocrática alemã que poderiam ser encontrados no
Estado idealizado pelo autor. O cenário político, o repertório conceitual e a cultura intelectual
alemã, proporcionaram a reconfiguração das experiências e das teorias escolanovista na
produção dos atos lingüísticos do educador alemão, seus textos operam a partir dos desafios
que a sociedade alemã enfrentava na constituição Estado-nação, proteger a juventude alemã
da decadência moral.
O desenvolvimento da riqueza espiritual está ligado ao desenvolvimento do espírito cívico
nos jovens, alinhando valores individuais e comunitários (Estado), sendo que os valores
buscados neste processo de educação estão mais ligados a tradição aristocrática alemã, do que
os do liberalismo burguês em sua vertente tradicional ou democrático. Associar Georg
Michael Kerschensteiner somente ao liberalismo e supervalorizar a influência do pensamento
de John Dewey, reflete um grande descaso pelo repertório lingüístico, conceitual e teórico
alemão com o qual o reformador alemão trabalhava como também negligenciar o contexto de
produção de seus textos enquanto atos lingüísticos e políticos.
No caso do escolanovismo brasileiro destacamos Anísio Teixeira, importante reformador e
principal divulgador das idéias de John Dewey no Brasil. O educador baiano participou dos
movimentos mais importantes da educação brasileira entre os anos 20 e 60, e foi o principal
articulador da escola nova no Brasil.
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O grande legado de Anísio Teixeira foi a educação como direito de todos, é através desta
perspectiva que devemos compreender a forma como o educador brasileiro concebe a
comunidade. Sua visão democrática, inspirada no pensamento de Dewey e elaborada para a
realidade brasileira, aponta para a construção de um conceito de comunidade diverso daquela
desenvolvida e proposta pelo pensador americano.
A transição de um mundo pré-científico, pré-tecnológico e pré-democrático
para um mundo científico, tecnológico e democrático colocava problemas
relativos à alienação do sujeito dos quais Dewey tinha aguda consciência.
Ele reagia filosoficamente ao isolamento e à fragmentação crescente da vida
social, defendendo, segundo Mills, a reinstauração de um tipo de
sociabilidade perdida nas pequenas vilas americanas rurais que conhecera
em sua adolescência, em uma espécie de fuga para trás, mas que não se
identificava automaticamente com a defesa de um ruralismo retrógrado. Se
Dewey recuava, Anísio fugiria para a frente em busca de uma democracia
inexistente na sociedade brasileira. Esse movimento que se projeta ao
contrário tem seu ponto de intersecção entre o antigo e o novo representado
pela categoria de reconstrução, entendida justamente como a revisão da
experiência anterior em qualquer campo (seja ele filosófico, religioso,
político, pedagógico), colocada a serviço de novos ideais. Este foco
cognoscitivo é também afetivo. Seu grau de abrangência permite não só uma
reordenação da biografia, mas também a redefinição da história das
instituições de que o sujeito participa projetando, nelas, outros significados
(NUNES, 2000, p. 32).
Diferente de Dewey, que buscou formular um conceito de comunidade – da qual a democracia
era conseqüência – a partir de uma experiência histórica passada que se contrapunha ao
conceito de sociedade, Anísio Teixeira elabora filosoficamente um conceito de democracia
compreendida como uma atitude ética diante da vida, algo a ser construído nas relações
interpessoais que sustentam as sociedades. Atento a realidade brasileira, historicamente
marcada pelos processos de colonização e exclusão social, na qual a experiência democrática
era inexistente, Anísio Teixeira, investia em uma educação democrática para a construção de
uma sociedade democrática.
Anísio Teixeira trabalhava com o conceito de sociedade criticado por Dewey, que no caso
brasileiro era marcada por profundas contradições oriundas de nossas raízes colônias. A
oposição existente no pensamento de Dewey entre comunidade e sociedade, não atravessava o
pensamento de Anísio, para o educador brasileiro a atitude democrática construída através da
educação transformaria a sociedade brasileira na direção da democracia.
Com relação ao mineiro Fernando de Azevedo, importante pensador e reformador
escolanovista brasileiro, a forma como ele concebe a comunidade em suas reflexões é fruto de
seu aberto ecletismo teórico. Assim como em Kerschensteiner, a concepção de comunidade
no pensamento de Azevedo esta intimamente ligada ao nacionalismo, que constituiria o elo
sentimental mais amplo, da sociedade brasileira.
No caso de Fenando de Azevedo a comunidade é compreendida como sociedade em
microcosmo, e não o Estado em microcosmo como defende o seu colega de ideal
escolanovista alemão, no entanto a forte presença do Estado é visível em seu pensamento, na
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medida em que era vista de forma positiva associação entre um poder executivo forte e a
democracia.
Para Fernando de Azevedo era necessário criar a “[...] união da comunidade brasileira, isto é,
[...] (na) criação de um estado de estreita união, de colaboração íntima, de fusão espiritual que
repouse sobre a comunidade de lembranças, de ideais e de aspirações” (AZEVEDO, 1958b).
Neste sentido, a escola, a família e as associações, por exemplo, são compreendidas como
pequenas comunidades, que deveriam reproduzir o espírito da grande comunidade, a
sociedade nacional.
O desenvolvimento de um espírito democrático deveria ser despertado na criança e no jovem,
formando um cidadão capaz de amar sua terra e a sua nação, de sacrificar-se pela coletividade
e de viver intensamente a vida social, esta experiência deveria ser vivida na escola, uma
comunidade em miniatura, onde aprenderia os valores éticos e morais que regeriam a sua
conduta e moldariam seu caráter. E, entre esses valores, embora houvesse os relativos a uma
dada época, haveria aqueles considerados universais, tais como o respeito mútuo, a
solidariedade e a cooperação.
[...] do ponto de vista social, o plano de educação para realizar os próprios
ideais de fusão espiritual de uma comunidade nacional deve, pois, abrir igual
oportunidade para todos, projetando uma educação das massas em larga
escala, para lançar a mais profunda sondagem nas reservas da nação, sem
diferença e distinção de classes, e recrutar, por esta forma, desde a escola
primária, a parte dinâmica dessa população, dos superdotados ou dos mais
capazes, para o constante enriquecimento e a renovação incessante das elites
dirigentes do país (AZEVEDO, 1958a, p. 150).
Os valores da comunidade seriam desenvolvidos pela prática do trabalho em cooperação, no
entanto, são nítidas as tendências progressistas, tradicionais e conservadoras que permeiam
toda a proposta educacional de Fernando de Azevedo, oriunda de seu ecletismo. A forma
como Azevedo articulava a sociologia de Durkheim, a filosofia da educação de Dewey e a
teoria pedagógica social de Kerschensteiner, trouxe peculiaridades na forma como o os
valores, os processos e os objetivos da constituição de uma civilização nacional e urbanoindustrial brasileira, são operados.
A escola seria a base deste processo, e para isso era necessário reorganizar a escola a partir
dos princípios da escola única, do trabalho e do trabalho em cooperação. Tais princípios
seriam segundo Fernando de Azevedo, adaptados a complexa realidade cultural e educacional
brasileira. A articulação destes princípios inspirados nas distintas filosofias dos três autores
citados visava buscar articular indivíduo e comunidade, liberdade e igualdade na forja da
nação brasileira.
Não se trata, apenas, de preparar o indivíduo, em si mesmo, torná-lo apto
para o trabalho (idéia individual), mas de preparar o indivíduo para a
comunidade (idéia social), habituá-lo a desenvolver e disciplinar a sua
atividade, pondo-a em função da atividade de outrem, para um objetivo
determinado. Trabalhar com outros, para que a colaboração seja interpretada
e realizada como meio de maior rendimento do trabalho, é o fim a que se
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propõe a escola nova, instituída para uma sociedade baseada na organização
do trabalho (AZEVEDO, 1958, p.74).
O entrelaçamento de diferentes correntes de pensamento cujas implicações políticas e
teóricas remetem a propostas distintas sobre várias dimensões da educação e da sociedade,
marca o pensamente de Fernando de Azevedo com profundas contradições teóricas e em suas
conseqüências práticas.
Ao investigar a noção de comunidade que emerge do pensamento de Anísio Teixeira e
Fernando de Azevedo, como também a dos autores que os influenciaram, respectivamente
Dewey nos Estados Unidos e Kerschensteiner na Alemanha, buscamos compreender como as
idéias, em especial a noção de comunidade, ganha nuances diferenciadas a partir das
configurações políticas e intelectuais, nas quais os quatro autores estavam inseridos, em seus
respectivos países.
Da pesquisa realizada foi possível observar que não só a concepção de comunidade, mas o
pensamento escolanovista tomou configurações teóricas e políticas distintas, a partir não só
das conjunturas políticas dos contextos históricos nos quais os autores viviam, mas também
das relações intelectuais, convenções lingüísticas, e repertórios conceituais que eram
trabalhados para a realização de um ato, como bem aponta Quentin Skinner, não só lingüístico
como também político.
Os textos produzidos por tais autores eram direcionados a um público, e a uma realidade que
precisava ser transformada, de seus atos políticos emergem elementos de inúmeras propostas
teóricas e políticas vinculadas ao liberalismo, aos valores aristocráticos e ao comunismo, e
que muitas vezes, se misturavam no complexo entrelaçamento eclético de idéias, conceitos e
métodos.
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