A concepção de saber da experiência

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Só para quem gosta de ensinar e aprender – Curso de formação de formadores
Rosaura Soligo - 2015
A concepção de saber da experiência1
A palavra ‘experiência’ não raro é entendida como o que se vive na prática e a expressão ‘saber da
experiência’, como acúmulo de saberes da prática, de procedimentos e condutas constituídos em situações
concretas. Aqui a perspectiva é outra, que supera esse sentido atravessado pela polaridade teoria-prática e se
apoia em algumas contribuições filosóficas.
A ideia é de experiência como um acontecimento que precisa e merece ser pensado para que nos seja
possível questionar e alcançar os seus sentidos, como aquilo que nos acontece, que nos deixa marcas, que
tem em nós um efeito pessoal, que é fruto do vivido e que vai forjando uma forma de ser e estar no mundo,
uma consciência dos sentidos do que se vive. A ideia é de experiência como algo que ora se tem, ora se faz,
que requer de nós uma disponibilidade para interrogar o vivido e refletir sobre ele, constituindo um modo
implicado de agir, que não admite que as coisas vão se passando simplesmente, que pressupõe pensar-se em
relação ao que acontece.
O saber da experiência nem sempre é fácil de formular e tem muito a ver com o que o vivido vai deixando
em nós como atitude diante da vida, como modo de nos relacionar com os acontecimentos. É um saber
sempre em movimento, que vem da experiência e se mantém em uma relação ‘pensante’ com o que
acontece, produzido por pessoas que não aceitam viver segundo valores e sentidos externos e prédeterminados, mas que se empenham para constituir os seus próprios.
Esse tipo de saber pressupõe relações de aprendizagem sempre atravessadas pela questão da alteridade: no
contexto da educação, seja na sala de aula ou na formação, o saber da experiência é sempre um saber da
alteridade, que aceita o imponderável do outro e que se interroga sobre as suas necessidades e sentidos e
sobre o que é mais adequado na relação com o outro.
É, portanto, um saber que tem a ver com nossas dimensões subjetivas, pessoais, com a história que nos
constitui como sujeitos a partir de onde vivemos, pensamos, atuamos.
Tal como aqui entendido, ‘saber da experiência’ é uma expressão para nomear esse saber sábio que
contribui para um estar no mundo com abertura e sensibilidade.
Trata-se de um saber paradoxal, porque é sedimentado no vivido e orienta a ação, mas é um saber sempre
‘nascente’, sempre renovando-se, que revela uma qualidade essencial do saber pedagógico necessário a
todos os que trabalham com educação. Que qualidade é esta? Viver, em sua ‘novidade’, o movimento e as
mudanças inerentes à tarefa educativa, de maneira receptiva frente às questões que nos trazem os
companheiros de trabalho e os acontecimentos que compartilhamos, sempre com abertura frente às
transformações necessárias para uma educação mais atenta à realidade e às suas singularidades e
circunstâncias.
Muito mais do que um conhecimento a transmitir, é um saber que precisamos cultivar, elaborar, ter como
referência e contar com ele. E precisamos nos ajudar uns aos outros nesse processo.
A formação e o saber docente
O saber necessário para a docência não tem exatamente as mesmas qualidades ou características dos
conhecimentos teóricos, tampouco é sua mera aplicação prática.
Há dimensões da docência com as quais os professores se deparam na prática diária (por exemplo,
paradoxos, dilemas, incertezas, intuições, palpites, sentimentos, percepções, improvisações, modos de ser,
inclinações, histórias e características pessoais, expectativas etc.) que parecem não pertencer a qualquer área
específica de conhecimento e nem são passíveis de se transmitir como proposições.
A forma pela qual chegamos a tomar consciência, suspeitar ou intuir tudo isto passa ao largo de definições
precisas, conceitos claros ou garantias do que possam significar. Dispor de conhecimento teórico, nesse caso,
1
Texto adaptado por Rosaura Soligo do original de José Contreras Domingo: El saber de la experiencia en la formación inicial del
professorado file:///C:/Users/User/Downloads/Dialnet-ElSaberDeLaExperienciaEnLaFormacionInicialDelProfe-4688508%20(1).pdf
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Rosaura Soligo - 2015
por certo ajuda, mas quase nunca é suficiente na ‘hora H’. Por vezes essas dimensões da docência são até
consideradas e analisadas, mas em geral sob a perspectiva da relação teoria-prática, de maneira bipolar:
saberes constituídos, de um lado, e espaços específicos para tratar da prática, de outro.
O desafio é nos abrirmos a outras formas de pensamento pertinentes à experiência educativa, a suas
intrincadas tramas de acontecimentos e sensações, aos saberes necessários para a docência, à sabedoria
pedagógica.
A convicção é que repensar a formação em todos os seus espaços e processos sob a perspectiva do ‘saber da
experiência’ pode contribuir com outros modos de compreensão que não sejam obscurecidos e prejudicados
pela polarização teoria-prática, para reconhecer no território pedagógico um conjunto mais amplo de
saberes e inter-relações e para evidenciar a conexão entre ser e saber como questão sempre nuclear de
qualquer processo formativo.
Do saber da experiência a uma pedagogia da experiência
Deixar-se interrogar pela presença do outro tem suas próprias consequências pedagógicas.
Quando existe a convicção de que a experiência refletida significa manter uma relação pensante com o
acontecer das coisas, original e perceptiva, que esse tipo de experiência implica um estar no mundo sempre
se interrogando, é de se supor que isso se transfira de algum modo para a prática educativa, o que significa
oferecer aos alunos a oportunidade de também se interrogarem em relação à própria experiência no mundo.
Implicações para a formação
A despeito da importância disso tudo, é certo que o saber da experiência não é agora a nova solução para
adquirir todo o repertório para a atuação profissional. O saber da experiência é um saber e um modo de
saber que se cultiva, e não que se comunica. E supõe uma relação pensante, pessoal, sensível e criativa
diante dos desafios da prática, nem sempre claros ou previsíveis, o que exige cultivar esse tipo de relação.
Enfatizar a importância do ‘saber da experiência’ é um modo de dizer da necessidade de cuidar do
desenvolvimento pessoal; da necessidade de saber e de ‘ir sabendo’ e de ‘ir sabendo-se’; da disposição de
não cristalizar o sabido e o feito, mas, ao contrário, buscar uma orientação prática, se perguntar pelos
sentidos e desenvolver a capacidade de sempre reviver, atualizar, esses sentidos no fazer.
Trata-se, portanto, de um saber sustentado em primeira pessoa, que se cultiva pondo em jogo a própria
subjetividade, a própria história, recursos, capacidades perceptivas, qualidades pessoais.
A noção de formação como algo que se cultiva pressupõe considerar:
- A história de vida e as experiências que cada um traz, e que supõe um saber incorporado com o qual é
preciso contar como repertório existente, é fundamental. Mas considerar a experiência vivida e os saberes
que a partir dela se constroem não significa uma aceitação ingênua e resignada: o movimento é partir do
vivido para ir sempre mais além. Para tanto, é necessário a escuta e a atenção ao que se passa,
experimentando respostas para situações, analisando a adequação dessas respostas etc.
- É preciso experimentar a própria formação como espaço e oportunidade de experiências, como vivência
compartilhada e refletida, de tal modo que seja possível transitar pela própria experiência, produzir um saber
a ela vinculado, desenvolver a consciência sobre esses processos de produção de saber que oferecem pistas
pedagógicas sobre a força profunda e multidimensional que adquirem quando a produção é compartilhada
e quando passam a ter um sentido pessoal e coletivo.
- As experiências dos profissionais e seus saberes, que vão se configurando nos modos de interrogar o que
vivem e o sentido de exercer a profissão são essenciais, mas é também essencial aprender com os saberes já
disponíveis.
A perspectiva é refinar o pensamento sobre a realidade, enriquecer o fazer educativo, ampliar os horizontes,
conquistar outras dimensões da realidade nem sempre percebidas, questionar certos mecanismos e
explicações viciadas ou circulares, distanciar-se, descentrar-se e ver melhor a presença misteriosa do outro e
da realidade, alimentar a imaginação e a criação de outras práticas, buscar novas formas de expressão, entre
muitas outras possibilidades.
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