1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Paula Fernanda Vasconcelos Navarro Murda O controle judicial e o papel das funções essenciais à Justiça para a efetivação das políticas públicas MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Paula Fernanda Vasconcelos Navarro Murda O controle judicial e o papel das funções essenciais à Justiça para a efetivação das políticas públicas MESTRADO EM DIREITO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração em Direito Administrativo, sob a orientação da Professora Doutora Dinorá Adelaide Musetti Grotti. SÃO PAULO 2012 Banca Examinadora _________________________________ _________________________________ _________________________________ Àquela que é base da família, sem a qual nada disso seria possível, DONA IRMA, minha amada avó. Aos meus pais, FERNANDO E THEREZINHA, grandes incentivadores, companheiros e amigos. Ao meu marido, ALEXANDRE, meu grande amor. Ao nosso pequeno LUÍS GUSTAVO, razão de nossas vidas. Agradeço a DEUS. Agradeço à minha orientadora PROFESSORA DOUTORA DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTI pela dedicação e pelo rigor acadêmico que me servem de exemplo. Agradeço aos PROFESSORES DOUTORES JOSÉ ROBERTO PIMENTA OLIVEIRA, LUIS MANUEL FONSECA PIRES e SILVIO LUIS FERREIRA DA ROCHA pelas valiosas contribuições durante a qualificação do trabalho. Agradeço aos meus queridos amigos Alexandre Pereira da Silva e Natasha Pryngler pelas colaborações ao longo do trabalho. RESUMO MURDA, Paula Fernanda Vasconcelos Navarro. O controle judicial e o papel das funções essenciais à Justiça para a efetivação das políticas públicas. 2012. 219f Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. A presente dissertação trata do controle judicial das políticas públicas e do papel das demais instituições essenciais à justiça para sua efetivação. Para tanto, parte-se da abordagem da divisão das funções estatais e dos critérios para sua distinção. A seguir, analisam-se os conceitos e as características das políticas públicas. Dentre estas últimas destacam-se os programas comissivos ou omissivos do Estado, a noção de estabilidade, a possibilidade de controle judicial, o elemento teleológico e as condicionantes de existência das políticas públicas, que são a deliberação política, a atividade normativa e os atos de execução com conhecimento técnico. Após, examina-se o controle judicial das políticas públicas, inicialmente pelos fundamentos que autorizam o controle judicial sobre os atos dos demais Poderes, até o fundamento constitucional para o controle das políticas públicas. É realizado o estudo do procedimento de ponderação proposto por Robert Alexy, bem como a análise de alguns princípios constitucionais como norteadores das decisões judiciais. Após, passa-se ao estudo dos argumentos favoráveis e contrários à intervenção judicial nas políticas públicas e da necessária compatibilização dos argumentos, dentre eles a máxima efetividade das normas constitucionais, o mínimo existencial, a teoria da felicidade, a teoria da vedação do retrocesso, a reserva do possível e as questões orçamentárias. Em termos de instrumentos para a efetividade das políticas públicas, abordam-se o controle da constitucionalidade, da omissão legislativa e o controle dos atos administrativos. A compreensão das tutelas de remoção de ilícito para a efetividade das políticas públicas é feita mediante a análise das medidas judiciais de coerção, dentre elas a condenação em obrigação de fazer, a aplicação de multa diária, a intervenção federal ou estadual e a responsabilização do agente público. Examinam-se os métodos alternativos de solução de conflitos. Por fim, aborda-se o papel das demais funções essenciais à justiça para a efetivação das políticas públicas. É feita a análise da atividade do Ministério Público como controlador da implementação do orçamento, bem como dos instrumentos colocados à sua disposição, dentre eles a ação civil pública, o inquérito civil, o termo de ajustamento de conduta e a recomendação ministerial. O papel da Defensoria Pública passa pela necessária estruturação da carreira em todos os Estados da federação, bem como pela defesa dos interesses das pessoas carentes, não apenas no âmbito judicial, mas por meio de uma orientação jurídica global. Sobre a atuação da Advocacia Pública traz-se a verificação da postura dos advogados públicos na condução dos processos, a independência funcional e a forma de orientação do ente federativo para colaboração com a efetivação das políticas públicas. Palavras-chave: Políticas públicas. Controle judicial. Ponderação de princípios Reserva do possível. Mínimo existencial. Orçamento. Instrumentos judiciais. Métodos alternativos. Papel institucional do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública. ABSTRACT MURDA, Paula Fernanda Vasconcelos Navarro. The judicial control and the role of the Justice’s essential activities for the effectiveness of public policies. 2012. 219 f. Dissertation (Masters in Administrative Law) – Law Shcool, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. The present dissertation is about the judicial control and the role of the Justice’s essential activities for the effectiveness of public policies and the role of the other institutions considered essential for the effectiveness of Justice. This work has as starting point an overview on the State functions and the criteria used to distinguish one from each other. Following this, an analysis over the concepts and characteristics surrounding the notion on public policies is carried on, among which special emphasis is given to the State’s commisive and ommisive programs, stability, the possibility of judicial control, the teleological element and the conditions regarding the existence of public policies, that are the political decisions, the creation of laws and the execution of technical acts. In the sequence, the judicial control over public policies is analyzed, starting from the analysis of the grounds under which the judicial control is authorized, and over the acts of the other Powers, until the constitutional basis for the control over public policies. The assessment procedural study proposed by Robert Alexy, as well as the analysis of some of the guiding constitutional principles of judicial decisions are carried on. Following this, the author studies the favorable and non-favorable arguments regarding the judicial intervention over public policies and the required compatibility between the arguments, among which the highest effectiveness of constitutional rules, the minimal existentialism, the theory of happiness, the theory of regression blockage, the possible reservation and budget issues. In terms of instruments for the effectiveness of public policies, the constitutional control, the legislative omission and the control over administrative acts are assessed. The comprehension of illegal removal powers for the effectiveness of public policies is carried out pursuant to the analysis of judicial measures of coercion, among which mandatory rulings demanding actions, the sanctioning of daily penalties, federal or state intervention and the liability of the public agents. The alternative methods for conflict’s resolution are examined. Finally, an analysis over the role of the other essential judicial activities for the effectiveness of public policies is carried on. The author assesses the activities of the Public Prosecutor Office on the control over the budget implementation, as well as the available tools given for that, among which the public civil lawsuit (class action), the civil investigation, the term of adjustment of conduct and the ministry recommendation. The role of the Public Defense Office is analyzed under the standpoint of the required structuring of the career in all Federative States, as well as under the protection of the interests of careless individuals, not only in Courts, but also through a global legal orientation. On the role of the Public Advocacy, the assessment of the public attorneys’ behavior in taking care of such procedures, the functional independence and the orientation from the federative body for the collaboration for the effectiveness of public policies is carried on. Key-words: Public policies. Judicial control. Weighing of the principles of possible Reservation. Minimal existentialism. Budget. Judicial tools. Alternative methods. Institutional role of the Public Prosecutor Office, Public Defense Office and Public Advocacy. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 11 PARTE I A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES E AS POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................................................................... 15 Capítulo 1 FUNÇÕES ESTATAIS .................................................................................... 16 1.1 A divisão das funções estatais ................................................................................ 16 1.1.1 Critérios utilizados pela doutrina para a distinção das funções estatais . 17 1.1.1.1 Críticas à tríplice divisão das funções estatais .................................... 20 1.1.1.2 A opção pela utilização do critério formal ............................................. 22 1.2 Função política ou de governo e as políticas públicas ..................................... 24 1.3 As funções estatais e as políticas públicas ......................................................... 28 PARTE II POLÍTICAS PÚBLICAS .................................................................................... 31 Capítulo 2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ....... 32 2.1 Conceito de política pública ...................................................................................... 32 2.2. Características das políticas públicas ................................................................... 36 2.2.1 Programas comissivos ou omissivos do Estado ............................................. 36 2.2.2 A noção de estabilidade .......................................................................................... 37 2.2.3 A possibilidade de controle judicial ..................................................................... 38 2.2.4. O elemento teleológico ........................................................................................... 38 2.2.5 Condicionantes para a existência de uma política pública ........................... 39 2.2.5.1 Deliberação política ....................................................................................... 39 2.2.5.2 Atividade normativa....................................................................................... 40 2.2.5.3 Atos de execução com conhecimento técnico ...................................... 42 PARTE III O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .......................... 44 Capítulo 3 DEMOCRACIA E FUNDAMENTOS DO CONTROLE JUDICIAL ........... 45 3.1 A democracia e a intervenção de juízes não eleitos no processo de tomada de decisões ........................................................................................................ 45 3.1.1 Democracia representativa e participativa: o papel do Poder Judiciário . 47 3.2 O controle judicial dos atos do Executivo e do Legislativo .............................. 49 3.3 Representatividade política e legitimidade do juiz para a análise das políticas públicas .............................................................................................. 51 3.3.1 Justiça distributiva e justiça corretiva ............................................................... 57 Capítulo 4 PROCEDIMENTO DA PONDERAÇÃO E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO NORTEADORES DAS DECISÕES JUDICIAIS ........................................................................................................... 59 4.1 O procedimento da ponderação de Robert Alexy ................................................ 59 4.2 Os princípios constitucionais como norteadores das decisões judiciais .... 64 4.2.1 O princípio da isonomia........................................................................................... 65 4.2.2 Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ................................. 68 Capítulo 5 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS À INTERVENÇÃO JUDICIAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS ....................................................... 72 5.1 Argumentos favoráveis ao controle judicial ......................................................... 72 5.1.1 O princípio da máxima efetividade das normas constitucionais ................. 72 5.1.1.1 Os direitos humanos, os direitos fundamentais e os direitos sociais ............................................................................................................................... 72 5.1.1.2 Direitos humanos e suas gerações ........................................................... 73 5.1.1.3 Crítica à divisão doutrinária ........................................................................ 74 5.1.1.4 Os direitos fundamentais ............................................................................. 75 5.1.1.5 Os direitos sociais como espécie do gênero direitos fundamentais ............................................................................................................................... 78 5.1.2 Mínimo existencial ................................................................................................... 82 5.1.2.1 A inadequação da teoria da felicidade ..................................................... 86 5.1.2.2 A teoria da vedação do retrocesso ........................................................... 88 5.2. Argumentos contrários ao controle judicial......................................................... 90 5.2.1 Reserva do possível ................................................................................................ 90 5.2.2 A questão orçamentária ......................................................................................... 96 5.3 Compatibilização entre os argumentos favoráveis e contrários ao controle judicial das políticas públicas ..................................................................... 102 5.3.1 O exemplo dos medicamentos ............................................................................ 108 Capítulo 6 INSTRUMENTOS PARA A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ............................................................................................................................. 115 6.1 Controle de constitucionalidade............................................................................. 115 6.2 Omissão legislativa e o mandado de injunção. .................................................. 116 6.3 Controle do ato administrativo ............................................................................... 119 6.3.1 Conceitos fluidos, vagos ou imprecisos........................................................... 126 6.4 Tutelas de remoção de ilícito ................................................................................. 129 6.4.1 Condenação em obrigação de fazer .................................................................. 130 6.4.2 Aplicação de multa diária ...................................................................................... 134 6.4.3 Intervenção no Estado ou no Município ........................................................... 134 6.4.4 Responsabilização do agente público ............................................................... 135 6.4.4.1 Responsabilização por ato de improbidade administrativa ............. 135 6.4.4.2 Responsabilização criminal ...................................................................... 136 6.4.5 A insuficiência das tutelas de remoção de ilícitos em casos extremos e o sequestro de verbas públicas .............................................................. 137 6.4.5.1 A inadequação do sequestro de verbas públicas com base no artigo 461, § 5.º, do Código de Processo Civil.................................................... 142 6.5 Métodos alternativos de solução de conflitos: a conciliação e a mediação no controle das políticas públicas ............................................................. 145 6.5.1 Política pública de tratamento adequado dos conflitos veiculada pela Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça ................................. 146 6.5.2 Aplicação dos métodos alternativos de solução de conflitos em políticas públicas ...................................................................................................................... 150 PARTE IV O PAPEL DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA PARA A EFETIVAÇAO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .............................................. 155 Capítulo 7 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ................................................ 156 7.1 Instrumentos judiciais e extrajudiciais à disposição do Ministério Público ............................................................................................................................. 160 7.1.1 Controle da execução do orçamento e dos processos licitatórios ........... 160 7.1.2 O inquérito civil público......................................................................................... 164 7.1.3 O termo de ajustamento de conduta .................................................................. 167 7.1.4 A recomendação ministerial ................................................................................. 169 Capítulo 8 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA.............................................. 175 8.1 A atuação na implementação do orçamento ....................................................... 176 8.2 A legitimação no tema das políticas públicas .................................................... 178 8.3 A necessidade de estruturação adequada da instituição ................................ 180 Capítulo 9 A ATUAÇÃO DA ADVOCACIA PÚBLICA ............................................... 188 9.1 A responsabilidade dos advogados públicos na condução dos processos ............................................................................................................................. 188 9.2 A independência funcional do advogado público ............................................. 193 9.3 A colaboração para a efetivação das políticas públicas .................................. 194 PARTE V CONCLUSÃO ................................................................................................... 196 Capítulo 10 SÍNTESE E CONCLUSÃO .......................................................................... 197 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 212 11 INTRODUÇÃO O presente trabalho examina a questão do controle judicial e o papel das funções essenciais à Justiça para a efetivação das políticas públicas em nosso país. Não obstante o tema seja recorrente na doutrina e jurisprudência pátrias, certo é que ainda não há consenso sobre os limites da intervenção judicial nas políticas públicas, tampouco foram fixados parâmetros objetivos para a utilização de argumentos como a reserva do possível, mínimo existencial e a limitação orçamentária estatal. As formas de coerção da administração pública no cumprimento das decisões judiciais também é tema que gera muita controvérsia e merece menção especial, além dos métodos alternativos de solução de litígio. Ademais, será analisada a necessidade de as demais instituições essenciais à Justiça assumirem seu papel constitucional na formulação, implementação e fiscalização das políticas públicas, mediante atuação mais efetiva nessa seara, somando esforços àquilo que já é feito diuturnamente pelo Poder Judiciário. Fixado o objeto de estudo, o trabalho é dividido em cinco partes e é composto por dez capítulos. A primeira parte traz considerações preliminares essenciais ao estudo do tema e se refere à teoria da separação das funções estatais e às políticas públicas. O Capítulo 1 apresenta um estudo sobre a divisão das funções estatais e a opinião de doutrinadores nacionais e estrangeiros sobre o tema, com a sistematização e as críticas aos critérios adotados, além das controvérsias em torno da existência da função política ou de governo e sua ligação com as políticas públicas. A complexidade das funções estatais perante a separação de poderes observada na sociedade moderna é aspecto relevante para a fixação da natureza jurídica das políticas públicas. 12 A segunda parte do trabalho introduz o estudo do tema propriamente dito e versa sobre as políticas públicas. O Capítulo 2 aborda o conceito e as características das políticas públicas. Na terceira parte, será submetido à análise o controle judicial das políticas públicas. No Capítulo 3 o estudo será voltado ao tema da democracia e dos fundamentos do controle judicial sobre os atos dos demais poderes, além da questão da representatividade política dos juízes e o papel do Judiciário como fonte legitimadora de participação democrática da população no Estado moderno. É feito o estudo do tema dos direitos humanos, fundamentais e sociais, visando os paradigmas fixados pela Constituição Federal. No Capítulo 4 dedica-se à apreciação do procedimento da ponderação proposto por Robert Alexy e aos princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade como norteadores do magistrado no controle judicial das políticas públicas, com menção ao tema do fornecimento de medicamentos pelo Estado. No Capítulo 5 são analisados os argumentos favoráveis e contrários à intervenção judicial nas políticas públicas, o que abrange o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, os temas da reserva do possível, do mínimo existencial, das teorias da felicidade e da vedação do retrocesso, além das questões envolvendo o orçamento público, com proposta de adoção de critérios objetivos para solucionar as controvérsias advindas dessa discussão. O Capítulo 6 traz um estudo dos instrumentos para a efetividade das políticas públicas, o que envolve o controle da constitucionalidade, da omissão legislativa e do mandado de injunção como instrumento processual para supri-la, bem como o controle dos atos administrativos e os limites da intervenção judicial nessa seara, principalmente diante dos chamados conceitos fluidos, vagos ou imprecisos. 13 Sobre as tutelas de remoção de ilícito serão examinadas a condenação em obrigação de fazer, a aplicação de multa diária, a responsabilização do agente público por ato de improbidade administrativa e por conduta criminal e a intervenção no Estado ou Município. Também serão analisados a questão excepcional do sequestro de verbas públicas e os instrumentos processuais para sua efetivação. Nesse capítulo também serão trazidos à análise os métodos alternativos de solução de conflitos, dentre eles a mediação e a conciliação como eficazes instrumentos para tratar conflitos envolvendo políticas públicas, além da política pública de tratamento adequado dos conflitos veiculada pelo Conselho Nacional de Justiça. Na quarta parte do trabalho será estudado o papel das funções essenciais à Justiça para a efetivação das políticas públicas, o que engloba o trabalho do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública. Pretende-se propor uma solução de controle também pelas outras instituições republicanas para que assumam o papel que lhes é conferido pela Carta Constitucional. No Capítulo 7 serão abordados o papel institucional do Ministério Público e os instrumentos judiciais e extrajudiciais existentes para sua colaboração com a efetivação das políticas públicas. Será enfatizada a necessidade de aumento do controle dos gastos públicos pela atuação firme do Ministério Público, com a fiscalização da implementação do orçamento e do processo licitatório, como também a importância do inquérito civil público, do termo de ajustamento de conduta e da recomendação ministerial. O Capítulo 8 traz o estudo sobre o papel institucional da Defensoria Pública para a promoção e realização das políticas públicas envolvendo as pessoas carentes, seu dever de fiscalizar a implementação do orçamento, sua legitimidade para atuação e a necessidade de estruturação da carreira para que cumpra o seu mister constitucional. O Capítulo 9 aborda o papel institucional da Advocacia Pública e a sua responsabilidade na condução dos processos, além da independência funcional do 14 advogado público e os instrumentos para sua colaboração com a efetivação das políticas públicas. Na quinta e última parte do trabalho são apresentadas a síntese e as conclusões do estudo. O tema é atual, e é discutido diuturnamente nos tribunais e bancos acadêmicos por envolver todas as esferas de poder e atingir diretamente os membros da sociedade. Essas são algumas das questões que se aspira tratar no presente estudo, sem a pretensão de esgotar o tema, que se afigura muito amplo e complexo. 15 PARTE I A TEORIA DA SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES E AS POLÍTICAS PÚBLICAS 16 Capítulo 1 FUNÇÕES ESTATAIS Os atuais estados democráticos de direito adotam, desde a queda dos regimes absolutistas e da revolução americana e francesa, uma estratégia de contenção recíproca do poder político consubstanciada na divisão das funções estatais entre os diferentes sujeitos estatais. A ideia de separação de poderes, com antecedentes em Aristóteles e em Locke, consagrou-se e difundiu-se na formulação de Montesquieu, também se assenta no princípio democrático e é inegavelmente uma estratégia política prevista pelo texto constitucional para controlar reciprocamente o poder e evitar seu abuso. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: Esta trilogia não reflete uma verdade, uma essência, algo inexorável proveniente da natureza das coisas. É pura e simplesmente uma construção política invulgarmente notável e muito bem-sucedida, pois recebeu amplíssima consagração jurídica. [...] A saber: impedir a concentração de poderes para preservar a liberdade dos homens 1 contra abusos e tiranias dos governantes. De forma ainda simplista, aplicando-se o conceito clássico de divisão de poderes, ao Executivo e Legislativo incumbe, entre outras atribuições, definir e implementar políticas públicas, e, para isso, contam com a legitimação da sociedade exercida por meio do voto. Ao Judiciário cabe o dever de decidir os conflitos no caso concreto, com força de coisa julgada, com a finalidade última de pacificação social, além de decidir questões atinentes à constitucionalidade e interpretação das leis. 1.1 A divisão das funções estatais O estudo da divisão das funções estatais é imprescindível ao tema do controle de políticas públicas porque trará o inevitável questionamento da 1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 31. 17 prevalência da vontade de agente político não escolhido pela população, mas sim por critério de seleção interna aplicado pelos membros do próprio Poder – juiz – em detrimento da vontade dos governantes eleitos pela população, além da ingerência do Poder Judiciário sob a esfera de atribuições da administração pública e do Legislativo. Existe grande divergência doutrinária a respeito da divisão das funções estatais e do tema da tripartição do poder, havendo, inclusive, quem rechace a tríplice divisão clássica adotada pela doutrina majoritária, afirmando ser uma visão artística, destituída de rigor científico. Não obstante tal posicionamento, certo é que a divisão das funções estatais merece estudo aprofundado porque retrata a divisão atual do Estado brasileiro e da maioria dos Estados democráticos no mundo. 1.1.1 Critérios utilizados pela doutrina para a distinção das funções estatais A doutrina utiliza fundamentalmente três critérios para distinguir as funções estatais. São eles: o critério orgânico ou subjetivo; o critério material e o critério formal. No critério orgânico ou subjetivo identifica-se a função estatal a partir do órgão ou sujeito que a produz. Assim, será função judicial todo e qualquer ato produzido pelo Judiciário, será função administrativa todo e qualquer ato produzido pelo administrador (ou Executivo) e será função legislativa todo e qualquer ato expedido pelo Legislativo. Esse critério se mostra insuficiente em virtude do exercício de atividades típicas e atípicas pelos sujeitos estatais, tendo em conta que o Judiciário exerce função administrativa quando nomeia seus funcionários, bem como desempenha função legislativa quando elabora seus regimentos internos. O mesmo ocorre com os demais sujeitos estatais quando exercem função que não lhes é típica, por exemplo, o Executivo realiza função legislativa ao editar medidas provisórias e o Legislativo executa função judicial nos julgamentos de impeachment do Presidente da República. 18 O critério orgânico ou subjetivo não pode, portanto, ser adotado isoladamente como critério diferenciador das funções do Estado. Para o critério material busca-se a identificação da função estatal a partir de elementos intrínsecos a ela, ou seja, pretende-se alcançar a essência da atividade, residente em seu objeto. Assim, será função legislativa a expedição de comandos gerais e abstratos, será função jurisdicional a resolução imperativa de conflitos e será função administrativa a execução direta e imediata das necessidades públicas. A crítica a este critério é no sentido de que não há verdadeiramente uma essência das funções estatais, algo que lhe seria intrínseco, mas sim decorrente daquilo que o direito lhe atribui. O critério material não seria capaz de identificar a função administrativa de forma adequada, dado que essa função é a mais complexa de todas. Agustín Gordillo, após reconhecer a dificuldade lógica da matéria, afirma que ater-se a este critério é como dizer que os três poderes realizam as três funções e que não existem, em suma, divisão de poderes nem sistema de freios e contrapesos.2 O último critério, chamado de critério formal, é aquele que identifica a função a partir de características impregnadas pelo direito, ou seja, o tratamento normativo dado a determinada atividade identificará a função estatal respectiva. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, este é o critério adequado para identificar as funções do Estado: Assim, função legislativa é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e imediatamente na Constituição. Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa julgada”, atributo este que 2 Nas palavras do Autor: “atenerse a este criterio es como decir que los três poderes realizan lãs três funciones y que no existe, en suma, división de poderes ni sistema de frenos y contrapesos alguno” (GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Parte Geral. 8. ed. Buenos Aires: FDA, 2003. t. 1, p. IX-7). 19 corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso. Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle 3 de legalidade pelo Poder Judiciário (grifos no original). No mesmo sentido leciona Renato Alessi. Para esse autor, função legislativa é a expedição de atos de produção jurídica primários, com caráter imediato, pois exerce direta e imediatamente o poder soberano estatal. Nessa função, o Estado regula as relações estando acima e à sua margem. Função jurisdicional é a expedição de atos de produção jurídica subsidiários, com caráter mediato, pois é responsável pela concretização e atuação coativa dos atos primários. Nessa função, o Estado também está acima e à margem das relações. Função administrativa é a expedição de atos de produção jurídica complementares, com caráter mediato, pois é responsável pela aplicação concreta do ato de produção jurídica primário. Nessa função, diferentemente das demais, o Estado atua como parte e sujeito da relação, em situação de superioridade. Por sua vez, Agustín Gordillo,4 propugnando uma solução prática para o problema, afirma que os órgãos estatais não se limitam a realizar a função que lhes corresponde tipicamente; o Legislativo e Judiciário também exercem função administrativa, salvo o Executivo que não pratica função atípica. Adota o critério misto orgânico-material para definir as funções legislativa e jurisdicional e o critério residual para definir a função administrativa. Explica que a função legislativa é a criação de normas gerais de conduta e se lhe aplica o regime jurídico legislativo, que é a produção de atos materialmente legislativos unicamente pelo órgão legislativo. A função jurisdicional é a decisão imperativa de conflito entre as partes e se lhe aplica o regime jurídico judiciário, que é a produção de atos materialmente judiciais unicamente pelo órgão judicial. 3 4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 35-36. GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Parte Geral. 8. ed. Buenos Aires: FDA, 2003. t. 1, passim. 20 No que tange à função administrativa, adota primeiramente o critério residual, baseado no critério orgânico-material, afirmando que são as manifestações concretas da vontade estatal que realiza o Poder Executivo. Em um segundo momento, aplica o critério orgânico, sustentando que também é função administrativa a expedição de atos materialmente administrativos produzidos por quaisquer dos órgãos, e os atos materialmente legislativos praticados pelo Executivo, dado que este não pratica função atípica. Conclui que o conceito de função administrativa é o mais indefinido de todos, pois não possui conteúdo único e também porque esta função é exercida por todos os órgãos estatais, desde que o façam com a aplicação do regime jurídico administrativo. 1.1.1.1 Críticas à tríplice divisão das funções estatais A formulação clássica da tripartição de poderes e divisão das funções estatais entre Judiciário, Executivo e Legislativo é criticada por diversos autores, dentre os quais se destaca Francis-Paul Benoit.5 Para esse autor, tal concepção não passa de uma visão artística do problema que não pode ser utilizada pelos juristas, uma vez que totalmente destituída de valor científico, eis que revela apenas a ideologia política revolucionária da época, sem rigor científico. Bénoit assevera que há uma pluralidade de missões estatais que são divididas entre o que denomina de Estado-nação e Estado-coletividade. O Estado, portanto, possui uma dupla personalidade e realiza missões, que são um conjunto de atribuições de mesmo conteúdo. 5 “L’analyse de Montesquieu n’est done qu’une vue de l’esprit; elle n’est pas l’expression des réalités du droit positif à un moment donné. Elle relève de l’art politique, c’est-à-dire de la recherché des solutions contingents, et de l’idéologie, c’est-à-dire dês systèmes d’idées avances pour faire admettre lê choix de l’une de ces solutions. C’est done une vision artistique proposée comme modele à suivre; mais ce n’est em rien une ceuvre scientifique, c’est-à-dire une analyse des réalités ayant valeur explicative” (BÉNOIT, Fracis Paul. Le droit administratif français. Paris: Dalloz, 1968. v. 2, n. 30-73, p. 27-52). 21 O Estado-nação possui fundamentalmente duas missões: a parlamentar – de criação do direito interno; e a governamental – de direção de política externa e interna. O Estado-coletividade é subordinado ao Estado-nação e executa a missão administrativa, como também uma série de outras missões como a de ensino, a judiciária, a de pesquisa, e aqui repousa o estudo do direito administrativo. Amplia as funções estatais e adota a mistura dos critérios orgânico, material e formal para defini-las. Utiliza os conceitos de missão, órgão e regime da seguinte forma: para definir missão faz uso do critério material; após emprega o critério orgânico de acordo com o sujeito que realiza a missão; e, por fim, aplica o critério formal, acrescentando o regime jurídico aplicável. Para Bénoit, somente a análise por meio desses critérios é capaz de identificar as funções estatais. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello6 também critica a tripartição clássica apresentada por Montesquieu. Baseando-se na corrente filosófica aristotélicotomista – que visa a essência das coisas e a natureza do objeto de estudo –, o autor afirma que a finalidade do Estado é a busca do bem comum. O Estado é uno, mas possui uma dupla função: Estado-poder e Estado-sociedade. A ordenação jurídica do Estado-poder diz respeito à própria organização jurídica do Estado, enquanto o Estado-sociedade refere-se à organização da vida social de seus indivíduos. Afirma que o Estado-poder possui três órgãos fundamentais: o Poder Legislativo, que representa as diferentes correntes de opinião pública nacional, mediante a elaboração das leis; o Poder Executivo, que efetiva de modo prático as normas; e o Poder Judiciário, que resolve as controvérsias entre as partes. Alerta, no entanto, que os órgãos do Estado-poder não podem ser confundidos com as suas funções, as quais, em sua opinião, são somente duas: a função administrativa e a função jurisdicional. 6 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. v. 1, cap. I, passim. 22 A função administrativa engloba as ações legislativa e executiva, e sua finalidade é a realização e integração da ordem social e jurídica. Possui caráter operativo porque interfere na vida social dos indivíduos, e nesta função o Estado atua como parte; sua virtude é a prudência, mediante o uso da reta razão, pois as ações de legislar e executar correspondem a uma mesma função – a função administrativa –, embora exercida em momentos sucessivos, dado que ambas têm a mesma essência. Por seu turno, a função jurisdicional, com essência diversa daquela, engloba a ação de julgar e possui caráter eminentemente contemplativo. Sua finalidade é a reintegração e manutenção da ordem jurídica, e nesta função o Estado atua como terceiro, e sua virtude é a justiça. Outro autor que diverge da tríplice divisão de funções é Hans Kelsen, reduzindo as funções do Estado à normativa e à executiva, envolvendo esta última a administrativa e a jurisdicional.7 Destaca que existem apenas duas funções estatais: a de criar o direito, que se dá por meio da legislação; e a de executar o direito, que é feita pela administração e pelo Judiciário. Estes são, pois, os autores que apresentam críticas mais contundentes acerca da tríplice divisão das funções estatais, e cada qual propõe o estudo do tema sob óticas diferentes. Não obstante as críticas acima formuladas, certo é que a maioria dos autores adota a tripartição de funções como premissa de suas conclusões, seja porque na visão de alguns decorre da essência das coisas, seja em virtude da consagração que a divisão clássica possui. 1.1.1.2 A opção pela utilização do critério formal 7 KELSEN, Hans. Teoría general del derecho y del Estado. Tradução de Eduardo García Maynez. México: Imprensa Universitária, 1950. p. 268-269. 23 Os chamados poderes do estado democrático de direito brasileiro, divididos em Legislativo, Executivo e Judiciário, são meras divisões orgânicas do Estado, voltadas à realização do bem comum. Essa trilogia não revela a essência ou a natureza das coisas, mas a formulação clássica tem o mérito de propor uma fórmula razoavelmente eficiente de controle recíproco do poder, visto que as funções do Estado são divididas entre os sujeitos estatais, o que evita abusos e tiranias provenientes da concentração de poder, garantindo a liberdade dos indivíduos. Ocorre que este poder estatal é, na verdade, objeto de um dever jurídico de atingir finalidades de interesse coletivo, pois o poder é manejado exclusivamente para alcançar as finalidades públicas; portanto, ele é instrumental.8 Segundo Renato Alessi, o poder estatal, dirigido a atingir finalidades de interesse coletivo, deve observar um dever jurídico quando de sua utilização, pois constitui uma função estatal.9 E o Estado, por sua vez, é a organização política dos indivíduos de um determinado território e tem como elemento essencial o ordenamento jurídico. Pontifica Otto Mayer que o Estado é o povo organizado debaixo de um poder soberano para a persecução de seus interesses. A administração é a atividade do Estado para o cumprimento de seus fins.10 8 Celso Antônio Bandeira de Mello ensina: “Comece-se por dizer que função pública, no Estado Democrático de Direito, é a atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 29). 9 Nas palavras do autor: “Precisamente el poder estatal, considerado como dirigido a estas finalidades de interese coletivo, y en cuanto objeto de un deber jurídico en relación con su applicación, constituye una función estatal” (ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Tradução da 3.ª edição italiana por Buenaventura Pellisi Prats. Barcelona: Bosch, 1970. t. 1, p. 5). 10 Nas palavras do autor: “El Estado es un pueblo organizado bajo un poder soberano para la persecución de sus intereses. La administración es la actividade del estado para el cumprimento de sus fines” (MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 1982. t. I, p. 3). 24 Assim, o Estado é uno e a tríplice divisão de suas funções é uma fórmula utilizada para a contenção recíproca do poder. Renato Alessi vai além ao afirmar que a existência das três funções estatais decorre da ordem lógica das coisas.11 Há grande divergência entre os autores acerca dos critérios a serem utilizados para identificar as funções. Alguns adotam critérios mistos, enquanto outros fixam suas premissas em apenas um critério, e até em critério residual, conforme mencionado. Apesar da divergência que o tema encerra, a utilização do critério formal mostra-se a mais adequada para identificação das funções estatais, levando-se em conta as características fixadas pelo direito, visto que não há verdadeiramente uma essência das atividades estatais, o que afasta o critério exclusivamente material, como também diante da insuficiência do critério orgânico, dado que os sujeitos estatais praticam funções típicas e atípicas. O critério misto, por sua vez, deve ser afastado porque a utilização de diversos critérios para definir uma função estatal é censurável metodologicamente, pois não obedece ao rigor lógico exigido da produção científica. A utilização do critério residual também não é adequada pela ausência de rigor lógico-formal, pois define negativamente o objeto de estudo. 1.2 Função política ou de governo e as políticas públicas Além das funções estatais já estudadas, há uma quarta função estatal referida por alguns autores e fulminada por outros: a chamada função política ou de governo. 11 “Se suelen distinguir las funciones, así como lo mismo los poderes estatales, en tres grandes categorías: legislativas, jurisdiccionales y administrativas. Esta tripartición hace más de dos siglos que se mantiene, encontrando de otra parte un fundamento en el propio orden lógico de las cosas” (ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Tradução da 3.ª edição italiana por Buenaventura Pellisi Prats. Barcelona: Bosch, 1970. t. 1, p. 6). 25 Celso Antônio Bandeira de Mello aponta a sua existência, nos seguintes termos: Atos políticos ou de governo, praticados com margem de discrição e diretamente em obediência à Constituição, no exercício de função puramente política, tais o indulto, a iniciativa de lei pelo Executivo, sua sanção ou veto, sub color de que é contrária ao interesse público, etc. Por corresponderem ao exercício de função política e não administrativa, não há interesse em qualificá-los como atos administrativos, já que sua disciplina é peculiar. Inobstante também sejam controláveis pelo Poder Judiciário são praticados de modo amplamente discricionários, além de serem expedidos em nível imediatamente infraconstitucional e com discricionariedade – ao 12 invés de infralegal – o que lhes confere fisionomia própria . De acordo com Otto Mayer, função política é a atividade de governo produtora de atos políticos e de gestão, de natureza discricionária e relativa à alta direção do Estado. Sai da ordem jurídica e está ligada com o direito das gentes.13 Para Renato Alessi a função política ou de governo implica uma atividade de ordem superior referente à direção suprema e geral do Estado em seu conjunto e sua unidade, dirigida a determinar os fins da ação do Estado, a sinalizar as diretrizes para as outras funções, buscando a unidade de orientação que corresponde à fundamental unidade da soberania estatal.14 Não obstante afirme a existência da função política ou de governo, reconhece que é uma função cujos caracteres e sobretudo cujos limites não estão definidos pela doutrina. Luis Manoel Fonseca Pires conceitua função política como “a função pública (ou ‘poder público’) que caracteriza o gênero do qual se especializam as demais funções: a legislativa, a executiva (ou administrativa) e a judicial” (grifos no 12 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 384. 13 MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 1982. t. I, p. 92. 14 Nas palavras do autor: “existe la función política o de gobierno, función que implica una actividad de orden superior referida a la dirección suprema y general del Estado en su conjunto y en su unidad, dirigida a determinar los fines de la acción del Estado, a señalar las directrices para las otras funciones, buscando la unidade de orientación que corresponde a la fundamental unidad de la soberania estatal” (ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Tradução da 3.ª edição italiana por Buenaventura Pellisi Prats. Barcelona: Bosch, 1970. t. 1, p. 9). 26 original).15 Define a função política como gênero das demais espécies de funções. Não reconhece uma autonomia da função política ou de governo. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, por seu turno, não concorda com a existência de uma função política ou de governo, afirmando que falta critério aceitável para delimitar essa função perfeitamente. E pontifica: Nada justifica no Estado de Direito essa figura de atos de governo em oposição aos atos administrativos. Se dizem respeito à manifestação da vontade individual, concreta, pessoal, do Estado, enquanto Poder Público, na consecução do seu fim, de criação e realização da utilidade pública, de modo direto e imediato, para produzir efeitos de direito, constituem atos administrativos. Se violarem a lei e ofenderem direitos de terceiros ou lhes causarem danos, cumpre estejam sujeitos à apreciação do Judiciário. No Estado de Direito torna-se inadmissível atividade insuscetível de 16 controle do Judiciário quando viola direitos e causa danos. Além disso, os supostos atos políticos ou de governo, ainda que expedidos no exercício de função puramente política, deverão observar os ditames constitucionais, atentar para os princípios da igualdade, razoabilidade, proporcionalidade, legalidade, impessoalidade, motivação, entre outros, ainda que se admita uma discricionariedade mais ampla. Dessa forma, não obstante os respeitosos posicionamentos que admitem a existência de uma quarta função – política ou de governo –, nenhum deles ofereceu critério diferenciador adequado para delimitar perfeitamente tal função. Não há, pois, aspectos materiais, formais ou orgânicos que possam confirmar a autonomia de uma função política ou de governo distinta da função administrativa. A função política ou de governo deve ser entendida como espécie do gênero função administrativa. Tal entendimento, contudo, não afasta a admissão da existência de atos de governo ou atos puramente políticos, que não se confundem com os atos administrativos propriamente ditos. O que se pretende afastar é a existência de uma função política ou de governo autônoma, visto que tanto a expedição de atos 15 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. São Paulo: Campus Jurídico, 2008. p. 269. 16 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. v. 1, p. 480-481. 27 políticos ou de governo quanto a expedição de atos administrativos revelam o exercício de função administrativa. Tratando especificamente do tema objeto de estudo, afigura-se imperioso afastar a noção de que as políticas públicas são atos de governo ou revelam o exercício de função política, não obstante a existência de algumas vozes dissonantes.17 A definição de uma determinada política pública não é em sua essência um ato político ou de governo, não obstante envolva a eleição, pelo administrador, de um programa social ou econômico de governo. Na política pública o governante deverá observar os ditames constitucionais; deverá atentar para os princípios da igualdade, razoabilidade, proporcionalidade, legalidade, impessoalidade, motivação; deverá seguir as regras orçamentárias e os limites de gastos visando atender o mínimo existencial e os direitos fundamentais, além de outros direitos legalmente previstos, enquanto nos atos de governo há uma discricionariedade muito mais ampla que emana diretamente da Constituição. Além disso, é preciso levar em conta que uma grande gama de políticas públicas é prevista expressamente na Constituição, e ao poder público cabe apenas o dever de implementá-las, havendo verdadeira vinculação quanto à atuação estatal, o que não existe no âmbito dos atos políticos ou de governo, que são, por essência, discricionários. Não se podem confundir, portanto, políticas públicas com o exercício de ato de governo. Nessa esteira, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen: 17 Eduardo Appio sustenta que as políticas públicas são espécie de atos políticos: “Cumpre assinalar, desde logo, a importante distinção entre o controle judicial dos atos administrativos e políticos, na medida em que, enquanto os primeiros são tradicionalmente marcados pela oposição interesse público versus interesse individual, os últimos são marcados pela contraposição entre interesses públicos. Este é o principal motivo pelo qual os princípios que regem o Direito Administrativo brasileiro não podem ser indistintamente aplicados ao controle dos atos políticos, tendo em vista que a definição do conteúdo do interesse público no caso concreto demanda um ato de vontade política por parte dos governos eleitos. Albuquerque, ao sustentar que o controle dos atos políticos é tarefa exclusiva do Supremo Tribunal, adverte que “é, na verdade, grande falta de imaginação submeter o ato político ao mesmo tratamento exegético dispensado aos atos administrativos em geral” (APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2006. p. 110). 28 Os atos da administração, visando a implementação de políticas públicas, não diferem dos demais atos administrativos, estando vinculados ao princípio da legalidade (e obviamente à constitucionalidade) e à legitimidade (o interesse público, que é a finalidade de qualquer ato administrativo.18 1.3 As funções estatais e as políticas públicas As políticas públicas se revelam como uma atividade administrativa complexa destinada a atingir prestações voltadas ao bem comum e, no mais das vezes, compreendem o exercício de todas as funções estatais para sua formulação e implementação. Explica Dalmo de Abreu Dallari que bem comum “é conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”.19 Diante da complexidade do tema, a doutrina se divide para estabelecer a natureza jurídica das políticas públicas, abrindo-se alternativas para entendê-las como categoria jurídica nova ou como resultado da sistematização de categorias que já integram a ordem jurídica tradicional. Há quem entenda, ainda, as políticas públicas como processo, eis que visam produzir efeitos e realizar metas voltadas para a população. Assim se manifesta Maria Paula Dallari Bucci sobre um dos aspectos das políticas públicas.20 Contudo, embora o processo de formação de determinada política pública deva ser entendido como relevante para sua plena implementação, sua natureza jurídica não é meramente processual, na medida em que as políticas públicas não se resumem a fins em si mesmos, pois, se fosse simples, bastaria aplicar as técnicas processuais adequadas para atingir os objetivos pretendidos, o que retiraria os demais componentes do tema. 18 FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e do Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 90. 19 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 41. 20 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 264-265. 29 O que se vislumbra é que a separação de poderes atual revela verdadeira complexidade das funções estatais e coloca em xeque a tradicional concepção de que as políticas públicas são apenas formulações de governo, cabendo ao Executivo a execução das políticas públicas previamente aprovadas pelo Legislativo. Neste diapasão, há grande pressão para que o Estado assuma maior papel na prestação de serviços públicos, ampliando o número de políticas públicas complexas, que envolvem a atuação de todos os entes estatais. Esse quadro, aliado à ampliação do acesso ao Judiciário, gera a crescente ampliação da participação desse Poder nas políticas públicas, mormente ao obrigar o Estado a prestações positivas. Diante disso, é possível observar que todas as funções estatais se revelam nas políticas públicas, trazendo a conclusão de sua natureza jurídica de atividade administrativa complexa. A primeira função que se revela é a administrativa, presente em todas as suas fases, dentre elas a de formação, implementação e avaliação de uma política pública. A função administrativa se mostra presente desde a escolha da política pública a ser criada, na forma de implementação e na posterior avaliação dos benefícios obtidos. A existência de determinada política pública também depende do exercício da função legislativa, mediante a elaboração de leis e atos normativos aptos a introduzir o programa no ordenamento jurídico. E ainda é possível vislumbrar o exercício de função judicial na política pública, embora seu exercício seja mais frequente a posteriori, em eventual necessidade de análise de caso concreto submetido a julgamento pelo Judiciário. Ocorre, todavia, que seja em casos de omissão dos demais Poderes, seja em atenção aos ditames constitucionais, deverá o Judiciário, no exercício de função jurisdicional, tratar de políticas públicas. 30 Não obstante a complexidade do tema, para o estudo das políticas públicas é necessária a análise da sistematização jurídica já existente, principalmente relacionada ao direito administrativo e constitucional, atentando-se para a peculiaridade do tema, sem a necessidade de criação de uma categoria jurídica nova. Dessa forma, apesar do respeitável posicionamento de diversos doutrinadores, não é necessário desenvolver novos critérios para o estudo das políticas públicas, já que o arcabouço jurídico existente no direito brasileiro é suficiente para a análise do tema. É imperioso, contudo, o estudo aprofundado das atividades administrativas, além das questões relativas aos direitos fundamentais, à reserva do possível, ao mínimo existencial e às amarras orçamentárias. Ainda, relevante se faz o estudo sobre o controle judicial das políticas públicas, adotando como norte os princípios constitucionais que balizam o tema e o método da ponderação, além do papel das demais instituições democráticas brasileiras, já previsto no ordenamento constitucional. 31 PARTE II POLÍTICAS PÚBLICAS 32 Capítulo 2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS O Estado contemporâneo atua constantemente por meio de políticas públicas, realizadas de forma satisfatória ou não. No entanto, esse tema só recentemente passou a fazer parte das investigações e sistematizações no campo do Direito.21 Para abordá-lo em seus múltiplos aspectos, é necessário delimitar a sua compreensão histórica, ainda que recente, propor um conceito, determinar o seu alcance e formas de concretização, segundo os fundamentos e objetivos constitucionalmente previstos para o Estado brasileiro, consagrados, respectivamente, nos artigos 1.º e 3.º, bem como nos princípios e valores abraçados no Texto Magno. Importa, pois, delimitar aquilo que é necessário ter em mente para a existência das políticas públicas e as características que lhe são próprias. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “a melhor sistematização do tema será aquela que de maneira coerente proponha um esquema mental capaz de realçar o maior número de pontos importantes para o exame da produção e validade”.22 Nesse sentido, a presente sistematização não pretende afastar a sistematização jurídica já existente relacionada ao direito administrativo e constitucional, mas sim trazer à baila os aspectos peculiares das políticas públicas. 2.1 Conceito de política pública 21 Fábio Konder Comparato assinala que o conceito de política, no sentido de programa de ação, só recentemente passou a “fazer parte das cogitações da teoria jurídica”, por corresponder “a uma realidade inexistente ou desimportante antes da Revolução Industrial” (Ensaios sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio (Org.). Direito administrativo e constitucional: estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 352). 22 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 346. 33 A dificuldade de conceituar as políticas públicas do ponto de vista jurídico já foi observada pela doutrina, o que tem gerado divergências, com posicionamentos discrepantes. A maior parte dos doutrinadores que se dedica ao tema define política pública como programas de ações do Estado. Segundo Ronald Dworking, [...] “política” aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). [...] A ação do Estado por políticas se faz vinculada a direitos previamente estabelecidos ou a metas compatíveis com os princípios e objetivos constitucionais, de forma que, ainda quando aqueles a serem beneficiados não tenham um direito a certo benefício, a provisão deste benefício contribui para a implementação de um objetivo coletivo da comunidade política.23 Para Fábio Comparato a política ou “polícia” pública, como se dizia na antiga linguagem portuguesa, “é um programa de ação governamental. Ela não consiste, portanto, em normas ou atos isolados, mas consistem numa atividade ordenada de normas e atos, do mais variado tipo, conjugados para a realização de um objetivo determinado”. E acrescenta: “toda política pública, como programa de ação, implica, portanto, uma meta a ser alcançada e um conjunto ordenado de meios e instrumentos – pessoais, institucionais e financeiros – aptos à consecução desse resultado”.24 Reportando-se aos ensinamentos de Jean Carlos Dias, Eduardo Appio sustenta que “As políticas públicas são programas de sistematização de ações do Estado voltadas para a consecução de determinados fins setoriais ou gerais, baseados na articulação entre a sociedade, o próprio Estado e o mercado”.25 Américo Bedê Freire Junior, nessa mesma trilha, aceita o conceito apresentado e acrescenta que é por meio das políticas públicas que os direitos 23 DWORKING, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 36. COMPARATO, Fábio Konder. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Org.). Estudos de direito constitucional: homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 248. 25 APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil, Curitiba: Juruá, 2006, p. 133. 24 34 fundamentais são efetivados, atestando “que pouco vale o mero reconhecimento formal de direitos se ele não vem acompanhado de instrumentos para efetivá-los”.26 Maria Paula Dallari Bucci aponta um duplo aspecto de políticas públicas: como programa de ação governamental e como processo para a escolha de prioridades: Políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas públicas são “metas coletivas conscientes” e, 27 como tais, um problema de direito público, em sentido lato. As políticas públicas [...] devem ser vistas também como processo ou conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito e por isso se relaciona com o tema da discricionariedade administrativa.28 Por sua vez, Patrícia Helena Massa-Arzabe traz a noção de estabilidade ao conceito de políticas públicas, ao asseverar que não devem estar ligadas a um governante de plantão ou a uma vontade política eleitoreira: As políticas públicas podem ser colocadas sempre sob o ângulo da atividade como conjunto de programas de ação governamental estáveis no tempo, racionalmente moldadas, implantadas e avaliadas, dirigidas à realização de direitos e de objetivos social e juridicamente relevantes, notadamente plasmados na distribuição e redistribuição de bens e posições que concretizem oportunidades para cada pessoa viver com dignidade e exercer seus direitos, assegurando-lhes recursos e condições para a ação, assim como liberdade de escolha para fazerem uso desses recursos.29 Para Cristiane Derani as políticas públicas relacionam-se com um conjunto de ações governamentais “coordenadas pelos entes estatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as relações sociais existentes. Como 26 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 48. 27 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 241. 28 Ibidem, p. 264-265. 29 MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 63. 35 prática estatal surge e se cristaliza por norma jurídica. A política pública é composta de ações estatais e decisões administrativas competentes”.30 Em sentido mais amplo, Rodolfo de Camargo Mancuso registra que as políticas públicas não se apresentam apenas como ações da Administração Pública, mas também podem ser consideradas em seu aspecto omissivo. Veja-se: Política pública pode ser considerada como a conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeitando-se ao controle jurisdicional amplo e exauriente especialmente no tocante à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados.31 Amauri Feres Saad, por seu turno, entende que [...] políticas públicas são estruturas normativas integradas tanto por atos jurídicos quanto por atos materiais, praticados por pessoas de direito público, privado ou naturais, distribuídos entre os elementos funcionais: fins, propósitos, componentes e atividades, relacionados entre si, em ordem decrescente, por um liame de necessidade e satisfatividade.32 É possível identificar vários gêneros de políticas públicas. José Reinaldo de Lima Lopes apresenta a seguinte classificação: a) políticas sociais, de prestação de serviços essenciais e públicos, tais como a saúde, educação, segurança e justiça; b) políticas sociais compensatórias, tais como a previdência e assistência social, seguro-desemprego etc.; c) políticas de fomento, tais como a concessão de crédito e incentivos, preços mínimos, desenvolvimento industrial, tecnológico, agrícola, etc.; d) as reformas de base, como a reforma urbana e agrária; e ainda e) políticas de estabilização monetária, sem prejuízo para tantas outras mais específicas ou genéricas.33 Trata-se, portanto, de instituto ligado não só ao direito, mas também à sociologia e à administração pública. Por isso, as sistematizações feitas pela 30 DERANI, Cristiane. Política pública e norma política. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 135. 31 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 730. 32 SAAD, Amauri Feres. Contribuição ao estudo do regime jurídico das políticas públicas em direito administrativo. 2011. 195 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 99. 33 LOPES, José Reinaldo de Lima. Judiciário, democracia, políticas públicas. Revista de Informação Legislativa Brasileira, Brasília, ano 31, n. 122, p. 260, 1994. 36 doutrina não podem ser analisadas de forma isolada, seja para considerar política pública como programa, como processo ou como estrutura normativa. As políticas públicas são heterogêneas, complexas e dependem de diversos elementos para sua consecução. 2.2. Características das políticas públicas As políticas públicas possuem cinco características que integram o seu conceito. São elas: (i) programas comissivos ou omissivos do Estado; (ii) a noção de estabilidade; (iii) a possibilidade de controle judicial; (iv) o elemento teleológico; e (v) as condicionantes para sua existência, que são três: deliberação política, atividade normativa e atos de execução com conhecimento técnico. Veja-se cada uma das características apresentadas. 2.2.1 Programas comissivos ou omissivos do Estado A primeira característica das políticas públicas é que representam um programa comissivo ou omissivo de Estado ou de governo. Há diferença entre política de Estado e política de governo. A primeira se relaciona com o conjunto de programas institucionais do Estado, geralmente constitucionalizada e com um horizonte temporal longo. A segunda é ligada à noção de governo, como parte integrante de um programa maior, meramente legislativa e com o horizonte temporal do governo que exerce o poder político em determinada época. Independentemente da política pública em foco, seja de Estado ou de governo, a maioria dos doutrinadores realça o aspecto comissivo dos programas, ou seja, as ações efetivas levadas a cabo pelo Estado para a concretização de direitos prestacionais. 37 A crítica que se faz ao entendimento de política pública como programa de ação do Estado é que traduz uma limitação imprópria ao conceito, dado que é possível admitir, ainda que de forma excepcional, determinada política pública decorrente de conduta omissiva do Estado. Isso porque não apenas os direitos prestacionais e comissivos são veiculados por políticas públicas, mas todo e qualquer direito pode ser objeto de determinado programa do Estado. Por exemplo, para garantia do direito à livreiniciativa e à livre concorrência, a administração pública pode fixar uma política pública de não intervenção em certo setor da economia. 2.2.2 A noção de estabilidade A segunda característica das políticas públicas é a noção de estabilidade relacionada aos efeitos do programa. Não é qualquer conduta comissiva ou omissiva do Estado que se caracteriza como política pública. Somente condutas que se pretendam permanentes, duradoras e sólidas podem ser consideradas políticas públicas. Para tanto, é imperioso que o programa estatal vise sobreviver aos governantes e aos interesses de partidos políticos que se revezam no poder, como forma de perpetuar à coletividade o benefício implantado, independentemente do governo exercido em determinada época. Não significa, necessariamente, uma duração temporal, embora no mais das vezes o prolongamento no tempo seja característica ínsita do programa adotado. A estabilidade concerne à permanência do efeito alcançado, ou seja, deve visar um avanço nas condições de vida dos indivíduos, que reste incorporado ao patrimônio político, social ou econômico dos cidadãos. Mais do que isso, a estabilidade é fator fundamental para revelar os acertos ou erros de determinada política pública e demandar eventual alteração de 38 rumos, como forma de avaliar tecnicamente o benefício oferecido para efetivar os direitos nela previstos. 2.2.3 A possibilidade de controle judicial A terceira característica das políticas públicas é a possibilidade de controle judicial. Esse aspecto será minuciosamente analisado ao longo de todo o trabalho, bastando agora afirmar somente a possibilidade de controle. Não apenas de controle judicial, mas de ampla e exauriente possibilidade de análise pelo magistrado da política pública existente, em todas as suas fases, desde a formação, a implementação, até a avaliação. Ressalte-se que a característica é a possibilidade de controle judicial, e não o controle judicial obrigatório de toda e qualquer política pública. É uma sutil, mas fundamental diferença, na medida em que o controle é colocado como característica não no sentido de que deve ser feito inexoravelmente, mas na possibilidade ínsita de controle judicial sempre que se falar em políticas públicas. 2.2.4. O elemento teleológico A quarta característica das políticas públicas está ligada ao elemento teleológico ou finalístico, ou seja, o bem da vida objetivado pelo programa. As políticas públicas buscam a efetivação de normas constitucionais ou infraconstitucionais compatíveis com o Texto Fundamental. Têm como principal escopo o de alcançar a melhoria das condições de vida dos indivíduos de determinado Estado, seja do ponto de vista social, político ou econômico, principalmente em direitos com viés prestacional. Por isso uma de suas características é a busca da efetivação das normas previstas na Constituição Federal e na legislação ordinária, uma vez que é no ordenamento jurídico pátrio que se encontram os objetivos erigidos como relevantes pela nação. 39 As leis em geral e as normas constitucionais em especial não representam meros conselhos aos poderes constituídos. Elas veiculam deveres a serem observados e objetivos a serem perseguidos por todos aqueles que exercem parcela do dever-poder estatal. Desse mister não se afastam as políticas públicas; pelo contrário, estão a ele inexoravelmente vinculadas, ou seja, têm a finalidade de envidar esforços para o progresso da nação, sendo essa uma característica peculiar de qualquer programa a ser implementado. Maria Paula Dallari Bucci ressalta essa característica das políticas públicas ao afirmar a existência de “metas coletivas conscientes”, ou seja, a busca da realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.34 2.2.5 Condicionantes para a existência de uma política pública A quinta característica são, na verdade, as condicionantes de existência das políticas públicas, sem as quais não é possível pensar na veiculação de qualquer programa. São elas a deliberação política, a atividade normativa e os atos de execução com conhecimento técnico. 2.2.5.1 Deliberação política As políticas públicas passam por um processo de implementação lato sensu, o qual está ligado às medidas necessárias para sua existência. A implementação em sentido lato divide-se em três fases distintas: (i) a formação; (ii) a implementação stricto sensu; e (iii) a avaliação. Nesse sentido, Luís Alberto de Fischer Awazu explica: 34 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 264-265. 40 A implementação das políticas passa por um processo trifásico, sendo o primeiro a sua formação, em que serão apresentados os detalhes técnicos ou materiais. Uma segunda etapa é a sua implementação, em que são tomadas as medidas administrativas, financeiras e legais de implementação do programa e, por fim, a avaliação, em que são cotejados os efeitos sociais e jurídicos35 (grifos no original). Ocorre que, para que se possa pensar em implementação lato sensu de uma política pública, é imperiosa a existência de uma precedente deliberação política nesse sentido, que se caracteriza por uma decisão estatal “feita por agentes públicos competentes no interior do Estado com maior ou menor participação social. Seu conteúdo e seus agentes estão circunscritos à atribuição constitucional e normativa de uma maneira geral”.36 Deveras, de nada adianta a existência de extenso arcabouço normativo sobre determinada política pública e a presença de competentes especialistas, se não há uma precedente deliberação política dos agentes estatais para implementar determinado programa. Por isso, a tomada de decisão política é a primeira condicionante de existência de uma política pública. 2.2.5.2 Atividade normativa 35 AWAZU, Luís Alberto de Fischer. Algumas considerações acerca da teoria da separação dos poderes e políticas públicas: competências para formulação e execução. Revista Brasileira de Direito Administrativo e Regulatório, São Paulo, n. 3, p. 151, 2011. 36 DERANI, Cristiane. Política pública e norma política. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 135. Segundo essa autora, “A construção da política se dá no interior do Estado em três momentos: 1) Decisão estatal: feita por agentes públicos competentes no interior do Estado com maior ou menor participação social. Seu conteúdo e seus agentes estão circunscritos à atribuição constitucional e normativa de uma maneira geral. 2) Alteração institucional: no interior da administração, mudança estrutural e/ou organizacional. Como exemplo de modificação estrutural, tem-se a criação das Agências como consequência da política de desetatização do Estado. Porém a alteração pode ser menos visível e mesmo não implicar mudança da estrutura do Estado, mas traz novos atores privados pelo processo licitatório, atribui novas obrigações a servidores públicos – por exemplo, com a criação de um novo programa de assistência como o ‘Leve Leite’. Instituição é compreendida aqui como um espaço de ação pública ou reconhecida publicamente pelo direito. 3) Ações públicas propriamente ditas: construção, realização de ações.” 41 A segunda condicionante de existência de uma política pública é o exercício de atividade normativa. Alguns autores entendem que políticas públicas são estruturas normativas, integradas tanto por atos jurídicos quanto por atos materiais. Nesse sentido, Amauri Feres Saad acima citado. De fato, a política pública é exteriorizada a partir de uma construção normativa, o que revela que sua base é o direito, sendo introduzida no ordenamento jurídico por meio dos veículos introdutores de normas amplamente conhecidos, quais sejam emendas constitucionais, leis, atos administrativos, entre outros. É preciso, contudo, pontuar que as políticas públicas não são normas e atos, mas utilizam-se deles para ingresso no ordenamento jurídico a partir do exercício de função legislativa, por isso afirmou-se que a atividade normativa é uma das condicionantes de existência das políticas públicas. Conforme os ensinamentos de Fábio Konder Comparato: A primeira distinção a ser feita, no que diz respeito à política como programa de ação, é de ordem negativa. Ela não é uma norma, ou seja, ela se distingue nitidamente dos elementos da realidade jurídica, sobre os quais os juristas desenvolveram a maior parte de 37 suas reflexões, desde os primórdios da iurisprudentia romana. No que concerne à atividade normativa, nela estão inseridas tanto a produção de norma geral e abstrata, geral e concreta, individual e abstrata ou individual e concreta, ou seja, o exercício de função legislativa propriamente dita, como também a criação ou alteração organizacional da administração pública. Nesse sentido, também se inserem na atividade normativa tanto a eventual necessidade de mudança organizacional ou estrutural da administração pública quanto a também eventual necessidade de criação de órgãos ou estrutura própria para que a implementação da política pública seja levada a efeito. Segundo Izaías José de Santana, 37 COMPARATO, Fabio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de polícias públicas. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 737, p. 11-22, mar. 1997, p. 353. 42 [...] o regime jurídico de uma política pública abrange três categorias de normas jurídicas: (a) normas materiais: as normas constitucionais, legais e regulamentares definidoras dos conteúdos das políticas públicas; (b) normas instrumentais: as normas legais criadoras e estruturantes dos órgãos responsáveis pela implementação das políticas públicas, normas de atuação administrativa e normas instituidoras dos tributos; (c) normas de efetivação: as normas orçamentárias.38 Portanto, seja mediante a expedição de normas materiais, instrumentais ou de efetivação, a atividade normativa é condicionante de existência de qualquer política pública. 2.2.5.3 Atos de execução com conhecimento técnico A última condicionante de existência das políticas públicas é a produção de atos de execução com conhecimento técnico. Para que uma política pública exista é imperiosa a prática de atos materiais, seja por meio da realização de obras públicas, de concursos públicos para a contratação de servidores, de ações coordenadas entre diferentes entes federativos, entre outros. Contudo, é imperioso que os atos de execução sejam exercidos com conhecimento técnico, ou seja, por peritos que revelem conhecimento na área específica e tragam contribuição efetiva para o programa a ser implementado. Assim, não é possível falar em implementação de um determinado programa de fornecimento de medicamentos para a cura ou prevenção de uma doença específica sem que profissionais da área médica sejam consultados e participem efetivamente do programa estatal. Da mesma forma, uma política pública de habitação deve contar com a presença de engenheiros e técnicos na área em que possuem os conhecimentos específicos que possibilitem a implementação do programa. 38 SANTANA, Isaías Jose de. O princípio da separação de poderes e a implementação das políticas públicas no sistema orçamentário brasileiro. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 1121. 43 Sobre os atos materiais Américo Bedê Freire Junior acrescenta que “são os meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, uma vez que pouco vale o mero reconhecimento formal de direitos se ele não vem acompanhado de instrumentos para efetivá-los”.39 São estas, portanto, as características das políticas públicas. 39 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 48. 44 PARTE III O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 45 Capítulo 3 DEMOCRACIA E FUNDAMENTOS DO CONTROLE JUDICIAL 3.1 A democracia e a intervenção de juízes não eleitos no processo de tomada de decisões Nas sociedades modernas, dadas sua dimensão e complexidade, os indivíduos não podem ocupar-se da política todo o tempo, seja pela complexidade das questões, seja pela impossibilidade de reunião de todos em uma assembleia. A representação política passou a ser adotada como um recurso para contornar tal dificuldade, dada a inviabilidade de adoção do padrão democrático original. Assim, o povo se faz presente por meio das eleições, e indiretamente governa por intermédio de seus representantes eleitos, sendo estes os responsáveis pela escolha política em nome dos representados. Nas palavras de José Afonso da Silva: Democracia é um conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhe o conteúdo a cada etapa do envolver social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do 40 povo. A síntese exposta acima, baseada no pensamento de Jean Jacques Rousseau, fundamenta-se nos princípios da igualdade e da soberania popular. De fato, partindo da ideia de igualdade entre todos, o poder pertence ao povo que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes eleitos. É o que preceitua a Constituição da República brasileira em seu artigo 1.º, parágrafo único. 40 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 125. 46 O Estado apenas recebe parcela desse poder para organizar a sociedade, sendo o “poder”, na verdade, objeto do dever jurídico de atender finalidades voltadas ao bem comum. A justificação do poder deixa de residir sobre algo divino, ou pela força, e passa a ser a resultante direta da vontade do povo. É a ideia de soberania popular, a ideia de democracia. A democracia é uma das espécies de regime político adotado pela maioria dos Estados contemporâneos, não de forma estática e abstrata, mas em sua forma dinâmica, como um processo de afirmação e garantia do povo, conquistado por meio da história. Na clássica definição, é o governo do povo, pelo povo e para o povo. Esclarece Conrado Hubner Mendes: A regra de maioria é uma conquista porque permite que esse consentimento resulte da força moral da igualdade. Respeita indivíduos de duas maneiras: leva a sério diferenças de opinião e não os reprime por pensar diferente; e, fundamentalmente, trata-os 41 como iguais. Ocorre que esse conceito clássico de democracia já não atende aos anseios atuais da sociedade, pois o princípio democrático não pode restar limitado a um modelo exclusivo de representação eleitoral. O chamado conceito formal de democracia, tradicionalmente ligado ao exercício do poder político mediante instâncias formais de representação, apenas por meio do mecanismo da eleição se revela insuficiente para a sociedade contemporânea, demandando a análise de um novo fenômeno de representação política emanado das decisões judiciais. Cândido Rangel Dinamarco leciona: Democracia é participação e não só pela via política do voto ou ocupação efetiva de cargos públicos a participação pode ter lugar. Todas as formas de influência sobre os centros do poder são participativas, no sentido de que representam algum peso para a tomada de decisões; conferir ou conquistar a capacidade de influir é praticar democracia.42 41 MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 95. 42 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 171. 47 3.1.1 Democracia representativa e participativa: o papel do Poder Judiciário Não obstante o conceito clássico de democracia representativa ainda seja a regra na sociedade atual, não pode mais ser considerado como o único instrumento de participação do cidadão na vida política do País. O que se observa na atualidade é um novo fenômeno entre as relações de democracia e atividade jurisdicional, fenômeno ligado ao conceito de democracia participativa. É o chamado conceito substancial de democracia, pelo qual se impõe a ampliação da participação dos administrados na escolha do conteúdo e da forma de execução das políticas públicas, incumbindo ao Poder Judiciário, no caso concreto, a proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais dos cidadãos. Nas palavras de Fábio Corrêa de Souza Oliveira: É imperioso atentar para o fato de que a democracia não se esgota no processo eleitoral. Uma cidadania eleitoral ativa, franqueada à argumentação dialética, às várias ideias, aos diversos setores ou atores da sociedade, ainda que consoante a matriz contrafática ou transcendente do agir comunicativo (Habermas), é insuficiente para explicar ou abarcar o complexo da democracia. O processo eleitoral 43 é uma espécie de procedimento democrático, não é o único. A intervenção de juízes não eleitos no processo de tomada de decisão é um tema relativamente recente no Estado brasileiro, que surge a partir da redemocratização do país em 1985 e, principalmente, após a entrada em vigor do Texto Constitucional em 1988. A mudança de paradigma também surge como parte de um processo de mudança social, de enfraquecimento das relações familiares e do fortalecimento da economia de mercado. Para Antoine Garapon, “O aumento da influência do Poder Judiciário estaria relacionado com o enfraquecimento do Estado pelo mercado e pelo desmoronamento simbólico do homem e da sociedade democrática”.44 Sobre essa mudança de perspectiva Alcindo Gonçalves registra: 43 OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza, A Constituição dirigente está morta... Viva a Constituição dirigente! In: BARROSO, Luis Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 107. 44 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião de promessas. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 55 apud OLIVEIRA, Vanessa; CARVALHO, Ernani. OLIVEIRA, Vanessa; CARVALHO, 48 O aumento da litigância processual seria provocado pelo individualismo capitalista e o rompimento com laços sociais anteriores – família, Igreja, Estado Provedor etc. Tudo o que era antes controlado pela relação interpessoal passa a ser regido por um contrato jurídico, com a invasão do direito de arenas que eram exclusivas de outras instituições sociais. E é importante salientar que a interferência judiciária é um fenômeno facilitado, na prática, pelos próprios políticos. A inflação legislativa tem um rebatimento imediato no Judiciário, já que aumenta a área de atuação do mundo jurídico. E o resultado disso é que o cidadão individualizado não mais se envolve em questões de mobilização social e a justiça se torna um verdadeiro balcão de queixas sociais.45 O problema central é definir em que medida o controle jurisdicional é compatível com a democracia no Brasil e quais são os limites do controle, visto que seria rematado disparate imaginar que o limite depende da ideologia particular de cada juiz, sob pena de inviabilizar o controle efetivo pelo povo, que é o verdadeiro detentor do poder. Além disso, é preciso considerar que os juízes não terão responsabilidade política por seus erros, ou seja, apesar de eventuais danos causados à população por determinada política pública, permanecerão vitaliciamente em seus cargos, enquanto os membros dos Poderes Executivo e Legislativo dependem da eleição para permanecerem no poder. Grande parte dos doutrinadores atuais concorda que a legitimidade das decisões judiciais decorre da ampliação do debate democrático, ultrapassando as barreiras da representação política, e se assenta sobre o conteúdo dos princípios e valores constitucionais. São a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais com ela compatíveis que legitimam a decisão judicial acerca das políticas públicas. Isso se dá porque alguns assuntos foram retirados do debate democrático, pois são garantias constitucionais prévias ao próprio exercício da futura vontade desimpedida dos cidadãos, ou seja, para que haja verdadeira possibilidade Ernani. A judicialização da política: um tema em aberto. In: XXVI ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS – ANPOCS. Caxambu, MG, 2002. 45 GONÇALVES, Alcindo. Políticas públicas e a ciência política. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 95. 49 de debate democrático é preciso que alguns direitos, como o direito à vida, à liberdade, à livre manifestação do pensamento, ao culto, aos direitos sociais, entre outros, estejam previamente garantidos e não sejam objeto de debate por maiorias parlamentares ou autoridades de plantão. Mesmo com a separação de funções entre o Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como a representatividade exercida por meio das eleições, não há como afastar a conclusão de que os deveres constitucionalmente sagrados vinculam todos os poderes. Nem o princípio da separação de poderes nem a representatividade dos membros do Executivo e Legislativo afastam a possibilidade de manifestação judicial sobre políticas públicas e direitos fundamentais, mesmo levando em conta a ausência de representação popular no âmbito do Judiciário, conforme adiante se analisará com mais profundidade. 3.2 O controle judicial dos atos do Executivo e do Legislativo Antes da análise da possibilidade de controle judicial das políticas públicas, é necessário o prévio estudo da possibilidade de controle judicial dos atos dos demais poderes. A indagação inicial que se coloca é a seguinte: é possível admitir que os atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo estejam sujeitos a controle judicial em um regime democrático que adote a tripartição constitucional de funções? E a resposta é positiva, na medida em que de nada valeria proclamar a supremacia da Constituição, o regime democrático e a separação de funções, se não fosse possível, perante um órgão imparcial e independente, contrastar os atos de cada poder e obter sua fulminação quando inválidos, com as responsabilidades decorrentes. Especificamente sobre o tema em comento, sempre que um juiz declarar a incompatibilidade de uma política pública com a Constituição, estabelecer a 50 implementação de determinada política para um indivíduo ou proferir qualquer decisão acerca do tema, não estará afrontando o regime democrático e o princípio da separação de funções, mas assegurando a proteção da população mediante decisão judicial que considere os objetivos e limites implícita ou explicitamente contidos na Constituição. Aliás, é tarefa típica do Poder Judiciário, prevista constitucionalmente, o dever de controle da constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, tarefa esta que também se traduz no princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário.46 Não é possível que o Judiciário usurpe função típica de outro poder e a exerça arbitrariamente, ou tampouco que exceda os limites dessa intervenção. Entretanto, o controle da constitucionalidade das leis e das atividades administrativas, dentre elas as políticas públicas, é função típica do Judiciário e não afronta o princípio da separação de funções ou, mesmo, o regime democrático. Celso Antônio Bandeira de Mello conclama o controle judicial como princípio basilar do estado democrático de direito, enfatizando: “constitui-se em garantia insubstituível, reconhecida entre os povos civilizados, como expressão asseguradora da ordem, da paz social e da própria identidade dos regimes políticos contemporâneos”.47 Na mesma esteira Celso Fernandes Campilongo assevera: Estado de Direito não significa exclusivamente observância dos princípios da legalidade e da publicidade dos atos administrativos, legislativos e judiciais. Significa, igualmente – e, para efeitos aqui buscados, esse é o aspecto fundamental –, controle jurisdicional da atuação do Legislativo e do Executivo.48 Existe, pois, possibilidade de controle dos atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, eis que tal controle decorre da Constituição Federal e se assenta em princípios basilares do Estado Democrático de Direito, sendo uma garantia ao próprio cidadão. 46 BRASIL. Constituição (1998). Artigo 5.º, inciso XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 47 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 807. 48 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 42. 51 3.3 Representatividade política e legitimidade do juiz para a análise das políticas públicas Não obstante o princípio da inafastabilidade do controle judicial sobre qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, no âmbito específico das políticas públicas a discussão é acirrada, argumentando-se que a prevalência da vontade do juiz em detrimento da vontade do agente político ao decidir sobre uma política pública feriria o princípio da separação de funções e o ideal democrático. Afirma-se que o Judiciário possui uma inaptidão institucional para a veiculação e solução de problemas envolvendo as políticas públicas que, dada a sua complexidade, deveriam ser debatidos unicamente em sede parlamentar pelos próprios interessados, por meio de seus representantes. Isso porque os representantes políticos foram democraticamente eleitos e, em consequência, representam a vontade da maioria, apresentando-se como verdadeiros sabedores dos anseios populares e mais sensíveis às necessidades de reformas sociais. Argumenta-se ainda que a Corte não está isenta da política e não é neutra da forma como se supõe. Especialmente quando se trata de interpretar a Constituição e, levando em conta a forma de escolha dos ministros dos tribunais superiores brasileiros, afirma-se que a decisão judicial apenas “vem enfeitada com os adornos de uma linguagem aparentemente técnica, que esconde a manifestação de vontade e a afirmação de agendas ideológicas”.49 Ainda que considerados os argumentos contrários ao controle, não é possível afastar a possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas ante tais fundamentos. O que ocorre é que as ideias acima, embora assentadas em premissas teóricas, não se coadunam com a representatividade observada nas modernas 49 MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 96. 52 sociedades democráticas, dado que não há de se olvidar, há tempos, sobre a crise que instalou verdadeira quebra da relação de identidade entre representante e representado. Verifica-se que nas sociedades contemporâneas os eleitores não conseguem mais estabelecer qualquer relação de identidade com os seus eleitos, uma vez que parcela considerável da população sequer se lembra em qual candidato votou nas últimas eleições.50 Pontua Jean Carlos Dias: 50 Revista The Economist lança o seu Índice da Democracia 2006. “Hoje em nossa primeira participação de 2007, vamos comentar um importante estudo da revista The Economist, lançado no final de 2006. Lançada com o título de Índice da Democracia (Democracy Index, no original) a pesquisa é anual e mostra dados de 167 países em todos os continentes e pode dar subsídios interessantes sobre o Brasil atual. Principalmente em face dos recentes acontecimentos no Rio de Janeiro onde, como todos sabem, milícias de policiais estão em guerra aberta com traficantes em vários pontos da cidade. Os principais itens mensurados pela The Economist incluem se o país possui um sistema pluripartidário competitivo, sufrágio adulto universal, eleições regulares conduzidas através do voto secreto, segurança na apuração, ausência de fraude, e acesso do público aos maiores partidos e suas ações, através da mídia e campanhas transparentes. A partir dessa base, a The Economist desenvolveu a sua medida do que seria uma plena democracia, baseada em cinco categorias principais: processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política, e cultura política. Em âmbito mundial, alguns resultados chamam a atenção. Apenas 13% da população mundial vive em ‘plena democracia’, que é um número relativamente baixo, apenas 28 países. E 40% da população vive em regimes autoritários (55 países) ou chamados de ‘híbridos’ (30 países). Nas três primeiras colocações ficaram países já conhecidos por seu alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): Suécia, a Islândia e a Holanda, que tiraram nota máxima em quase todos os quesitos. Os Estados Unidos, conhecidos defensores da democracia, ficaram apenas com o 17.º lugar. E o Brasil? Nosso país aparece em 42.º lugar, atrás de nações como Eslováquia, Lituânia, Botswana e até mesmo a Índia, um país de costumes rígidos até na política. Estamos classificados dentro do que a pesquisa chama de ‘democracia imperfeita’ ou ‘com falhas’, sendo que nossas piores pontuações foram nos quesitos ‘participação política’ e ‘cultura política’. Bastante significativo num país que poucos cidadãos se lembram em quem votaram nas últimas eleições e onde políticos legislam como se não devessem maiores satisfações aos verdadeiros donos de seus mandatos: nós, cidadãos. Para vocês terem uma ideia, segundo pesquisa recente do departamento de ciências políticas da UNB, 75% dos eleitores brasileiros não se lembram em quem votaram para os vários cargos do Legislativo. E é esse tipo de descompasso com nações mais desenvolvidas que também ajuda a explicar ondas de violência como as que tivemos nas maiores cidades do país, onde o cidadão comum acaba virando simples refém. Ou pior, torna-se um mero peão descartável de um jogo de morte que reflete os desmandos em segurança, saúde e emprego de nossos governantes municipais, estaduais e federais. Pois é nosso dever exigir mecanismos de controle social de mandatos políticos e da execução dos orçamentos públicos, única maneira de se evitar o corporativismo e a falta de ética que tanto temos visto ultimamente, não só no nosso Legislativo, mas também no Judiciário e Executivo. E assim entendermos que não somos simples peões e, sim, ‘donos da bola’. Aqui na Agenda da Cidadania, vocês podem baixar na íntegra o estudo da The Economist (em inglês), ‘O mundo em 2007’ (The world in 2007), onde está a pesquisa Índice da Democracia 2006 (Democracy Index 2006). Para quem quiser conhecer mais, o site da The Economist é o www.economist.com” (grifos nossos) (Disponível em: 53 Nos modernos sistemas eleitorais, a relação entre o eleitor e seu candidato tem pouca ou nenhuma importância na formulação de políticas. Está plenamente reconhecido que as políticas decorrem diretamente da organização de grupos capazes de cooptar os meios de comunicação e mobilizar grupos de influência que têm pouca ou nenhuma relação com o efetivo sistema de identificação de demandas sociais. [...] A representação, portanto, é uma ficção baseada na identidade, que não encontra em nossos tempos qualquer respaldo evidentemente demonstrável, sobretudo em sistemas políticos como o brasileiro, fundamentado em práticas políticas arcaicas.51 No Brasil, a escolha de um representante político também revela um peculiar aspecto. O cidadão brasileiro não costuma participar ativamente da vida política do País, do Estado, do Município, nem mesmo de decisões coletivas tomadas em âmbito particular, tais como assembleias de condomínios, clubes ou universidades. Embora se vislumbre uma mudança gradual de comportamento até por meio das redes sociais de computador, certo é que o cidadão brasileiro não costuma se envolver em questões políticas, e o voto nem sempre revela a efetiva escolha de um representante, podendo se prestar a uma manifestação de protesto ou mesmo a uma piada. Portanto, o argumento da representatividade política para afastar a possibilidade de controle judicial sobre as políticas públicas é falacioso, visto que não há verdadeira relação de identidade entre a vontade dos representantes e representados. Ainda, a judicialização de políticas públicas também tem o escopo de proteger as minorias contra a maioria parlamentar que infringe os princípios constitucionais, pois também no parlamento há uma desigualdade que encobre retoricamente um fenômeno mais complexo do ponto de vista moral, a chamada “tirania da maioria”. <http://www.avozdocidadao.com.br/detailEditorial.asp?ID=600&SM=1%2329&pagina=5>. Acesso em: 15 mar. 2011). 51 DIAS, Jean Carlos. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Método, 2007. p. 133. 54 Invariavelmente é o poder econômico ou a boa organização política de determinado segmento da sociedade que sai vitoriosa no âmbito parlamentar. Como a representação política é falha e como os parlamentares não gozam de garantia de permanência no poder, não é possível afirmar que os representantes do parlamento tomem suas decisões independentemente de se beneficiarem ou de se prejudicarem pessoalmente com elas. Por outro lado, os desvalidos e mais necessitados não possuem organização política e financeira suficiente para impor suas necessidades no parlamento, e o Judiciário passa a ser a única alternativa para a obtenção de direitos fundamentais mínimos. Ou seja, não há nada mais tirânico do que uma minoria que perca sempre no parlamento, mesmo em defesa de interesses legítimos, sem poder se socorrer do Judiciário para fazer valer seu legítimo direito. Os juízes, por sua vez, não têm nenhuma vinculação política ou interesse pessoal ou econômico no pedido, mas possuem as garantias previstas na Constituição Federal de vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade, e podem decidir livremente, de acordo com o ordenamento jurídico. Além disso, os juízes gozam de independência e imparcialidade não observadas nas demais esferas de representação política, estas vinculadas a interesses que acompanham tanto o parlamentar como o administrador público desde a época de sua eleição. Explica Osvaldo Canela Junior que: [...] a imparcialidade dos órgãos jurisdicionais deve ser vista sob dois ângulos complementares. O primeiro, e mais tradicional, consiste na ausência de qualquer interesse na causa e o compromisso com a ordem jurídica e com a sua livre convicção. Soma-se a este conceito de imparcialidade a vinculação do magistrado aos objetivos da constituição e, em especial, a consecução dos direitos fundamentais.52 52 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 99. 55 Portanto, o juiz tem como prerrogativa a independência e imparcialidade que o autorizam a adotar um “sistema ético de referência, estabelecendo a pessoa humana como valor supremo, característica do Estado Democrático de Direito”.53 Outro argumento trazido por Luís Roberto Barroso: Atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade. Com isso, evitam o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos, como uniões homoafetivas, interrupção de gestação ou demarcação de 54 terras indígenas. Considerando-se a natureza analítica e abrangente da Constituição Federal brasileira e as diversas formas previstas em lei que admitem ações diretas e indiretas sobre temas constitucionais, não há dificuldade em constitucionalizar qualquer tema e trazer para o âmbito judicial uma decisão política. E arremata o mesmo autor: [...] a judicialização constitui um fato inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário. Juízes e Tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão.55 De fato, importante salientar que os juízes e tribunais não decidem pronunciar-se sobre determinada política pública por vontade própria ou simples deleite. Fazem-no porque são provocados para tanto e não possuem opção de dizer ou não o direito. Trata-se de um dever constitucional, inclusive em cumprimento a um juramento solenemente prestado na data da posse. Consoante José Maurício Conti: Os tribunais são chamados a fazer uma avaliação prospectiva, projetando o Direito para o futuro, refletindo o crescimento do Estado do Bem-Estar Social, do avanço dos direitos sociais, e tendo de decidir sobre ações de caráter coletivo que reflitam políticas públicas asseguradoras desses direitos.56 53 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 99. BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 55, p. 20-29, 2011, p. 44. 55 Ibidem, p. 45. 56 CONTI, José Maurício. A autonomia do Poder Judiciário. São Paulo: MP, 2006. p. 21. 54 56 No que tange ao argumento da escolha dos ministros dos tribunais superiores brasileiros, não se deve esquecer que ambos os tribunais superiores são compostos por membros indicados e sabatinados por autoridades eleitas, de forma que, indiretamente, também são escolhidos pela população. No entanto, a falta de legitimidade dos representantes do povo e as vicissitudes da representatividade política não são suficientes, por si sós, para justificarem a intervenção do Judiciário nas políticas públicas. É necessário estabelecer qual a fonte legitimadora da atividade judicial nesta seara. E esta, evidentemente, está no Texto Constitucional. A própria Constituição Federal elencou como tarefa do Poder Judiciário o dever de correção ou aperfeiçoamento das falhas que ocorram no sistema, por meio do princípio da inafastabilidade do Judiciário sobre qualquer lesão ou ameaça de lesão a direitos de qualquer espécie. Mais ainda, o controle judicial decorre do primado da submissão do Estado à ordem jurídica e ao conteúdo do Texto Constitucional, notadamente no que diz respeito à consagração dos direitos fundamentais. Não se sugere que o Poder Judiciário passe a promover a distribuição dos bens sociais por si próprio, elegendo e implementando políticas públicas, até porque não é sua função típica, e tal forma de atuação seria verdadeira afronta ao princípio da separação de funções. Contudo, também não pode o Judiciário assistir passivamente a qualquer tipo de desmando dos demais poderes da República. O Judiciário é o controlador dos meios empregados pelas políticas, fundamentado no princípio da inafastabilidade e para garantia dos direitos fundamentais e seus direitos correlatos. Além disso, atualmente vislumbra-se a crescente onda de demandas coletivas versando sobre políticas públicas, pleiteando uma intervenção judicial em decisões tomadas por representantes eleitos. Essas demandas não podem ser consideradas como soma de interesses individuais, sob pena de se priorizar o 57 interesse de grupos organicamente bem representados em detrimento dos desvalidos sem representação organizada, o que repetiria na esfera judicial as mesmas desigualdades de representação encontradas na esfera parlamentar. Ou seja, o Poder Judiciário deverá atuar seja nas demandas coletivas daqueles que possuem organização e representação política adequada, seja em demandas individuais, primando pelo princípio da igualdade. 3.3.1 Justiça distributiva e justiça corretiva Segundo o estudo apresentado por Eduardo Appio, a justiça possui função distributiva e corretiva: Os conceitos de justiça distributiva e corretiva são originalmente ligados à obra de Aristóteles (385 a.C.), especialmente no livro V da Ética a Nicômaco, no qual o filósofo desenvolve o conceito do meiotermo (justo meio) baseado na ideia de prudentia, tendo como finalidade a construção de uma meritocracia. Inicialmente, o autor salienta que o justo se encontra no meio-termo entre dois extremos, porque toda a iniquidade e falta de proporção devem ser consideradas injustas.57 Nesse sentido, a justiça corretiva tem o escopo de colocar as partes em uma situação de igualdade que foi por algum motivo rompida, como por exemplo, a indenização fixada pela prática de ato ilícito que visa estabelecer o status quo ante. A justiça distributiva tem a função de buscar a equidade, ou seja, é a intervenção estatal que busca mitigar a desigualdade de riquezas entre os cidadãos. Nas palavras do autor acima citado: A distribuição de bens nas sociedades capitalistas se dá a partir da adoção de princípios fundados no liberalismo, segundo o qual, a acumulação de capital decorre do empenho e talento pessoal de cada cidadão. Todavia, com a emergência do estado social, fruto das desigualdades surgidas em face do próprio liberalismo, os princípios de justiça distributiva passam a ser considerados parte importante das Constituições. A própria Constituição Federal de 1998 assume, dentre seus objetivos, a construção de uma sociedade livre e solidária. Como conciliar os dois objetivos, ou seja, compatibilizar a liberdade dos cidadãos e empresas, com a solidária? A Justiça opera, portanto, entre dois senhores, ou seja, entre o liberalismo e o 57 APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2006. p. 57. 58 intervencionismo do Estado, entre critérios de justiça corretiva e de 58 justiça distributiva. E sintetiza que: [...] as políticas públicas se destinam, por conseguinte, a atender de forma desigual os cidadãos, a partir de suas realidades concretas, enquanto que nas demandas de natureza individual, o objetivo consiste em manter o equilíbrio entre as partes, corrigindo desigualdades artificiais que venham a surgir em decorrência das relações comerciais e da convivência humana.59 Nesse contexto de justiça distributiva surge a necessidade de intervenção judicial, seja para garantir a plena aplicação do princípio da igualdade perante as políticas públicas, seja para garantir o direito das minorias não organizadas ou que não possuam representatividade política para influir na formação das políticas públicas.60 58 APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2006. p. 59. Ibidem, p. 59. 60 Considerando a atualidade do tema e a sua abordagem diuturna por diversos doutrinadores, importante se faz uma breve referência ao ativismo judicial e sua diferença com relação a judicialização da política. Segundo a doutrina, na judicialização o Poder Judiciário decide a demanda que lhe é apresentada com base na Constituição Federal e nas leis, ainda que a questão tenha larga repercussão política ou social. Já no ativismo judicial o magistrado vai além, não apenas decidindo o caso concreto, mas passa a intervir no espaço de atuação dos demais poderes, impondo condutas ou abstenções ao poder público. Sobre o ativismo judicial Elival da Silva Ramos afirma que “O exame das decisões em que se pode detectar o fenômeno do ativismo judicial na recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela que uma das principais causas de seu recrudescimento é de ordem institucional. Ou seja, o Poder Judiciário, estimulado pelo reforço à tarefa de controle jurídico da função legislativa que lhe compete exercer e premido pelas pressões no sentido de concretizar plenamente a Constituição social de 1988, ultrapassa, por vezes, os limites que o nosso sistema jurídico estabelece ao manejo da função jurisdicional, porém o faz, em boa medida, pela ineficiência dos Poderes representativos na adoção das providências normativas adequadas àquela concretização” (RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 288). 59 59 Capítulo 4 PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAIS DA PONDERAÇÃO COMO E NORTEADORES OS DAS PRINCÍPIOS DECISÕES JUDICIAIS 4.1 O procedimento da ponderação de Robert Alexy61 O termo ponderação não é exclusivo da ciência do direito. Toda decisão humana racional envolve a ponderação, que significa avaliar todas as vantagens e desvantagens ligadas a determinada decisão. A ponderação proposta por Robert Alexy, que ganhou ampla aceitação na doutrina nacional, se relaciona com a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Os critérios positivistas que pregavam a regra de subsunção da norma prevista legalmente com o fato ocorrido no mundo fenomênico passaram a ser insuficientes para a solução de casos complexos. A partir da distinção entre regras e princípios, uma série de problemas decorrentes da aplicação das normas passou a encontrar uma melhor justificação, o que foi chamado de neoconstitucionalismo. Alexy tornou-se voz corrente na doutrina contemporânea pelo desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, que se aplica sobremaneira ao tema em estudo. O direito deve ser corretamente aplicado, o que chamou de “pretensão de correção”. Isso depende essencialmente de uma adequada fundamentação que só é atingida por um procedimento argumentativo fundado em princípios. As regras são determinações no campo do fático e juridicamente viável, e só podem ser aplicadas ou afastadas integralmente. Seu conflito se resolve pelo 61 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. passim. 60 critério da validez: uma regra válida será aplicada. Uma regra inválida dará lugar à aplicação de outra. Fixa ainda a possibilidade de afastamento de uma regra em um caso concreto, sem retirá-la do mundo jurídico, desde que haja uma cláusula de exceção. De acordo com Ana Carolina Lopes Olsen: Se um direito fundamental social se configura como regra, caberá ao intérprete tão somente cumprir a conduta prevista em grau de definitividade na norma, adotando uma postura coerente com o mandado, proibição ou permissão nela estampados. Não haveria espaço para cumprir o mandamento apenas em parte, pois com o cumprimento integral dá-se a observância da norma; com seu cumprimento parcial ou não cumprimento, verifica-se sua violação. A lógica que sustenta a aplicação das regras é a do tudo ou nada. A única hipótese para a não aplicação da regra, como já referido, seria a existência de uma cláusula de exceção, que determina o seu afastamento.62 Princípios, por sua vez, não são razões definitivas, mas prima facie. Representam um mandamento de otimização, isto é, um dever de que algo seja realizado na melhor medida das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Na busca de sua máxima efetivação, os princípios colidem entre si, o que reclama a aplicação da ponderação. Assim, os princípios podem, em um caso concreto, ceder em favor de princípios contrapostos, desde que observados alguns requisitos. Nas palavras de Alexy, a ponderação conduz “o dever prima facie ideal ao dever real e definitivo”. Para tanto, a compreensão da ponderação deve ser decomposta em três passos: 1) deve ser avaliado o grau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio; 2) deve haver a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; e 3) deve restar comprovado que o cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o não cumprimento do primeiro princípio afastado. Ressalte-se, contudo, que não deve o intérprete, seja ele o magistrado ou administrador, deixar imperar a sua opinião pessoal do justo, do equitativo e do correto. Deve buscar extrair os valores que se encontram positivados no 62 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 68. 61 ordenamento constitucional vigente, de acordo com a consideração que a sociedade atual confere a tais valores. É o que ensinam Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramon Fernández: O controle da discricionariedade por meio dos princípios gerais não consiste, portanto, em o juiz substituir o critério da Administração por seu próprio e subjetivo critério. Se assim fosse, tudo se reduziria a substituir uma discricionariedade (a administrativa) por outra (a judicial) sem avançar um só passo no problema. Do que se trata realmente é penetrar na decisão objeto de julgamento até encontrar uma explicação objetiva em que se expresse um princípio geral.63 Para Ana Paula de Barcellos há dois elementos fundamentais à ideia de ponderação, que são a racionalidade e a justificação. Ressalta a autora: [...] se as exigências da racionalidade e justificação são próprias a toda interpretação e decisão jurídicas, o serão ainda com maior intensidade nas hipóteses em que se pretenda utilizar a ponderação. Isso porque, nesses casos, a legitimidade de uma decisão ou dos critérios adotados para superar conflitos normativos não decorre de forma evidente de enunciados normativos e nem se funda em uma subsunção simples. A racionalidade de uma decisão judicial está ligada (i) à sua capacidade de demonstrar conexão com o sistema jurídico e, nas hipóteses em que várias conexões diferentes são possíveis, (ii) à racionalidade propriamente dita da escolha feita entre essas conexões. A justificação, por sua vez, envolve a prestação de contas e a motivação da decisão propriamente dita.64 Assim, para a utilização da técnica da ponderação, além dos critérios elencados por Alexy, quando várias conexões são possíveis, cabe ao aplicador do direito uma escolha racional no interior do ordenamento jurídico, e ele deve justificar a sua escolha mediante motivação idônea e suficiente para convencer o interlocutor do acerto, além de adotar uma solução que possa ser generalizada para todas as situações equivalentes. Aplicando-se os conceitos acima ao tema das políticas públicas, observase que diuturnamente os aplicadores do direito enfrentam a necessidade de ponderação entre princípios, e no mais das vezes tais questões são discutidas no 63 ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. Madrid: Civitas, 2000. v. 1, p. 483. 64 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 297-298. 62 âmbito judicial. Por isso o entendimento de sua extensão é muito importante ao tema em estudo. Exemplificando no âmbito da educação: Poder público municipal de um pobre município que possui orçamento reduzido para aplicação na educação infantil. Há déficit educacional na localidade, e diversas crianças até cinco anos de idade não estão na creche ou pré-escola. Há rubrica orçamentária que prevê investimento na promoção da educação infantil. Em vez de construir escolas e abrir mais vagas na educação infantil, o município opta pela construção de quadra poliesportiva e de teatro nas escolas municipais existentes. Aplicando-se o procedimento da ponderação ao caso concreto, tem-se o seguinte. 1) deve ser avaliado o grau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio: O princípio do direito à educação e da dignidade das crianças não atendidas pela rede municipal está em grau severo de não cumprimento (artigo 208 da Constituição Federal); 2) deve haver a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário: a construção de quadra poliesportiva e de teatro nas escolas municipais garante às crianças o direito ao lazer e à cultura, cumprindo o princípio da absoluta prioridade da criança e do adolescente, também previsto na Constituição Federal (artigo 227 da Constituição Federal); e 3) deve restar comprovado que o cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o não cumprimento do primeiro princípio afastado: embora o lazer e o desporto sejam valores caros à Constituição Republicana, ligados ao princípio da absoluta prioridade da criança e do adolescente, o cumprimento de tal princípio não justifica o descumprimento do princípio da dignidade da criança traduzido no direito à educação, pois é um dos valores mais importantes da ordem constitucional, a dignidade humana. Assim, resta clara a necessidade de prevalência do dever de construção de mais escolas com a abertura de novas vagas para as crianças que não estão sendo atendidas pela rede municipal em detrimento do emprego do mesmo valor na construção de quadras poliesportivas e teatros nas escolas municipais em funcionamento. 63 Esse deve ser o raciocínio do administrador público no momento de aplicação dos recursos oriundos da educação do referido município, e, caso opte pela construção de quadras poliesportivas e de teatro nas escolas municipais existentes, o Poder Judiciário, instado a analisar a questão no caso concreto, deve fulminar a decisão administrativa e determinar a aplicação dos recursos para atender o princípio preponderante. Da mesma forma, um exemplo relacionado às questões de meio ambiente. Determinado município possui um bairro com rede de coleta de esgoto e coleta do lixo domiciliar diariamente. Em outro bairro do mesmo município não há rede própria de esgoto, com dejetos correndo “a céu aberto”, e a coleta de lixo domiciliar se dá somente duas vezes por semana. Há rubrica orçamentária que prevê investimentos no meio ambiente e na rede de coleta de resíduos municipais. Em vez de construir uma rede de esgoto adequada para a parcela da população que não possui, o município opta por investir em programa de coleta seletiva do lixo, visando à reciclagem, na área que possui coleta de lixo diariamente. Aplicando-se o procedimento da ponderação ao caso concreto, tem-se o seguinte. 1) deve ser avaliado o grau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio: o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à saúde das pessoas que não possuem a coleta adequada de esgoto estão em grau severo de não cumprimento, expondo a risco a vida e a saúde daqueles que ficam próximos de esgoto “a céu aberto” (artigo 5.º da Constituição Federal); 2) deve haver a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário: a coleta seletiva do lixo garante às pessoas o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado, cumprindo o princípio previsto no artigo 225 da Constituição Federal; e 3) deve restar comprovado que o cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o não cumprimento do primeiro princípio afastado: embora o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado seja um valor caro à Constituição Republicana, o cumprimento de tal princípio não justifica o descumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana traduzido no direito à saúde e à vida das pessoas expostas a riscos pela falta de regular coleta de esgoto. 64 Portanto, evidente a necessidade de prevalência do dever de construção da rede regular de esgoto para aqueles que não a possuem em detrimento do emprego do mesmo dinheiro público na promoção da coleta seletiva do lixo. Enfim, mesmo diante de casos de liberdade de escolha do administrador da política pública aplicável, com previsão orçamentária específica, é possível observar que há espaço para manifestação do Poder Judiciário por meio do procedimento da ponderação descrito acima. Ressalte-se que, em ambos os casos, a eventual opção da administração pelo princípio não prevalente é correta do ponto de vista técnico e jurídico, mas não observa a necessidade de ponderação de princípios ante a falta de recursos suficientes para atender a todas as demandas. O que se vislumbra é que o Poder Judiciário, instado a se posicionar em qualquer dos casos acima, como também em diversos outros que diuturnamente lhe são apresentados, não pode ficar inerte, tampouco deixar de fulminar a política pública adotada, sob pena de ofender a própria ordem constitucional. 4.2 Os princípios constitucionais como norteadores das decisões judiciais Além do procedimento da ponderação, alguns princípios constitucionais são especialmente caros ao tema das políticas públicas, eis que devem servir de norte para amparar a racionalidade da decisão judicial. Evidente que todos os princípios previstos expressa e implicitamente no ordenamento jurídico pátrio devem ser considerados pelo magistrado no controle das políticas públicas. Contudo, não constitui objeto do presente trabalho o estudo de todos os princípios constitucionais, merecendo, porém, destaque os princípios da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade, por se relacionarem com mais frequência ao tema do controle de políticas públicas, envolvendo casos de difícil solução. 65 4.2.1 O princípio da isonomia Uma importante noção para o controle judicial das políticas públicas é a exata fixação do sentido e alcance do princípio da igualdade. É preciso saber quando o Poder Judiciário poderá estender uma política pública a pessoas que não foram contempladas e quando essa extensão não deve ser feita. Para tanto, necessário diferenciar entre um direito geral de igualdade e direitos de igualdade específicos. A fórmula “todos são iguais perante a lei” foi compreendida por muito tempo exclusivamente no sentido de um dever de igualdade na aplicação do direito. Ela exige que toda norma jurídica seja aplicada a todos os casos que sejam abrangidos por seu suporte fático, e a nenhum caso que não o seja, o que nada mais significa que as normas jurídicas devem ser cumpridas. Restringir o significado dessa fórmula apenas a um dever de igualdade na aplicação do direito é incorreto. É necessário um dever de igualdade não somente na aplicação, como também na criação do direito. O dever de igualdade na criação do direito não significa que o legislador tenha que inserir todos nas mesmas posições jurídicas, nem que tenha a responsabilidade de que todos apresentem as mesmas características naturais e se encontrem nas mesmas condições fáticas. O enunciado geral de igualdade, dirigido ao legislador, não pode exigir que todos sejam tratados exatamente da mesma forma ou que todos devam ser iguais em todos os aspectos. Por outro lado, para ter algum conteúdo, ele não pode permitir toda e qualquer diferenciação e toda e qualquer distinção. É necessário questionar se e como é possível encontrar um meio-termo entre esses dois extremos. Um ponto de partida para esse meio-termo é a fórmula clássica: “O igual deve ser tratado igualmente, o desigual, desigualmente”. Registra Celso Antônio Bandeira de Mello: Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa 66 racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada. [...] Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada, procede afirmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto. [...] Em síntese: a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada.65 A igualdade – tanto quanto a desigualdade – entre indivíduos e situações é sempre uma igualdade – ou uma desigualdade – em relação a determinadas características. O que ocorre é que o fator de discriminação adotado em determinada política pública para desigualar os indivíduos deve guardar pertinência lógica com o gravame imposto. Portanto, na fórmula “o igual deve ser tratado igualmente; o desigual, desigualmente”, é necessário compreender “igual” e “desigual” como algo que não seja uma igualdade – ou uma desigualdade – fática parcial em relação a algum aspecto qualquer. Nas palavras de Robert Alexy: Se não houver uma razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório. Se não houver razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento igual, então, é obrigatório um tratamento desigual. Se houver uma razão suficiente para o dever de um tratamento desigual, então, o tratamento desigual é obrigatório.66 Baseado nessa lição, o Poder Judiciário deve intervir sempre que pessoas que estão na mesma situação jurídica ou fática não forem contempladas pela política pública veiculada, observando sempre o fator de discriminação contido na norma. Por outro lado, não poderá estender uma política pública se o requerente não se encontrar na situação jurídica ou fática estabelecida pela norma, ou se o fator de discriminação guardar pertinência lógica com a sua exclusão do benefício. 65 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 38-39. 66 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 430. 67 Em tema que envolve a fixação de políticas públicas, há uma peculiar noção trazida por Cláudio Pereira de Souza Neto: Se há liberdade, mas não igualdade, os graus de liberdade são totalmente diferentes: algumas pessoas são, na verdade, mais livres que outras. Por essa razão, geralmente os liberais igualitários defendem uma variação da “igualdade de recursos” ou de “oportunidades”. Por um lado, a democracia pressupõe que cada ser humano possui uma importância igual, é digno de igual respeito. Cabe, portanto, à comunidade política prover as condições necessárias para que cada um realize, em igualdade de condições com os demais, o seu projeto pessoal de vida. Por outro lado, são legítimas as diferenças decorrentes das escolhas individuais, na medida em que os indivíduos possam ser responsabilizados por 67 elas. Então, além da observância do princípio da igualdade como traçado nas lições acima, é preciso acrescentar que, em tema de políticas públicas, o poder público tem o dever de dar aos indivíduos as condições para que desenvolvam suas aptidões naturais e realizem seu projeto pessoal de vida, nos termos previstos na Constituição Cidadã de 1988. Por isso, temas como educação, saúde, saneamento básico, habitação, lazer, são tão caros ao presente trabalho. Ao Estado cabe o dever de fornecer os programas sociais e econômicos para o desenvolvimento pessoal dos indivíduos, fazendo com que se amenizem os infortúnios daqueles que nasceram em ambiente menos favorável, para que tenham, da mesma forma, condições de desenvolvimento e sucesso como os mais favorecidos. Somente assim cada indivíduo será pessoalmente responsável pela escolha individual, não podendo exigir do Estado qualquer responsabilidade por seu infortúnio. Por esse motivo, afastou-se a teoria da felicidade do mínimo existencial, (Capítulo 4, item 4.2.1), dado que ao Estado cabe o dever de fornecer os meios para que as pessoas possuam uma condição de vida digna, mas a obtenção dessa 67 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação democrática. In: BARROSO, Luis Roberto. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 57. 68 condição de vida depende fundamentalmente do próprio indivíduo, que deve envidar esforços para tanto, não podendo exigir do Poder Público a responsabilidade pelos seus infortúnios se não colaborar com seu esforço pessoal para vencer na vida. 4.2.2 Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade Outro elemento crucial para trazer concretude ao limite do controle judicial de políticas públicas é a correta aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Em monografia profícua sobre o tema, José Roberto Pimenta Oliveira explica que o sistema jurídico brasileiro não define o conteúdo do princípio da razoabilidade. Diante disso, revela os seguintes parâmetros afirmados pela doutrina para determinar o conteúdo do princípio da razoabilidade: (i) razoabilidade como vedação de arbitrariedade, ou seja, uma determinada decisão não pode ser tomada por capricho ou motivos pessoais, deve estar embasada no ordenamento jurídico; (ii) razoabilidade como exigência de justiça, ou seja, devem-se buscar equilíbrio, moderação e harmonia, mas com a advertência de que a aplicação do justo deve se dar dentro do direito positivado; (iii) razoabilidade como standard jurídico, ou seja, o desenvolvimento do conceito do bonus pater_familias, criado no direito privado romano; o comportamento do homem médio, diligente; a congruência lógica entre o fato e a atuação concreta, com a advertência de não confundir standard de razoabilidade com o próprio princípio da razoabilidade; (iv) razoabilidade como requerimento de bom senso e sensatez, mas não de forma vaga e imprecisa, e sim no sentido de respeito à ordem jurídica; (v) razoabilidade como dever de racionalidade, ou seja, a proibição da incongruência, do absurdo e da irracionalidade na aplicação do direito, com a advertência do dever de aplicação lógica do direito; (vi) razoabilidade como imposição da proporcionalidade; (vii) razoabilidade como mandamento de ponderação, ou seja, a impossibilidade de sacrifício exagerado de um valor legítimo quando dois valores legítimos estão em confronto; e (viii) razoabilidade como parâmetro de interpretação, ou seja, a interpretação jurídica deve se dar no sentido daquilo que seja mais razoável, mais humano, benigno e suave, sempre dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico. Acrescenta o autor: 69 Em face de cada situação, exigir razoabilidade, nesta trilha, é demandar que a Administração decida pelas providências cuja origem e justificação tenha a aptidão de persuadir os seus específicos destinatários e a coletividade como um todo, apresentando-se a ação administrativa como uma resposta justificada, adequada e regular à situação fáctica e jurídica enfrentada, de sorte que o ato administrativo possa ostentar, para o seu ingresso válido na ordem jurídica, o necessário coeficiente de adesão perante a sociedade. Haverá atuação razoável quando o comportamento administrativo, pelas características que assume e justificativa que apresenta, é capaz de provocar uma natural adesão dos administrados como sendo o próprio de quem está atrelado ao dever de perseguir e implementar o interesse público, observadas as circunstâncias de cada espécie. Agindo razoavelmente, a Administração legitima o exercício de sua função, legitima a utilização de suas prerrogativas, que lhe foram outorgadas para instrumentalmente fazer cumprir seu mister. Demais disso, cumprindo o dever de atuação razoável, a Administração demonstra sua capacidade de execução da lei, como norma geral e abstrata, com o necessário grau de adaptação do regramento às inúmeras e imprevisíveis situações que a realidade concreta apresenta para o administrador no processo de tomada de decisão. E conclui: O princípio da razoabilidade significa, no contexto jurídico-sistemático da busca do interesse público primário, a exigência de justificada e adequada ponderação administrativa, aberta nos exatos limites constitucionais em que a regra de competência habilitadora autorizar, dos princípios, valores, interesses, bens ou direitos consagrados no ordenamento jurídico, impondo aos agentes administrativos que maximize a proteção jurídica dispensada para cada qual, segundo o peso, importância ou preponderância que venham adquirir e ostentar em cada caso objeto de decisão 68 Pondera Lúcia Valle Figueiredo que [...] não se pode conceber a função administrativa, o regime jurídico administrativo, sem se inserir o princípio da razoabilidade. É por meio da razoabilidade das decisões tomadas que se poderá contrastar atos administrativos e verificar se estão dentro da moldura comportada pelo Direito. [...] não é lícito ao administrador, quando tiver de valorar situações concretas, depois da interpretação, valorálas a lume dos seus standards pessoais, a lume da sua ideologia, a lume do que entende ser bom, certo, adequado no momento, mas a lume dos princípios gerais, a lume da razoabilidade, do que, em Direito Civil, se denomina valores do homem médio.69 68 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. 2003. 599 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, passim. 69 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 4849. 70 Assim, em resumo e com as considerações acima, o princípio da razoabilidade significa a justificada e ponderada decisão dentro das balizas estabelecidas pelo ordenamento jurídico pátrio. Nessa medida, sempre que uma política pública criada pelo legislador ou implementada pelo administrador público se afastar do princípio da razoabilidade deve ser fulminada pelo Poder Judiciário, devendo o juiz observar o dever de fundamentar sua decisão, aplicando os critérios acima referidos, e não o seu entendimento pessoal do razoável. Da mesma forma, o princípio da proporcionalidade, entendido como o justo equilíbrio entre os meios e fins, também serve como importante parâmetro para medir a adequação de uma política pública. José Joaquim Gomes Canotilho esclarece que o princípio da proporcionalidade em sentido amplo comporta subprincípios constitutivos que são: a) o princípio da conformidade ou adequação de meios, que impõe que a medida seja adequada ao fim; b) o princípio da exigibilidade ou da necessidade, que se relaciona com a inexistência de outros meios menos gravosos aos direitos fundamentais dos envolvidos para a consecução destes fins; e c) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, por sua vez, corresponde ao sopesamento dos bens e direitos em conflito stricto sensu, ou seja, a justa medida entre meios e fins, observada por meio do método da ponderação, e quanto mais severamente for atingido um direito fundamental, maior deve ser o peso do princípio contraposto.70 O entendimento acima é acatado pela doutrina majoritária, que repete a necessidade de existência de uma relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios utilizados para atingi-los. Ingo Sarlet vai além e afirma que a proporcionalidade atua como proibição de excesso e como proibição de insuficiência, o que significa uma proteção 70 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 264-265. 71 harmonizada com os preceitos da dignidade da pessoa humana, a qual figura como referencial de um Estado democrático e social de Direito.71 Ao decidir determinada demanda com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o juiz deve proceder a uma avaliação dos interesses em jogo e dar prevalência àquele que ostentar maior relevo, sempre de acordo com a ordem jurídica em vigor. Não basta apenas sacrificar um direito em detrimento de outro, mas aferir a razoabilidade e a proporcionalidade dos valores em jogo à luz do sistema jurídico vigente. Observa José Roberto Pimenta Oliveira que: Majoritariamente, a doutrina caminha para o entendimento de que, à luz do atual regime constitucional-administrativo, razoabilidade e proporcionalidade, como princípios se equiparam, havendo entre elas uma sinonímia de significação jurídica no seu perfil dogmático, detectável na forma como se estruturam os respectivos conteúdos, sob a égide da realidade constitucional configurada pelo Texto Magno de 1988, no qual se encartam e buscam seus fundamentos últimos.72 E, nesse sentido, conclui Ada Pellegrini Grinover conclui: [...] com relação à intervenção do Judiciário nas políticas públicas, que, por meio da utilização de regras de proporcionalidade e razoabilidade, o juiz analisará a situação em concreto e dirá se o legislador ou o administrador público pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da coletividade, estabelecidos pela Constituição. E assim estará apreciando, pelo lado do autor, a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público. E, por parte do Poder Público, a escolha do agente público deve ter sido desarrazoada73 (grifos no original). 71 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 465. 72 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. 2003. 599 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, passim. 73 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: ––––––; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 137. 72 Capítulo 5 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS À INTERVENÇÃO JUDICIAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS No curso do presente capítulo serão analisados os argumentos favoráveis e contrários à intervenção judicial nas políticas públicas, dentre eles os argumentos favoráveis da máxima efetividade das normas constitucionais, a teoria do mínimo existencial e seus desdobramentos e argumentos contrários que são a reserva do possível e a limitação orçamentária. As teorias atuais que balizam o tema merecem ser confrontados para que se tracem soluções possíveis, compatibilizando as ideias existentes. 5.1 Argumentos favoráveis ao controle judicial Dentre os argumentos favoráveis ao controle judicial das políticas públicas destacam-se o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e a teoria do mínimo existencial, que serão a seguir analisados. 5.1.1 O princípio da máxima efetividade das normas constitucionais O princípio da máxima efetividade das normas constitucionais nada mais é do que um reforço à ideia da autoaplicabilidade dos direitos fundamentais, que determina seja conferida a maior eficácia e efetividade possível aos direitos fundamentais. Tratar-se-á de forma detalhada a seguir. 5.1.1.1 Os direitos humanos, os direitos fundamentais e os direitos sociais O estudo das políticas públicas como categoria jurídica se revela desde que os direitos sociais passaram a ser objeto de disposição específica nas cartas constitucionais, em especial com a concretização dos direitos humanos. 73 A afirmação do homem como ser único e possuidor de direitos básicos inerentes à sua existência remonta à antiguidade clássica. Com o decorrer dos séculos e a evolução da ciência e da humanidade, os direitos fundamentais passaram a ser a base do Estado de Direito no mundo moderno. Importante traçar brevemente os parâmetros diferenciadores entre os conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais, bem como pontuar os direitos sociais como categoria pertencente ao rol dos direitos fundamentais. 5.1.1.2 Direitos humanos e suas gerações Direitos humanos é expressão utilizada por jusfilósofos quando tratam dos direitos dos homens independentemente dos sistemas jurídicos de determinado país. É uma categoria jurídica construída historicamente para conferir especial proteção à dignidade de todos os homens, sem vinculação a um determinado Estado. A doutrina elenca a existência de, pelo menos, três gerações ou dimensões de direitos humanos. Os direitos humanos de primeira geração ou dimensão são aqueles relativos aos direitos individuais, cujo exercício pelo cidadão requer que o Estado e os demais cidadãos se abstenham de turbar, ou seja, exigem prestações negativas ou de defesa. Dentre eles o direito à liberdade, à expressão, à manifestação do pensamento, à propriedade, à igualdade, entre outros. Decorrem do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de cunho fortemente individualista, consubstanciado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O que se objetivava era o enfraquecimento do Estado após a época do absolutismo monárquico, para que o cidadão fosse livre para usufruir de sua liberdade. Os direitos humanos de segunda geração ou dimensão são aqueles que exigem uma prestação positiva do Estado, até para garantia do exercício dos direitos humanos de primeira geração, ou seja, um comportamento ativo na realização de 74 prestações. Dentre eles estão os direitos sociais, tais como a educação, a saúde, a habitação, os direitos econômicos e os direitos culturais. Surgem a partir da transição entre o Estado Liberal e o Estado Social, desde o fenômeno histórico da revolução industrial, no início do século XX. Os operários passam a assumir relevância social e o Estado, a ser concebido como garantidor do bem comum, com objetivo de conferir direitos sociais aos indivíduos. Sobre o período histórico de surgimento dos direitos humanos de segunda geração explica Osvaldo Canela Junior que [...] a grande expansão da indústria e a produção massiva de bens de consumo, ao gerarem extrema concentração de riqueza, criaram, ao mesmo tempo, enormes bolsões de pobreza nas classes menos favorecidas. Gravíssima crise de desigualdade foi instaurada, gerando grandes movimentos sociais, mui especialmente das classes trabalhadoras.74 Os direitos humanos de terceira geração, por seu turno, são os chamados direitos transgeracionais, e abrangem também os indivíduos não nascidos. Dentre eles está o direito a um meio ambiente equilibrado, à biodiversidade e o direito ao desenvolvimento sustentável. Essa geração de direitos humanos relaciona-se com o pensamento das atuais sociedades que deixaram de se preocupar somente com o indivíduo e passaram a pensar em um mundo sustentável para as próximas gerações e para a própria garantia da continuidade das espécies. No que tange ao tema das políticas públicas, é possível sustentar, portanto, que estão intimamente ligadas aos direitos humanos de segunda e terceira geração como regra, não se podendo afastar, contudo, a existência de política pública voltada a um direito humano de primeira geração. 5.1.1.3 Crítica à divisão doutrinária 74 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Orçamento e a “reserva do possível”: dimensionamento no controle judicial de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 228. 75 A relevância da divisão doutrinária das três dimensões de direitos humanos deve ser examinada com ressalvas, dado que todos os direitos possuem um viés prestacional positivo, mesmo aqueles incluídos entre os direitos humanos de primeira geração, pois, mesmo os direitos que exigem uma abstenção estatal possuem uma contrapartida positiva, na medida em que para sua garantia é imperiosa a atuação do Estado por meio de mecanismos que garantam a possibilidade de sua exigência coercitiva. Ou seja, de nada adiantaria apregoar a existência do direito à livre manifestação do pensamento, o que em tese exige uma abstenção do Estado no sentido de não se imiscuir na forma livre de pensar do cidadão, se esse direito não puder ser exercido plenamente, com a possibilidade de exigi-lo em juízo, o que demanda uma prestação positiva estatal, mediante os mecanismos da justiça. Segundo Stephen Holmes citado por Ana Carolina Lopes Olsen: Onde há um direito, há uma ação para defendê-lo é uma máxima legal clássica. Indivíduos gozam de direitos, num sentido legal como oposto da moral, somente se males por eles sofridos forem justa e previsivelmente reprimidos pelo seu governo. Este simples fato revela a inadequação da distinção entre direitos negativos e positivos.75 Da mesma forma, mesmo os direitos a prestações positivas também possuem o seu caráter negativo, quando exigem que tanto o administrador quanto a sociedade não o turbem, por exemplo, o direito à educação possui seu viés negativo ao proibir que o Estado deixe de fornecer a educação fundamental a qualquer criança. Trata-se de um dever constitucional que também se revela em uma abstenção quando analisado sob outro enfoque. 5.1.1.4 Os direitos fundamentais Diferentemente dos direitos humanos, os direitos fundamentais relacionam-se com o direito positivado expressamente na Constituição de cada país. Possuem maior efetividade, pois podem ser exercidos de acordo com o sistema jurídico de cada nação. Embora os direitos fundamentais e os direitos humanos 75 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999, p. 43 apud OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 186. 76 possuam muitas vezes uma distinção meramente didática, pois em muitos países os direitos humanos estão positivados e também representam os direitos fundamentais, aqueles possuem contornos mais amplos e imprecisos, enquanto estes têm sentido mais restrito. Ensina Ingo Wolfgang Sarlet os contornos dos direitos fundamentais: [...] na medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de direito.76 Além disso, falar em direitos fundamentais implica fazer referência a um regime jurídico específico de aplicação de normas constitucionais, ou seja, normas sujeitas à aplicabilidade imediata e que não podem ser objeto de disposição pelo legislador ordinário. Segundo a doutrina atual sobre o tema, há um aspecto formal e um aspecto material dos direitos fundamentais. Explicam Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo: [...] a noção de direitos fundamentais como direitos reconhecidos e assegurados por uma determinada Constituição (sendo assim passíveis de diferenciação em relação aos direitos humanos, considerados como aqueles reconhecidos pelo direito positivo internacional) encontra-se necessariamente vinculada ao que se tem designado de dupla fundamentalidade formal e material, designadamente a circunstância de que se cuida de bens jurídicos que, na ótica do Constituinte, expressa ou implicitamente enunciada, são dotados de suficiente relevância e essencialidade (fundamentalidade material) a ponto de merecerem e necessitarem de uma proteção jurídica e normatividade reforçada em relação até mesmo às demais normas constitucionais, mas especialmente no que diz com sua exclusão do âmbito da disponibilidade plena dos 77 poderes constituídos. O conceito formal de direito fundamental relaciona-se, pois, com a positivação constitucional, ou seja, com a previsão expressa do direito no texto da Carta Republicana. Paulo Bonavides78 pontua a existência de dois critérios formais para a identificação dos direitos fundamentais: a) são direitos fundamentais todos 76 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 37. 77 SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008. p. 17. 78 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 515. 77 aqueles assim especificamente nomeados no Texto Constitucional, ou seja, aqueles enumerados no Título II da Carta Republicana denominados “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”; b) são direitos fundamentais os direitos dotados de maior proteção pelo constituinte, seja em virtude de sua imutabilidade sob a ótica da reforma constitucional (cláusulas pétreas), seja em virtude da criação de procedimentos mais complexos de modificação. Ocorre que o critério formal não é suficiente para abarcar todos os direitos fundamentais estabelecidos na ordem jurídica brasileira, seja porque há direitos fundamentais previstos fora do catálogo de direitos fundamentais do Título II da Constituição Federal, por exemplo, os direitos fundamentais estatuídos no Título VIII que tratam “da ordem social”, seja porque há direitos fundamentais previstos nos tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, partiu-se para a adoção de um critério material de direito fundamental, que leva em conta os valores erigidos pela sociedade, critérios de relevância e essencialidade como a dignidade da pessoa humana e que possam ser equiparados, em grau de importância, aos direitos fundamentais expressamente previstos no catálogo da Constituição Federal. E, sobre a eficácia das normas de direitos fundamentais, ensina Osvaldo Canela Junior que [...] o comando contido no art. 5.º, § 1.º, da Constituição da República é absolutamente claro: as normas definidoras de direitos fundamentais têm aplicação imediata. A afirmação do constituinte originário revela que a eficácia dos direitos fundamentais no plano interno é plena, ausente qualquer restrição. Trata-se de comando normativo coerente com a própria natureza jurídica dos direitos fundamentais.79 Passou a doutrina, portanto, a destacar o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais ou da máxima efetividade das normas constitucionais. Sobre o papel dos Poderes do Estado perante esse princípio, Flávia Piovesan explica que ao legislador incumbe proceder em tempo razoável à 79 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 59. 78 concretização do direito, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade por omissão, mover-se no âmbito desses direitos sem lhes reduzir a força normativa pela via legal e não emanar preceitos formal ou materialmente incompatíveis com essas normas; ao Judiciário cabe interpretar os preceitos constitucionais consagradores de direitos fundamentais aos casos concretos em vista de sua efetividade e densificar esses princípios para sua aplicação imediata, em caso de inexistência de lei; já ao Executivo incumbe a tarefa de concretizar os direitos fundamentais, desenvolvendo tarefas para sua realização efetiva.80 Além dos critérios formal e material, os direitos fundamentais possuem as seguintes características próprias, conforme Amauri Feres Saadi: (i) inalienabilidade, pois, por não terem conteúdo econômico, não poderiam ser objeto de alienação ou transferência a terceiros; (ii) imprescritibilidade, poderiam ser exercidos a qualquer tempo, sem que o lapso temporal signifique a perda ou amesquinhe a eficácia do direito; e (iii) irrenunciabilidade: não podem ser renunciados por seu titular, dada a sua natureza personalíssima.81 Portanto, os direitos fundamentais abarcam o critério formal (previsão expressa na norma fundamental) e material (valores essenciais erigidos pela sociedade e que decorrem do ordenamento jurídico), são irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis, além de possuírem eficácia plena, de aplicação imediata, isto é, não dependem da existência de outras normas para serem exigidos. 5.1.1.5 Os direitos sociais como espécie do gênero direitos fundamentais Os direitos sociais são a representação normativa das necessidades humanas básicas, que devem ser atendidas para propiciar uma condição de vida digna aos indivíduos de determinada nação. Negar um direito social constitucionalmente previsto abala o ideal democrático do povo, pois a satisfação institucional das carências humanas é parte da essência da democracia. Segundo Fabiana Okchstein Kelbert, 80 PIOVESAN, Flavia. Proteção judicial contra omissões legislativas. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003. p. 107-108. 81 SAAD, Amauri Feres. Contribuição ao estudo do regime jurídico das políticas públicas em direito administrativo. 2011. 195 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 174. 79 [...] os direitos sociais podem ser entendidos como resultado das reivindicações de caráter social, na sequência do Estado Liberal, as quais pretendiam legitimar a verdadeira igualdade por meio de direitos que assegurassem um mínimo em condições materiais com vistas à concretização da justiça social.82 Quando previstos de forma expressa ou implícita na Constituição Federal ou nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, os direitos sociais devem ser entendidos como espécie do gênero direitos fundamentais,83 e não podem ser objeto de disposição pelos governantes ou legisladores de plantão. Isso porque constam do rol de direitos e garantias fundamentais expressamente previstos pela Lei Maior brasileira e pressupõe uma conduta ativa por parte do ente estatal, por meio de políticas públicas e ações governamentais. Assim, tem-se que os direitos sociais nas características acima, por serem fundamentais, também possuem o regime da dupla fundamentalidade formal e material dos direitos fundamentais, o que significa que a todas as normas de direitos fundamentais devem ser outorgadas a máxima eficácia e efetividade possível, e não cabe aos poderes constituídos, com base em critérios materiais alheios às opções do constituinte originário, subtrair parte dos direitos sociais enunciados na Constituição Federal. Ressaltam Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo: Os direitos sociais abrangem tanto direitos (posições ou poderes) a prestações (positivos) quanto direitos de defesa (direitos negativos ou a ações negativas), partindo-se aqui do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva reconhecida ao titular do direito, bem como da circunstância de que os direitos negativos (notadamente os direitos à não intervenção na liberdade pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela Constituição) apresentam uma dimensão “positiva” (já que sua efetivação reclama uma atuação positiva do Estado e da sociedade), ao passo que os direitos a prestações (positivos) fundamentam também posições subjetivas “negativas”, notadamente quando se cuida de sua proteção contra 82 KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 33. 83 Ana Carolina Lopes Olsen fala em “direitos fundamentais sociais”. 80 ingerências indevidas por parte dos órgãos estatais, de entidades 84 sociais e também de particulares. Além disso, os direitos sociais podem assumir uma estrutura de direito de defesa ou de direitos a prestação, investindo seu titular nas duas categorias jurídicas, de acordo com o caso concreto. A doutrina ainda reconhece uma dupla dimensão dos direitos fundamentais sociais, nos aspectos objetivo e subjetivo. O aspecto subjetivo é aquele ligado à relação Estado-indivíduo, ou seja, são as faculdades ou poderes conferidos aos titulares de direito para que o exerçam contra o Estado. O aspecto objetivo extrapola essa relação Estado-indivíduo e se orienta do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que a coletividade se propõe a seguir e vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que recebem diretrizes de como agir. Sobre as dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais sociais, explica Ingo Sarlet: Ficou consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos Legislativos, Judiciários e Executivos.85 Os direitos sociais, no mais das vezes, são implementados por meio de políticas públicas, e a valorização da efetividade e vinculação das normas constitucionais não mais admite uma postura passiva do Estado, tampouco a adoção de medidas simbólicas, mas prescreve de modo vinculante a conduta do Estado e a sua forma de atuação. Sobre a eficácia das normas de direitos fundamentais sociais, ensina Cesar A. Guimarães Pereira: A eficácia dos direitos fundamentais sociais não se exaure na delimitação de um direito a prestações estatais concretas, mas se estende para assegurar a realização de políticas públicas, a 84 SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 14. 85 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 143. 81 organização de serviços, a racionalidade – com todo o direito à fiscalização e à participação necessário para o exercício dessas garantias.86 De fato, o paradigma dos direitos sociais e a inclusão desses direitos na Carta Fundamental reclamam uma prestação positiva do Estado, de caráter nitidamente intervencionista, além de uma resposta do Judiciário perante a negativa estatal. Segundo Ana Carolina Lopes Olsen, [...] em países com extrema desigualdade social como o Brasil, em que a iniciativa privada não tem condições – ou interesse – de atender as necessidades da parcela da população que vive abaixo das condições de inserção no mercado (os chamados excluídos), pode-se afirmar de antemão que os direitos sociais têm um importante papel a cumprir.87 Regina Maria Macedo Nery Ferrari explica que [...] a Constituição Federal de 1988 declara, textualmente, a acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio, reconhecendoos como imposição ao Estado de realizar determinadas prestações positivas, cabendo à atividade política o papel de seleção dos meios ou instrumentos adequados para sua efetivação.88 Os direitos fundamentais sociais estão intimamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e as palavras de Maria Paula Dallari Bucci:89 “O conteúdo jurídico da dignidade humana vai, dessa forma, se ampliando na medida em que novos direitos vão sendo reconhecidos e agregados ao rol dos direitos fundamentais”. Importante frisar, todavia, que a densidade normativa do princípio da dignidade da pessoa humana é muito baixa e não pode ficar ao talante da doutrina o seu alargamento incondicional. O princípio da dignidade da pessoa humana deve ser entendido e aplicado dentro do arcabouço jurídico do Estado, ou seja, da 86 PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 302. 87 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 29. 88 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Reserva do possível, direitos fundamentais e a supremacia do interesse público. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Org.). Direito administrativo e interesse público. Estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 272. 89 BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 3. 82 Constituição Federal e da legislação infraconstitucional com ela compatível, observando-se o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. 5.1.2 Mínimo existencial A existência de direitos fundamentais é inexoravelmente ligada à noção de garantia de um mínimo existencial, também chamado de núcleo essencial. A garantia de uma existência digna, contudo, abrange bem mais do que a garantia de mera sobrevivência física, situando-se além do limite da pobreza absoluta. A existência humana sem alternativas não atende os ditames da dignidade da pessoa humana. A vida humana não pode ser reduzida à mera existência. Entender assim seria supor que o Estado está obrigado somente a fornecer o mínimo necessário para a sobrevivência do indivíduo, o que se limitaria a alimentação e saúde básicas, prestações evidentemente insuficientes. Heinrich Scholler salienta que a “dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”.90 Assim, mínimo existencial não pode ser confundido com mínimo vital ou mínimo necessário para sobrevivência. Para uma sobrevivência digna é exigido mais do que a garantia contra a fome, é preciso a adoção de um conjunto de medidas para que o indivíduo tenha condições de exercer plenamente os direitos de sua personalidade. Disso decorre que “a liberdade de conformação do legislador encontra seu limite no momento em que o padrão mínimo para assegurar as condições 90 SCHOLLER, Heinrich. Die Strörung des Urlaubsgenusses eines ‘empfindsamen Menschen’ durch einen Behinderten. In: JZ, 1980, p. 676 apud SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do Possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 21. 83 materiais indispensáveis a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se mantiver aquém desta fronteira”.91 No entanto, qual é essa fronteira a ser observada, dado que não é possível imaginar que o mínimo existencial dependa da consciência de cada indivíduo? A doutrina diverge a esse respeito. Alguns apresentam um rol taxativo de direitos incluídos no rol do mínimo existencial; outros entendem que se relacionam com o princípio da dignidade da pessoa humana; e há aqueles que apontam para os direitos fundamentais. Cerrando fileiras junto àqueles que entendem o mínimo existencial como núcleo da dignidade humana, Kazuo Watanabe esclarece: O “mínimo existencial” diz respeito ao núcleo básico do princípio da dignidade humana assegurado por um extenso elenco de direitos fundamentais sociais, tais como direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência social, ao acesso à justiça, à moradia, ao trabalho, ao salário mínimo, à proteção à maternidade e à infância.92 No mesmo sentido Regina Maria Macedo Nery Ferrari conceitua: Por mínimo existencial se deve entender o que a Constituição prevê como conjunto de necessidades básicas do indivíduo, capazes de propiciar a sua participação efetiva na comunidade, o que funciona como limite para a atuação estatal, na medida em que possui o dever de proteger a dignidade humana, cujo conceito não pode ser determinado pelo arbítrio do legislador, na medida em que tem um núcleo irredutível.93 Por seu turno, pontifica Ana Carolina Lopes Olsen mínimo existencial como núcleo essencial dos direitos fundamentais e anota: [...] o mínimo existencial, compreendido como condições necessárias à sobrevivência do homem, e como núcleo essencial do direito fundamental no dado caso concreto, em relação direta com a 91 SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do Possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 23. 92 WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas – “mínimo existencial” e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. In: ––––––; GRINOVER, Ada Pellegrini (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 219. 93 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Reserva do possível, direitos fundamentais e a supremacia do interesse público. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Org.). Direito administrativo e interesse público. Estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 286. 84 dignidade da pessoa humana, erige-se, tal qual verdadeira muralha, que não poderá ser transposta, sob pena de comprometimento de todo o sistema constitucional, e da legitimidade do Estado Democrático de Direito.94 Junto aos doutrinadores que trazem um rol taxativo do conceito de mínimo existencial, Ana Paula de Barcellos pontua: [...] o mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana a que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário.95 Ressalta a autora que aquilo que estiver além desse núcleo ingressa em outra modalidade de eficácia jurídica, com espaço próprio da política e das decisões majoritárias, autorizando a ponderação. Conclui, portanto, que perante o mínimo existencial não há espaço para ponderação. Sua existência é tão fundamental que se impõe como uma regra, de observância obrigatória. As reduções acima, embora sirvam para a maioria dos casos, não representam sua totalidade, na medida em que o mínimo existencial não é o mesmo em cada direito social. Ele precisa ser contextualizado de acordo com as peculiaridades de cada caso e interpretado à luz das necessidades de cada pessoa e de seu núcleo familiar. Além disso, as reduções propostas, embora pareçam delimitar o conceito de mínimo existencial ao núcleo da dignidade humana e dos direitos fundamentais, na verdade trazem conceitos que carecem de densidade jurídica a limitar o alcance das expressões. São conceitos vagos e imprecisos que comportam muitas vertentes e não conseguem trazer objetividade ao tema do mínimo existencial. Embora o mínimo existencial não tenha dicção constitucional própria, há diretrizes constitucionais das quais decorre o seu conteúdo. 94 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 333. 95 BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 288. 85 A Constituição Federal brasileira elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre eles erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e, ao fazê-lo, deixa claro que ambos os marcos são obrigatórios ao poder público. Ademais, o texto elenca uma série de direitos fundamentais no Título II, nos artigos 5.º ao 17, e o faz de forma expressa, estabelecendo que esses são os direitos mais caros ao Estado brasileiro, como forma de garantir que esse seja o mínimo a ser observado tanto pelo legislador quanto pelo poder público. Assim, o conceito de mínimo existencial não pode ser confundido com o princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista sua baixa densidade normativa, que não possibilita a fixação de padrões minimamente objetivos. Não é possível afirmar também que os direitos fundamentais se esteiam diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana, tampouco que esse seja o núcleo do mínimo existencial. Razão assiste a Ingo Wolfgang Sarlet e a Mariana Filchtiner Figueiredo sobre a [...] impossibilidade de se estabelecer, de forma apriorística e acima de tudo de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas negativas e positivas correspondentes ao mínimo existencial.96 Os elementos que compõem o conceito de mínimo existencial não podem ser estanques e devem se adaptar às realidades sociais de cada localidade, na medida em que, por exemplo, o direito a uma habitação digna não é o mesmo em todas as regiões do País, pois depende de fatores climáticos e próprios de cada região. Assim, embora seja possível fixar parâmetros ao conceito de mínimo existencial, não é adequado elencar um rol taxativo, visto que tal instituto depende da análise do caso concreto e demanda a contextualização e a interpretação. 96 SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 26. 86 E os parâmetros a serem observados são o rol de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, os ideais de liberdade, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do devido processo legal. Portanto, o mínimo existencial não é um valor ou um princípio, mas é um instituto que visa a garantia de uma vida digna ao cidadão, com base nos direitos fundamentais previstos constitucionalmente e observados de acordo com o caso concreto. “É a parcela indisponível dos direitos fundamentais aquém da qual desaparece a possibilidade de se viver com dignidade.”97 Nessa esteira, Fabiana Okchstein Kelbert salienta: O mínimo existencial encontra-se na dependência de uma gama de fatores e componentes que podem estar ligados às condições individuais, mas também a circunstâncias socioeconômicas e culturais, de modo que não pode ser resumidos em uma fórmula.98 5.1.2.1 A inadequação da teoria da felicidade Sobre a teoria do mínimo existencial, Ricardo Lobo Torres afirma que é normativa, porque se preocupa com a concretização, a eficácia e a validade do mínimo de existência; é interpretativa, pois projeta consequências sobre a interpretação dos direitos fundamentais; é dogmática, porque lhe interessa concretizar os direitos fundamentais a partir de suas fontes legislativas e jurisprudencial; e é intimamente ligada à moral, porque os direitos fundamentais se relacionam com os princípios morais. Formula, então, o conceito de mínimo existencial em seu duplo aspecto, negativo e positivo, qual seja “há um direito às condições mínimas de existência 97 98 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 88. KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 103. 87 humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidade) e que ainda exige prestações estatais positivas”.99 Salienta, ainda, que o direito à felicidade fundamenta o mínimo existencial, que deve ser visto em sua expressão mínima, na linha aristotélica de garantir uma boa qualidade de vida. No que tange ao vocábulo felicidade, este deve ser tomado em sua acepção objetiva, ou seja, a noção de uma vida boa no sentido de que ninguém será privado de bem necessário ao desenvolvimento de seus potenciais. Não se trata de felicidade no aspecto subjetivo, ligado à psicologia e aspectos internos da pessoa que, no mais das vezes, são irrealizáveis em sua plenitude. Ricardo Castilho também externa esse posicionamento e explica: A noção de vida boa deve ser explicada como a construção e a preservação de uma felicidade igual para todos, composta apenas de elementos e concepções objetivos de existência humana minimamente satisfatória. A vida digna, em outras palavras, não constitui ideia que garanta a realização plena dos indivíduos, tomados em suas variações subjetivas, mas representa somente a garantia de que a nenhuma pessoa faltará qualquer bem material ou imaterial necessário ao desenvolvimento de todas as suas potencialidades100 (grifos no original). Respeitado o posicionamento divergente, essa máxima não pode ser aplicada ao conceito de mínimo existencial, sob pena de alargamento demasiado do conceito, impondo ônus excessivo ao Estado que não consta da Constituição Federal. De fato, o Estado tem o dever de garantir que os cidadãos tenham condições de sobrevivência digna, fornecendo os meios para que aqueles que nasceram em ambiente menos favorável também tenham oportunidade de efetivar seu projeto pessoal de vida, mas sem afastar o dever de cada indivíduo colaborar com seu esforço pessoal para tanto. Essa conclusão decorre da aplicação do princípio da igualdade. 99 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 35. CASTILHO, Ricardo. Justiça social e distributiva: desafios para concretizar direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 99. 100 88 Ocorre que não é possível impor ao Estado o dever de solucionar os infortúnios pessoais dos indivíduos, muito menos um dever de garantir a felicidade de qualquer pessoa por meio de uma boa qualidade de vida, seja pela absoluta falta de previsão constitucional ou legal nesse sentido, seja porque tais condições devem ser alcançadas pelo próprio indivíduo, mediante seu esforço pessoal e de suas escolhas, seja ainda pelos infortúnios que a vida proporciona a todas as pessoas. Aceitar tal alargamento do mínimo existencial e até dos direitos fundamentais que podem ser exigidos do Estado é impor excessivo ônus ao poder público não constante do texto fundamental, o que não se pode admitir. Não obstante a existência de argumentos favoráveis e contrários, está em trâmite a Proposta de Emenda Constitucional n.º 19, de 2010, de autoria do Senador Cristovam Buarque, já aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça, que pretende alterar a redação do artigo 6.º da Constituição Federal para a inserção da teoria da felicidade no direito pátrio, nos seguintes termos: “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. 5.1.2.2 A teoria da vedação do retrocesso Ainda sobre o tema do mínimo existencial, convém mencionar a teoria da vedação do retrocesso, proposta por J. J. Gomes Canotilho. Segundo o autor, [...] o princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas (“lei de segurança nacional”, “lei do subsídio de desemprego”, “lei do serviço de saúde”) deve considerarse constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e 89 inerente autoreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.101 Ana Paula de Barcellos explica o instituto e o insere na modalidade de eficácia das normas jurídicas vedativas do retrocesso: Partindo desses pressupostos, o que a eficácia vedativa do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação dos enunciados que, regulamentando o princípio constitucional, ensejaram a aplicação e a fruição dos direitos fundamentais ou ainda os ampliaram, toda vez que tal revogação não seja acompanhada de uma política substitutiva. Isto é: a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorrerá quando se revogam as disposições infraconstitucionais descritas deixando um vazio em seu lugar. A ideia é que a revogação de um direito, já incorporado como efeito próprio do princípio constitucional, o esvazia e viola, tratandose, portanto, de uma ação inconstitucional.102 Esclarece a autora que a vedação ao retrocesso não significa a proibição do legislador em substituir uma política pública por outra que entenda mais apropriada. A vedação implica não aceitar que a revogação de uma disposição infraconstitucional esvazie o comando constitucional, pois seria equivalente a dispor contra ele. A proibição da vedação ao retrocesso que se pretende estabelecer é equivalente à garantia do mínimo existencial, ou seja, para que a revogação infraconstitucional não torne letra morta as conquistas efetivadas pela sociedade. Aceitar o contrário e concluir que as opções de um legislador não podem ser alteradas por outro equivaleria a aceitar uma espécie de cláusula pétrea ampliada, o que não se pode admitir, sob pena de engessar o debate democrático e impor uma limitação excessiva aos futuros grupos que assumam o poder político. Por isso Ana Paula de Barcellos propõe uma fórmula adequada de tratar o tema, qual seja confrontar a nova regulamentação com a garantia mínima que decorre da Constituição, e não propriamente com a disciplina já adotada pelo legislador infraconstitucional. 101 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 327. 102 BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 84-85. 90 Se a nova regulamentação realiza de forma minimamente adequada o bem jurídico tutelado pelo direito fundamental constitucionalmente previsto, ela deve ser mantida, ainda que altere a forma de regulação anterior. Se a nova regulamentação não realiza o direito fundamental, deve ser fulminada e tida por inconstitucional. Nesse sentido, deve ser entendida a teoria da vedação do retrocesso, para não engessar novas administrações àquilo que já foi implementado e realizado por administrações anteriores. 5.2. Argumentos contrários ao controle judicial Dentre os principais argumentos contrários ao controle judicial das políticas pública, observam-se a teoria da reserva do possível em todos os seus aspectos e as limitações orçamentárias. 5.2.1 Reserva do possível A reserva do possível passou a ser utilizada como argumento pela administração pública contra a intervenção judicial na esfera própria de atuação do administrador, sem uma preocupação de fixar balizas para um conceito tão vago, passando a legitimar a não realização de direitos fundamentais, especialmente na sua dimensão prestacional. A doutrina costuma apontar a origem da teoria da reserva do possível no direito alemão, a partir do julgamento de um caso levado ao conhecimento da corte constitucional daquele país, que concluiu existirem limitações fáticas para o atendimento de todas as demandas de acesso a um direito. Segundo Cesar Augusto Alckmin Jacob: A hipótese em julgamento tratava de um estudante que exigia o acesso ao ensino superior, quando a Alemanha só contava com universidades públicas, as quais estipulavam limites de aluno por classe a fim de garantir a qualidade do ensino ministrado. O Tribunal 91 concluiu que somente se poderiam aceitar restrições (numerus clausus) ao direito ao ensino superior se observadas certas condicionantes: haver regulamentação legal prévia, ser provada a insuficiência material do Estado para atender a toda a demanda e ter-se comprovado o envidamento de esforços legislativos e governamentais visando o incremento das vagas mediante planos de governo e ações administrativas.103 A partir de então o conceito evoluiu e passou a ser estudado pela doutrina brasileira com profundidade, principalmente desde a previsão dos direitos sociais como direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Ocorre que a Constituição Federal brasileira de 1988 não tem norma similar àquela existente na lei alienígena, de forma que o tema reserva do possível não pode ser compreendido nos mesmos termos em que foi desenvolvido pela doutrina e jurisprudência alemãs, e o instituto deve ser aplicado à luz do ordenamento jurídico pátrio. De fato, não se olvida que “pouco adiantará, do ponto de vista prático, a previsão normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não houver dinheiro para custear a despesa gerada por determinado direito subjetivo”104, no dizer de Ana Paula de Barcellos. Sob o título de reserva do possível convivem duas espécies diversas, a reserva do possível fática, que consiste na inexistência fática de recursos, algo próximo da exaustão orçamentária; e a reserva do possível jurídica, que se revela na ausência de autorização orçamentária para determinado gasto em particular.105 Há, ainda, aqueles que trazem a dimensão negativa da reserva do possível, que se relaciona com a noção de escassez de recursos para o atendimento de todos os direitos prestacionais previstos, de forma a impedir a 103 JACOB, Cesar Augusto Alckmin. A “reserva do possível”: obrigação de previsão orçamentária e de aplicação de verba. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 250. 104 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 261. 105 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 262-263. 92 implementação de nova prestação que possa comprometer um direito já atendido. Sobre a dimensão negativa, retrata Fabiana Okchstein Kelbert: [...] partindo-se da ideia central de que efetivamente não há recursos suficientes a satisfazer todos os direitos fundamentais, especialmente os sociais, a dimensão negativa da reserva do possível atuaria como impedimento à satisfação de uma prestação que pudesse comprometer a satisfação de outra prestação. Exemplifica a autora: [...] no caso brasileiro, podem-se mencionar as demandas por cirurgias não realizadas pelo Sistema Único de Saúde ou mesmo tratamentos não disponíveis no país, que precisariam ser realizados no exterior. O deferimento dessas demandas pode esvaziar o orçamento previsto para satisfazer as prestações universais na área da saúde, ou seja, ao se conceder uma única prestação de tal monta, todas as outras se tornariam inexequíveis, por falta de verbas.106 O problema de estabelecer uma relação entre a escassez de recursos públicos e a afirmação de direitos acaba resultando em ameaça à existência de todos os direitos, na medida em que qualquer direito tem um viés prestacional, ainda que seja um direito que pressupõe uma abstenção estatal, pois demanda a existência de mecanismos que garantam sua aplicação, de caráter positivo. Assim, o argumento de escassez de recursos deve ser analisado com cuidado para não confundir o problema de falta de dinheiro para atender determinada política pública com a má gestão dos recursos públicos existentes ou opção política diversa da Constituição. O que se observa na realidade brasileira é que não há verdadeira escassez de recursos públicos para atender as necessidades sociais, mas limitações orçamentárias e finitudes de verbas que demandam escolhas no momento de alocação dos recursos públicos, e as alocações não são feitas com a observância dos ditames constitucionais. Sobre a escassez de recursos, Jon Elster explica: Dizer que um bem é escasso significa que não há o suficiente para satisfazer a todos. A escassez pode ser, em maior ou menor grau, natural, quase natural, ou artificial. A escassez natural severa 106 KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 87-89. 93 aparece quando não há nada que alguém possa fazer para aumentar a oferta. Pinturas de Rembrandt são um exemplo. A escassez natural suave ocorre quando não há nada que se possa fazer para aumentar a oferta a ponto de atender a todos. As reservas de petróleo são um exemplo, a disponibilização de órgãos de cadáveres para transplante é outro. A escassez quase natural ocorre quando a oferta pode ser aumentada, talvez a ponto da satisfação, apenas por condutas não coativas dos cidadãos. A oferta de crianças para adoção e de esperma para inseminação artificial são exemplos. A escassez artificial surge nas hipóteses em que o governo pode, se assim decidir, tornar o bem acessível a todos, a ponto da satisfação. A dispensa do serviço militar e a oferta de vagas em jardim de infância são exemplos.107 Portanto, se há falta de recursos para um determinado fim é porque houve uma decisão política que os manejou para outro, já que a escassez de dinheiro é algo artificial e não inerente à natureza das coisas.108 Portanto, não é possível aceitar o argumento da escassez de recursos para a implementação de políticas públicas voltadas a atingir direitos fundamentais constitucionalmente sagrados, pois implicaria inviabilizar o reconhecimento do direito subjetivo a prestações estatais de qualquer natureza. Ver na reserva do possível um limite imanente dos direitos fundamentais, ainda que seja logicamente aceitável, gera um grave enfraquecimento no sistema de proteção destes direitos, já que poderes constituídos legitimados a descrever o âmbito normativo de um direito, com seus limites inerentes, terão total discricionariedade para afirmar o que é possível e o que não é.109 De acordo com Regina Maria Macedo Nery Ferrari, [...] a reserva do possível deve ser entendida como uma condição da realidade e não pode ser utilizada como forma de considerar que os 107 ELSTER, Jon. Local Justice. How institutions allocate scarce goods and necessary burdens. New York: Russel Sage Foundation, 1992. p. 21-22. 108 Interessante notar que a noção de escassez precisa ser mais bem investigada, posto que recursos públicos nunca são escassos para determinados fins e sempre o são para outros. Exemplo disso é a decisão política de trazer a copa do mundo de futebol de 2014 e as olimpíadas mundiais de 2016 para o Brasil. Para ambos os eventos esportivos não se fala em falta de verbas públicas, dado que houve uma escolha política para a sua realização no País, de forma que tanto a legislação quanto os orçamentos públicos estão sendo manejados para atender tais finalidades. O que cabe questionar é o acerto de tal decisão, na medida em que obras públicas de infraestrutura e diversas políticas públicas voltadas ao esporte tornaram-se prioridade perante o atendimento de outras necessidades ligadas, por exemplo, à educação e à saúde que possuem prevalência no tratamento constitucional. A prevalência de ambos os eventos erigida pelos nossos governantes não subsistiria perante a utilização do método da ponderação, ainda mais ante o incansável argumento da reserva do possível utilizado pela fazenda pública em juízo. 109 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 191. 94 direitos sociais, que existem no mundo jurídico como prestações, constitucionalmente impostas aos Poderes Públicos, só serão efetivadas enquanto houver recursos suficientes e disponíveis em caixa.110 De fato, nenhuma sociedade possui recursos ilimitados para atender as necessidades de todos os cidadãos. Isso não implica afastar a responsabilidade do Estado perante os direitos fundamentais dispostos na Carta Constitucional. A reserva do possível não deve ser vista como um elemento interno do direito, como condição de possibilidade de seu reconhecimento, pois, se assim fosse, funcionaria como verdadeira excludente de ilicitude suficiente para legitimar todo tipo de desvio do administrador público. A reserva do possível também não deve ser entendida como um princípio ao argumento da necessidade de utilização da ponderação. Trata-se de institutos diferentes que não podem ser confundidos. Isto porque a ponderação ligada à reserva do possível é aquela atinente aos recursos disponíveis para a observância do comando normativo constitucional, sendo um elemento extrajurídico, uma verdadeira escolha política diante de uma situação concreta, o que é diferente da ponderação entre princípios, anteriormente estudada (Capítulo 4, item 4.1) . Cesar A. Guimarães Pereira explica que [...] o direito não é afetado pela ausência de disponibilidade orçamentária, que não se dá no mundo do dever-ser, mas do ser. A ausência de disponibilidade de recursos afeta o cumprimento do dever estatal, não a sua existência. Sob esse ângulo, não há diferença entre as duas categorias de direitos: tanto a falta de policiamento adequado para a proteção da propriedade quanto a ausência de leitos hospitalares afetam a efetividade do direito de propriedade e do direito à saúde, respectivamente, sem negar sua existência nem a sua eficácia jurídica111 (grifos no original). 110 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Reserva do possível, direitos fundamentais e a supremacia do interesse público. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Org.). Direito administrativo e interesse público. Estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 284. 111 PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 315. 95 A reserva do possível, portanto, deve ser tratada como um elemento externo ao direito, que não determina o seu conteúdo, não influencia a existência ou a vigência de uma norma, mas pode comprometer a sua eficácia. Observa Amauri Feres Saad que [...] as discussões sobre a reserva do possível, tal como hodiernamente conduzidas, levam o problema das limitações financeiras estatais a um patamar de protagonismo exclusivo quando, em verdade, o grande problema envolvendo os direitos cuja concretização depende de políticas públicas é de gestão. Pelo menos para a realidade brasileira – que pode não ser a mesma para países mais pobres que o nosso – a falta de recursos não é suficiente para encobrir a má gestão administrativa, este sim o problema principal.112 A limitação financeira impõe deveres a todos aqueles que participam da alocação dos recursos públicos, seja aos integrantes do Poder Executivo e Legislativo, seja também aos integrantes do Poder Judiciário. Por isso fala-se que as escolhas de alocação dos recursos públicos não podem ser aleatórias e devem ser feitas em observância das obrigações impostas pela Constituição Federal. Para tanto, é obrigatório que os membros do Executivo e Legislativo fundamentem racionalmente suas escolhas alocativas de recursos, utilizando-se do método da ponderação e dos princípios da proporcionalidade e da igualdade – que serão adiante estudados – em vista dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que estão expressos no artigo 3.º da Constituição Federal, quais sejam: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim, sempre que o poder público argumentar pela utilização da reserva do possível, deverá fazê-lo de forma fundamentada, e suas razões devem ser 112 SAAD, Amauri Feres. Contribuição ao estudo do regime jurídico das políticas públicas em direito administrativo. 2011. 195 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 185. 96 necessárias e proporcionais para serem aceitas. A destinação de recursos para certa finalidade em detrimento de outra deve ser devidamente justificada. A propósito, Ana Carolina Lopes Olsen: Neste âmbito, a escolha de alocação de recursos feita para um determinado fim, e não para outro, necessitará de justificação. A partir do momento que se toma a escassez de recursos econômicos, para a realização dos direitos fundamentais como uma escassez artificial, e não natural, quando se está consciente de que o Estado escolhe dedicar recursos a um determinado fim, no lugar de outros, torna-se possível, e desejável, que esta alocação de recursos seja justificada sob o ponto de vista constitucional. É certo que existe uma margem de discricionariedade que deve ser respeitada, todavia também existe margem de controle.113 No âmbito das políticas públicas não poderá o poder público diferenciar o tratamento dado a uma determinada política em detrimento de outra sem o fornecimento de justificativas amparadas racionalmente nos valores e normas constitucionais. Tal obrigação também se estende aos membros do Poder Judiciário, que, da mesma forma, devem utilizar o método da ponderação em suas decisões. Sempre que um juiz decidir pela aplicação ou pelo afastamento da reserva do possível deverá fundamentar racionalmente sua decisão, como também quando determinar o cumprimento de qualquer prestação material ou a implementação de determinada política pública. Trata-se de dever inafastável ao Estado Democrático de Direito. 5.2.2 A questão orçamentária O orçamento público é peça fundamental na elaboração de qualquer política pública. É no orçamento que estará a previsão das despesas, bem como os detalhes de cada programa governamental. O orçamento é o instrumento legal de atuação do Estado na economia, no qual são fixados os objetivos a serem atingidos. Como qualquer ato estatal, deve 113 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 196. 97 estar vinculado aos objetivos do Estado brasileiro (CF, art. 3.º). Presta-se, portanto, a instrumentalizar tais objetivos no tempo, mediante a programação dos atos necessários para a arrecadação das receitas e sua distribuição racional e proporcional.114 Sem a previsão da despesa específica no orçamento não é possível a implementação de uma política pública. Daí por que o exame da peça orçamentária permitirá revelar, com clareza, em proveito de que grupos sociais e regiões, ou para a solução de que problemas e necessidades funcionará a aparelhagem estatal. O orçamento reflete o plano de ação do governo, sempre elaborado com base em uma decisão política.115 A obtenção de receita pelo Estado foi vastamente regulamentada pela Constituição Federal, a qual estabeleceu limites ao poder de tributar, apontando o caminho a ser trilhado pelo administrador público. A Constituição Federal brasileira estabeleceu um sistema de planejamento que encadeia três leis que se complementam. São elas: o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. Preceitua o artigo 164, § 4.º, da Constituição Federal que todos os planos e programas governamentais devem estar definidos no plano plurianual, e as demais leis orçamentárias devem estar em harmonia com o plano plurianual. É vedado ao administrador realizar qualquer despesa sem prévia previsão orçamentária, consoante o artigo 167 da Carta Republicana, sendo certo ainda que o legislador infraconstitucional não tem ampla liberdade para elaboração do orçamento e disposição de recursos. Fernando Facury Scaff explica: Há que obedecer, nesse sistema de planejamento, aos princípios constitucionais que presidem à receita (legalidade tributária, anterioridade, irretroatividade tributária, capacidade contributiva e outros) e aos limites formais e materiais da despesa, entendidos, 114 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Orçamento e a “reserva do possível”: dimensionamento no controle judicial de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 231. 115 HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 89. 98 estes últimos como aqueles respeitantes aos valores, objetivos e programas condensados, sobretudo, no artigo 3.º da Constituição.116 O Plano Plurianual é o planejamento de longo prazo, que prevê o planejamento do Estado brasileiro por quatro anos. As diretrizes orçamentárias se destinam a estabelecer um vínculo entre o planejamento de longo prazo e o orçamento fiscal, elaborado anualmente, em que se encontram discriminados o orçamento fiscal, o de investimento e o da seguridade social. Desta forma, o Plano Plurianual deverá estabelecer as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (artigo 165, parágrafo único, da Constituição Federal). A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento (artigo 165, § 2.º, da Constituição Federal). A lei orçamentária anual conterá o orçamento fiscal relativamente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, o orçamento de investimento e o orçamento da seguridade social e todos os órgãos a ela vinculados, direta ou indiretamente (artigo 165, § 5.º, da Constituição Federal). Existe também determinação constitucional quanto à necessidade de autorização legislativa para inclusão de despesas não constantes da lei orçamentária (artigos 166 e 167 da Constituição Federal), sendo possível a abertura de crédito suplementar e contratação de operações de crédito, por força da aplicação do § 8.º do artigo 165 da Constituição Federal. 116 SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 7, n. 32, p. 213-226, jul.-ago. 2005. 99 A elaboração das peças é feita por meio de um trabalho conjunto do Executivo e do Legislativo, com a influência das forças políticas, sociais e econômicas, com amplo espaço para o debate e para a eleição de prioridades. Todavia, uma coisa é a previsão orçamentária baseada em uma hipótese, outra é a efetiva existência de recursos financeiros para fazer frente à concretização de todo o orçamento. Como anota Ana Paula de Barcellos, estes orçamentos se limitam a aprovar “[...] apenas uma verba geral para despesas, sem especificação; outros veiculam uma listagem genérica de temas, sem que seja possível identificar minimamente quais as políticas públicas que se deseja implementar”.117 Desta feita, embora na teoria o arcabouço jurídico orçamentário seja harmônico, na verdade trata-se de peça abrangente e imprecisa, conferindo grande liberdade ao administrador público nas escolhas que beneficiarão de fato os indivíduos. Sintetiza Luís Manoel Fonseca Pires: Não há amarras à Administração Pública com rubricas detalhadas e minimamente precisas sobre o emprego do dinheiro público, o que representa, inclusive, a espargida liberdade discricionária de que goza o Executivo na escolha das políticas públicas e respectiva definição dos meios. Se a Administração Pública prefere, quanto à verba destinada à educação, construir mais escolas, erigir um plano de carreira aos professores, implementar uma política salarial diferenciada, investir em pesquisa, reformular a grade escolar com o investimento em computadores, laboratórios ou outras atividades de ensino, há uma expressiva liberdade. Por isso, diante da pluralidade de opções padece o argumento que pretende afastar o controle judicial com fundamento na legislação orçamentária como se à Administração fosse conferida apenas uma única opção de ação, como se fosse uma competência vinculada.118 Além disso, infelizmente a liberação de recursos do orçamento público muitas vezes decorre de troca de favores políticos, fato notório da política brasileira. Geralmente isso ocorre às vésperas de decisões políticas de interesse do governo ou de investigações que ganham repercussão na mídia e se dá com a suspensão do 117 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, p. 25, jan. 2007. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br/revistas.php>. Acesso em: 10 nov. 2011. 118 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. São Paulo: Elsevier, Campus Jurídico, 2008. p. 281 100 cumprimento de emendas empenhadas ou com a liberação de verbas contingenciadas. Afirma Adilson Abreu Dallari: Isso talvez explique as chamadas emendas parlamentares que são introduzidas no curso do processo legislativo do orçamento, para atender interesses políticos e clientelísticos de parlamentares, de cujo apoio o Executivo vai precisar para a obtenção de maioria em determinadas situações.119 Outro expediente usado pelo poder público para desviar a destinação de recursos afetados constitucionalmente a direitos sociais é a chamada Desvinculação de Receitas da União (DRU). Mediante sucessivas medidas provisórias que, há anos, afasta das vinculações constitucionais 20% de toda a arrecadação tributária brasileira, deixando ao arbítrio do administrador público o gasto com percentual desvinculado que, sistematicamente, não é aplicado em direitos sociais. “Isso significa, na prática, que as verbas destinadas ao financiamento dos direitos sociais podem ser usadas livremente em outros setores, como, por exemplo, para o pagamento de juros da dívida pública”,120 fato que efetivamente ocorre no Brasil. Kiyoshi Harada, sobre a desvinculação das receitas da União, faz a seguinte crítica: O pior é que essa DRU, um cancro que se instalou no seio do orçamento anual, originariamente com o nome de Fundo Social de Emergência, vem dando ensejo à criação de inúmeros outros fundos: Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; Fundo Nacional de Saúde, Fundo Partidário, Fundo Nacional de Segurança Pública, Fundo Soberano etc. Logo virão Fundo de Incentivo à Cultura, o Fundo de Incentivo ao Turismo, o Fundo de Combate ao Analfabetismo, o Fundo de Prosperidade, Fundo de Preservação Ambiental etc. E assim, de fundo em fundo o Orçamento Anual, que deveria ser o instrumento de exercício da cidadania, vai sendo empurrado cada vez mais para o fundo do poço.121 119 DALLARI, Adilson Abreu. Orçamento impositivo. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 324. 120 KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 122. 121 HARADA, Kiyoshi. Fiscalização financeira e orçamentária e a atuação dos Tribunais de Contas. Controle interno, controle externo e controle social do orçamento. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 1260. 101 Por isso o argumento da limitação orçamentária para a efetiva implementação de políticas públicas deve ser visto com muita ressalva e com os olhos voltados para a realidade política brasileira. A manipulação do orçamento com finalidades espúrias será objeto de investigação específica na próxima parte do trabalho, dado que a Lei de Responsabilidade Fiscal veda tal prática, que deve ser objeto de acompanhamento pelo Ministério Público. Nesse ponto o que basta é asseverar que a investigação da atividade orçamentária é necessária, mas não satisfatória, uma vez que a alegação da falta de previsão orçamentária e mesmo de recursos não pode ser usada como forma de comprometer a realização dos direitos sociais constitucionalmente sagrados e a consequente implementação de políticas públicas para viabilizar tais direitos. Mônica de Almeida Magalhães Serrano sustenta que [...] o Estado, ao traçar o planejamento econômico e financeiro, embora possua certa margem de discricionariedade, não pode deixar de contemplar os valores traçados como fundamentais pela própria Constituição Federal, e, muito embora se trate de uma atuação com conteúdo político, este não pode suplantar os valores reconhecidos como fundamentais pela ordem constitucional.122 Outra discussão recorrente na doutrina refere-se ao debate sobre o caráter do orçamento, se é peça autorizativa dos gastos do poder público, ou se se reveste de caráter impositivo, determinando sua observância obrigatória pelo Poder Público. É acertada a posição de Adilson Abreu Dallari que afirma o caráter impositivo do orçamento, nos seguintes termos: [...] não faz sentido algum o delineamento de todo um sistema orçamentário calcado no planejamento e a afirmação do direito à transparência da gestão fiscal, se as dotações orçamentárias não tiverem caráter impositivo [...] diante da pletora de normas que não deixam sombra de dúvidas quanto ao fato de que o sistema de orçamentos é, na verdade, um subsistema do conjunto articulado de projetos e programas que devem orientar o planejamento 122 SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães. O sentido e o alcance do conceito de integralidade como diretriz constitucional do Sistema Único de Saúde. 2009. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 108. 102 governamental, o qual, nos termos do art. 174 da CF, é determinante para o setor público.123 5.3 Compatibilização entre os argumentos favoráveis e contrários ao controle judicial das políticas públicas Diante do princípio da máxima efetividade das normas fundamentais, dos conceitos de mínimo existencial, da reserva do possível e das regras orçamentárias acima estudadas, torna-se imperioso compatibilizar os institutos e estabelecer critérios objetivos para o controle judicial das políticas. O elo de ligação entre as diversas teorias, mais uma vez, está no Texto Constitucional, e existem quatro critérios a serem observados pelo aplicador do direito. O primeiro deles é o seguinte: sempre que o poder público buscar as respostas de quanto disponibilizar e a quem atender com determinada política pública deverá respeitar o mínimo fixado na Constituição Federal. Dessa forma, um primeiro limite à possibilidade de alegação da reserva do possível é o atendimento ao mínimo existencial. A jurisprudência do C. Supremo Tribunal Federal caminha nesse sentido, qual seja a impossibilidade de invocação da cláusula da reserva do possível nos processos em que esteja em jogo o mínimo existencial. Veja-se a respeito: Criança de até cinco anos de idade. Atendimento em creche e em pré-escola. [...] Obrigação estatal de respeitar os direitos das crianças. Educação infantil. Direito assegurado pelo próprio texto constitucional (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC n.º 53/2006). [...] Legitimidade constitucional da intervenção do Poder Judiciário em caso de omissão estatal na implementação de políticas públicas previstas na Constituição. Inocorrência de transgressão ao postulado da separação de poderes. Proteção judicial de direitos sociais, escassez de recursos e a questão das “escolhas trágicas”. Reserva do possível, mínimo existencial, dignidade da pessoa humana e vedação do retrocesso social. [...] Políticas públicas, omissão estatal injustificável e intervenção concretizadora do Poder 123 DALLARI, Adilson Abreu. Orçamento impositivo. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 326-327. 103 Judiciário em tema de educação infantil: possibilidade constitucional. [...] A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2.º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade políticoadministrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. [...] A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A controvérsia pertinente à “reserva do possível” e a intangibilidade do mínimo existencial: a questão das “escolhas trágicas”. A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1.º, III, e art. 3.º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal 104 dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (artigo XXV). (...) (RE 639337AgR/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, DJe 177, divulg. 14.09.2011, public. 15.09.2011) (grifos nossos). No mesmo sentido, entendimento firmado pelo C. Superior Tribunal de Justiça, conforme acórdão a seguir: ACP. Controle judicial. Políticas públicas. Trata-se, na origem, de ação civil pública (ACP) em que o MP pleiteia do Estado o fornecimento de equipamento e materiais faltantes para hospital universitário. A Turma entendeu que os direitos sociais não podem ficar condicionados à mera vontade do administrador, sendo imprescindível que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Haveria uma distorção se se pensasse que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido para garantir os direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como empecilho à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Uma correta interpretação daquele princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser apenas no sentido de utilizálo quando a Administração atua dentro dos limites concedidos pela lei. Quando a Administração extrapola os limites de sua competência e age sem sentido ou foge da finalidade à qual estava vinculada, não se deve aplicar o referido princípio. Nesse caso, encontra-se o Poder Judiciário autorizado a reconhecer que o Executivo não cumpriu sua obrigação legal quando agrediu direitos difusos e coletivos, bem como a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada. Assim, a atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas não se faz de forma discriminada, pois violaria o princípio da separação dos poderes. A interferência do Judiciário é legítima quando a Administração Pública, de maneira clara e indubitável, viola direitos fundamentais por meio da execução ou falta injustificada de programa de governo. Quanto ao princípio da reserva do possível, ele não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial. Somente depois de atingido o mínimo existencial é que se pode cogitar da efetivação de outros gastos. Logo, se não há comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário ordene a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político. A omissão injustificada da Administração em efetivar as políticas públicas essenciais para a promoção de dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, pois esse não é mero departamento do Poder Executivo, mas sim poder que detém parcela de soberania nacional. Assim, a Turma conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negou-lhe provimento (Precedentes citados do STF: MC na ADPF 45/DF, DJ 04.05.2004; AgRg no RE 595.595/SC, DJe 29.05.2009; STJ: REsp 575.998/MG, DJ 16.11.2004, e REsp 429.570/GO, DJ 22.03.2004; STJ: REsp 1.041.197/MS, Rel. Min. Humberto Martins, j. 25/8/2009) (grifos nossos). 105 Vislumbra-se, assim, que ambas as cortes superiores do Brasil têm reconhecido o dever da administração pública na efetivação dos direitos fundamentais, e a reserva do possível não é oponível perante o mínimo existencial. Um segundo critério é a necessária diferenciação entre o que não é possível porque não há verbas públicas suficientes, de forma comprovada, mesmo depois de atendidas as regras orçamentárias de alocação de recursos, e aquilo que não é possível porque as verbas públicas foram alocadas para outras prioridades ou por má gestão administrativa. Isso significa que as vinculações orçamentárias expressamente previstas na Constituição Federal devem ser cumpridas e respeitadas, sob pena de afastar a possibilidade de aceitar o argumento da reserva do possível. E, no que tange à prova da adequada alocação de recursos para sustentar o argumento da reserva do possível no direito processual brasileiro, é importante salientar que esse ônus é do poder público, seja nos termos do artigo 333 do Código de Processo Civil, que distribui o ônus da prova, incumbindo-o a quem alega, seja em virtude da necessária inversão do ônus da prova prevista no artigo 6.º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, também aplicável quando uma determinada política pública recair sobre os direitos do consumidor. Ainda no âmbito processual, Ada Pellegrini Grinover salienta que [...] o processo deverá obedecer a um novo modelo, com cognição ampliada, que permita ao magistrado dialogar com o administrador para obter todas as informações necessárias a uma sentença justa e equilibrada, que inclua o exame do orçamento e a compreensão do planejamento necessário à implementação da nova política pública.124 O terceiro critério relaciona-se com os princípios da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade que foram estudados em capítulo específico, dada sua abrangência (Capítulo 4, item 4.2). 124 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: ––––––; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 139. 106 O último critério está ligado à busca da efetivação dos direitos fundamentais, que devem ter prioridade frente aos demais direitos quando há alegação de falta de recursos financeiros. Sobre esse último critério, explica Cesar A. Guimarães Pereira: Assim, não basta a ausência fática de recursos. Deve-se demonstrar que não há recursos porque (a) estes foram alocados para o atendimento de outros interesses mais relevantes e que (b) essa alocação se deu de modo ponderado, de forma que o interesse em questão tenha recebido a máxima atenção possível por parte do Estado.125 Portanto, não é suficiente que haja alocação de recursos e efetiva utilização aos fins orçamentários programados. É preciso prova de que os recursos foram destinados a atender os direitos fundamentais sociais constitucionalmente sagrados e não outros interesses secundários do Estado, ou seja, nas palavras do autor, “somente será possível a alusão à ‘reserva do possível’ se observada a pauta de valores fundamentais extraída da Constituição”126. Como exemplo, temos que a Constituição Federal elenca percentagens mínimas a serem previstas no orçamento público para investimento na educação e na saúde de forma obrigatória. Luciana Rita Laurenza Saldanha Gasparini destaca que: [...] ante a prioridade de gastos nas áreas de educação e saúde, a Constituição Federal houve por bem restringir a discricionariedade do Legislativo e do Executivo, estabelecendo a configuração mínima de dispêndio obrigatório nessas áreas, com a fixação das respectivas fontes de custeio, inclusive. A vinculação constitucional de receitas, com severas penalidades estabelecidas para a hipótese de descumprimento, ratifica a ideia de que existem diversos tipos de limitações decorrentes da legislação, que não permitem a livre disposição de recursos públicos.127 Além disso, exige-se prova de que o direito atendido o foi de maneira satisfatória, ou seja, houve uma destinação de verbas razoável para atender a 125 PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 313. 126 PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 314. 127 GASPARINI, Luciana Rita Laurenza Saldanha. A gestão de políticas públicas e a efetividade dos direitos sociais. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 109. 107 demanda daquele direito e não apenas uma aparência de atendimento com a destinação insuficiente de verbas, realocando-se o dinheiro público para fins secundários do Estado, como a propaganda do governo. O que se exige para a aceitação do argumento da reserva do possível é que o poder público demonstre, efetivamente e por meio de um discurso racional (i) que a reserva do possível não seja invocada em face do mínimo existencial; (ii) que a alegação da falta de recursos não esteja ligada à má gestão administrativa ou a escolhas diversas daquelas previstas na Constituição Federal, através de prova documental que ateste que a administração pública alocou as verbas públicas da forma prevista constitucionalmente, atentando para as regras orçamentárias; (iii) que observou os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e igualdade na aplicação do dinheiro público; (iv) que buscou efetivar os direitos fundamentais constantes do rol previsto na Constituição Federal mediante a destinação de recursos minimamente condizentes com as necessidades de atendimento, em cotejo com outras necessidades de menor importância contempladas no orçamento. Comprovadas essas etapas, ônus que incumbe à administração pública, e demonstrada a inexistência de recursos financeiros para atender determinada política pública, o argumento da reserva do possível deve ser aceito e a intervenção judicial deve ser afastada. Como conclui Ana Carolina Lopes Olsen: [...] se os direitos fundamentais sociais não configuram categoria jurídica absoluta, também não o é a reserva do possível. A escassez de recursos não pode ser tomada como dogma em virtude das dificuldades econômicas tradicionalmente enfrentadas pelo Estado Brasileiro, mas sim como dado a ser devidamente balanceado com interesses sociais constitucionalmente protegidos, como um salário suficiente para a satisfação das necessidades básicas, condições de atendimento e tratamento da saúde, educação capaz de promover a autonomia e a consciência, garantindo a dignidade humana, dentre outros. Existe um conjunto de valores consagrados na Constituição Federal de 1988, dos quais muitos se encontram materializados nas normas de direitos fundamentais sociais. Estes valores normativamente inseridos demandam respeito, não só em termos jurídicos, mas igualmente políticos e econômicos.128 128 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 337. 108 A reserva do possível, portanto, se relaciona com a proibição do exagero na efetivação dos direitos sociais. Não se pode exigir do Estado algo fora dos padrões do razoável, do proporcional e do igualitário, como a questão da felicidade acima tratada. Ultrapassados tais parâmetros, assiste razão ao poder público ao negar a prestação estatal, e está afastada a possibilidade de ingerência judicial na esfera do administrador. Ao Judiciário compete determinar a observância da Constituição, mas sem perder de vista que não pode tornar o inviável viável, o impossível possível, porque dessa forma poderá ferir os ditames constitucionais. Assim, para a compatibilização dos institutos da reserva do possível e dos limites orçamentários diante do mínimo existencial e do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, é preciso que cada ente estatal faça sua parte e entenda o importante papel que exerce. A nenhum dos Poderes da República é dado descumprir o Texto Fundamental. Cumprir a Lei Magna depende da responsabilidade de cada pessoa que exerce parcela do dever-poder, cumprindo o juramento solene que cada qual proferiu na data de sua posse. 5.3.1 O exemplo dos medicamentos Um bom exemplo de como os institutos acima são importantes ao presente tema se revela na questão das políticas públicas que envolvem o fornecimento de medicamentos, diuturnamente trazidas ao crivo do Poder Judiciário brasileiro. No direito brasileiro, a questão foi abordada pelos Tribunais a partir da demanda dos portadores do vírus HIV, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu o dever do Estado em fornecer gratuitamente os medicamentos para tratamento da doença. A partir daí, em diversas outras oportunidades e de forma rotineira, os juízes passaram a reconhecer o direito à integralidade da assistência à saúde a ser 109 prestada pelo Estado, mas tal direito deve observar alguns parâmetros e não pode ser entendido de forma ilimitada. O artigo 196 da Constituição Federal estabelece: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O artigo 197 do Texto constitucional dispõe: São de relevância pública as ações e os serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. O artigo 198 cria o Sistema Único de Saúde, fixando seus princípios, enquanto o artigo 199 estabelece que “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Em seu § 1.º estabelece essa participação no recém-criado SUS: “As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as filantrópicas e as sem fins lucrativos”. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a Constituição Federal estabelece o Sistema Único de Saúde e seus princípios, reconhecendo o setor privado de assistência como participante desse sistema e prevê o acesso universal e igualitário à saúde como fruto, processo, de políticas econômicas e sociais, impõe regras para tanto: complementaridade ao SUS; estar submetido às diretrizes do SUS; sob contrato de direito público ou convênio. Além das diretrizes constitucionais, foram editadas as Leis Orgânicas da Saúde – 8.080 e 8.142, ambas de 1990 – determinando princípios e diretrizes sobre o tema. Atente-se que, dentre as ações necessárias à efetivação do direito à saúde, inclui-se o fornecimento gratuito de medicamentos, dispondo a Administração de determinado numerário, aprovado pelo Legislativo em lei orçamentária. 110 A destinação dos recursos na saúde pública não pode ser feita de modo arbitrário e aleatório pela Administração. Ao contrário: como toda e qualquer despesa realizada pelo poder público, há necessidade de prévia autorização e previsão orçamentária, sempre precedentemente chanceladas pelo Poder Legislativo, dela não podendo o administrado afastar-se, sob pena de, por isso, ser responsabilizado nas diversas instâncias. A necessidade de previsão orçamentária não pode, porém, servir como argumento para o poder público descumprir os misteres fixados pela Constituição Federal, principalmente em tema que é tão caro como a saúde pública. A própria Constituição Federal cria os mecanismos de custeio do Sistema Único de Saúde, prevendo suas fontes e ordenando a aplicação de verbas públicas diretamente para financiar os gastos com a saúde. Falar, pois, de forma genérica e sem qualquer comprovação concreta da impossibilidade material de atender deveres que são constitucionalmente previstos, embora seja uma prática comum da administração pública brasileira, não pode servir para afastar os deveres impostos pela Constituição, conforme já estudado.129 129 Veja-se, a respeito, interessante acórdão do C. STF da lavra do Ministro Celso de Mello: Pacientes com esquizofrenia paranoide e doença maníaco-depressiva crônica, com episódios de tentativa de suicídio. Pessoas destituídas de recursos financeiros. Direito à vida e à saúde. Necessidade imperiosa de se preservar, por razões de caráter ético-jurídico, a integridade desse direito essencial. Fornecimento gratuito de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas carentes. Dever constitucional do estado (cf. arts. 5.º, caput, e 196). Precedentes (STF). Abuso do direito de recorrer. Imposição de multa. Recurso de agravo improvido. O direito à saúde representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do 111 Por outro lado, sob o fundamento de proteger o direito à saúde, também não pode o magistrado transformar-se em órgão cogestor dos recursos destinados à saúde pública, elegendo prioridades em detrimento do direito à saúde e à vida daqueles que seriam os destinatários das ações e serviços planejados corretamente pelo administrador público, posto que não se olvida da finitude dos recursos materiais. Não se pode admitir que o Poder Judiciário imponha à Administração prioridades, prescrevendo a compra de medicamento cujo mecanismo de ação é desconhecido e com altíssimo custo, quando o paciente poderia ser tratado com outras drogas já padronizadas e disponíveis nos centros de dispensação e da mesma classe do prescrito, também sob pena de ferir o princípio da impessoalidade, inserto no caput do artigo 37 da Constituição Federal. Isso porque não se pode consentir que a verba destinada à saúde, tendo em vista prioridades tratadas globalmente e sem favorecimento, para atendimento do maior número de pessoas, seja canalizada para solução de problema individual não comprovado cientificamente. O administrador público, ao determinar a implementação de determinada política pública de medicamentos, leva em conta diversos fatores, como os resultados comprovados de determinada droga, os custos de produção, mecanismos para distribuição, entre outros, critérios estes que não estão à disposição do Poder Judiciário no caso concreto. Estado. Distribuição gratuita, a pessoas carentes, de medicamentos essenciais à preservação de sua vida e/ou de sua saúde: um dever constitucional que o Estado não pode deixar de cumprir. O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5.º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. Multa e exercício abusivo do direito de recorrer. O abuso do direito de recorrer – por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual – constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2.º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses (RE-AgR 393175/RS, 2.ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 12.12.2006). 112 Portanto, diante desse difícil enfrentamento que se apresenta no dia a dia forense, é importante que o Poder Judiciário estabeleça critérios seguros e adequados para, de um lado, fazer cumprir os ditames constitucionais concernentes à saúde pública e, de outro lado, não se substituir ao administrador público quando este atuar em conformidade com a lei maior. Após muito debate sobre a matéria, excessos de ambos os lados, seja para fornecer indiscriminadamente qualquer medicamento, seja para negar a ingerência do Poder Judiciário sobre a questão dos medicamentos, começam a surgir decisões que efetivamente analisam a situação concreta e estabelecem critérios objetivos.130 130 Veja-se o acórdão do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mandado de segurança. Fornecimento de medicamento Synvisc. Lesão muscular. Medicamento importado que não está padronizado pela rede pública e não está registrado na Anvisa. Ausência de direito líquido e certo. Recursos oficial e voluntário providos para denegar a segurança. Relatório [...] Fundamentos. Dá-se por feita a remessa oficial (art. 12, par. único, da Lei n.º 1.533/51). A questão do fornecimento de medicamentos não é pacífica, dada a falta de requisitos legais objetivos para que se opere o fornecimento. É por essa razão a divergência jurisprudencial a respeito. Não há dúvida de que cabe ao SUS, além da atribuição do planejamento e organização da distribuição de serviços de saúde à coletividade, o atendimento individual do necessitado (art. 18, III, letra “a”, da Lei Federal n.º 8080/90). Inegável, pois, a obrigatoriedade de a Administração Pública, por meio do SUS, fornecer ao doente a medicação de que necessita, sob pena de sofrer grave risco à sua saúde. E esta obrigatoriedade se estende a todos os entes políticos da Federação que devem manter em seus respectivos orçamentos, conforme o comando da Constituição Federal e da legislação ordinária federal e estadual (Lei Federal n.º 8.090/90 e Lei Estadual n.º 791/95), dotação de créditos para o financiamento para ações e serviços do SUS (art. 42 e seguintes da Lei n.º 8080/90). Daí a conclusão de que cabe também ao Estado dispor em seu orçamento fiscal e de investimentos sobre verbas destinadas ao gasto com medicamentos, cujos preços extrapolam as possibilidades econômicas dos desprovidos de rendimentos suficientes. A questão central, contudo, que deve ser respondida diz respeito aos critérios a serem adotados quando o jurisdicionado, ao ver recusado seu pedido pela Administração, procura guarida junto ao Poder Judiciário. Esta relatoria tem adotado a posição da maioria desta Câmara no sentido de que, não obstante os pedidos sejam feitos em face da dramática urgência do medicamento, é necessário que se adotem variáveis que não poderiam deixar de ser observadas. Assim, dada a possibilidade de, casuisticamente, se verificarem as variáveis, deve o Judiciário acautelar-se no acolhimento do pleito, sob pena de conceder remédio a quem pode adquirilo, ou simplesmente pode ser apenas um medicamento suplementar, dispensável, ou ainda importado em substituição a similares existentes no País, quebrando assim o princípio legislativo do SUS de atendimento, em primeiro lugar, da população mais carente. Assim sendo, e coerente com esse princípio, é preciso que sejam fixados parâmetros objetivos e gerais que conduzam, ainda que de forma precária, ao valor constitucional da socialização da saúde. O primeiro critério a ser observado refere-se à indispensabilidade do remédio prescrito ao paciente, pela inexistência de outro substituto, similar ou equivalente, de tal sorte que sua falta possa acarretar danos irreversíveis à saúde do necessitado. O segundo é sobre a existência do medicamento no mercado, com possibilidade de fácil aquisição no mercado farmacêutico e não se trate de medicamento em fase experimental. O terceiro diz respeito à necessidade de receita médica, prescrição ou atestado de um médico do SUS, sob sua responsabilidade, confirmando a absoluta necessidade do remédio para o paciente. O quarto é concernente à prova inequívoca da impossibilidade econômica do paciente em adquirir o medicamento ou realizar o tratamento. São requisitos mínimos para o reconhecimento do direito, para obstar presunções ou subjetivismos que podem levar a juízos arbitrários. No caso em apreço está 113 Do exposto conclui-se que, sempre que o administrador fornecer a política pública de forma razoável, em respeito aos ditames constitucionais, em vista dos princípios da igualdade, razoabilidade, proporcionalidade e atento aos deveres que lhe foram impostos, não cabe ao Judiciário alterar a decisão administrativa para atender tal ou qual pretensão individual, sob pena de ferir princípios como impessoalidade e tripartição constitucional de funções. Por outro lado, deixando o administrador público de cumprir com os preceitos legais que lhe são próprios, deverá o Judiciário intervir, conferindo ao jurisdicionado aquilo que lhe foi indevidamente negado pelo Poder Público, mas sempre com o cuidado de analisar o caso concreto e aplicar critérios objetivos. No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover: [...] uma política pública razoável (e, portanto, adequada) deve propiciar o atendimento do maior número de pessoas com o mesmo volume de recursos. Merecem críticas, portanto – por não atender ao comprovada a condição de hipossuficiência do impetrante, que fez declaração expressa de que é pobre na acepção jurídica do termo e tem seus interesses defendidos pela Procuradoria Geral do Estado. Além disso, o medicamento indicado na petição inicial foi receitado por médico da rede municipal de saúde (fls. 11). Todavia, há peculiaridades que induzem à conclusão de que outros requisitos não estão presentes. Consoante documento encartado a fls. 12 (Parecer Técnico da Consultoria Médica feita pela Assistência Farmacêutica do DIR XXII), o médico avaliador, Annibal A. Corrêa, opinou desfavoravelmente, pelo motivo de o medicamento estar fora do Programa da Secretaria da Saúde. Nas informações e nas razões recursais, o impetrado alega que se trata de medicamento importado, não padronizado pelo Ministério da Saúde e que não possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, conforme pesquisa ao órgão a fls. 51/52. Não bastasse isso, o medicamento não é padronizado e não há nos autos prova segura, quer de sua eficácia, quer de que seja o único capaz de combater a enfermidade que debilita a saúde do apelado. Em suma, não se nega que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196 da Constituição Federal). Todavia, o mandamento constitucional não implica o acolhimento automático de pedidos, para o fornecimento indiscriminado de medicamentos. Cabe, pois, à espécie o julgado desta Corte, do qual é reproduzida parte da fundamentação. “As normas constitucionais, como todas as normas, devem necessariamente ser interpretadas de acordo com seu conjunto, ou seja, a interpretação deve ser sistemática E, assim, é inadmissível a interpretação de uma norma constitucional apenas com vistas a um determinado permissivo ou obrigação, como novamente com a devida vênia, e para utilizar os exemplos mais comuns, vem sendo feito nos casos de demandas visando o fornecimento de medicamentos ‘extraordinários’ a cidadãos, ou impor a construção ou ampliação de escolas e creches” (Apelação Cível n.º 77 984-0/8-00 da Comarca de São Bernardo do Campo, Câmara Especial do TJSP, v.u., j. 01.11.2001, Rel. Des. Luiz Tâmbara). Não pode o Judiciário, sob o fundamento de que a norma constitucional é cogente, compelir o Poder Executivo a fornecer medicamentos importados, sem prova robusta de sua eficácia, em substituição a similar padronizado pelo SUS. Por conseguinte, respeitado o entendimento da r. sentença recorrida que confirmou a liminar, deve ser ela reformada. Ante o exposto, o voto é pelo provimento dos recursos oficial e voluntário, para denegar a segurança (TJSP, Apelação Cível n.º 374.721.5/2-00, 10.ª Câmara de Direito Público, Rel. Reinaldo Miluzzi, j. 26.11.2007, DO 07.12.2007). 114 requisito da razoabilidade –, alguns julgados, em demandas individuais, que concedem ao autor tratamentos caríssimos no exterior, ou a aquisição de remédios experimentais que sequer foram liberados no Brasil. Não se trata, nesses casos, de corrigir uma política pública de saúde, que esteja equivocada. E não se pode onerar o erário público, sem observância da reserva do possível.131 A despeito de todas essas dificuldades, as notícias a respeito das decisões judiciais sobre o fornecimento de medicamentos são positivas, na medida em que impõem ao poder público o dever de tratar do tema de forma séria e de fazêlo de modo estratégico, resultando em benefício à população. Ana Carolina Lopes Olsen cita notícia veiculada no jornal Gazeta do Povo, em janeiro de 2005, a respeito das decisões judiciais concernentes ao setor da saúde, que contém o seguinte relato: As despesas geradas por decisões judiciais não têm como ser previstas (e planejadas). Para atender as determinações judiciais, é preciso remanejar recursos do orçamento. Para minimizar o impacto das decisões judiciais e também melhorar o atendimento à população, o diretor do centro de Medicamentos do Paraná, Luiz Ribas, diz que o objetivo é, cada vez mais, diminuir a política de exceção. “A partir de uma demanda constante de determinado medicamento, queremos trabalhar para que ele passe a ser ofertado pelo governo. Com isso, as pessoas não precisarão mais ingressar com ações e os gastos públicos podem ser reduzidos, já que, quando se trata de quantidades maiores, é mais fácil negociar o preço com os laboratórios.” Ação semelhante está sendo estudada 132 pelo ministério. E conclui a autora: [...] verifica-se, assim, que o Judiciário tem uma importante função a cumprir: tornar evidente o descumprimento de determinadas normas de direitos fundamentais sociais, a ponto de tornar inevitável uma modificação das políticas públicas a serem adotadas pelo Estado, ou 133 ainda, determinar a sua implementação. 131 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: ––––––; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 140. 132 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 192. 133 Ibidem, p. 305. 115 Capítulo 6 INSTRUMENTOS PARA A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 6.1 Controle de constitucionalidade A análise da constitucionalidade de qualquer política pública veiculada por lei deve levar em conta as mesmas premissas da análise da constitucionalidade da legislação em geral. A propósito, destaca Valmir Pontes Filho: Quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se ajustam aos princípios e diretrizes constitucionais ou, inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos, juridicamente insubsistentes e, portanto, sujeitos ao mesmo controle jurisdicional de constitucionalidade a que se submetem as leis. Como igualmente ponderado é observar que a abstinência do governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente, de violação de direitos subjetivos dos cidadãos.134 No entanto, é importante salientar que a função de criar o direito é própria do legislador, no exercício de função legislativa. Conforme lição de Luís Roberto Barroso: De fato, embora nasça e flua, inicialmente, ao lado do princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, um e outro atuam como mecanismos de autolimitação do Poder Judiciário (judicial self-restraint) no processo de revisão dos atos dos outros Poderes. Deveras, foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação popular, e não ao Judiciário, que a Constituição conferiu a função de criar o direito positivo e reger as relações sociais. Só por exceção – e em resguardo de inequívoca vontade constitucional – é que deverão juízes e tribunais superpor sua interpretação às decisões e avaliações dos legisladores.135 Com a ressalva acima de que a função de criar o direito é típica do Poder Legislativo, neste ponto cabe esclarecer que o controle judicial de política pública veiculada por lei se assenta nas mesmas premissas do controle de constitucionalidade da legislação em geral, já que as políticas públicas não podem se afastar das regras e princípios constitucionais. 134 PONTES FILHO, Valmir. O controle das políticas públicas: cadernos de soluções constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 244. 135 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 192. 116 E mais, assim como toda lei, as políticas públicas estão sempre vinculadas ao fim constitucionalmente fixado, além do inexorável dever de observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade antes referidos. Assevera J.J. Gomes Canotilho: (i) Em primeiro lugar, a lei é tendencialmente uma função de execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos na Constituição, pelo que sempre se poderá dizer que, em última análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por outro lado, a lei, embora tendencialmente livre no fim, não pode ser contraditória, irrazoável, incongruente consigo mesma. Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da Constituição; no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e 136 congruência. Não é o escopo do presente trabalho desenvolver o tema de controle de constitucionalidade das leis, mas apenas afirmar que as políticas públicas dele não se afastam. 6.2 Omissão legislativa e o mandado de injunção. Merece constitucionais por menção meio a questão da omissão do descumprimento legislativa perante a dos ditames determinação constitucional de implementação de uma política pública. A discussão que se coloca nesse ponto é sobre a atribuição do Poder Judiciário quando a omissão ocorre, e mais, qual deve ser o limite de sua atuação nessa seara. O principal instrumento processual colocado à disposição dos indivíduos para se insurgirem contra a ausência de norma regulamentadora de direito previsto constitucionalmente é o mandado de injunção, pois, no mais das vezes, a ausência de norma implica ausência de política pública sobre determinado tema constitucional. Trata-se de instrumento constitucional-processual intimamente ligado ao controle da constitucionalidade das leis e que visa proporcionar aos titulares de 136 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 740. 117 direitos e liberdades assegurados por normas constitucionais as condições de usufruí-los, ainda que não regulamentados pelo órgão competente. Muito se debate acerca dos limites deferidos ao Poder Judiciário no uso deste remédio constitucional, e a doutrina se divide entre aqueles que limitam a atuação jurisdicional à comunicação do órgão competente acerca da mora legislativa, em homenagem ao princípio da tripartição constitucional de funções e outros que vão além, por meio de uma interpretação ampliativa, e afirmam estar o Poder Judiciário autorizado a deferir o direito pleiteado no caso concreto.137 O Supremo Tribunal Federal, em suas diferentes composições, já manifestou ambos os entendimentos sobre o tema, mostrando que a questão merece reflexão. Segundo a primeira posição, o [...] mandado de injunção não é o sucedâneo constitucional das funções políticas-jurídicas atribuídas aos órgãos estatais inadimplentes. Não legitima, por isso mesmo, a veiculação de provimentos normativos que se destinem a substituir a faltante norma regulamentadora, sujeita a competência, não exercida, dos órgãos públicos. O STF não se substitui ao legislador ou ao administrador que se hajam abstido de exercer a sua competência normatizadora. A própria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico impõe ao Judiciário o dever de estrita observância do princípio constitucional da divisão funcional do Poder.138 A decisão acima mencionada foi proferida no início da década de 90. A visão da atual composição do Supremo Tribunal Federal se modificou. Veja-se a respeito o seguinte acórdão: Mandado de injunção. Natureza. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5.º da Constituição Federal, conceder-se-á mandado de 137 Flavia Piovesan afirma a existência de três correntes doutrinárias sobre o tema, que são as seguintes: “Ao conceder o mandado de injunção cabe ao Poder Judiciário: a) elaborar a norma regulamentadora faltante, suprindo, deste modo, a omissão do legislador; b) declarar inconstitucional a omissão e dar ciência ao órgão competente para a adoção das providências necessárias à realização da norma constitucional; e c) tornar viável, no caso concreto, o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa constitucional que se encontrar obstado por faltar norma regulamentadora (PIOVESAN, Flavia. Proteção judicial contra omissões legislativas. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 148). 138 STF, MI n.º 191-0/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 01.02.1990. 118 injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. Mandado de injunção. Decisão. Balizas. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia, considerada a relação jurídica nele revelada. Aposentadoria. Trabalho em condições especiais. Prejuízo à saúde do servidor. Inexistência de lei complementar. Artigo 40, § 4.º, da Constituição Federal. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral – artigo 57, § 1.º, da Lei nº 8.213/91.139 O atual posicionamento da Corte Suprema do País é pela interpretação ampliativa. O provimento jurisdicional deve conferir o direito no caso concreto quando restar configurada a inexistência de norma regulamentadora do direito constitucionalmente previsto, bem como quando a inércia inviabilizar o exercício do direito. Essa orientação, data maxima venia, mostra-se mais acertada. O poder público, quando se abstém de cumprir total ou parcialmente o dever de legislar imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório, infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando no âmbito do Estado a prática ilícita de descumprimento das normas supremas do País. A inércia estatal em cumprir as imposições constitucionais revela inaceitável gesto de menosprezo pela autoridade da Constituição e configura comportamento que deve ser repelido. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de tornála aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. Assim, não é possível que se admita a limitação da atividade jurisdicional nessa esfera, dado que não é deferido a qualquer dos Poderes da República descumprir a Constituição, tampouco se omitir perante as suas imposições. 139 STF, MI n.º 721/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 30.11.2007. 119 Ensina, com propriedade, José Roberto dos Santos Bedaque qual deve ser a atuação do Poder Judiciário nesse âmbito: Nessa medida, ao conceder a ordem, deve o órgão jurisdicional competente, além de formular a regra jurídica, suprindo a lacuna do ordenamento, aplicá-la à situação da vida descrita pelo impetrante. Tal conclusão visa a conferir efetividade ao mandado de injunção, previsto em sede constitucional exatamente para tornar viável o exercício de direitos e garantias, exercício, esse, obstado pela injustificável inércia daqueles que deveriam criar a norma regulamentadora.140 Não é necessária a declaração da mora legislativa para que o Poder Judiciário possa conferir o direito no caso concreto, visto que a Constituição Federal possui mais de vinte anos de existência, e eventual desatendimento de seus ditames já se dá há mais de duas décadas. Há verdadeira presunção nesse sentido. Aplicando-se a mora legislativa ao tema das políticas públicas, é possível afirmar que sempre que o Judiciário se deparar com a ausência de uma política pública específica na seara de um direito garantido constitucionalmente, deve conferir o direito no caso concreto, carreando os ônus ao poder público. Segundo Maria Helena Diniz, quando há lacunas no direito, o juiz não cria nova norma, mas apenas uma norma individual aplicável ao caso que lhe deu origem, sem se substituir ao legislador. E anota: Entendemos que a integração da lacuna não se situa no plano legislativo nem é uma delegação legislativa ao juiz; ela não cria novas normas jurídicas gerais, mas individuais, que só poderão ascender à categoria de normas jurídicas gerais tão somente em virtude de um subsequente processo de recepção e absorção dessas normas por uma lei ou jurisprudência, uma vez que as súmulas do Tribunal são tidas como normas gerais.141 6.3 Controle do ato administrativo Para Celso Antônio Bandeira de Mello ato administrativo é [...] a declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas 140 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 156. 141 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 44-45. 120 complementares das lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.142 Acrescenta o autor que é possível que a Constituição Federal regule de maneira inteiramente vinculada um dado comportamento administrativo obrigatório, oportunidade em que poderá haver ato administrativo imediatamente infraconstitucional. Diante desse conceito, somente é possível falar em políticas públicas veiculadas por ato administrativo se forem complementares à lei, ou seja, para lhe dar fiel cumprimento. No tema de políticas públicas tratar-se-á com maior frequência dos atos administrativos discricionários, embora não se afaste a possibilidade de política pública implementada por ato administrativo vinculado. Na maior parte dos casos, caberá ao administrador público, dentro de uma margem de discricionariedade que será adiante tratada, eleger os meios necessários e suficientes para atender o comando legal. A peculiaridade que o tema envolve é exatamente o estudo dos limites do controle da discricionariedade do ato administrativo que veicula uma política pública, visto que eventual excesso do Poder Judiciário invadirá a esfera de atribuição do Poder Executivo, o que implica ferir a tripartição constitucional de funções. A lição formulada por Celso Antônio Bandeira de Mello e acatada pela majoritária doutrina brasileira assenta que não há propriamente ato vinculado ou discricionário, mas ato administrativo praticado no exercício de competência vinculada ou discricionária Na acepção do autor: Discricionariedade é a margem de “liberdade” que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por 142 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 339. 121 força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente. Deve-se proceder a eleição da medida idônea para atingir do modo mais adequado possível o interesse público perseguido.143 E vinculação: A lei, todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta para o administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma a ser implementada prefigura antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista. Nestes lanços dizse que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser expedido é vinculado.144 A discricionariedade somente pode ser aferida diante da situação concreta, após a análise da hipótese de incidência normativa e do fato ocorrido no mundo fenomênico; eventual existência de discricionariedade na hipótese prevista abstratamente pela lei não autoriza, inexoravelmente, a prática de ato administrativo discricionário. Assim, o âmbito de liberdade do administrador perante a norma não é o mesmo âmbito de liberdade que a norma lhe quer conferir perante o fato. Entendido o âmbito de abrangência dos atos administrativos praticados no exercício de competência discricionária e vinculada, resta aplicar os conceitos ao tema das políticas públicas. Não obstante as políticas públicas sejam programas de governo que visam a melhoria das condições de vida dos indivíduos de determinado Estado, são inseridas no ordenamento jurídico pelos veículos introdutores de normas, principalmente pelas leis e atos administrativos. As políticas públicas veiculadas por ato administrativo deverão se submeter ao princípio da legalidade, como conclusão lógica de que todo ato administrativo no direito brasileiro está jungido aos limites legais. 143 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 821. 144 Ibidem, p. 810. 122 Os atos administrativos que versem sobre políticas públicas de qualquer espécie podem ser expedidos no exercício de competência vinculada ou discricionária, que será aferida diante do caso concreto. Nesse sentido, a lei traça os contornos de determinada política pública a ser implementada, seja porque há comando constitucional para tanto, seja porque se elegeu determinado programa social ou econômico para a população local. Ao administrador público caberá o dever de implementar a política pública, levando em conta critérios baseados nas peculiaridades locais, outras políticas públicas eventualmente existentes, em aspectos materiais como número de agentes públicos necessários, materiais a serem utilizados, a questão orçamentária, entre outros. E, levando-se em conta a complexidade que geralmente envolve uma política pública, sua implementação, entre outras medidas eventualmente necessárias, se dará por meio da prática de ato administrativo discricionário, não obstante não se afaste a possibilidade de vinculação do administrador, hipótese mais remota. É importante definir, todavia, os limites do administrador para a prática do ato administrativo que veicula determinada política pública e, como consequência lógica, o limite do Poder Judiciário para controlar tal ato. Quando a lei outorga competência discricionária para a prática de determinado ato administrativo, espera-se que o administrador, diante da situação concreta que se apresente, adote a medida considerada excelente, ótima para o atendimento do interesse público primário. Esse mesmo raciocínio deve ser aplicado às políticas públicas, qual seja sempre que a lei determinar ao administrador a implementação de determinada política, obrigará que se busque o ótimo para atender as necessidades da população local. Não se admite qualquer decisão ruim tampouco mediocremente adequada, mesmo em sede de competência discricionária. 123 Aliás, a existência de espaço para discricionariedade é exatamente a prova de que a lei não aceita outra opção senão a melhor diante do caso concreto, pois do contrário trataria a matéria de forma vinculada. Esse é um dos limites que divide a liberdade do administrador público e o dever de intervenção do Poder Judiciário. Sempre que o administrador adotar a providência considerada excelente perante o caso concreto, não haverá espaço para o magistrado se imiscuir, sob pena de afrontar o princípio da tripartição constitucional de funções. Por outro lado, quando a providência adotada não for a melhor, não se afigurar como excelente segundo critérios de razoabilidade e de proporcionalidade, poderá o Judiciário sindicar a opção do administrador público. Por isso o Judiciário tem o dever de anular qualquer ato administrativo praticado no exercício de competência discricionária, sempre que dito ato não atingir adequadamente a finalidade da norma. Em outras palavras, tem o dever de verificar os limites para a discricionariedade conferida ao administrador público no caso concreto. Celso Antônio Bandeira de Mello ensina, de forma mais apurada, o que se afirmou acima, traçando as seguintes conclusões: a) Se a lei, nos casos de discrição, comporta medidas diferentes, só pode ser porque pretende que se dê uma certa solução para um dado tipo de casos e outra solução para outra espécie de casos, de modo a que sempre seja adotada a solução pertinente, adequada à fisionomia própria de cada situação, a fim de que seja atendida a finalidade da regra em cujo nome é praticado o ato. Ou seja, a variedade de soluções comportadas na regra outorgadora de discrição não significa que todas estas soluções sejam igual e indiferentemente adequadas para todos os casos de sua aplicação. Significa, pelo contrário, que a lei considera que algumas delas são adequadas para certos casos e outras para outros casos. b) A existência de discricionariedade ao nível da norma não significa, pois, que a discricionariedade existirá com a mesma amplitude perante o caso concreto e nem sequer que existirá em face de qualquer situação de ocorra, pois a compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na regra e, eventualmente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade. Em suma, a discrição 124 suposta na regra de Direito é condição necessária, mas não suficiente, para que exista discrição no caso concreto; vale dizer, na lei se instaura uma possibilidade de discrição, mas não uma certeza de que existirá em todo e qualquer caso abrangido pela dicção da regra. Estas duas conclusões ensejam uma terceira, atinente ao controle jurisdicional dos atos praticados a título de discrição, ou seja: c) Para ter-se como liso o ato não basta que o agente alegue que operou no exercício de discrição, isto é, dentro do campo de alternativas que a lei lhe abria. O juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela desenvolvida, verificar, em exame de razoabilidade, se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidades em abstrato abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstâncias do caso e deferente para com a finalidade da norma aplicada. Em consequência desta avaliação, o Judiciário poderá concluir, em despeito de estar em pauta providência tomada com apoio em regra outorgadora de discrição, que, naquele caso específico submetido a seu crivo, a toda evidência a providência tomada era incabível, dadas as circunstâncias presentes e a finalidade que animava a lei invocada. Ou seja, o mero fato da lei, em tese, comportar o comportamento profligado em Juízo não seria bastante para assegurar-lhe legitimidade e imunizá-lo da censura judicial.145 Mais do que isso, o Poder Judiciário, no seu âmbito de atuação, sempre deverá proceder a minucioso exame do ato administrativo discricionário, verificando a decisão tomada pelo administrador público no caso concreto, pois somente poderá pronunciar a regularidade do ato administrativo após sua análise, ou seja, se o ato é ilegítimo e extrapolou os limites da discricionariedade observada no caso concreto, deve ser fulminado; se está dentro dos limites legais, deve ser preservado, e, em ambos os casos, tal conclusão somente é possível a posteriori. Insubsistente, portanto, o difundido entendimento de que o ato administrativo discricionário não pode ser objeto de análise pelo Poder Judiciário, pois não é possível afirmar a regularidade de algo que sequer se analisou. Assim também leciona Fábio Corrêa de Souza Oliveira: A convicção de que se está perante uma decisão, realmente, discricionária, ou seja, situada entre alternativas igualmente razoáveis, legais e legítimas, somente por ser alcançada após investigar ou apreciar a questão, o ato, a ação ou omissão, a deliberação tomada. Como averbar que só é cabível sindicar a discricionariedade quando for ela abusiva sem sindicar a discricionariedade? Ora, para concluir acerca de uma qualidade da 145 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 812. 125 discricionariedade – o seu caráter abusivo – é condição examiná-la. A aferição da discricionariedade é pressuposto para resolver sobre o vício ou a lisura da discricionariedade.146 Perfilha-se, por outro turno, a corrente que sustenta não ser facultado ao Judiciário sindicar o mérito do ato administrativo. Este é entendido como [...] o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.147 Portanto, sempre que remanescerem ao administrador duas ou mais opções ideais para atingir a finalidade legal contida em determinada política pública, a escolha lhe caberá de forma exclusiva, não podendo o Judiciário invadir essa esfera. Nem mesmo a existência de opinião divergente do magistrado quanto à solução adotada pelo administrador – admitindo-se a existência de duas ou mais soluções igualmente excelentes – poderá autorizar aquele a inquinar o ato na esfera judicial. Trata-se de um limite inexorável que o Poder Judiciário não poderá ultrapassar. Reconhece Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: Realmente, no exercício da função jurisdicional não deve haver ingerência dos órgãos Legislativo e Executivo, sob pena de prejuízo ao bom desempenho dela, periclitando a justiça. Por sua vez, os Juízes não devem imiscuir-se nas questões de utilidade pública, de conveniência e oportunidade governamental, por envolverem objeto que refoge das suas cogitações, sob pena de subverterem a vida 148 política do Estado-poder. No entanto, saliente-se, somente se existirem duas ou mais opções igualmente excelentes, não poderá haver ingerência do Poder Judiciário na decisão administrativa. Qualquer decisão que revele uma opção desarrazoada, qualquer 146 OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza. A Constituição Dirigente está morta... Viva a Constituição dirigente! In. BARROSO, Luis Roberto. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 98. 147 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 38. 148 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. v. 1, p. 57. 126 medida incoerente relativa aos fatos, às premissas estabelecidas, às decisões tomadas em casos idênticos e contemporâneos, desproporcionais ou desprovidas de razoabilidade ou proporcionalidade, enseja revisão judicial. Em todos esses casos a autoridade administrativa haverá ultrapassado o mérito do ato administrativo, abusando do campo de liberdade que lhe foi conferido e, sendo o ato ilegítimo, autorizando sua fulminação pelo Poder Judiciário. Destarte, a análise da discricionariedade do ato administrativo deverá sempre ser apreciada pelo Poder Judiciário no caso concreto, quando provocado para tanto. O limite do controle judicial das políticas públicas veiculadas por ato administrativo é, portanto, o seguinte: dada a situação concreta, apesar da discrição outorgada pela norma em abstrato, o Judiciário deverá atuar sempre que a situação não comportar senão uma determinada providência que não foi adotada no caso concreto, ou, mesmo comportando mais de uma, certamente não foi aquela tomada pelo administrador. Por outro lado, quando o administrador adotar uma entre várias opções que se afigurem como excelentes para atender a finalidade da política pública prevista na norma, não haverá espaço para a intervenção judicial. Quando o ato for praticado no exercício de competência vinculada, o Poder Judiciário deverá sindicar o ato administrativo que deixar de atender expressamente o comando legal, dado que neste âmbito não há qualquer margem de liberdade outorgada ao administrador público. 6.3.1 Conceitos fluidos, vagos ou imprecisos Muito se diz acerca dos conceitos fluidos, vagos e imprecisos existentes nas leis, que trariam suposta margem de liberdade ao administrador público não sindicável pelo Poder Judiciário. Conceitos como “necessidade pública”, “utilidade pública”, “probidade”, “boa-fé”, “urgência”, entre outros, são conceitos indeterminados utilizados pelo 127 legislador para que o administrador público possa, diante do caso concreto, conformar a realidade à finalidade prevista abstratamente pela lei. Ocorre que a existência de conceitos fluidos e imprecisos não pode dar azo a interpretações absurdas, tampouco confere ao administrador a possibilidade de atuar dezarrazoadamente, ilogicamente ou em descompasso com a finalidade prevista na lei. Regina Maria Macedo Nery Ferrari explica: No campo do Direito Administrativo, quando se diz que a lei condiciona o exercício da atividade da Administração por meio de um conceito jurídico indeterminado, de textura aberta, só se admite uma solução como justa, derivada da subsunção dos fatos mediante um processo lógico jurídico que exclui a discricionariedade, pois esta pressupõe, por definição, que existem várias soluções lícitas, entre as quais a Administração pode operar livremente.149 Celso Antônio Bandeira de Mello, trazendo conceitos da doutrina alienígena, explica uma importante noção a ser aplicada pelo Poder Judiciário: É evidente, de um lado, que quaisquer destas expressões têm um campo significativo induvidoso “frente aos quais ninguém vacilaria em aplicar a palavra, e casos claros de exclusão, a respeito dos quais ninguém duvidaria em não usá-las”, como registrou com precisão Genaro Carrió, ao tratar dos conceitos indeterminados. Há, pois, o que Fernando Sainz Moreno chamou de “zona de certeza positiva” ao lado da “zona de certeza negativa”: “o de certeza positiva (o que é seguro que é) e o de certeza negativa (o que é seguro que não é)”. [...] Nota-se, pois (seja qual for a posição que se adote na matéria) que, de toda sorte, ao Judiciário caberá, quando menos, verificar se a intelecção administrativa se manteve ou não dentro dos limites do razoável perante o caso concreto e fulminá-la sempre que se vislumbre ter havido uma imprópria qualificação dos motivos à face da lei, uma abusiva dilatação do sentido da norma, uma desproporcional extensão do sentido extraível do conceito legal ante os fatos a que se quer aplicá-lo. É que, como diz Laubadere, reportando-se à jurisprudência francesa, a autoridade jurisdicional se reconhece o direito “não apenas de perquirir se os motivos legais realmente existiram, mas, ainda, se eram suficientes para justificar a medida editada e se a gravidade dela era proporcionada à importância e às características (... dos fatos...) que a provocaram.150 149 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Reserva do possível, direitos fundamentais e a supremacia do interesse público. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Org.). Direito administrativo e interesse público. Estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 275. 150 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 91-92. 128 Aplicando-se tais conceitos ao tema em análise, sempre que uma lei veicular conceitos fluidos, vagos ou imprecisos em dada política pública, caberá ao administrador conferir concretude perante a situação que lhe for apresentada no mundo fenomênico. Para tanto, existirá sempre uma zona onde a atuação administrativa certamente será a adequada e outra zona onde certamente não o será. Entre ambas existe a chamada “zona de incerteza”, aquela em que a dúvida é ineliminável. Atuando o administrador na zona certamente adequada ou naquela certamente inadequada, caberá ao Judiciário, respectivamente, manter o ato adequado e fulminar o ato inadequado. Caso a atuação administrativa esteja na chamada “zona de incerteza”, caberá ao Judiciário verificar se a política pública implementada se manteve dentro dos limites do razoável, da proporcionalidade, respeitando a isonomia, quando então o Judiciário deverá manter a decisão administrativa. Desrespeitados tais limites, deverá haver intervenção judicial para fulminar o ato que se revelar ilegítimo.151 151 Veja-se, a este respeito, decisão do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao analisar recurso de apelação relacionado à questão de medicamentos a serem fornecidos pelo Poder Público, que sufraga a posição acima externada: [...] Fornecimento de medicamentos pela rede pública de Saúde. Dever do Estado. Aplicação do artigo 196 da Constituição Federal e da Lei Orgânica da Saúde. Prova pré-constituída de hipossuficiência e necessidade. Mandado de segurança, para proteção dos administrados contra omissões de órgãos e agentes. Recurso que se dá provimento. O conceito de hipossuficiência não é restrito, muito pelo contrário, contém extensão que autoriza, diante de situações jurídicas concretas, medir-se sua incidência. Há, portanto, um patamar e um teto em que essa ocorrência tem lugar, até porque a expressão ora sob comento, contém inequívoco grau de indeterminação, determinável por meio de processo hermenêutico. Dessa forma, o órgão aplicador do Direito possui condições, sem que isso implique extravasamento das normas legais, de fixar, por meio da interpretação, dentro de determinada zona cinzenta, onde exatamente que se aloja esse requisito necessário ao atendimento da pretensão. Mediante tal mecanismo interpretativo, verifica-se estar assegurado ao apelante, direito subjetivo líquido e certo que o autoriza a se socorrer do Judiciário, protegendo-se contra o ato omissivo do agente público, caracterizado pela recusa. Isso significa que critérios subjetivos e extrapolantes da moldura legal não podem conduzir o órgão julgador, sem uma justificativa amparada por imprescindível razoabilidade, a incursionar no campo do arbítrio, da mesma forma que procedera a impetrada, ao recusar o atendimento. A omissão da impetrada, diante da inequívoca prova documental apresentada com a preambular, não poderia deixar de ser constatada pelo ilustre prolator do r julgado monocrático, sob pena de ratificar, como o fez, invalidade omissiva de responsabilidade de órgão da Administração Pública. Conforme ficou bem realçado na petição inicial, por sinal muito bem fundamentado, consagra o artigo 196 da Constituição Federal, o princípio da universalidade do acesso aos serviços da saúde, tendo também registrado, que a pretensão 129 No entanto, é preciso salientar que o Poder Judiciário, ao se imiscuir na atividade do administrador público, precisa se cercar de cuidados para que não substitua a decisão administrativa de forma incorreta, causando prejuízos a toda a coletividade. Ensina Luis Manuel Fonseca Pires que “É preciso compreender que tanto mais intensa deve ser a motivação, isto é, com mais argumentos, mais expositiva, com maior articulação de fatos e fundamentos, quanto maior for a imprecisão do conceito jurídico”.152 Ou seja, além de fulminar o ato administrativo, o magistrado deve observar o princípio da motivação, assentando suas razões em um processo argumentativo coerente, lógico, exigível e sustentável perante a comunidade jurídica. 6.4 Tutelas de remoção de ilícito De nada adianta afirmar a primazia dos direitos fundamentais, o procedimento da ponderação e os princípios constitucionais como norteadores do controle judicial de políticas públicas se não for possível, por meio de tutelas de remoção de ilícitos e medidas judiciais de coerção, exigir do administrador público o cumprimento da decisão judicial que determina a implementação de uma política pública. Passar-se-á ao estudo desses instrumentos. encontra apoio na Lei Orgânica da Saúde (Leis n. 8.080/90 e 8.142/90), preceitos que dispõem sobre o dever da União, de liberar em favor dos Estados-membros e Municípios, os recursos financeiros necessários à implementação desse serviço público. A jurisprudência colacionada, ademais, reproduzida por meio de ementas de julgados do C Superior Tribunal de Justiça, constitui-se também, seguro roteiro para que seja concedida a Segurança, até porque, o writ como ação judicial nascida na Constituição da República, é o meio garantidor e assecuratório dos direitos individuais insculpidos na Lei Maior, dentre os quais, destaca-se o Direito à Saúde. Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso, concedendo-se a Segurança, nos termos delimitados pelo r despacho monocrático que havia deferido a liminar em favor do apelante que, consequentemente, fica restabelecido (grifo nosso) (TJSP, Apelação Cível, Processo n.º 644.849.5/9-00, 7.ª Câmara B de Direito Público, Rel. Jair de Souza, j. 14.12.2007, DO 11.01.2008). Entendeu o E. Tribunal de Justiça de São Paulo que a suposta imprecisão do conceito de “hipossuficiência” não pode retirar o direito à saúde do indivíduo, que deve ser provido pelo Estado, conforme determinação constitucional. Dessa forma, procedeu à anulação do ato administrativo ilegítimo e determinou o fornecimento do medicamento pretendido. 152 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. São Paulo: Campus Jurídico, 2008. p. 112. 130 6.4.1 Condenação em obrigação de fazer Acolher argumentos como a reserva do possível após a análise da prova de insuficiência de recursos não significa julgar improcedente o pedido. A Constituição Federal impõe deveres ao poder público e fixa direitos fundamentais sociais que devem ser perseguidos, pois não configuram um mero conselho ou advertência de como agir. Osvaldo Canela Junior elucida que: [...] durante a fase declaratória do direito, portanto, não é dado ao órgão jurisdicional absorver a questão econômico-financeira para paralisar sua atividade. Isto representaria, em comparação com o plano privado, a esdrúxula figura na qual o devedor não seria condenado à reparação do dano, porque não dispõe de patrimônio suficiente para o adimplemento futuro do título executivo judicial.153 Assim, na falta de recursos comprovada, e caso o pedido não envolva risco de dano irreparável ou de difícil reparação à vida ou à saúde do indivíduo, o juiz não deverá julgar improcedente o pedido, tampouco conceder o direito de plano, visto que as regras orçamentárias e as políticas públicas prioritárias elegidas pelo Poder Público devem prevalecer. O deferimento de plano do pedido implica evidente realocação de recursos do orçamento, enquanto a improcedência importa em deixar de reconhecer um direito constitucionalmente previsto. Como já se referiu, os recursos públicos não são ilimitados, e é preciso planejamento para atender a maior parte das demandas sem prejuízo de outras com o mesmo grau de importância. Nesses casos, deve o juiz julgar procedente o pedido e, em respeito às regras orçamentárias, deverá condenar o poder público na obrigação de fazer consistente em inserir na próxima proposta orçamentária a verba necessária para a implementação da política pública. 153 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 103. 131 Em casos de urgência, o juiz poderá determinar a abertura de crédito suplementar para suprir os gastos da política pública determinada, estabelecendo uma política pública mínima a vigorar enquanto não for implantada outra que atenda de modo satisfatório o direito pretendido. Para tanto, há disposição específica no artigo 461 do Código de Processo Civil que dá respaldo a essas medidas. Para a condenação nas obrigações de fazer acima elencadas, Silvio Luís Ferreira da Rocha defende que o magistrado deve observar os seguintes critérios: a) se a política pública contemplada recebeu recursos minimamente condizentes com as necessidades de atendimento, em cotejo com outras necessidades de menor importância contempladas no orçamento – por ex., comparar recursos destinados à política pública em análise com recursos destinados à publicidade; b) se os recursos destinados à política pública foram exauridos ou simplesmente contingenciados; c) estabelecer uma política pública mínima para vigorar enquanto não for implantada outra, pelo Poder Público, que atenda de modo satisfatório a demanda; d) determinar a abertura de crédito suplementar para suprir os gastos da política pública minimamente eficaz determinada por ele.154 Outra alternativa atualmente aceita por parcela minoritária da jurisprudência, viável quando não for possível a abertura de crédito suplementar em virtude da falta de verbas, é a possibilidade de realocação de recursos do próprio orçamento, destinando as verbas previstas com publicidade para a efetividade de política pública que veicula direito fundamental. Não se pode admitir que o poder público deixe de atender comando constitucional de implementação de uma política pública relacionada a direito fundamental alegando falta de verbas públicas, quando gasta vultosas quantias para a publicidade dos atos do governante, ou mesmo para espetáculos artísticos ou eventos públicos de secundária importância. É o que ocorre, por exemplo, no Município de São Paulo, local onde milhares de crianças aguardam vagas nas creches e escolas da rede pública de ensino, enquanto milhões de reais são destinados à publicidade e a espetáculos artísticos. 154 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Controle judicial de políticas públicas. In: VI CONGRESSO ALAGOANO DE DIREITO PÚBLICO. 2006; Idem. Controle das políticas públicas. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO ADMINISTRATIVO. 2005. 132 Por esse motivo, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu pedido da Defensoria Pública e determinou que a Prefeitura Municipal garanta vagas em creches e pré-escolas a todas as crianças de até 5 anos na região de São Miguel Paulista, no prazo de um ano. A multa, em caso de descumprimento, é de R$ 500,00 ao dia por criança que não esteja matriculada. Determinou, ainda, que, após o prazo de um ano, se ainda houver crianças fora das unidades educacionais, a Prefeitura poderá ter bloqueadas as verbas públicas orçamentárias destinadas à publicidade e aos espetáculos artísticos, mediante respectiva realocação de receitas para cumprimento da decisão judicial. Os desembargadores declararam que [...] as alegações acerca da necessidade de se respeitar o princípio da igualdade e as leis orçamentárias não bastam para justificar o desatendimento de direito fundamental constitucionalmente assegurado. A obrigação da Administração Pública é organizar seus recursos de modo a propiciar vagas a todas as crianças que necessitarem.155 É evidente que a publicidade e a promoção da cultura têm sua importância, inclusive com previsão constitucional. No entanto, a aplicação do método da ponderação revela que o direito fundamental à educação é preponderante relativamente à publicidade e à promoção de espetáculos artísticos, de forma que, havendo restrição orçamentária, o primeiro direito tem prevalência sobre os demais. Por fim, caso a inclusão, realocação ou a abertura de crédito suplementar seja feita por decisão judicial em cumprimento aos ditames constitucionais, não haverá espaço para alteração do orçamento pelo Poder Legislativo, sob pena de responsabilização pessoal dos parlamentares envolvidos na mudança. Ricardo Lobo Torres salienta que [...] ainda falta, no direito positivo brasileiro (e os Tribunais não o construíram), o instrumento semelhante ao do mandado de injunção americano, que permita ao Judiciário vincular o Legislativo na feitura do orçamento do ano seguinte, em homenagem a direitos fundamentais sociais (= mínimo existencial), que necessitam do 155 TJSP, Recurso de Apelação n.º 0114274-50.2009.8.26.0005, Rel. Maia da Cunha, DJ 20.07.2011. 133 controle jurisdicional contramajoritário essencialmente constitucionais.156 típico dos direitos Respeitada a opinião divergente, a falta de meio processual próprio para vincular o Legislativo na feitura do orçamento não é suficiente para afastar essa possibilidade, dado que todos os membros do Poder Legislativo estão inexoravelmente vinculados ao Texto Constitucional. Se um direito fundamental não for atendido, e houver determinação judicial para incluir as verbas necessárias para o seu atendimento no orçamento, evidente que aqueles que assim não o fizerem incorrerão em responsabilidade por ato próprio, devendo arcar com os ônus de suas escolhas com o seu próprio patrimônio. Se a verba for incluída no orçamento seguinte e mesmo assim houver transposição de verbas pelo ente público, deixando de atender a despesa orçamentária prevista, deverá o juiz determinar a implementação da política pública específica, condenando a administração pública na obrigação de fazer consistente em aplicar a verba pública já prevista no adimplemento da política pública. Importante salientar que o juiz é o responsável pelo controle do cumprimento de suas decisões e, para tanto, pode contar com peritos que o auxiliem na fiscalização do cumprimento da ordem. Além disso, para que tais providências sejam possíveis, é preciso que a administração pública, por intermédio dos advogados públicos que a representam, abandonem o discurso vazio da reserva do possível sem provas e passem a demonstrar documentalmente suas razões. É preciso que o juiz seja informado do orçamento e da previsão de atendimento de outras demandas para que a decisão judicial tenha substrato fático na realidade do ente federativo em litígio. Dessa forma, a decisão judicial transitada em julgado, que determinar a inclusão de determinado gasto público, fundada na concessão de direito fundamental social, estará simplesmente dotando o orçamento de sua precípua finalidade constitucional. A partir de tal inclusão, utilizando-se das técnicas inerentes ao Direito Financeiro e dos princípios de finanças públicas, os Poderes Legislativo e Executivo deverão promover a harmonização das 156 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 101. 134 receitas e das despesas públicas, considerando contemplado o gasto previsto na decisão judicial.157 6.4.2 Aplicação de multa diária Outro expediente processual muito utilizado como forma de coerção do administrador público ao cumprimento de decisão judicial é a aplicação das chamadas astreintes. Ocorre que referido instituto processual não se afigura a melhor medida de compelir o administrador público a uma obrigação de fazer, na medida em que a multa aplicada recairá no patrimônio público, e, ao final, toda a coletividade acabará prejudicada pela falta de diligência de atuação do administrador. Enfatiza Éder Ferreira: Se em verdade as falhas do Estado são as falhas dos agentes públicos, o Judiciário não pode permitir que os cidadãos sejam duplamente punidos. Já constitui castigo suportar a má gestão do agente público faltoso. Assim, seria indevido que recaísse sobre os cidadãos a punição de arcar financeiramente com as faltas do administrador. Parece mais acertado responsabilizar a pessoa do gestor.158 De qualquer forma, adotando-se essa alternativa e havendo efetivo descumprimento do ente estatal em obrigação de fazer fixada judicialmente, com a consequente aplicação de multa, evidente que o Ministério Público ou o ente estatal prejudicado deverá ter o direito de regresso contra o verdadeiro causador do dano, para que o ônus final recaia sobre o patrimônio particular do administrador público responsável pelo descumprimento judicial. 6.4.3 Intervenção no Estado ou no Município Outra forma de coerção ainda mais drástica é prevista no artigo 35, inciso IV, da Constituição Federal, qual seja a possibilidade de intervenção da União nos 157 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 107108. 158 FERREIRA, Éder. Ações individuais no controle judicial de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 347. 135 Estados ou dos Estados nos Municípios quando o Tribunal der provimento a representação para prover a execução de lei, de ordem ou decisão judicial. O regramento constitucional traz a possibilidade legal de intervenção da União nos Estados ou dos Estados nos Municípios sempre que uma decisão ou ordem para implementação de política pública for desrespeitada. Tal instituto, contudo, não tem sido utilizado com maior abrangência em virtude do entendimento jurisprudencial segundo o qual o descumprimento de ordem ou decisão judicial deve ser doloso, ou seja, deve estar comprovada a vontade livre e consciente de descumprir o comando emanado do Poder Judiciário, sem fundamento jurídico ou fático aceitável. Dessa forma, a alegação de reserva do possível tem sido aceita pela jurisprudência como suficiente para afastar a possibilidade de intervenção federal ou estadual. Confira-se entendimento do C. Supremo Tribunal Federal: Agravo regimental. Intervenção federal. Inexistência de atuação dolosa por parte do Estado. Precedentes. 1. Inocorrência de cerceamento do direito de defesa dos agravantes. 2. Fiscalização do destino de verbas públicas no âmbito dos Estados-membros: impossibilidade em intervenção federal. 3. Decisão agravada que se encontra em consonância com a orientação desta Corte no sentido de que o descumprimento voluntário e intencional de decisão judicial transitada em julgado é pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção federal. 4. Agravo regimental improvido (ARE 639337 AgR/SP, 2.ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, DJe 177, divulg. 14.09.2011, public. 15.09.2011). 6.4.4 Responsabilização do agente público 6.4.4.1 Responsabilização por ato de improbidade administrativa O agente público que descumpre decisão judicial pratica ato de improbidade administrativa e está sujeito às sanções previstas no artigo 11 da Lei 8.429/1992. 136 O diploma legal de regência da improbidade administrativa tipifica como ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública o fato de retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício. Sanciona-se o descumprimento juridicamente qualificado de regras e princípios inobservados, pelo agente público, no desenrolar de sua atividade, como é o caso do dever de praticar ato de ofício. Interpretando-se tal dispositivo, é possível inferir que, ao deixar de cumprir ordem judicial sem justificativa plausível, o administrador público deixa de praticar ato de ofício e fica sujeito, portanto, às sanções previstas em lei. Observa José Roberto Pimenta Oliveira que “o descumprimento ostensivo do comando legal ingressa no plano da reprovação ético-jurídica. A insurgência frontal do agente público em submeter-se à legalidade que norteia e disciplina a atuação funcional viciada é paradigma de violação da probidade”159 (grifos no original). A jurisprudência também acolhe o entendimento acima: Ação civil pública. Improbidade administrativa. Obrigação de fornecimento de medicamentos. Demora no atendimento. A omissão do réu no esclarecimento do procedimento de entrega dos medicamentos, não obstante reiteração das determinações judiciais caracterizou o descumprimento, ainda que parcial, de ordem judicial. Ação julgada procedente em parte. Decisão mantida. Recursos não providos.160 6.4.4.2 Responsabilização criminal Além dos institutos jurídicos acima elencados, ainda há a possibilidade de responsabilização criminal do agente público, seja por meio do crime de responsabilidade (artigo 1.º, inciso XIV, do Decreto-lei n.º 201/1967), seja mediante o crime de desobediência, previsto pelo artigo 330 do Código Penal. 159 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 267. 160 TJSP, Apelação 6950-31.2009, Rel. Vera Angrisani, DJ 05.04.2011. 137 Entretanto, da mesma forma que em relação à intervenção federal e estadual, as condutas somente são consideradas típicas pela jurisprudência em caso de dolo do agente, ou seja, vontade livre e consciente de descumprir imotivadamente a decisão judicial. Portanto, eventual justificação motivada do descumprimento da ordem judicial é suficiente para afastar a tipicidade criminal da conduta, o que torna a responsabilização criminal de difícil aplicação, eis que o agente público sempre escora suas razões nas limitações financeiras, o que é aceito pela jurisprudência dominante. 6.4.5 A insuficiência das tutelas de remoção de ilícitos em casos extremos e o sequestro de verbas públicas As medidas judiciais de coerção do administrador público para o cumprimento das decisões judiciais de implementação de direitos fundamentais em vigor no Brasil, na maioria dos casos, são suficientes para resolver as questões trazidas diuturnamente à apreciação judicial. Entretanto, em casos extremos, de evidente urgência e de reiterada omissão administrativa, não há instrumento jurídico capaz de fazer valer a tutela judicial. Imagine-se um determinado município em que não haja nenhuma política pública voltada à educação, não haja escolas, tampouco a inclusão das crianças no ensino infantil, o que fere o princípio da dignidade humana e da absoluta prioridade da criança e do adolescente. O magistrado que se deparar com essa situação deve determinar a imediata aplicação das verbas públicas na educação infantil local, fazendo incluir no orçamento do próximo ano tal previsão, como também determinar que o município custeie o ensino das crianças em escola particular local até que seja sanada a omissão, sob pena de aplicação de multa diária. 138 Suponha-se que o município se quede inerte e não cumpra a determinação judicial, limitando-se a alegações vazias de impossibilidade orçamentária, sem custear o estudo das crianças. A condenação por ato de improbidade administrativa da autoridade faltosa não terá o condão de resolver o problema, além de depender de outro feito com cognição própria. A intervenção estadual e a responsabilidade criminal não têm sido utilizadas pela jurisprudência para atender tais finalidades, na medida em que não há dolo da autoridade pública suficiente para autorizar as medidas drásticas, e ainda que o dolo esteja configurado, ambos os institutos dependem de ação própria, com cognição específica, e não seriam suficientes para resolver a questão. Outro exemplo: o abrigo de determinada cidade comporta receber 25 crianças para prestar um atendimento digno e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Referido abrigo já conta com 40 crianças abrigadas, número muito acima do recomendável, e a demanda tem crescido consideravelmente nos últimos anos. O Ministério Público ingressa com ação civil pública para que o município disponibilize mais vagas às crianças e adolescentes abrigados e o juiz defere o pedido, determinando a disponibilização de novas vagas com a construção de uma nova casa de abrigo, defere a possibilidade de o município firmar convênio com outras entidades e até com cidades vizinhas para abrigo das crianças, como fixa a obrigação de fazer consistente em incluir a verba necessária no orçamento. Na inércia, fixa multa diária em caso de descumprimento. O Município fica inerte, não providencia nenhuma vaga, não faz convênio e deixa transcorrer in albis o prazo de resposta na ação civil pública ajuizada. Ao mesmo tempo, surgem outras nove crianças para abrigamento urgente, filhos de pais que exploram sexualmente os menores e não possuem outros familiares com condições de se tornarem guardiões. 139 Trata-se de exemplo verdadeiro, ocorrido na cidade de Francisco Morato, Estado de São Paulo, Ação Civil Pública n.º 197.01.2011.004655-1, em curso perante a 1.ª Vara Judicial daquela Comarca. Nos casos peculiares e urgentes acima mencionados não há instrumento jurídico no ordenamento brasileiro que seja capaz de fazer valer a ordem judicial, de forma que é preciso pensar em uma interpretação analógica do artigo 100 da Constituição Federal, único capaz de resolver tais problemas. Para tanto, a única alternativa existente é o sequestro de verbas públicas, mediante ordem emanada do Presidente do Tribunal, nos mesmos termos do sequestro de rendas públicas previsto para a preterição do pagamento de precatórios constante do artigo 100, § 2.º, da Constituição Federal. O artigo 100 da Constituição Federal dispõe sobre o pagamento dos créditos da fazenda pública por meio de precatório judicial, respeitando-se a ordem cronológica de apresentação. O parágrafo segundo do citado artigo autoriza, como exceção, o sequestro da quantia necessária à satisfação do débito caso haja preterição do direito de precedência do credor. O artigo 78, § 4.º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dispõe que: O Presidente do Tribunal competente deverá, vencido o prazo ou em caso de omissão no orçamento, ou preterição ao direito de precedência, a requerimento do credor, requisitar ou determinar o sequestro de recursos financeiros da entidade executada, suficientes à satisfação da prestação. Tais disposições são aplicáveis exclusivamente para as hipóteses de pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, ou seja, configurada uma obrigação de dar/pagar e invertida a ordem cronológica de pagamento, resta autorizado o sequestro de verbas públicas. Ocorre que nem a Constituição Federal nem a legislação infraconstitucional brasileira estabelecem uma forma específica de execução dos julgados contra a fazenda pública no que tange às obrigações de fazer, tais como 140 construir uma escola, disponibilizar vagas em um abrigo ou obrigações congêneres, restando a alternativa de converter a obrigação de fazer em obrigação de pagar. Tais alternativas seriam suficientes não fossem situações urgentes e periclitantes como as acima elencadas, que não podem aguardar a ordem cronológica de pagamento de precatórios, ainda mais diante da realidade brasileira de atraso de mais de uma década para pagamento de débitos judiciais. Diante disso, em casos peculiares como os citados, de reiterada inércia da administração pública diante das medidas menos drásticas aplicadas, além da urgência e da flagrante violação de direito fundamental previsto como núcleo essencial, deve ser determinado o sequestro de verbas públicas para cumprir a obrigação de fazer. Realizando-se uma interpretação analógica ao sequestro de verbas públicas para o preterimento do direito nas obrigações de dar, é evidente que na inércia da administração pública em casos graves de obrigações de fazer há um preterimento do direito fundamental precedente que não pode ser tolerado. O direito à vida e à dignidade das crianças e dos adolescentes deve ter absoluta prioridade, conforme ditames da própria Constituição. São parte do mínimo existencial que não estão sujeitos ao argumento da reserva do possível. Deixar de atender esses direitos em prol de qualquer outro é uma maneira de preteri-los de forma inconstitucional, uma vez que gozam de prevalência pelo próprio texto da Lei fundamental. Trata-se de preterição não admitida que deve usufruir da mesma proteção constitucional que logram as preterições atinentes às obrigações de dar. Assim, considerando que não há forma legal prevista para execução do julgado de obrigação de fazer contra a Fazenda Pública, a analogia e os princípios gerais do direito devem ser utilizados para resolver a questão, pois estão presentes os requisitos autorizadores do artigo 4.º da Lei de Introdução às Normas do Direito 141 Brasileiro, que preconiza: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Sobre a analogia, expõe Silvio de Salvo Venosa que Trata-se de um processo de raciocínio lógico pelo qual o juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na descrição legal. O juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a letra do texto não havia compreendido. Para que esse processo tenha cabimento, é necessária a omissão no ordenamento.161 A analogia deve ser aceita, portanto, para autorizar o sequestro de verbas públicas nos casos peculiares como os acima narrados, pois baseada na técnica da ponderação, nos princípios da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, além de se dar de forma excepcional. Para tanto, depois de esgotadas todas as alternativas menos gravosas para o cumprimento da ordem, deverá o juiz comunicar o descumprimento da obrigação de fazer ao Presidente do Tribunal a que estiver vinculado, cabendo a este determinar o sequestro de verbas públicas para custear a obrigação de fazer determinada, ou seja, para os casos em estudo o dinheiro reverterá para a construção de escola pública e para o custeio da educação, ou para o abrigamento das crianças em entidade particular ou em outro local público adequado, até que o Município resolva o problema, dado que se trata de obrigação que lhe foi imposta por força do princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Além disso, nessa peculiar hipótese de sequestro de verbas públicas, evidente que não se pode determinar o sequestro de verbas destinadas a atender outros direitos fundamentais ligados ao mínimo existencial, tais como a saúde e habitação dos munícipes, tampouco que obstem o funcionamento da administração pública municipal, como o salário dos servidores. Deve o Presidente do Tribunal optar por sequestrar verbas que não estejam ligadas à implementação de direitos fundamentais ou ao funcionamento da 161 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 1, p. 49. 142 máquina administrativa, por exemplo, as verbas destinadas à publicidade ou obras públicas de melhorias que possam aguardar o próximo orçamento para inclusão e execução. 6.4.5.1 A inadequação do sequestro de verbas públicas com base no artigo 461, § 5.º, do Código de Processo Civil. No que tange ao tema do sequestro de verbas públicas, a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça foi além do proposto no presente item, deferindo a possibilidade de sequestro de verbas públicas pelo juiz de primeiro grau, nos termos do artigo 461, § 5.º, do Código de Processo Civil, como forma de medida assecuratória do cumprimento da decisão judicial. O entendimento da Primeira Turma do C. Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o rol de medidas assecuratórias previstas no Código de Processo Civil não é taxativo, mas exemplificativo, o que autoriza a interpretação extensiva para o sequestro de verbas públicas em casos urgentes e excepcionais. Afirma-se que os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, autoriza superar quaisquer espécies de restrições legais. As hipóteses nas quais o Tribunal da Cidadania autorizou o sequestro de verbas públicas diretamente pelo magistrado singular com base no citado artigo, mediante depósito em conta vinculada ao processo, foram relacionadas com a questão de saúde, fornecimento de medicamentos, cirurgias e assistência médica a pacientes enfermos.162 162 Processual civil. Agravo regimental. Fornecimento de medicamentos pelo Estado. Descumprimento da decisão judicial de antecipação de tutela. Bloqueio de verbas públicas. Medida executiva. Possibilidade, in casu. Pequeno valor. Art. 461, § 5.º, do CPC. Rol exemplificativo de medidas. Proteção constitucional à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana. Primazia sobre princípios de direito financeiro e administrativo. Novel entendimento da e. Primeira Turma. 143 Luis Manuel Fonseca Pires acompanha tal entendimento para as verbas públicas contingenciadas e, ao analisar o artigo 461 do Código de Processo Civil, sublinha: O § 5.º desta norma expressamente dispõe que para o cumprimento da ordem o juiz deve determinar as medidas necessárias. Portanto, como medida que atende ao princípio da razoabilidade, decerto a constrição judicial de verba pública contingenciada potencializa o cumprimento da determinação judicial.163 1. O art. 461, § 5.º, do CPC, faz pressupor que o legislador, ao possibilitar ao juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas assecuratórias como a “imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”, não o fez de forma taxativa, mas sim exemplificativa, pelo que, in casu, o sequestro ou bloqueio da verba necessária ao fornecimento de medicamento, objeto da tutela deferida, providência excepcional adotada em face da urgência e imprescindibilidade da prestação dos mesmos, revela-se medida legítima, válida e razoável. 2. Recurso especial que encerra questão referente à possibilidade de o julgador determinar, em ação que tenha por objeto o fornecimento do medicamento Ri-Tuximab (Mabthera) na dose de 700 mg por dose, no total de 04 (quatro) doses, medidas executivas assecuratórias ao cumprimento de decisão judicial antecipatória dos efeitos da tutela proferida em desfavor da recorrente, que resultem no bloqueio ou sequestro de verbas do ora recorrido, depositadas em conta corrente. 3. Deveras, é lícito ao julgador, à vista das circunstâncias do caso concreto, aferir o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. Máxime diante de situação fática, na qual a desídia do ente estatal, frente ao comando judicial emitido, pode resultar em grave lesão à saúde ou mesmo por em risco a vida do demandante. 4. Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais. Não obstante o fundamento constitucional, in casu, merece destaque a Lei Estadual n.º 9.908/93, do Estado do Rio Grande do Sul, que assim dispõe em seu art. 1.º: “Art. 1.º O Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento e de sua família. Parágrafo único. Consideram-se medicamentos excepcionais aqueles que devem ser usados com frequência e de forma permanente, sendo indispensáveis à vida do paciente”. 5. A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção à dignidade da pessoa humana. 6. Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que, condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados. 7. In casu, a decisão ora hostilizada importa concessão do bloqueio de verba pública diante da recusa do ora recorrido em fornecer o medicamento necessário à recorrente. 8. Por fim, sob o ângulo analógico, as quantias de pequeno valor podem ser pagas independentemente de precatório e a fortiori serem, também, entregues, por ato de império do Poder Judiciário. 9. Agravo regimental desprovido (STJ, AgRg no REsp 1002335/RS Agravo Regimental no Recurso Especial 2007/0257351-2, Rel. Min. Luiz Fux, DJE 22.09.2009). No mesmo sentido REsp 909.752/RS, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE 13.09.2007. 163 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. São Paulo: Campus Jurídico, 2008. p. 207. 144 Não obstante o respeito ao posicionamento adotado, tal prática é inconstitucional. Como premissa, é evidente que a decisão judicial vincula o poder público e deve ser cumprida independentemente da utilização dos instrumentos de coerção legalmente previstos. Ocorre que, em caso de omissão do poder público, muitas vezes o magistrado não possui alternativas de fazer cumprir o decisum, o que não significa autorização para criar o direito em desconformidade com os ditames constitucionais. Além da falta de previsão infraconstitucional para o sequestro de verbas públicas diretamente pelo magistrado singular, eis que tal hipótese não está incluída no rol das medidas assecuratórias deferidas ao juiz no artigo 461, § 5.º, do Código de Processo Civil, a Constituição Federal autoriza apenas uma forma de sequestro de verbas públicas, qual seja aquela prevista no artigo 100, § 2.º, do Texto Fundamental, que estatui: As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o sequestro da quantia necessária à satisfação do débito (grifos nossos). A Constituição Federal, portanto, é expressa e taxativa ao afirmar que o sequestro de verbas públicas será exclusivamente para a hipótese de preterição do direito ao pagamento de precatório. O direito à vida e à saúde, integrantes do princípio da dignidade da pessoa humana, como também o princípio da razoabilidade, possuem baixíssima densidade normativa e não podem aceitar qualquer tipo de conformação, mormente se em desacordo com a Constituição Federal. A aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana ao caso concreto, como de qualquer outro princípio constitucional, por mais fundamental que 145 seja, encontra óbice intransponível no texto constitucional e não pode fazer tábula rasa das disposições basilares do ordenamento jurídico brasileiro. A restrição legal que o entendimento atacado supera é uma restrição do próprio Texto Constitucional, que não autoriza o sequestro de verbas públicas diretamente pelo magistrado singular, ainda que se relacione a verbas contingenciadas, e mesmo se observadas a excepcionalidade e urgência do caso concreto. Portanto, respeitado o posicionamento externado pela E. Corte de Justiça, como também do ilustre doutrinador sobre o tema, não é possível aceitar tal entendimento, tampouco com interpretação extensiva, pois afronta o texto constitucional e acaba por criar o direito em desconformidade com a lei fundamental, o que não se pode admitir, ainda que fundado no princípio da dignidade da pessoa humana. Não se afasta, com isso, o entendimento da possibilidade de sequestro de verbas públicas, mas desde que observados os ditames constitucionais e as normas infraconstitucionais sobre a analogia e os princípios gerais de direito, conforme exposto no item precedente. 6.5 Métodos alternativos de solução de conflitos: a conciliação e a mediação no controle das políticas públicas Não é apenas com instrumentos processuais de coerção e soluções adjudicadas imperativamente pelo Poder Judiciário que se resolvem os conflitos envolvendo políticas públicas. Dinorá Adelaide Musetti Grotti afirma que, “Diante da mudança das relações na sociedade, os meios alternativos de solução de litígios têm se difundido, 146 estimulando-se o uso da mediação, da conciliação e da arbitragem, que se inserem num contexto mais amplo de realização da justiça”.164 Os métodos alternativos de solução de conflitos são importantes instrumentos colocados à disposição dos operadores do direito para resolução dos problemas ligados às políticas públicas, mas não costumam ser utilizados para esse mister pelos integrantes das carreiras jurídicas e pelos advogados brasileiros. A propósito, Kazuo Watanabe destaca: [...] o grande obstáculo, no Brasil, à utilização mais intensa da conciliação, da mediação e de outros meios alternativos de resolução de conflitos, está na formação acadêmica dos nossos operadores de Direito, que é voltada, fundamentalmente, para a solução contenciosa e adjudicada dos conflitos de interesses. Vale dizer, toda ênfase é dada à solução dos conflitos por meio de processo judicial, onde é proferida uma sentença, que constitui a solução imperativa dada pelo juiz como representante do Estado165 (grifos no original). Para tanto, imperiosa a mudança de mentalidade desde os bancos acadêmicos até as salas de audiência e gabinetes de trabalho, a qual já conta com importante direcionamento fornecido pelo Conselho Nacional de Justiça. 6.5.1 Política pública de tratamento adequado dos conflitos veiculada pela Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça O Conselho Nacional de Justiça foi concebido como órgão integrante do Poder Judiciário, com sede na capital federal, com competência para o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Pesquisas recentes promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça revelam uma “taxa de congestionamento” de 71% na Justiça, o que significa que, a cada grupo de 100 processos em tramitação, 71 não terminaram no ano de 2009, conforme relatório Justiça em Números, de setembro de 2010. Além disso, o valor 164 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As agências reguladoras. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n. 6, maio-jul. 2006. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 28 jan. 2012. 165 WATANABE, Kazuo. A mentalidade e os meios alternativos de solução de conflitos no Brasil. In. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 6. 147 médio de cada processo na Justiça comum é de R$ 1.848,00 por processo julgado, mas pode chegar a R$ 6.839,00 (no Amapá e em São Paulo o custo médio é de R$ 1.126,00).166 A demanda de processos também é crescente na sociedade contemporânea e nem sempre a decisão imposta por meio de uma sentença resolve a disputa. No mais das vezes, o próprio cumprimento da decisão encontra dificuldades sequer solucionadas pelo ordenamento jurídico, conforme analisado nos itens 6.3.6 e 6.3.6.1 do presente capítulo. As pessoas, de modo geral, e os operadores do direito, de modo especial, perderam a capacidade de superar suas adversidades de forma negociada, aceitando entregar seus litígios para serem resolvidos pelo juiz, o que se denomina “a cultura do litígio”, característica marcante da sociedade brasileira atual. Dessa característica não se afastam os problemas envolvendo políticas públicas, e a judicialização de questões dessa natureza é feita por todos os operadores do direito, sejam advogados em busca de solução para problemas de seus clientes, seja o próprio Estado, por meio de seus Procuradores, seja o Ministério Público, visando uma solução adjudicada para eventual questão ambiental, do consumidor, do idoso, da criança e do adolescente, entre outros. Contudo, o Poder Judiciário não tem como fazer frente a essa crescente e ilimitada demanda de litigiosidade, ainda que haja estrutura financeira e de pessoal, dado que toda e qualquer questão controversa da vida das pessoas e do Estado pode ser levada à apreciação do juiz. A situação se torna ainda mais tormentosa diante da realidade brasileira, pois a estrutura física, material e humana do Poder Judiciário é extremamente deficitária. Diante dessa circunstância, o Conselho Nacional de Justiça aprovou, em 29.11.2010, a Resolução n.º 125, que dispõe sobre a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Poder Judiciário”. Segundo Valéria Ferioli Lagrasta Luchiari, 166 Disponível em: <http://cnj.jus.br>. Acesso em: 2 jan. 2012. 148 [...] a política pública acima mencionada tem por objetivo a utilização de meios alternativos de solução de conflitos, principalmente da conciliação no âmbito do Poder Judiciário, sob a fiscalização deste, e, em última análise, a mudança de mentalidade dos operadores do direito e das próprias partes, com a obtenção do escopo magno da jurisdição que é a pacificação social, sendo apenas consequências indiretas desta, mas de suma relevância, a diminuição do número de processos e o afastamento da morosidade do Judiciário.167 Neste contexto, cabe ao Poder Judiciário implantar e gerenciar os meios alternativos de solução de conflitos, de formas diversas do que o processo contencioso propriamente dito, com o propósito de distribuir a justiça para garantir o acesso de todos à ordem jurídica célere e eficaz. Para tanto, na referida política pública foram previstos métodos préprocessuais de solução de conflitos e métodos processuais, que consistem basicamente na utilização da conciliação e da mediação. Sobre a diferença dos institutos, Francisco José Cahali explica que na conciliação o conciliador fica na superfície do conflito, sem adentrar nas relações intersubjetivas, nos fatores que desencadearam o litígio, focando mais as vantagens de um acordo em que cada um cede um pouco para sair do problema. Apresenta propostas concretas para a resolução da pendência. O foco principal é a solução do problema, sendo o método mais adequado para resolver conflitos objetivos, nos quais as partes não tiveram convivência ou vínculo pessoal anterior, cujo encerramento se pretende. A mediação, por sua vez, pressupõe que as partes tenham uma relação mais intensa e prolongada, verificando o relacionamento tanto por vínculos pessoais como jurídicos. Geralmente o acordo gerará para as partes uma nova relação com direitos e obrigações recíprocas, em uma perspectiva de futura convivência que se espera seja harmônica. O foco principal é o conflito, e não a solução. É indicada para resolver conflitos subjetivos, principalmente as relações de família. Alcançada a composição, por conciliação e especialmente pela mediação, cada um fez a sua parte para se chegar ao resultado, e 167 LUCHIARI, Valeria Ferioli Lagrasta. Comentários da Resolução n. 125, do Conselho Nacional de Justiça, de 29 de novembro de 2010. In: GROSMAN, Claudia Frankel; MANDELBAUM, Helena Gurfinkel (Org.). Mediação no Judiciário: teoria na prática e prática na teoria. São Paulo: Primavera, 2011. p. 304. 149 por terem exercido seu poder de decisão, consolida-se a responsabilidade dos protagonistas com a solução dada ao conflito. Todo esse envolvimento no processo de superação das divergências promove o comprometimento das partes na eficácia do acordo, gerando, assim, naturalmente, o cumprimento espontâneo das obrigações assumidas.168 Logo, o objetivo perseguido é a substituição da “cultura do litígio” pela “cultura da pacificação”, resgatando o diálogo entre as partes para a integração positiva na convivência entre as pessoas, mesmo diante das adversidades, com a conscientização da necessidade de respeito ao próximo e do equilíbrio das relações pessoais e jurídicas. Ada Pellegrini Grinover aponta três fundamentos para a utilização dos métodos alternativos de resolução de conflitos, quais sejam o fundamento funcional, o social e o político. O fundamento funcional está relacionado com a inacessibilidade, a morosidade e o custo da justiça. “Trata-se de buscar a racionalização na distribuição da Justiça, com a subsequente desobstrução dos tribunais, pela atribuição da solução de certas controvérsias a instrumentos institucionalizados que buscam a autocomposição”169. O fundamento social consiste na sua função de pacificação social, que via de regra não é alcançada pela sentença, que “se limita a ditar autoritativamente a regra para o caso concreto, e que, na grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela costuma insurgir-se com todos os meios na execução”170. O fundamento político é o aspecto da participação popular na administração da justiça, “pela participação do corpo social nos procedimentos de 168 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação, conciliação. Resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 37-40. 169 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os fundamentos da justiça conciliativa. In: ––––––; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 3. 170 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os fundamentos da justiça conciliativa. In: ––––––; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 4. 150 mediação e conciliação”, mediante a atuação dos conciliadores e mediadores leigos na composição dos litígios.171 A doutrina, contudo, tem sido tímida no estudo do tema, limitando-se a sugerir a utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos para as relações entre particulares, mormente nos casos de direito de família e de problemas cotidianos dos cidadãos, como acidentes de trânsito, cobrança de dívidas, problemas locatícios, litígio entre vizinhos, entre outros. No entanto, os institutos também podem ser usados no tema das políticas públicas, pois tanto a conciliação quanto a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e podem ser muito eficazes na busca de soluções alternativas não disponíveis ao magistrado na sentença. 6.5.2 Aplicação dos métodos alternativos de solução de conflitos em políticas públicas Algumas demandas judiciais recorrentes sobre políticas públicas podem ser resolvidas por meio dos métodos alternativos de solução de conflitos, mediante a utilização da conciliação e da mediação, seja na esfera pré-processual, seja na esfera processual. Para tanto, basta a mudança de mentalidade dos operadores do direito, principalmente dos procuradores dos entes estatais, dos membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos advogados em geral, além da colaboração e direcionamento efetivo do problema pelo Poder Judiciário. Além disso, necessário haver vontade política para que o ente estatal envolvido na solução do conflito conceda maior liberdade de negociação a seus representantes legais, visando atender o interesse do particular envolvido no litígio no momento da celebração do acordo, sem se descuidar do interesse público em voga. 171 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os fundamentos da justiça conciliativa. In: ––––––; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 5. 151 Há um exemplo concreto da viabilidade da utilização dos métodos alternativos para a solução de demandas envolvendo políticas públicas, que merece ser expandido para diversos outros tipos de demanda. Noticia o sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça que foi realizado, no ano de 2011, mutirão de conciliações para resolver processos envolvendo o Sistema Financeiro da Habitação e os mutuários inadimplentes pelos Tribunais Regionais Federais de todo o País. Com as conciliações, foram recuperados mais de R$ 367 milhões de reais em créditos da Caixa Econômica Federal, que serão reinvestidos no próprio sistema, em programas como o “Minha casa minha vida” do Governo Federal.172 Assim, além de recuperar ativos financeiros que dificilmente seriam obtidos pelos métodos processuais de execução tradicionais, tendo em vista que as pessoas de baixa renda dificilmente possuem bens penhoráveis, a utilização da conciliação também conseguiu impulsionar uma importante política pública estatal, 172 Eis a íntegra da notícia: “Os mutirões realizados pela Corregedoria Nacional de Justiça ao longo do ano de 2011 para realizar antigos processos judiciais entre mutuários e o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), além de terem contribuído para a recuperação de R$ 367 milhões em créditos para a Caixa Econômica, ajudaram a consolidar a política nacional de conciliação. A iniciativa, segundo a corregedora nacional de Justiça, Ministra Eliana Calmon, ajudou na resolução de conflitos até então tidos como bastante difíceis para o Judiciário, já que envolvem o Estado. De acordo com Eliana Calmon, no caso das conciliações promovidas pelos tribunais em mutirões do SFH, a corregedoria atuou como auxiliar das comissões voltadas para a conciliação. ‘Estas eram áreas onde até então não era observada a conciliação. Hoje, podemos dizer que conseguimos desfazer a ideia de que o Estado não concilia’, afirmou a ministra, ao destacar a importância do trabalho. Refrigério – A corregedora lembrou que os mutirões do SFH abordam um problema bastante sensível para todo cidadão, já que diz respeito à sua moradia. ‘É uma conciliação magnífica porque tira da Justiça processos que tramitavam há anos. Ao mesmo tempo, permite aos cidadãos um refrigério ao ajudá-los a conseguir a liberação da sua casa’, afirmou. De um modo geral, foram realizadas, em 2011, aproximadamente 20 mil audiências relacionadas a dívidas de mutuários com o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Foram recuperados, no total, R$ 367,7 milhões para o SFH, com a celebração de 7.471 acordos entre estas pessoas e a Caixa Econômica Federal – durante as audiências realizadas nos cinco Tribunais Regionais Federais do país (TRFs). Núcleos e centrais – O esforço para solucionar tais processos se concentrou nos núcleos e centrais de conciliação implantados nos TRFs em cumprimento à Resolução 125 do CNJ, que instituiu, em novembro de 2010, a Política Nacional de Conciliação. De acordo, ainda, com o balanço da Corregedoria Nacional de Justiça, o TRF1 realizou 6.369 audiências de conciliação, superando a meta que era de 5.528. O TRF2, por sua vez, promoveu 3.138 audiências, acima das 2.897 previstas. No TRF3, foram 3.578 audiências, e o Tribunal se comprometeu a, até fevereiro, alcançar as 5.293 previstas. Já o TRF4 realizou 3.383 audiências, ultrapassando a meta de 3.030. No TRF5, houve 3.536 audiências, superior à meta de 3.254. O valor arrecadado nas conciliações do SFH retorna para o Sistema Financeiro de Habitação para financiar o programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal e, com isso, permitir o acesso de mais brasileiros a novas moradias” (Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/17737:mutiroes-do-sfh-consolidaram-politica-deconciliacao-em-2011>. Acesso em 3 jan. 2012). 152 que é a moradia, seja por meio da consolidação da propriedade dos mutuários inadimplentes, que poderão regularizar seu direito, seja mediante novos investimentos em moradia para outros brasileiros com os créditos obtidos. Os métodos alternativos também podem ser utilizados na fase préprocessual, por exemplo, antes de ingressar com uma medida judicial para o fornecimento de medicamentos, o pedido pode ser feito na esfera extrajudicial, junto ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos instalado pelo Poder Judiciário, encaminhando-se convite ao Procurador do ente estatal para comparecer a uma sessão de conciliação. Nessa oportunidade, poderá o Procurador oferecer o medicamento solicitado, mediante a apresentação dos atestados médicos e da situação de pobreza que comprovem a necessidade, providenciando as medidas cabíveis na esfera administrativa. Assim, o ente estatal, além de resolver a questão na esfera extraprocessual, ainda deixará de arcar com os custos da demanda, como honorários advocatícios e custas processuais, podendo reinvestir o dinheiro público economizado no atendimento de outras demandas sociais. A colaboração do Ministério Público também é imprescindível para que a utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos seja efetiva. O membro do Ministério Público, sempre que enfrentar determinada demanda que envolve uma política pública, poderá optar pela via da conciliação e da mediação antes de ingressar com uma medida judicial ou, mesmo, durante a fase processual. Para tanto, há possibilidade da participação de colaboradores nas sessões de conciliação e mediação, tais como peritos de qualquer área do conhecimento, assistentes sociais, psicólogos, médicos, engenheiros, entre outros. Por conseguinte, se qualquer problema concernente a uma política pública depender da manifestação, por exemplo, de um arquiteto ou engenheiro, poderá o parquet submeter a questão a uma sessão de conciliação ou mediação, solicitando ao juízo a nomeação de expert isento para se manifestar sobre o 153 problema e, após, resolver a questão no âmbito extraprocessual. Quanto à atuação do Ministério Público na esfera extraprocessual, explica Hugo Nigro Mazzilli: Longe, porém, de um papel apenas destinado a colaborar com a prestação jurisdicional do Estado seja como órgão agente, seja como órgão interveniente, o ofício do Ministério Público desenvolve-se também na esfera extrajudicial, até mesmo numa atividade cautelar, ora com o fim de preparar a propositura das ações de sua iniciativa, ora para compor interesses inter volentes e até obviar o acesso à jurisdição.173 O Ministério Público do Estado de São Paulo, em suas recomendações institucionais, conclama os Promotores de Justiça do Estado a buscarem a solução extrajudicial dos problemas que lhe são apresentados, seja junto ao Poder Público local e à Defensoria Pública, seja mediante a utilização das prerrogativas do artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil, que relaciona o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores como título executivo extrajudicial.174 Conclui-se, pois, que muito mais importante que um processo efetivo é uma “justiça de resultados”, razão pela qual a utilização da via jurisdicional deve ser utilizada apenas em caráter residual ou subsidiário.175 Mostra-se, portanto, viável a utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos como eficiente instrumento de pacificação social e resolução dos problemas concernentes às políticas públicas, bastando para tanto esforço dos operadores do direito e vontade política. 173 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 39. 174 Ato n.º 675/2010-PGJ/CGMP de São Paulo, de 28 de dezembro de 2010: Artigo 118, parágrafo único. Contatar a Defensoria Pública ou o setor de assistência judiciária da Prefeitura local, onde houver, objetivando o estabelecimento de ação conjunta para a solução de problemas dessa área, lembrando que o Ministério Público atua de forma subsidiária. Artigo 124. Procurar, sempre que possível, obter conciliação que atenda aos interesses das pessoas envolvidas, sem, entretanto, impor solução, ainda que esta pareça a melhor. Artigo 125. Redigir, em linguagem simples e compreensível, o termo de conciliação, entregando uma via às pessoas envolvidas e arquivando o original para o fim de controle de cumprimento do acordado e, eventualmente, de sua execução. § 1.º Reduzido o acordo a escrito, submetê-lo à homologação judicial ou referendá-lo, nos termos do art. 57, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95, fazendo referência de que vale como título executivo extrajudicial, conforme art. 585, II, do Código de Processo Civil. § 2.º Lembrar que o acordo deve, para garantir a plena eficácia do título, ter a característica de liquidez, ou seja, certeza da existência da obrigação e determinação de seu objeto. Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br>. Acesso em: 4 jan. 2012. 175 ZENKNER, Marcelo. Ministério Público e solução extrajudicial de conflitos. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas. 2010. p. 320. 154 Outras formas de autocomposição de litígios serão analisadas na última parte do trabalho, na oportunidade de estudo da contribuição a ser dada pelas demais funções essenciais à justiça para a efetivação das políticas públicas. 155 PARTE IV O PAPEL DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA PARA A EFETIVAÇAO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 156 Capítulo 7 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Relevante é a missão do Ministério Público no quadro do Estado Social de Direito. A instituição foi fortalecida na Constituição Federal de 1988 com novas garantias, ampliando-se suas funções. O artigo 127 o define como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.176 Transformou-o em um verdadeiro defensor da sociedade, tanto no campo penal quanto no campo civil, como fiscal dos demais poderes públicos e defensor da legalidade e moralidade administrativa. O artigo 129 do Texto Constitucional cuidou de enumerar as funções institucionais desse órgão, outorgando-lhe nos incisos I e II os deveres de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição e de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A legislação infraconstitucional (Lei Complementar n.º 75/1993 – Lei Orgânica do Ministério Público da União – e Lei n.º 8.625/1993 – Lei Orgânica do Ministério Público dos Estados) estabeleceu as funções e as formas de atuação dos membros dos diversos ramos do Ministério Público, que abrangem a defesa do 176 Diplomas legais infraconstitucionais legitimam a ação do Ministério Público em defesa dos direitos sociais: a Lei de Apoio às Pessoas Portadoras de Deficiência, Lei 7.853, de 24.10.1989, disciplina a atuação do Ministério Público, determinando sua intervenção obrigatória nas ações públicas coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência de pessoas (art. 5.º); o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13.07.1990, estabelece as competências do Ministério Público (art. 201) e determina sua atuação obrigatória na defesa dos direitos e interesses tratados no corpo da Lei (art. 202); o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11.09.1990, legitima concorrentemente o Ministério Público a defender os interesses e os direitos dos consumidores e vítimas (art. 82), incumbindo-o também do papel de fiscalização da referida lei (art. 92); a Lei de Organização da Assistência Social, Lei 8.742, de 07.12.1993, incumbe o Ministério Público de zelar pelo efetivo respeito aos direitos estabelecidos na Lei (art. 31); a Lei 8.974, de 05.01.1995, que estabelece normas para o uso de técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados, atribui ao Ministério Público da União e dos Estado legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao homem, aos animais, às plantas e ao meio ambiente, em face do descumprimento da Lei em questão (art. 13, § 6.º). 157 cidadão e a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos para a afirmação dos direitos coletivos assegurados na Constituição Federal e, em especial, no capítulo da ordem social. Dessa forma, incumbe ao Ministério Público zelar pelo cumprimento real e efetivo dos direitos assegurados na Constituição Federal e, em especial, no título da ordem social. Esta, aliás, também é a conclusão alcançada por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen177 ao tratar da atuação do Ministério Público na implantação de políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal. É de ressaltar que a função referida não se limita aos atos comissivos da Administração, que desrespeitem os direitos constitucionais do cidadão, devendo o Ministério Público atuar também para espancar as omissões ilícitas do Estado, viabilizando a implantação efetiva das políticas públicas e, com isso, conferindo efetividade à ordem social prevista no Texto Constitucional. Nessa medida, como defensor da coletividade, tem importante papel para a efetivação dos direitos, pois atua como representante da sociedade e tem a função precípua de buscar a implementação de direitos sociais e individuais indisponíveis, de acordo com a ordem jurídica vigente. O papel do Ministério Público é ainda mais relevante quando observada a realidade brasileira de altos índices de corrupção e de desvio de dinheiro público. Segundo estudo feito por Jayme Weingartner Neto e Vinicius Diniz Vizzotto: Em termos financeiros, a corrupção custa US$ 3,5 bilhões por ano ao Brasil, sendo que o valor correspondente à perda de produtividade anual provocada por fraudes públicas, segundo Marcos Fernandes, coordenador da Escola de Economia de São Paulo, FGV. Por seu turno, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário referiu que o país perde, todos os anos, o equivalente a 32% de sua arrecadação tributária devido à corrupção e ineficiência na administração da máquina pública. O prejuízo com a corrupção no país chegou a R$ 234,5 bilhões em 2005, considerando uma arrecadação total de R$ 732,8 bilhões. Refira-se, ainda, os escândalos na área de licitações, 177 Atuação do Ministério Público na implantação de políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal. Jornal da Ajufesp (Associação dos Juízes Federal de São Paulo e Mato Grosso do Sul), São Paulo, set. 1998. 158 que movimentaram R$ 130 bilhões no ano de 2003, isto apenas no âmbito da União.178 De fato, esses números consolidam o Brasil na posição n.º 69 no ranking da Transparência Internacional, depois de países como Gana, Ruanda e Croácia, segundo índice de Percepção de Corrupção de 2010, que levou em conta 178 países.179 Esclarecem os autores anteriormente referidos: A corrupção é responsável, em boa medida, pela falta de operacionalidade econômica do país. Um país corrupto, com instituições frágeis, apresenta níveis de impunidade altos, estanca o crescimento econômico, impede uma arrecadação de impostos satisfatória, o que reflete em um orçamento público restrito e incapaz de atender as demandas sociais, inclusive àquelas atinentes a direitos fundamentais. Sem medidas eficientes e efetivas capazes de estancar esta sangria, o círculo virtuoso que deve embasar o desenvolvimento econômico fica incapacitado.180 E, nessa seara, o Ministério Público é a mais importante instituição brasileira com o dever de fiscalizar tais práticas lesivas à coletividade, com atribuição de trazer ao Poder Judiciário as provas e os elementos de convicção para condenação dos culpados e o ressarcimento do erário público. Ocorre, todavia, que, no mais das vezes, o Ministério Público age quando provocado a investigar, seja por um adversário político da pessoa acusada de corrupção, seja por provocação da mídia e até de terceiros desinteressados. Todavia, o Ministério Público deveria buscar uma atuação mais proativa, de ofício, para investigar as raízes da corrupção e do desvio de verbas públicas mediante a fiscalização da implementação do orçamento e do processo licitatório, pois, diferentemente do Poder Judiciário, o Ministério Público tem deveres-poderes de investigar no âmbito administrativo, como também tem condições de buscar soluções administrativas fora do âmbito processual, que é mais amplo do que os limites da demanda judicial. 178 WEINGARTNER NETO, Jayme; VIZZOTTO, Vinicius Diniz. Ministério Público, ética, boa governança e mercados: uma pauta de desenvolvimento no contexto do direito e da economia. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 297. 179 Disponível em: <www.transparency.org>. Acesso em: 13 nov. 2011. 180 WEINGARTNER NETO, Jayme; VIZZOTTO, Vinicius Diniz. Ministério Público, ética, boa governança e mercados: uma pauta de desenvolvimento no contexto do direito e da economia. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 296. 159 Além disso, os membros do Ministério Público gozam das mesmas garantias constitucionais que os magistrados – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimento –, de modo que não estão sujeitos a pressões políticas e interesses escusos de toda a ordem. Ainda, contam com um corpo de profissionais da mais alta qualidade em atividade no País, que ingressam na carreira após ultrapassarem difícil e concorrido concurso público de provas e títulos, além de rigorosa investigação da reputação e dos antecedentes de seus integrantes, investigação essa que acompanha toda a carreira do promotor, por meio da atuação das corregedorias locais e do Conselho Nacional do Ministério Público. Portanto, a instituição do Ministério Público no âmbito estadual e federal deve ser vista como uma das mais relevantes instituições a colaborar na efetivação dos direitos sociais, principalmente no combate à corrupção e ao desvio de verbas públicas.181 É pela via da corrupção que o dinheiro público é desviado no Brasil, deixando de ser aplicado nos fins sociais previstos constitucionalmente para servir interesses criminosos de toda sorte de aproveitadores. Somente uma forte instituição como o Ministério Público, com atuação preventiva e repressiva, é capaz de mudar esse estado de coisas. Destaca Fábio Konder Comparato que, no Estado contemporâneo, o Ministério Público tem duas atribuições, a impediente e a promocional. A primeira se refere à atribuição de impugnar em juízo os atos dos demais Poderes, e a segunda se relaciona com o dever de promover a realização dos objetivos fundamentais do Estado. Em suas palavras: 181 Jayme Weingartner Neto e Vinicius Diniz Vizzotto sugerem o seguinte: “Como o MP pode induzir esse ethos pleiteado? Dentre outras possibilidades, (i) garantindo as regras do jogo, coibindo a concorrência desleal e induzindo a ética nos mercados; (ii) na promoção e concretização dos direitos fundamentais; (iii) como protagonista do combate à corrupção; e (iv) como guardião do meio ambiente” (Ministério Público, ética, boa governança e mercados: uma pauta de desenvolvimento no contexto do direito e da economia. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 289) (grifos no original). 160 Ora, no Estado contemporâneo, o Ministério Público exerce, de certo modo, esse poder impediente,182 pela atribuição constitucional que lhe foi dada de impugnar em juízo os atos dos demais Poderes, contrários à ordem jurídica e ao regime democrático. A isto se acresce, ainda, a nova atribuição de promover a realização dos objetivos fundamentais do Estado, expressos no art. 3.º da Constituição, pela defesa dos interesses individuais e sociais indisponíveis, consubstanciados no conjunto dos direitos humanos.183 Portanto, o exercício de ambas as atribuições impediente e promocional faz do Ministério Público um órgão ativo, que não pode recolher-se a uma posição neutra diante da afronta aos direitos, mormente quando é perpetrada pelos Poderes Públicos. 7.1 Instrumentos judiciais e extrajudiciais à disposição do Ministério Público 7.1.1 Controle da execução do orçamento e dos processos licitatórios A atuação ministerial no controle da implementação do orçamento público é peça-chave no combate à corrupção, como também no controle da higidez dos processos licitatórios, em que ocorrem frequentes desvios de verbas públicas. Isso ocorre tanto no âmbito municipal, em que não há tanto controle e exposição política e pública, quanto nos âmbitos estadual e federal. Todas as esferas de poder recebem grande monta de verbas públicas, seja por meio do pagamento de tributos em geral, seja mediante repasse de verbas federais e estaduais para aplicação nas necessidades locais. O que se observa na prática diuturna é que os Promotores Públicos ficam assoberbados de trabalho pelas deficiências das comarcas menores e não possuem tempo hábil para fiscalizar o poder público. 182 Conforme esclarece o autor, o “poder impediente”, consiste no poder de vetar decisões tomadas pelos órgãos Legislativos e administrativos. Era a função da Tribunitia Potestas, da antiga Roma antiga, ulteriormente distinguida por Montesquieu como la faculté d’empêcher. 183 COMPARATO, Fábio Konder. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 40, p. 63, jul.-dez. 2001. 161 O Ministério Público deveria se comprometer com essa causa, visto que afeta o interesse de toda a coletividade, por meio da designação de um promotor especialmente para fiscalizar a implementação do orçamento público e a higidez dos processos de licitação. Essas são as principais vias de desvio de dinheiro público, seja mediante a manipulação ilegal do orçamento, seja por meio de práticas ilícitas de toda ordem nos processos de contratação do poder público, com editais dirigidos, licitações fraudulentas, empresas “fantasmas”, entre outros. Assim, deve o Promotor Público fiscalizar a ordenação e liberação das despesas previstas no orçamento, o contingenciamento de verbas, a aplicação e destinação das verbas desvinculadas, como também fiscalizar a regularidade do processo licitatório, desde a publicação do edital, zelando para que não haja direcionamento, fracionamento e desvios de toda ordem, até a garantia da contratação de empresas que tenham condições de cumprir os compromissos assumidos. Marcelo Zenkner concorda com a atuação proativa do membro do Ministério Público e explicita: Uma providência bastante simples, mas extremamente eficaz para efeito de acompanhamento de toda atividade administrativa, envolve a rotineira leitura do diário oficial, pois é esta a fonte primeira de informações afetas aos atos praticados pela Administração Pública. O princípio da publicidade não pode figurar na Constituição Federal como peça meramente decorativa, devendo o membro do Ministério Público se manter atento, principalmente quanto à elaboração de convênios, aos avisos de dispensa e de inexigibilidade de licitação e ao valor de alguns contratos administrativos.184 No tocante ao orçamento, os constantes remanejamentos de verbas por atos do Executivo devem ser reprimidos, pois contribuem severamente para o descumprimento do dever de implementar direitos sociais sob o cansativo argumento da falta de dinheiro disponível. 184 ZENKNER, Marcelo. Ministério Público e solução extrajudicial de conflitos. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas. 2010. p. 324. 162 Tais argumentos decorrem de práticas ilegais do administrador público, que devem ser coibidas e dependem de fiscalização permanente e adequada, dentre elas a transposição de verbas de uma dotação para outra, a anulação parcial de inúmeras dotações, até para abertura de créditos extraordinários ao arrepio de normas constitucionais, o que desvirtua o orçamento originário aprovado pelos representantes do povo. Evidente que a atuação ministerial não pode comprometer a independência do Poder Executivo, tampouco influir nas decisões administrativas. Também não se sugere que o Promotor de Justiça substitua a atuação dos Tribunais de Contas,185 exercendo o controle externo do Poder Executivo, dado que essa atuação também não lhe é atribuível e já possui os contornos constitucionais próprios. O que se propõe é uma atuação administrativa mais contundente e de forma preventiva do órgão ministerial, para que eventuais desvios sejam coibidos e dificultados, pois é muito mais difícil obter o ressarcimento daquilo que já foi desviado do que evitar desvios e fraudes, fato que ocorre atualmente com a atuação a posteriori da instituição. Para tanto, o Promotor Público também deve ter tempo e condições materiais de receber e atender a população local para saber das necessidades públicas da localidade, a fim de propor junto ao poder público as soluções cabíveis para cada caso em particular. Nessa seara, a função do Promotor público recebe especial destaque, eis que no âmbito administrativo há muito mais espaço para conciliação, para a adequação de condutas e para providências administrativas que não encontram a mesma amplitude na esfera jurisdicional. 185 Considerando o escopo do presente trabalho e a abrangência do tema relativo aos Tribunais de Contas, não será abordado o estudo do controle externo pelos Tribunais de Contas dada a sua amplitude, que não comporta a análise nesta pesquisa. 163 No âmbito judicial, o magistrado está adstrito aos limites da demanda e dificilmente consegue ter uma noção mais abrangente do problema, analisando-o sob diversos enfoques, o que se torna possível na seara administrativa. Por sua vez, o Promotor Público possui diversos mecanismos, como a possibilidade de realização de audiências públicas, de termos de ajustamento de conduta, de requisição de documentos, de investigação extrajudicial, de oitiva de testemunhas e partes interessadas, tudo sem a necessidade de intervenção judicial. Ultrapassada a esfera administrativa e não havendo possibilidade de composição amigável, ainda resta ao Promotor a esfera judicial, podendo exigir de forma coativa tudo aquilo que não foi possível obter pela via administrativa, por exemplo, o emprego de verba pública destinada a determinado programa social que foi redirecionado a fins secundários do Estado. O Ministério Público deve, pois, assumir a função que lhe é constitucionalmente sagrada para a efetivação dos direitos sociais, por meio de uma atuação proativa, de ofício, mediante a fiscalização da implementação dos orçamentos públicos, acompanhando a efetivação dos programas previstos no orçamento, com a cobrança para que o poder público cumpra aquilo a que se comprometeu, sem desvio de verbas para finalidades secundárias do Estado ou, mesmo, desvio criminoso de dinheiro público. Trata-se de verificar a compatibilidade entre o planejado e o que está sendo executado. Há previsão constitucional própria para o exercício de referida fiscalização, nos termos do artigo 70, parágrafo único, que reza: Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. Outro instrumento legal colocado à disposição do órgão ministerial que possibilita tal fiscalização é descrito pelo artigo 48, parágrafo único, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000): 164 São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o relatório resumido da execução orçamentária e o relatório de gestão fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. O controle da higidez dos processos licitatórios, independentemente da provocação de terceiros, desde a publicidade dos editais lançados pelo poder público até a efetiva contratação da empresa que deve prestar serviço público ou realizar obra adequada aos interesses da coletividade também se revela como importante instrumento de atuação do parquet. Evidente que o Promotor Público não poderá se imiscuir no dia a dia do poder público, tampouco atrasar o processo licitatório com intervenções inoportunas, mas deve acompanhar a lisura das compras feitas pela administração pública para evitar o desvio de dinheiro. Para tal providência há dispositivo legal próprio, descrito pelo artigo 16 da Lei n.º 8.666/1993, in verbis: Será dada publicidade, mensalmente, em órgão de divulgação oficial ou em quadro de avisos de amplo acesso público, à relação de todas as compras feitas pela Administração direta ou indireta, de maneira a clarificar a identificação do bem comprado, seu preço unitário, a quantidade adquirida, o nome do vendedor e o valor total da operação, podendo ser aglutinadas por itens as compras feitas com dispensa e inexigibilidade de licitação. O Promotor Público somente poderá realizar esse controle da implementação do orçamento e dos processos licitatórios se fizer uma gestão proativa de seu trabalho, principalmente para fiscalizar o poder público por meio da requisição e solicitação de documentos e do acompanhamento do dia a dia do ente estatal, pois, do contrário, somente terá acesso aos problemas depois de ocorrerem e caso haja comunicação de terceiros. 7.1.2 O inquérito civil público 165 A Constituição Federal consagrou a função ministerial de promover o inquérito civil e a ação civil pública com a finalidade de proteger o patrimônio público e social, o meio ambiente, além de outros interesses difusos e coletivos. Ambos os institutos possuem especial relevância no tema das políticas públicas, dado que geralmente as matérias objeto de investigação e apuração por meio dos inquéritos civis e das ações civis públicas estão ligadas a algum programa governamental. O Ministério Público não é o único legitimado a ingressar com uma ação civil pública. Também estão legitimados a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista, a associação que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Com exceção do Ministério Público, os demais legitimados devem observar a pertinência temática da ação civil pública ajuizada com a sua atuação. Além disso, se o Ministério Público não atuar como parte, oficiará obrigatoriamente no feito como fiscal da lei. Não é escopo do presente estudo tratar do inquérito civil de forma abrangente, nem da ação civil pública, mas apenas pontuar sua importância para a realização e promoção das políticas públicas. A Resolução n.º 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público regulamenta aos artigos 6.º, inciso VII, e 7.º, inciso I, ambos da Lei Complementar n.º 75/1993, e os artigos 25, inciso IV, e 26, inciso I, da Lei n.º 8.625/1993, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e a tramitação do inquérito civil. 166 De forma bastante similar também dispõe a Resolução n.º 87, de 22.08.2006, expedida pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal.186 Conforme tais regramentos, o inquérito civil tem natureza unilateral e facultativa, cujo objetivo é apurar fato que possa autorizar a tutela dos interesses ou direitos a cargo do Ministério Público nos termos da legislação aplicável, servindo como preparação para o exercício das atribuições inerentes às suas funções institucionais. Há previsão específica da possibilidade de expedição de notificações e requisições pelo Promotor Público para a instrução dos procedimentos administrativos, e em ambos os regramentos não há previsão do direito ao contraditório e à ampla defesa. Trata-se, portanto, de procedimento administrativo inquisitório e facultativo, em regra público, destinado a coligir elementos de convicção para embasar a atuação do parquet. No que concerne ao direito do contraditório e à ampla defesa, não obstante o procedimento seja inquisitivo, nada obsta que o Promotor Público responsável pelo inquérito faculte a manifestação do interessado e a sua participação em contraditório, salvo se tal providência atrapalhar as investigações. Trata-se de medida salutar que trará ainda mais credibilidade à prova produzida, caso haja eventual necessidade de utilização no âmbito judicial. Elucida Hugo Nigro Mazzilli que: [...] o inquérito civil, instrumento investigatório agora consagrado na Constituição, tinha sido criado pela Lei n. 7.347/85. Destina-se predominantemente à coleta, por parte do órgão do Ministério Público, dos elementos necessários à propositura de qualquer ação civil a ele cometida. Com isto, possibilita-se a regular apuração de denúncias que lhes cheguem, assim como o ajuizamento de ações mais bem aparelhadas e instruídas. Mas a utilidade do inquérito civil não se resume a colher elementos para propor a ação civil pública; é evidente que ele também se destina a colher elementos de convicção que possam demonstrar a desnecessidade ou o descabimento da provocação jurisdicional. Nesse caso, o arquivamento do inquérito será a solução adequada. A terceira finalidade do inquérito civil é servir de base para ensejar eventual tomada de compromissos de 186 Disponível em: <www.prpe.mpf.gov.br>. Acesso em: 5 jan. 2012. 167 ajustamento de conduta, ou mesmo para a realização de audiências públicas e expedição de recomendações, em matérias afetas ao zelo da instituição, o que em muito ajudará a desafogar os serviços Judiciários, quando o acesso a eles não se faça mister.187 Portanto, além de servir como importante elemento de prova para instruir eventual ação civil pública, o inquérito civil possui outra função, tão relevante quanto à primeira, que é a tomada de providências administrativas para solucionar a questão no âmbito extrajudicial. Assim, além de ter o efeito de coibir a prática de condutas ilícitas e até delitivas, visto que a mera comunicação de instauração do inquérito civil pode ter esse efeito, sua utilização adequada pode ter o condão de construir uma solução consensual para a recuperação e proteção dos direitos pertencentes a toda a coletividade. Para tanto, a possibilidade de tomada de termo de ajustamento de conduta e a expedição de recomendações pelo Promotor Público ao ente que está em desacordo com a lei são os principais instrumentos colocados à disposição do parquet para a solução do litígio. 7.1.3 O termo de ajustamento de conduta De acordo com o artigo 5.º, § 6.º, da Lei n.º 7.347/1985, “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Assim, não só o Ministério Público, como também todos os demais legitimados à propositura da ação civil pública, podem firmar o termo de ajustamento de conduta com o interessado em adequar-se às exigências legais. No caso dos demais legitimados, evidente que devem observar a pertinência temática e suas naturais limitações territoriais. 187 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 51. 168 De acordo com o artigo 14 da Resolução n.º 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público, o Promotor Público poderá firmar compromisso de ajustamento de conduta, nos casos previstos em lei, com o responsável pela ameaça ou lesão aos interesses defendidos pela instituição, visando à reparação do dano, à adequação da conduta às exigências legais ou normativas e, ainda, à compensação e/ou à indenização pelos danos que não possam ser recuperados. A maior vantagem do termo de ajustamento de conduta é evitar os custos e o tempo de tramitação da ação judicial, que gera instabilidade e não soluciona o problema de forma imediata, causando prejuízo ao interesse público. Além disso, o acordo gera efetivo benefício tanto ao patrimônio público lesado, que será imediatamente recomposto, quanto ao ofensor, que não terá que enfrentar longa e cansativa batalha judicial, podendo negociar os termos de ajustamento de sua conduta, desde que respeitado o interesse público atinente ao caso, o que não é possível perante uma sentença. Marcos Juruena Villela Souto aponta ainda que, “nos casos que envolvem vários legitimados, o risco de várias demandas, com vários procedimentos preparatórios prévios, pode levar a decisões distintas, em juízos distintos, eternizando o conflito e a insegurança”.188 Trata-se de instrumento eficiente, célere e extraprocessual, com as garantias de um título executivo, que pode ser exigido independentemente do ajuizamento de prévia ação de conhecimento. Por isso precisa ser certo, líquido e exigível, nos termos do artigo 586 do Código de Processo Civil. O instrumento ganha especial relevo no tema das políticas públicas, dado que a possibilidade de negociação extrajudicial, como também de estabelecimento de prazos e a maior flexibilidade que atenda as necessidades do interessado, abre uma enorme gama de alternativas para a solução do litígio. 188 SOUTO, Marcos Juruena Villela. A era da consensualidade e o Ministério Público. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas. 2010. p. 304. 169 Também o termo de ajustamento de conduta, se adequadamente utilizado, pode revelar a melhor representação dos interesses em jogo, públicos e privados, pois a alternativa negociada tende a abarcar a opinião de todos os envolvidos no conflito, de forma a resolver a questão com maior efetividade. Portanto, o termo de ajustamento de conduta eficientemente utilizado revela-se eficaz instrumento de contribuição do Ministério Público à efetivação de políticas públicas. 7.1.4 A recomendação ministerial O dever poder de recomendar do Ministério Público está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 201, § 5.º, alínea c, da Lei n.º 8.069/1990), no artigo 27, parágrafo único, inciso IV, da Lei n.º 8.625/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público Nacional), e no artigo 6.º, inciso XX, da Lei Complementar n.º 75/1993 (Estatuto do Ministério Público). A recomendação ministerial é definida por Alexandre Amaral Gravonski como [...] instrumento jurídico extraprocessual escrito por meio do qual, fundamentadamente e sem coercitibilidade, o Ministério Público, respeitadas as regras de atribuição, antecipa oficialmente ao destinatário, pessoa física ou jurídica, de natureza pública ou privada, o seu posicionamento específico relacionado à melhoria de determinado serviço público ou de relevância pública ou a respeito de interesses, bens ou direitos que lhe cabe promover, objetivando a correção de condutas ou adoção de providências do destinatário, sem a necessidade de se recorrer à via judicial.189 No mesmo sentido, leciona Marcos Paulo de Souza Miranda: [...] meio extrajudicial pelo qual o Ministério Público expõe, através de ato formal e não diretamente coercitivo, suas razões fáticas e jurídicas sobre determinada questão concreta para o fim de advertir e exortar o destinatário (ou recomendado) a que pratique ou deixe de praticar determinados atos em benefício ou melhoria dos serviços 189 GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 356-357. 170 públicos e de relevância pública ou do respeito aos interesses, direitos e bens cuja defesa incumbe ao Parquet.190 O artigo 15 da Resolução n.º 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público dispõe que O Ministério Público, nos autos do inquérito civil ou do procedimento preparatório, poderá expedir recomendações devidamente fundamentadas, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como aos demais interesses, direitos e bens cuja defesa lhe caiba promover. O parágrafo único reza que “é vedada a expedição de recomendação como medida substitutiva ao compromisso de ajustamento de conduta ou à ação civil pública”. A doutrina é assente no sentido de que a recomendação constitui importante instrumento para caracterização do elemento subjetivo dolo, na medida em que, após formalmente recomendado, não pode o interessado alegar desconhecimento do fato e suas consequências em um eventual processo judicial. A questão que se coloca acerca da recomendação ministerial é o seu caráter vinculante ou facultativo com relação ao recomendado, ou seja, se o atendimento da recomendação é obrigatório ou facultativo. As leis não explicitam o caráter vinculante ou facultativo da recomendação, como também não o faz a resolução, de forma que a questão deve ser analisada à luz da interpretação do ordenamento jurídico pátrio. A posição doutrinária dominante situa o instituto como de caráter não vinculante ou de facultativa observância pelo interessado. Assim, sustenta Hugo Nigro Mazzilli: Embora as recomendações, em sentido estrito, não tenham caráter vinculante, isto é, a autoridade destinatária não esteja juridicamente obrigada a seguir as propostas a ela encaminhadas, na verdade têm grande força moral, e até mesmo implicações práticas. Com efeito, 190 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. A recomendação ministerial como instrumento extrajudicial de solução de conflitos ambientais. In: CHAVES, Cristiano et al. (Coord.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos de Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 379. 171 embora as recomendações não vinculem a autoridade destinatária, passa esta a ter o dever de: a) dar divulgação às recomendações; b) dar resposta escrita ao membro do Ministério Público, devendo fundamentar sua decisão.191 Além disso, os autores também carreiam ao recomendado a obrigação legal de dar publicidade àquilo que foi descrito como irregular e a responder ao Ministério Público de forma fundamentada, nos termos do artigo 27, inciso IV, da Lei Orgânica do Ministério Público Nacional. De fato, não é possível sustentar a vinculação do recomendado ao conteúdo da recomendação ministerial, por ausência de previsão legal nesse sentido, mas também não é possível que o instituto não tenha qualquer implicação jurídica, servindo de mero conselho. A recomendação, como visto, é ato jurídico unilateral, emanado de autoridade competente, que tem a finalidade precípua de orientar o interessado a conformar sua atuação ao ordenamento jurídico, objetivando a proteção dos interesses de toda a coletividade. A ninguém é dado descumprir a lei ou afrontar o ordenamento jurídico,192 e no caso dos entes públicos a exigência é ainda maior, ou seja, somente poderão atuar de acordo com a lei, em estrita observância do princípio da legalidade (artigo 37 da Constituição Federal). O Ministério Público é instituição democrática prevista constitucionalmente, e dentre as suas atribuições está a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. No estrito uso de suas atribuições constitucionais, o Ministério Público deve, ao observar que determinada conduta não está de acordo com a lei, recomendar sua observância, e aqueles que receberem a recomendação devem cumpri-la ou fundamentar os motivos do seu descumprimento, comunicando o órgão ministerial de tal decisão. 191 MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 337. Artigo 3.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. 192 172 A interpretação sistemática do ordenamento jurídico pátrio, principalmente o viés constitucional e democrático do Ministério Público, leva a essa inexorável conclusão. Norberto Bobbio, em seu Teoria da norma jurídica, quando trata das proposições prescritivas, faz a distinção entre comandos e conselhos, observando [...] que a distinção entre comandos e conselhos pode servir para distinguir o direito da moral, assim como servem as distinções entre normas autônomas e heterônomas, e entre normas categóricas e hipotéticas. Deveríamos dizer, então, que só o direito obriga; a moral se limita a aconselhar, a dar recomendações que deixam o indivíduo livre (isto é, apenas ele responsável) para segui-las ou não. Outra distinção apresentada pelo autor é [...] quanto ao comportamento da pessoa do destinatário [...] enquanto sou obrigado a seguir um comando, tenho a faculdade de seguir ou não um conselho, o que significa que, no caso em que eu não siga o comando, aquele que o emitiu não se desinteresse pelas consequências que disso derivam; no caso em que eu não siga um conselho, quem aconselhou de desinteressa pelas consequências (“se você não quiser fazer o que eu aconselho, pior pra você”; quem fala deste modo não é uma pessoa investida do poder de comandar, mas um conselheiro).193 Nesse sentido, ao analisar ambas as proposições de Norberto Bobbio, é possível concluir que a recomendação ministerial não configura mero conselho, seja porque não está ligada apenas à moral, seja porque o seu não atendimento não causa desinteresse ao membro ministerial; pelo contrário, o levará a buscar os meios jurídicos existentes para fazer imperar o comando contido na recomendação. Embora não tenha caráter vinculante por ausência de previsão legal, o não atendimento da recomendação ministerial deve ser devidamente fundamentado pelo recomendado, seja por meio de contra-argumentos na esfera administrativa, seja mediante questionamento judicial dos termos da recomendação, para fins de declaração de sua inexigibilidade. Por outro lado, expedida a recomendação e descumprido seu teor, o membro do parquet não terá alternativa senão a via judicial para impor 193 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Ariani Bueno Sudatti e Fernando Pavan Batista. 5. ed. São Paulo: Edipro, 2012. p. 100. 173 coercitivamente o seu cumprimento. A recomendação não é título executivo judicial ou extrajudicial.194 Além disso, a recomendação ministerial ilegal, acatada pela autoridade competente ou pelo particular que causar qualquer espécie de dano, gera responsabilidade civil, administrativa e até criminal ao Promotor Público gerador do ato. Autonomia e responsabilidade são conceitos que se exigem reciprocamente. Quem tem autonomia para decidir deve suportar a decorrente responsabilidade. Ao contrário, não faz sentido cobrar responsabilidade de quem não decidiu com autonomia, ou seja, de quem apenas cumpriu ordens superiores. Porém, igualmente não faz sentido isentar de responsabilidade a autoridade pública que, com autonomia, tomou uma decisão causadora de dano, não obstante tenha sido proferida no uso legítimo de uma competência que lhe foi legalmente atribuída.195 A importância do instituto para o tema do controle das políticas públicas é evidente, na medida em que se mostra eficiente método alternativo de solução de conflitos, pois também serve para o ajustamento da conduta do ente estatal em relação a qualquer política pública em andamento. Caso o ente estatal não atenda a recomendação ministerial relativa à política pública em discussão, haverá necessidade de ingresso com medida judicial, cujo embasamento fático e jurídico já se encontra no próprio ato jurídico expedido. O Ministério Público conta com eficientes instrumentos jurídicos de atuação para a efetivação das políticas públicas, bastando que utilize os dispositivos colocados ao seu alcance com mais frequência. Sabe-se, porém, que a deficitária atuação do Ministério Público na efetivação das políticas públicas em muito se deve à falta de estruturação das promotorias públicas especializadas, com foco específico no tema, além da criação 194 É lamentável que balizada doutrina confunda a vinculação do recomendado ao teor da recomendação com o tipo de demanda a ser ajuizada em caso de descumprimento do ato, aduzindo que, como a recomendação ministerial não constitui título executivo extrajudicial, sua observância é facultativa. 195 DALLARI, Adilson Abreu. Autonomia e responsabilidade do Ministério Público. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas, 2010. p. 43. 174 de grupo de apoio próprio para o desempenho das funções, com corpo de profissionais de todas as áreas do conhecimento, bem como estrutura física necessária. No âmbito federal existe a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a quem cabe dialogar e interagir com órgãos de Estado, organismos nacionais e internacionais e representantes da sociedade civil, persuadindo os poderes públicos para a proteção e defesa dos direitos individuais indisponíveis, coletivos e difusos – tais como dignidade, liberdade, igualdade, saúde, educação, assistência social, acessibilidade, acesso à justiça, direito à informação e livre expressão, reforma agrária, moradia adequada, não discriminação, alimentação adequada, entre outros. Referida procuradoria especializada também tem a função de integrar, coordenar e revisar a atuação dos Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão de cada Estado da federação, subsidiando-os na sua atuação e promovendo ação unificada em todo o território nacional. Além disso, também faz a promoção dos direitos humanos por meio da divulgação de cartilhas de direitos constitucionais, tratados internacionais, sistema interamericano e internacional de direitos, eventos e cursos, contando com a colaboração da Escola Superior do Ministério Público da União. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão não postula judicialmente, contudo, havendo necessidade, pode representar aos membros ajuizamento de ações. Para exercer o cargo, o Procurador-Geral da República designa um Subprocurador-Geral da República, mediante prévia aprovação do nome pelo Conselho Superior, por meio de eleição. O posto é ocupado pelo prazo de dois anos, permitida uma recondução, precedida de nova decisão do Conselho Superior. A estruturação adequada desse tipo de órgão especializado e sua disseminação para o âmbito estadual é uma forma de garantir o efetivo exercício do papel do Ministério Público nessa seara, de modo a dar um passo a mais no caminho da efetivação das políticas públicas no Brasil. 175 Capítulo 8 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA A Defensoria Pública dos Estados e da União é instituição prevista constitucionalmente como função essencial à Justiça, que tem como missão precípua a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, conforme prevê o artigo 134 da Constituição Federal. Foi criada pela Constituição Federal de 1988 e regulamentada somente em 1994, pela Lei Complementar n.º 80, de 12.01.1994, a chamada Lei Orgânica da Defensoria Pública, constituindo a mais jovem função essencial à justiça criada no Brasil. É notável o seu papel para a consolidação do acesso à justiça no País. Sua atuação não se limita ao âmbito judicial, mas deve englobar necessariamente toda a assistência jurídica aos desvalidos, como o conhecimento dos direitos, a maneira de exercê-los e as formas alternativas de composição de conflitos, o que demanda competência e estrutura adequada. Convém destacar que a Constituição de 1988 manteve a tradição de repartição das funções estatais em três Poderes diferentes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Entretanto, o título próprio da Constituição que cuida da Organização dos Poderes tem quatro capítulos, um para cada qual dos Poderes e outro relativo às “Funções Essenciais à Justiça”, inseridas todas dentro do mesmo nível de importância como órgãos do Estado, do qual fazem parte a Defensoria Pública e o Ministério Público. Como tais órgãos foram recepcionados em seções próprias de um mesmo capítulo, independentemente dos três Poderes clássicos, tais instituições não podem ser consideradas subordinadas ao Poder Executivo. 176 Dessa forma, compete à Defensoria Pública a prerrogativa de escolha de sua política institucional, além da necessária autonomia funcional, administrativa e financeira garantidas pela Carta Magna. Essas prerrogativas só devem ser restringidas pela lei e pela Constituição, inexistindo qualquer relação com os programas político-partidários dos governantes em exercício. 8.1 A atuação na implementação do orçamento A Defensoria Pública tem importante papel a cumprir para a efetivação das políticas públicas, na medida em que exerce a função de representar juridicamente os desvalidos. Estes não possuem organização política e condições financeiras de eleger um representante efetivamente comprometido com as causas sociais, de forma que cabe à Defensoria Pública colaborar para o exercício desse mister. Os desvalidos não possuem apenas carência financeira, mas também carência de representatividade junto às instâncias de poder. Se lhes faltam as condições básicas para o exercício da cidadania, evidente que não terão condições de participar do debate político em igualdade de condições com os demais entes representativos dotados de poder econômico e financeiro. De acordo com o defensor público Sílvio Roberto Mello Moraes: [...] a importância da Defensoria Pública extrapola os limites traçados pelos artigos 134 da Constituição Federal e 1.º da LC n.º 80, para alcançar a própria garantia e efetividade do Estado Democrático de Direito, já que ela é o instrumento pelo qual se irá viabilizar o exercício, por parte de cada cidadão hipossuficiente do Brasil, dos direitos e das garantias individuais que o Constituinte tanto se preocupou em assegurar ao povo brasileiro, consagrando assim a igualdade substancial a que aludiu o preclaro Desembargador Barbosa Moreira.196 O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado em 2005, ressalta 196 MORAES, Sílvio Roberto Mello. Princípios institucionais da Defensoria Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 17. 177 [...] a significativa importância de que se reveste, em nosso sistema normativo, e nos planos jurídico, político e social, a Defensoria Pública, elevada à dignidade constitucional de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e reconhecida como instrumento vital à orientação jurídica e à defesa das pessoas desassistidas e necessitadas.197 E continua mais adiante: Vê-se, portanto, de um lado, a enorme relevância da Defensoria Pública, enquanto instituição permanente da República e organismo essencial à função jurisdicional do Estado, e, de outro, o papel de grande responsabilidade do Defensor Público, em sua condição de agente incumbido de viabilizar o acesso dos necessitados à ordem jurídica justa, capaz de propiciar-lhes, mediante adequado patrocínio técnico, o gozo – pleno e efetivo – de seus direitos, superando-se, desse modo, a situação de injusta desigualdade socioeconômica a que se acham lamentavelmente expostos largos segmentos de 198 nossa sociedade. Imprescindível, assim, que a Defensoria Pública não se preocupe apenas com a representação judicial dos necessitados, mas que atue no âmbito administrativo, acompanhando as políticas públicas voltadas a atender a população carente. Deve a Defensoria Pública zelar para que os programas previstos nos orçamentos públicos sejam efetivamente implementados, exercendo atuação contínua junto aos parlamentares para que as necessidades sociais de determinada localidade sejam incluídas nos orçamentos e, posteriormente, executadas em benefício da população carente. Se a Defensoria Pública se comprometer com essa atuação administrativa, cobrando do Executivo e do Legislativo o cumprimento das promessas políticas e levando ao conhecimento do Poder Judiciário o descumprimento inconstitucional desses misteres, evidente que haverá uma efetivação das políticas públicas e uma menor necessidade de atuação no âmbito jurisdicional, visto que demandas de toda ordem seriam evitadas se programas sociais básicos na área da educação, saúde e habitação fossem cumpridos. 197 198 STF, ADI 2903, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.09.2008. STF, ADI 2903, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.09.2008. 178 Isso porque “a assistência jurídica integral aos necessitados é direito humano fundamental ligado ainda ao direito de acesso à Justiça e ao princípio da igualdade. Trata-se de função pública permanente e de relevância destacada, considerada essencial à função jurisdicional do Estado”,199 que deve ser prestada de forma integral e não apenas na defesa judicial dos interesses dos desvalidos. 8.2 A legitimação no tema das políticas públicas Conforme já descrito, a Defensoria Pública é legitimada a defender juridicamente os interesses dos necessitados, o que engloba não apenas uma atuação no âmbito judicial, mas também a orientação jurídica e a atuação extrajudicial. No tema das políticas públicas, a Defensoria é legitimada a ingressar com ação civil pública, mas deve observar a pertinência temática da ação com os interesses dos necessitados, para que não haja conflito com as atribuições do Ministério Público. Sobre essa legitimação, é possível a existência de situações limítrofes de atribuição tanto do Ministério Público quanto da Defensoria Pública, que não devem gerar perplexidade, tampouco conflito entre as instituições. Nesse sentido, a jurisprudência tem fixado o seguinte entendimento: Processual civil e administrativo. Ação civil pública. Proteção das pessoas com deficiência física, mental ou sensorial. Sujeitos hipervulneráveis. Fornecimento de prótese auditiva. Ministério Público. Legitimidade ativa ad causam. Lei 7.347/85 e Lei 7.853/89. 1. Quanto mais democrática uma sociedade, maior e mais livre deve ser o grau de acesso aos tribunais que se espera seja garantido pela Constituição e pela lei à pessoa, individual ou coletivamente. 2. Na ação civil pública, em caso de dúvida sobre a legitimação para agir de sujeito intermediário Ministério Público, Defensoria Pública e associações, p. ex., sobretudo se estiver em jogo a dignidade da pessoa humana, o juiz deve optar por reconhecê-la e, assim, abrir as 199 PONTES, Manuel Sabino. Inconstitucionalidade dos meios alternativos à Defensoria Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2179, 19 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12996>. Acesso em: 15 nov. 2011. 179 portas para a solução judicial de litígios que, a ser diferente, jamais veriam seu dia na Corte.200 Ambas as instituições devem primar pela solução do litígio e pela efetivação das políticas públicas que veiculam direitos fundamentais, sem desperdício de tempo e energia com inúteis discussões acerca de legitimidade. A atual conjectura do País revela que problemas há em todos os níveis e trabalho não falta para aqueles que buscam a efetivação do direito positivado. É preciso que as vaidades pessoais e a busca por incursões midiáticas deem espaço ao trabalho conjunto e profícuo de ambas as carreiras, pois exercem função essencial à justiça brasileira. As tutelas jurídicas prestadas pela Defensoria Pública, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, são expressamente reconhecidas como funções institucionais, de acordo com os incisos VII, VIII e X do artigo 4.º da Lei Complementar n.º 80/1994, conforme redação dada pela LC n.º 132/2009: [...] VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5.º da Constituição Federal; X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Por fim, cabe ponderar que a Defensoria Pública, tendo legitimidade ativa para ajuizar ações coletivas, como autoriza o artigo 4.º, incisos VII e VIII, da LC n.º 80/1994 e o artigo 5.º, inciso II, da Lei n.º 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), inclusive com poder de requisição (artigo 128, inciso X, da LC n.º 80/1994), tem o dever de buscar a efetivação de direitos sociais de forma mais ampla e igualitária na sociedade, na forma de prestações que venham a atingir de maneira adequada e 200 STF, REsp 931513/RS, 1.ª Seção, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias (juiz federal convocado do TRF 1.ª Região), j. 25.11.2009. 180 equitativa os necessitados, contribuindo decisivamente para a implementação das políticas públicas. 8.3 A necessidade de estruturação adequada da instituição Para que a Defensoria Pública possa cumprir sua missão constitucional, imperioso que seja adequadamente estruturada em todos os Estados da federação, não apenas com quadro de Defensores Públicos concursados e em número suficiente para atender toda a população carente, como também com estrutura física, material e humana suficiente para o desempenho de suas atividades. No entanto, o que se observa na atualidade é que a Defensoria Pública não recebe a atenção que lhe foi conferida pela Constituição Federal, seja pela deficitária visibilidade na arena política, seja pelo tímido papel exercido na arena jurídica. Na arena política a Defensoria Pública não possui visibilidade, pois trata dos interesses de parcela marginalizada da sociedade, que, embora seja majoritária em termos numéricos, possui sérias limitações culturais e educacionais que lhe retiram do debate político, não exercendo papel importante no momento da tomada de decisões. Além disso, evidente que não há interesse de falsos democratas na mudança da situação social presente, pois a Defensoria Pública tem papel transformador da sociedade e a sua atuação efetiva reduziria a opressão exercida sobre os desinformados e despreparados, que constituem a maior parte da população brasileira. Na arena jurídica a Defensoria Pública encontra sérios entraves para a concretização das normas previstas formalmente, seja pela falta de estruturação adequada de seus quadros, seja pela resistência da advocacia privada, visto que dada a parca estrutura da Defensoria Pública brasileira, esta é a grande prestadora dos serviços à população carente, mediante os chamados “convênios”. 181 O III Estudo Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, que traz um mapeamento em âmbito nacional sobre a estrutura, o funcionamento e o perfil dos membros da instituição, revela que, quanto ao orçamento executado pelo Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública das unidades da Federação, no que diz respeito ao orçamento total do Estado, em média o Poder Judiciário dos Estados absorve 5,34% dos gastos totais, enquanto o orçamento do Ministério Público foi de 2,02% e o da Defensoria Pública, em média de 0,40% do total de gastos pelas unidades da Federação.201 Tais dados revelam que, embora a Defensoria Pública tenha o mesmo status constitucional do Ministério Público e atenda expressiva parcela da população brasileira, recebe cinco vezes menos dinheiro público do que o órgão ministerial. No tocante à resistência de pequena parcela da advocacia privada para a melhor estruturação da Defensoria Pública, dois exemplos são emblemáticos. Ainda que a Defensoria Pública tenha sido estabelecida como função essencial à justiça pela Constituição Federal de 1988, até agora o Estado de Santa Catarina não a criou de fato, em razão de resistência da Ordem dos Advogados do Brasil local, que fica com 10% do valor do repasse mensal do Estado, conforme prevê o artigo 5.º da Lei Complementar n.º 155/1997, objeto de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal.202 Em recente julgamento realizado em 14.03.2012, cujo acórdão ainda não foi publicado, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade de normas do Estado de Santa Catarina que dispõem sobre a defensoria dativa e a assistência judiciária gratuita. A Corte decidiu que essa situação no Estado deve 201 Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=7646>. Acesso em: 14 jan. 2012. Segundo reportagem veiculada pelo Sindicato dos trabalhadores em empresas de assessoramento, perícia, pesquisa e informações de Santa Catarina em 23.05.2011: “Mensalmente, o governo catarinense repassa R$ 1,3 milhão para a OAB-SC e advogados que assistem juridicamente a população de baixa renda. Do total, 10% fica com a entidade, como prevê o artigo 5.º da Lei Complementar n.º 155, de 1997, questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). Sete mil advogados estão inscritos no convênio. ‘O dinheiro é usado para a manutenção da estrutura da advocacia dativa, e não é suficiente para pagar todas as despesas com água, luz, funcionários e aluguel de salas em fóruns’, diz o presidente da OAB-SC, Paulo Roberto de Borba, que defende a manutenção do convênio”. A defensoria pública é cara e ineficiente. Disponível em: <http://www.sindaspisc.org.br/sindaspisc>. Acesso em: 14 jan. 2012. 202 182 durar por apenas mais um ano, quando os dispositivos contestados [artigo 104 da Constituição de Santa Catarina e Lei Complementar Estadual n.º 155/1997] perderão eficácia no ordenamento jurídico e a Defensoria Pública deve ser criada. O Ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, fez um paralelo entre a exclusividade do defensor público ao atendimento do hipossuficiente e a prioridade que o advogado dativo pode dar às demandas privadas. Ele ressaltou: Não se pode ignorar que, enquanto o defensor público, integrante de carreira específica, dedica-se exclusivamente ao atendimento da população que necessita dos serviços de assistência, o advogado privado – convertido em defensor dativo – certamente prioriza os seus clientes que podem oferecer uma remuneração maior do que aquela que é repassada pelo Estado, a qual observa a tabela de remuneração básica dos serviços de advogados. Essas observações, conforme o relator, sugerem que a criação de um serviço de assistência judiciária não pode ser vista apenas sob o ângulo estatístico “e muito menos da perspectiva da mera economia de recursos”. Disse o ministro: Veja-se, a título de exemplo, o fato de que a defensoria dativa organizada pelo Estado de Santa Catarina com o apoio da OAB local não está preparada e tampouco possui competência para atuar, por exemplo, na defesa dos interesses coletivos, difusos ou individuais homogêneos dos hipossuficientes residentes naquele estado, atribuição que se encontra plenamente reconhecida à defensoria pública. O Ministro Celso de Mello, decano da Corte, acompanhou o relator e manifestou sua indignação com a “omissão contumaz” do Estado de Santa Catarina, que, 23 anos depois da promulgação da Constituição da República, se manteve inerte quanto à implantação da Defensoria Pública no Estado, violando, “de modo patente”, o direito das pessoas desassistidas, “verdadeiros marginais” do sistema jurídico nacional. “É preciso dizer claramente: o Estado de Santa Catarina tem sido infiel ao mandamento constitucional dos artigos 134 e 5.º, inciso 74, e essa infidelidade tem de ser suprimida por essa Corte”, afirmou. 183 Para o decano do Supremo Tribunal Federal, não se trata de uma questão interna do Estado de Santa Catarina. “É uma questão nacional que interessa a todos, a não ser que não se queira construir a igualdade e edificar uma sociedade justa, fraterna e solidária”, destacou. O Ministro Celso de Mello ressaltou ainda a relevância das defensorias públicas como instituições permanentes da República e organismos essenciais à função jurisdicional do Estado, e o papel “de grande responsabilidade” do defensor público “como agente incumbido de viabilizar o acesso dos necessitados à ordem jurídica justa”.203 No Estado de São Paulo, a Defensoria Pública foi criada em 2006, após 18 anos do comando constitucional e a movimentação popular que envolveu mais de 400 entidades da sociedade civil organizada. Até a criação da Defensoria Pública paulista, a assistência judiciária aos necessitados era prestada pela ProcuradoriaGeral do Estado. Existem cerca de 500 defensores públicos que não conseguem atender toda a demanda existente, e, nos locais onde ainda não há instalações da Defensoria, o Estado, por meio desta, paga advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo para atuarem na defesa da população carente. Estes profissionais, que não prestaram concurso público, são remunerados a cada processo ou a cada audiência, por meio de receitas públicas advindas do Fundo de Assistência Judiciária (FAJ). Esse fundo foi criado na gestão do Governador Franco Montoro para aprimorar e ampliar a assistência judiciária gratuita no Estado e evitar que os advogados fossem forçados a trabalhar sem remuneração, como ocorria naquela época. A ideia original foi aos poucos subvertida. Formou-se o convênio que se sagrou como uma poderosa fonte da força política da OAB/SP, servindo como significativa fonte de renda dos milhares de advogados que não param de se multiplicar a partir de muitas universidades de duvidosa qualidade por todo o Estado. E, de instrumento de defesa de necessitados de toda ordem, o convênio foi se 203 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=202643>. Acesso em: 16 mar. 2012. 184 transformando gradativamente em instrumento de defesa de advogados necessitados. Para tentar sanear esse grave problema de mau uso dos recursos públicos, a Defensoria Pública do Estado tratou de estabelecer regras mais rígidas e controlar com mais firmeza os pagamentos dos honorários, sofrendo forte resistência da classe dos advogados, que culminou com a edição do Projeto de Lei n.º 65/2011, de autoria do Deputado Campos Machado, em trâmite perante a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Referido projeto prevê a transferência da gestão dos recursos do FAJ para a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado. Com isso, os recursos públicos deixam de ser geridos pela Defensoria Pública e passam à gestão do governo, esfera na qual os advogados possuem maior trânsito político e ingerência. Cerca de 90% do orçamento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo é advindo de recursos do FAJ, de forma que sua existência e manutenção são imperiosas para o funcionamento da instituição no Estado. Assim, eventual aprovação do referido projeto de lei, sem adentrar nas questões de sua duvidosa constitucionalidade, obstará a autonomia da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A falta de estruturação adequada da Defensoria Pública afeta diretamente a efetivação de políticas públicas, dado que diversos direitos deixam de ser implementados pela ausência de imposição judicial e deficiência de atuação extrajudicial, aliada à ignorância do cidadão marginalizado sobre seus direitos. Além disso, recursos públicos que poderiam ser investidos em políticas públicas acabam direcionados ao bolso de poucos particulares, trazendo inegáveis prejuízos a toda a coletividade. Por exemplo, uma ação judicial envolvendo determinada política de saneamento básico, moradia ou saúde, que pode ser proposta para beneficiar diversos necessitados, hoje acaba sendo substituída por uma centena de peças 185 individuais, uma vez que os advogados conveniados são pagos por ação. Ou, ainda, em demandas em que a lei autoriza pedidos múltiplos na mesma petição inicial, advogados conveniados costumam fracionar o pedido em diversas demandas para aumentar seus ganhos pessoais. Outro exemplo é a inadequação da triagem dos necessitados feita pelos advogados conveniados, que não obedecem os ditames legais e acabam por atender pessoas que possuem condições de contratar advogado particular, malversando o dinheiro público. A assistência jurídica integral e gratuita, por ser um direito fundamental, envolve certo universo de pessoas, não abrangendo a totalidade dos indivíduos, justamente por ter o objetivo de assegurar a igualdade material com aqueles possuidores de uma boa condição financeira e que têm facilidade de defender seus direitos, em juízo ou fora dele. A Lei n.º 1.060/1950, Lei de Assistência Judiciária, em seu artigo 2.º, registra que necessitado é todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar os custos do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, sejam eles nacionais ou estrangeiros residentes no País, que precisarem recorrer à justiça penal, civil, militar ou do trabalho. Necessitado, então, não é somente o pobre ou indigente, e, sim, aquele cuja situação econômica não lhe permita arcar com as despesas do processo. Essa realidade, segundo alguns julgados, deve ser analisada, levando-se em consideração inúmeros fatores na vida do indivíduo, desde doenças na família, gastos excepcionais etc., relacionados com os valores que percebe. Assim, por meio da irregularidade na triagem dos necessitados, a vítima não é apenas o dinheiro público que poderia ser destinado à Defensoria ou investido na implementação de determinada política pública, mas também o Poder Judiciário que se vê ainda mais assoberbado de processos, e, principalmente, os jurisdicionados, cujo direito de celeridade processual será lesionado. 186 No Estado de São Paulo, há previsão constante do artigo 109 da Constituição Estadual e no artigo 234 da Lei Complementar n.º 988/2006 que impõe, de maneira inequívoca, obrigatoriedade de a Defensoria Pública conveniar-se exclusivamente com a Ordem dos Advogados, seccional São Paulo, sem a possibilidade de manter convênio com outras entidades. Sobre essa obrigatoriedade do convênio mantido entre a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São Paulo, recente decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento de ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), cujo acórdão ainda não foi publicado. Entendeu a Corte Suprema do País que a exclusividade do convênio descrita nos dispositivos questionados, independentemente da qualidade ou do tempo de serviços prestados, deturpa e descaracteriza tanto o conceito dogmático de convênio, que não pode ser obrigatório, quanto a noção de autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública, constitucionalmente positivada. Segundo o relator e atual presidente da Corte, Ministro Cesar Peluso, para compatibilizar o sentido normativo emergente da regra questionada com o preceito fundamental da Constituição da República, deve-se entender que seu texto enuncia apenas mera autorização ou possibilidade de celebração de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo, sem cunho de necessidade, nem de exclusividade, de modo a ficar garantida à Defensoria Pública, em rigorosa consonância com sua autonomia administrativa, funcional e financeira, a livre definição dos seus eventuais parceiros e dos critérios administrativo-funcionais de atuação. Ao final do voto, o relator observou que a realização de concurso público “é regra primordial para prestação de serviço jurídico pela administração pública, enquanto atividade estatal permanente”. Segundo ele, é situação excepcional e temporária a hipótese de prestação e assistência jurídica à população carente “por profissionais outros que não defensores públicos estaduais concursados, seja mediante convênio com a OAB, seja mediante alternativas legítimas”. 187 O voto do relator foi seguido integralmente pela maioria dos ministros presentes, que defenderam a autonomia administrativa, funcional e financeira da Defensoria Pública. Eles afirmaram que o valor da Defensoria Pública está ligado à importância da efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros.204 Salta aos olhos, portanto, que a implementação de políticas públicas e a efetiva colaboração da Defensoria Pública para esse mister passam pela adequada estruturação dessa carreira, tanto em âmbito nacional quanto nos Estados, dotandoa de estrutura física, material e humana própria para cumprir sua missão constitucional. 204 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo =201323&caixaBusca=N>. Acesso em: 16 mar. 2012. 188 Capítulo 9 A ATUAÇÃO DA ADVOCACIA PÚBLICA A Advocacia Pública tem importância estratégica na defesa do Estado brasileiro, nos conflitos judiciais e extrajudiciais. Para tal, exerce as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo e detém a representação judicial e extrajudicial de todos os Poderes da República. Contribui para o aperfeiçoamento da democracia brasileira; orienta os gestores públicos, sobretudo no controle do ato administrativo; e ajuda a promover valores ligados à ética e à transparência públicas. Trata-se de atividade prevista na Constituição Federal como essencial à Justiça, nos artigos 131 e 132, e é composta pelos advogados da União e pelos Procuradores Federais, Estaduais, Distritais e Municipais que ingressaram no serviço público após aprovação em concurso público de provas e títulos, sendo vedado o exercício da advocacia pública sem prévia aprovação em certame público. Ao lado dos defensores públicos e dos promotores de Justiça, os advogados são indispensáveis à administração da justiça e gozam de prerrogativas para o exercício pleno de suas atividades. 9.1 A responsabilidade dos advogados públicos na condução dos processos Os advogados públicos possuem importante função para o desenvolvimento e a implementação das políticas públicas por, pelo menos, dois motivos. Primeiro, porque exercem a representação da fazenda pública em juízo e têm condições de informar o Executivo das demandas mais recorrentes, das necessidades da população local e das providências necessárias para atender os problemas levados ao conhecimento do Judiciário. Assim, podem contribuir de forma efetiva para a implementação de políticas públicas necessárias à população por meio de uma gestão inteligente das demandas, atuando de forma articulada com os representantes eleitos para que as 189 necessidades reveladas no âmbito judicial sejam levadas a efeito no âmbito administrativo. Por exemplo, se há uma grande demanda pelo oferecimento de um determinado medicamento, deve o advogado público informar o agente político sobre tais pleitos a fim de que se envidem esforços para a inclusão do remédio na lista de dispensação do Poder Público. Com isso, ao mesmo tempo em que atenderá a necessidade da população, colaborará sobremaneira com a justiça, diminuindo o número de demandas sobre o mesmo tema, com evidente economia de dinheiro público, que pode ser empregado na compra do próprio medicamento. O mesmo exemplo pode ser aplicado a todos os temas das políticas públicas, ou seja, todo déficit educacional, habitacional, de saúde, urbanismo etc. pode ser sobremaneira minimizado com a atuação proativa do advogado público, dado que, ao ter contato com as demandas judiciais nesse sentido, poderá orientar o Poder Público de maneira mais efetiva acerca das necessidades da população local. Muito daquilo que deságua no Poder Judiciário relativo à Fazenda Pública é reflexo da carência da população, que não foi atendida em uma necessidade básica e precisa buscar a justiça para ter o seu pleito apreciado. Se a atuação do advogado público for mais efetiva, abandonando o exercício de atividade apenas processual em busca de um melhor desempenho no âmbito administrativo e gestor dos problemas, muitas demandas podem ser evitadas, com evidente benefício para a implementação das políticas públicas. O segundo motivo é a atuação jurisdicional em si, seja pela responsabilidade nas interposições de recursos protelatórios e pela injustificada insistência em discutir matérias já pacificadas pelos tribunais, seja pelos argumentos de falta de verba pública sem o substrato probatório correspondente. É sabido que o Poder Público é o maior cliente do Poder Judiciário e conta, inclusive, com uma justiça especializada para atender as demandas da União, que é a Justiça Federal. Fala-se que 80% dos recursos existentes nos Tribunais superiores do País possuem o poder público no polo ativo ou passivo. 190 A enraizada prática de insistir com recursos protelatórios e com teses já pacificadas pela jurisprudência deve ser repensada, considerando o custo que representa para a movimentação da máquina judiciária, de servidores, de toda sorte de insumos e de dinheiro público que poderiam ser mais bem aproveitados se investidos no cumprimento das decisões consolidadas pela justiça. Os advogados públicos devem repensar a sua forma de atuação de modo geral, deixando de insistir em teses já rechaçadas definitivamente pela jurisprudência para atuar de maneira mais efetiva no cumprimento das decisões judiciais, de olhos voltados às necessidades da população, para que o dinheiro público seja revertido à efetivação das políticas públicas e dos direitos fundamentais. Para tanto, há previsão legal de veiculação de súmulas administrativas pelos chefes das procuradorias, autorizando a não interposição de recursos em casos já reiteradamente decididos pelos Tribunais, porém a utilização de tal instituto é muito tímida. Infelizmente, verifica-se, na prática forense, que é mais fácil repetir infinitamente uma tese pronta, insistindo em argumentos já ultrapassados em todas as instâncias, do que percorrer a via administrativa para a não interposição recursal. No que tange ao argumento da reserva do possível insistentemente repetido pela Fazenda Pública em todas as esferas, é importante que o advogado público se comprometa com o substrato probatório de seus argumentos, demonstrando por números as suas razões de falta de verbas. Conforme já afirmado (Capítulos 4 e 7), o ônus probatório da reserva do possível incumbe a quem alega. Para que o argumento da falta de verbas seja aceito, é necessária a comprovação documental do alegado, e não a afirmação vazia de falta de recursos. Somente os procuradores dos entes públicos têm condições de produzir tal prova documental, visto que estão ao seu alcance os números do ente federativo 191 respectivo, a questão orçamentária, as políticas públicas adotadas para determinada matéria, sendo seu dever levar tais informações ao conhecimento do juiz. Se os advogados públicos não cumprem sua função de instruir o magistrado adequadamente, não podem carrear apenas ao Poder Judiciário a responsabilidade pelas deficiências das decisões proferidas em juízo, pois o juiz decide o feito apenas com aquilo que é trazido e provado pelas partes. No tema das políticas públicas, os procuradores dos entes federativos devem desempenhar seu mister visando o interesse público primário.205 Os interesses secundários do Estado somente podem ser perseguidos pelos advogados públicos quando coincidentes com os interesses públicos primários, ou seja, com os interesses públicos propriamente ditos. Nessa medida, não há como conceber a atuação do advogado público mediante a interposição de recursos protelatórios, o injustificado descumprimento de entendimento judicial já consolidado, tampouco a ausência de atuação extrajudicial para pacificação dos litígios. Para resolver esse problema a Advocacia-Geral da União deu importante contribuição, fixando metas a serem perseguidas e ações a serem implementadas para a efetivação das políticas públicas no Brasil. Destaca-se, a respeito, a meta n.º 2, que visa reduzir o litígio e racionalizar a atuação dos advogados públicos federais, com aumento da segurança jurídica 205 para desafogar o Judiciário e acelerar resolução de conflitos, Celso Antônio Bandeira de Mello explica que “o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”. Adiante, explica o autor a diferença entre o interesse público primário e secundário: “É que, além de subjetivar estes interesses, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito” (grifos no original) (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 75). 192 administrativamente, entre os órgãos da administração federal e entre a União e os Entes Federados. As ações previstas para alcançar referida meta são as seguintes: 1 – reduzir um milhão de ações judiciais contra o INSS, acelerando benefícios previdenciários nas instâncias administrativas; 2 – instituir instrumentos de prevenção de litígios, com a implementação de controles mais efetivos sobre o potencial de litigiosidade de políticas públicas; 3 – implantar Escritórios Avançados no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, como realizado no CNJ e no TCU, para possibilitar o resgate das atribuições específicas da AGU de representação judicial dos Poderes Legislativo e Judiciário; 4 – aprimorar mecanismos que possibilitem a identificação das jurisprudências iterativas dos tribunais superiores que possam ser objeto de súmula da AGU; 5 – fomentar iniciativas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, edição de súmula vinculante e repercussão geral e representativa de controvérsia; 6 – harmonizar, por meio de pareceres do Advogado-Geral da União, a interpretação jurídica em matéria ambiental, em especial quando houver divergência entre órgãos públicos federais, evitando a judicialização de questões ambientais; 7 – alcançar padrões progressivos de coordenação, eficiência, efetividade e prevenção na proteção, defesa e recomposição do patrimônio e das finanças públicas, disponibilizando os resultados para o aprimoramento da atuação administrativa; 8 – instituir, em conjunto com outros órgãos federais, modelos e rotinas de ação que detectem e previnam riscos ao patrimônio público; 9 – alterar a legislação e ampliar os instrumentos eletrônicos e, preferencialmente, não judiciais de efetividade na cobrança de dívidas, tais como a penhora on-line, a integração plena com bases de dados para negativação de devedores à administração pública e a criação de mecanismos jurídicos e administrativos para melhor rastrear o patrimônio de devedores do que a cobrança judicial; 10 – promover instrumentos extrajudiciais de solução de conflitos.206 As metas fixadas pela Advocacia-Geral da União são parte da estratégia para o bicentenário da independência do Brasil, de forma que a previsão é que sejam atingidas até o ano de 2022. 206 Disponível em: <http://www.sae.gov.br/brasil2022>. Acesso em: 7 fev. 2012. 193 9.2 A independência funcional do advogado público Os advogados públicos se submetem à disciplina normativa dispensada aos advogados em geral, o que lhes impõe a prerrogativa e o dever de exercerem a profissão com liberdade, sem receio de desagradar qualquer autoridade (artigo 7.º, inciso I, combinado com o artigo 31, §§ 1.º e 2.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil). Além disso, o advogado público deve observar os preceitos insculpidos na Lei Orgânica do ente federativo que representa, desde que aqueles lhe assegurem a necessária independência funcional, pois age vinculado aos princípios da legalidade, moralidade pública e da indisponibilidade do interesse público. Como atuam em nome do Estado, têm os procuradores dos entes públicos o compromisso maior com a ordem constitucional, seus princípios, suas instituições. Logo, a vontade manifestada pelo administrador somente interfere na atividade dos representantes judiciais dos Estados enquanto se mantém nos estritos limites da autorização legal ou constitucional. Na qualidade de agente público que exerce atividade exclusiva de Estado, o procurador possui prerrogativas para o livre exercício de seu mister, dentre elas a de ser remunerado com subsídio, na forma prevista nos artigos 39, § 4.º c/c o § 8.º, e 135 da Constituição Federal, a perda de cargo somente por sentença judicial, processo administrativo, avaliação de desempenho (artigo 41 da Constituição Federal), ou excesso de despesa com pessoal (artigo 169 da Constituição Federal), mas sempre mediante prévio processo administrativo em que sejam assegurados a ampla defesa e o contraditório, na forma estabelecida pelas leis referidas no inciso III do artigo 41 e no § 7.º do artigo 169 da Lei Maior. Assim, o Advogado Público representa a administração pública e deve atender a vontade da lei, e não a uma manifestação de vontade unipessoal, autônoma, incompatível com a Constituição e com as leis, eventualmente externada pelo chefe do Poder Executivo ou pelo seu superior hierárquico. 194 E essa independência funcional se revela em verdadeira salvaguarda para o próprio cidadão, que terá a garantia de que não haverá ingerências indevidas de autoridades públicas na atuação funcional dos Procuradores dos entes públicos, que poderão exercer seu munus livre de pressões e constrangimentos, buscando atingir o interesse público primário. Portanto, não há hierarquia funcional do chefe da instituição no que concerne à atuação processual dos advogados públicos, que deve ficar adstrita aos assuntos de ordem administrativa. Evidente, contudo, que as estratégias a serem implementadas pela instituição devem ser observadas pelo advogado público, até para que se viabilize sua efetivação. O que não se admite é o amesquinhamento de função tão cara ao Estado Democrático de Direito com a submissão do advogado aos interesses secundários do Estado. 9.3 A colaboração para a efetivação das políticas públicas A Advocacia Pública exerce um papel direta ou indiretamente relacionado à concretização das políticas públicas do Estado brasileiro, eis que cabe ao procurador do ente federativo o dever de dar suporte jurídico à realização das políticas elegidas pelo administrador público, desde que sejam constitucionais e legais. Essa aferição será realizada no caso concreto por meio da análise dos instrumentos jurídicos de implementação das políticas públicas, daí a importância de uma Advocacia Pública independente. A atuação independente não significa que a escolha da política a ser executada deixará de ser feita pelo representante do povo, legitimamente eleito, o qual tem a incumbência de indicar sua equipe de governo afinada aos seus ideais políticos. Entretanto, a opinião de um profissional técnico, imparcial e altamente qualificado, não sujeito às pressões políticas, trará um ganho de qualidade para a política pública escolhida. 195 Por isso, a relevância da atuação extrajudicial, principalmente nas fases de planejamento, implementação e avaliação da política pública, propiciando um planejamento estratégico do Estado, bem como a redução de demandas. No entanto, para que essa atuação seja possível, imperioso que a Procuradoria do ente público esteja adequadamente estruturada, com a presença de advogados contratados mediante concurso público de provas e títulos, o que ainda não é realidade em boa parte das Procuradorias Municipais de nosso país. Além disso, indispensável a existência de um quadro de assistentes, estagiários e profissionais de outras áreas do conhecimento capazes de auxiliar o trabalho do advogado. Também é imprescindível que haja comunicação entre os diferentes órgãos da administração pública e o advogado público responsável pela política pública em andamento, para que a estratégia adotada seja observada em todas as esferas do ente estatal. Embora isso seja óbvio, não é o que se observa na prática forense. Por fim, importante mencionar que, em caso de malversação do dinheiro público, o ente federativo prejudicado, por intermédio do seu corpo de advogados, tem legitimação processual para propositura de ação civil pública contra outros entes públicos e particulares responsáveis pelos atos lesivos. Trata-se de verdadeiro dever imposto ao advogado público na busca da defesa dos interesses do ente federativo que representa. A dimensão e a diversidade do Estado brasileiro, a complexidade das práticas jurídicas e a crescente e desejável fiscalização da sociedade brasileira em relação à condução das políticas públicas são desafios enfrentados pela Advocacia Pública na busca da eficiência e da eficácia na sua atuação. Sobreleva-se, desta forma, a necessidade de constante aperfeiçoamento, modernização e racionalização de suas práticas, sobretudo as ligadas à gestão do conhecimento e de seus recursos humanos. 196 PARTE V CONCLUSÃO 197 Capítulo 10 SÍNTESE E CONCLUSÃO 1. Os atuais Estados Democráticos de Direito adotam, desde a queda dos regimes absolutistas e da revolução americana e francesa, uma estratégia de contenção recíproca do poder político consubstanciada na divisão das funções estatais. O critério formal, que leva em conta as características impregnadas pelo direito, é o mais adequado para o estudo da divisão dessas funções. 2. Não há função política ou de governo autônoma, pois não há aspectos materiais, formais ou orgânicos que possam confirmar sua autonomia distinta da função administrativa. 3. As políticas públicas se revelam como uma atividade administrativa complexa destinada a atingir prestações voltadas ao bem comum e, no mais das vezes, compreendem o exercício de todas as funções estatais para sua formulação e implementação. 4. Para seu estudo é necessária a análise da sistematização jurídica já existente, principalmente relacionada ao direito administrativo e constitucional, atentando-se para as peculiaridades do tema, sem a necessidade de criação de uma categoria jurídica nova. 5. Política pública pode ser considerada como a conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeitando-se ao controle jurisdicional. 6. Trata-se, portanto, de instituto ligado não só ao direito, mas também à sociologia e à administração pública. As sistematizações feitas pela doutrina não podem ser analisadas de forma isolada, seja para considerar política pública como programa, como processo ou como estrutura normativa. As 198 políticas públicas são heterogêneas, complexas e dependem de diversos elementos para sua consecução. 7. As políticas públicas possuem cinco características próprias: (i) programas comissivos ou omissivos do Estado; (ii) estabilidade; (iii) possibilidade de controle judicial; (iv) elemento teleológico; e (v) três condicionantes para sua existência, quais sejam: deliberação política, atividade normativa e atos de execução com conhecimento técnico. 8. São introduzidas no ordenamento jurídico por meio dos veículos introdutores de normas amplamente conhecidos, quais sejam emendas constitucionais, leis, atos administrativos, entre outros. 9. Sobre os fundamentos que legitimam o controle judicial dos atos dos demais poderes, observou-se que a democracia é adotada pela maioria dos Estados contemporâneos, não de forma estática e abstrata, mas em sua forma dinâmica, como um processo de afirmação e garantia do povo, conquistado por meio da história. Entretanto, esse conceito clássico de democracia já não atende aos anseios da sociedade, pois o princípio democrático não pode restar limitado a um modelo exclusivo de representação eleitoral. 10. O chamado conceito formal de democracia, tradicionalmente ligado ao exercício do poder político mediante instâncias formais de representação, apenas por meio do mecanismo da eleição, se revela insuficiente para a sociedade contemporânea, demandando a análise de um novo fenômeno de representação política emanado das decisões judiciais. 11. A legitimidade das decisões judiciais decorre da ampliação do debate democrático, ultrapassando as barreiras da representação política e se assenta sobre o conteúdo dos princípios e valores constitucionais. De nada valeria proclamar a supremacia da Constituição, o regime democrático e a separação de funções, se não fosse possível, perante um órgão imparcial e independente, contrastar os atos de cada poder e obter sua fulminação quando inválidos, com as responsabilidades decorrentes. 199 12. É tarefa típica do Poder Judiciário, prevista constitucionalmente, o controle da constitucionalidade das leis e dos atos administrativos. Por isso, ainda que revelem uma opção política do administrador, as políticas públicas estão sujeitas ao controle judicial, visto que a nenhum dos poderes é dada opção de descumprir o Texto Fundamental. 13. O controle jurisdicional deve observar limites que decorrem da própria Constituição Federal, atendendo ao princípio da separação de poderes e ao ideal democrático. 14. A teoria da ponderação formulada por Robert Alexy se revela importante instrumento para a análise judicial das políticas públicas. Segundo o autor, o direito deve ser corretamente aplicado, o que chamou de “pretensão de correção”. Isso depende essencialmente de uma adequada fundamentação que só é atingida por um procedimento argumentativo fundado em regras e princípios. 15. As regras são determinações no campo do fático e juridicamente viável, e só podem ser aplicadas ou afastadas integralmente. Seu conflito se resolve pelo critério da validez: uma regra válida será aplicada. Uma regra inválida dará lugar à aplicação de outra. Há a possibilidade de afastamento de uma regra em um caso concreto, sem retirá-la do mundo jurídico, desde que haja uma cláusula de exceção. 16. No que tange aos princípios, não são razões definitivas, mas prima facie. Representam um mandamento de otimização, isto é, um dever de que algo seja realizado na melhor medida das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. 17. Quando princípios colidem: 1) deve ser avaliado o grau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio; 2) deve haver a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; e 3) deve restar comprovado que o cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o não cumprimento do primeiro princípio afastado. 200 18. A respeito dos princípios constitucionais norteadores das decisões judiciais sobre políticas públicas destacou-se a importância dos princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade. 19. No tocante à isonomia, o Poder Judiciário deve intervir sempre que pessoas que estão na mesma situação jurídica não forem contempladas pela política pública, observando sempre o fator de discriminação contido na norma. Por outro lado, não poderá estender uma política pública, se o requerente não se encontrar na situação jurídica estabelecida pela norma, ou se o fator de discriminação guardar pertinência lógica com a sua exclusão do benefício. 20. A razoabilidade significa a justificada e ponderada decisão dentro das balizas estabelecidas pelo ordenamento jurídico pátrio. A proporcionalidade abarca o princípio da conformidade ou adequação de meios, que impõe três condições: (i) que a medida seja adequada ao fim; (ii) que a medida seja exigível e necessária, ou seja, a comprovada inexistência de outros meios menos gravosos aos direitos fundamentais dos envolvidos para a consecução destes fins; e (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que corresponde ao sopesamento dos bens e direitos em conflito stricto sensu, ou seja, a justa medida entre meios e fins, observada por meio do método da ponderação. Quanto mais severamente for atingido um direito fundamental, maior deve ser o peso do princípio contraposto. 21. Ao decidir determinada demanda com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o juiz deve proceder a uma avaliação dos interesses em jogo e dar prevalência àquele que ostentar maior relevo, sempre de acordo com a ordem jurídica em vigor. Não basta apenas sacrificar um direito em detrimento de outro, mas aferir a razoabilidade e a proporcionalidade dos valores em jogo à luz do sistema jurídico vigente. 22. Sobre os argumentos favoráveis e contrários ao controle judicial, enfatizou-se o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. 201 23. Esclareceu-se que o estudo das políticas públicas ganhou ênfase desde que os direitos sociais passaram a ser objeto de disposição específica nas constituições, em especial com a concretização dos direitos sociais. 24. Direitos humanos é expressão utilizada por jusfilósofos quando tratam dos direitos dos homens independentemente dos sistemas jurídicos de determinado país. É uma categoria jurídica construída historicamente para conferir especial proteção à dignidade de todos os homens, sem vinculação a um determinado Estado. 25. A doutrina elenca a existência de, pelo menos, três gerações ou dimensões de direitos humanos, mas a relevância dessa distinção deve ser vista com ressalvas porque mesmo os direitos que exigem uma abstenção estatal possuem uma contrapartida positiva, na medida em que, para sua garantia, é imperiosa a atuação do Estado mediante mecanismos que garantam a possibilidade de sua exigência coercitiva. 26. Diferentemente dos direitos humanos, os direitos fundamentais relacionamse com o direito positivado expressamente na Constituição de cada país. Possuem maior efetividade, pois podem ser exercidos de acordo com o sistema jurídico do Estado. 27. Falar em direitos fundamentais implica fazer referência a um regime jurídico específico de aplicação de normas constitucionais, ou seja, normas que estão sujeitas à aplicabilidade imediata e não podem ser afrontadas pelo legislador ordinário. 28. Segundo a doutrina atual, há um aspecto formal e um aspecto material dos direitos fundamentais. O conceito formal de direito fundamental relaciona-se com a positivação constitucional, ou seja, com a previsão expressa do direito no texto da Lei Maior. O conceito material de direito fundamental leva em conta os valores erigidos pela sociedade, critérios de relevância e essencialidade como a dignidade da pessoa humana, e que possam ser 202 equiparados, em grau de importância, aos direitos fundamentais expressamente previstos no catálogo da Constituição Federal. 29. Os direitos fundamentais possuem características de inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade, e veiculam normas de eficácia plena, de aplicação imediata, isto é, não dependem da existência de outras normas para serem exigidos, o que a doutrina denomina de princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais ou princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. 30. Os direitos sociais são a representação normativa das necessidades humanas básicas, que devem ser atendidas para propiciar uma condição de vida digna aos indivíduos de determinado país. Quando previstos de forma expressa ou implícita na Constituição Federal ou nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, os direitos sociais devem ser entendidos como espécie do gênero direitos fundamentais. 31. Há uma dupla dimensão dos direitos fundamentais sociais, nos aspectos objetivo e subjetivo. O aspecto subjetivo é aquele ligado à relação Estadoindivíduo, ou seja, são as faculdades ou poderes conferidos aos titulares de direito para que o exerçam contra o Estado. O aspecto objetivo extrapola a relação Estado-indivíduo e se orienta do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que a coletividade se propõe a seguir e vinculam os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário que recebem diretrizes de como agir. 32. Sobre a teoria do mínimo existencial como argumento favorável ao controle judicial, concluiu-se que o instituto constitui garantia de uma existência digna, que abrange bem mais do que a garantia de mera sobrevivência física, situando-se além do limite da pobreza absoluta, pois a existência humana sem alternativas não atende os ditames da dignidade da pessoa humana. A vida humana não pode ser reduzida à mera existência. 33. O conceito de mínimo existencial não pode ser confundido com o princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista sua baixa densidade normativa que 203 não possibilita a fixação de padrões minimamente objetivos. Não é possível afirmar também que os direitos fundamentais se esteiam diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana, tampouco que esse seja o núcleo do mínimo existencial. 34. O mínimo existencial visa garantir uma vida digna ao cidadão, com base nos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, com atenção para as peculiaridades do caso concreto. É a parcela indisponível dos direitos fundamentais aquém da qual desaparece a possibilidade da vida com dignidade. 35. É inadequada a chamada teoria da felicidade ligada ao conceito de mínimo existencial, pois não é possível impor ao Estado o dever de solucionar os infortúnios pessoais dos indivíduos, muito menos um dever de garantir a felicidade de qualquer pessoa por meio de uma boa qualidade de vida, seja pela absoluta falta de previsão constitucional ou legal nesse sentido, seja porque tais condições devem ser alcançadas pelo próprio indivíduo, mediante seu esforço pessoal e de suas escolhas, seja ainda pelos infortúnios que a vida proporciona a todas as pessoas. 36. A teoria da proibição da vedação ao retrocesso deve ser entendida como equivalente à garantia do mínimo existencial, ou seja, para que a revogação infraconstitucional não torne letra morta as conquistas efetivadas pela sociedade. Não significa a proibição do legislador em substituir uma política pública por outra que entenda mais apropriada. A vedação implica não aceitar que a revogação de uma disposição infraconstitucional posterior esvazie o comando constitucional, pois seria equivalente a dispor contra ele. 37. Já sobre os argumentos contrários à intervenção judicial, a reserva do possível passou a ser utilizada como argumento pela administração pública sem uma preocupação de fixar balizas para um conceito tão vago. 38. A doutrina elenca três dimensões da reserva do possível: fática, que consiste na inexistência fática de recursos, algo próximo da exaustão orçamentária; 204 jurídica, que se revela na ausência de autorização orçamentária para determinado gasto em particular e a dimensão negativa, que se relaciona com a noção de escassez de recursos para o atendimento de todos os direitos prestacionais previstos, de forma a impedir a implementação de nova prestação que possa comprometer um direito já atendido. 39. O argumento de escassez de recursos deve ser analisado com reservas para não confundir o problema de falta de dinheiro para atender determinada política pública com a má gestão dos recursos públicos existentes ou opção política diversa da Constituição. 40. O que se observa na realidade brasileira é que não há verdadeira escassez de recursos públicos para atender as necessidades sociais, mas, sim, limitações orçamentárias e finitude de verbas que demandam escolhas no momento de alocação dos recursos públicos, uma vez que as alocações não observam os ditames constitucionais. 41. A reserva do possível não deve ser vista como um elemento interno do direito, como condição de possibilidade de seu reconhecimento, pois, se assim fosse, funcionaria como verdadeira excludente de ilicitude suficiente para legitimar todo tipo de desvio do administrador público. A reserva do possível deve ser tratada como um elemento externo ao direito, que não determina o seu conteúdo, não influencia a existência ou a vigência de uma norma, mas pode comprometer a sua eficácia. 42. Sobre o argumento das amarras orçamentárias, enfatizou-se que o orçamento é o instrumento legal de atuação do Estado na economia, no qual são fixados os objetivos a serem atingidos. Como qualquer ato estatal, deve estar vinculado aos objetivos do Estado brasileiro (Constituição Federal, artigo 3.º). Presta-se a instrumentalizar tais objetivos no tempo, mediante a programação dos atos necessários para a arrecadação das receitas e sua distribuição racional e proporcional. 205 43. Embora o arcabouço jurídico orçamentário seja harmônico, observa-se que se trata de peça abrangente e imprecisa, conferindo grande liberdade ao administrador público nas escolhas que beneficiarão de fato os indivíduos. Além disso, há desvios e manipulação política de toda ordem para atender interesses secundários dos parlamentares. 44. Compatibilizando-se os argumentos favoráveis e contrários ao controle judicial, conclui-se que a exigência para a aceitação do argumento da escassez de verbas públicas para atender determinado direito fundamental é o poder público demonstrar, efetivamente e por meio de um discurso racional: (i) que a reserva do possível não seja invocada em face do mínimo existencial; (ii) que a alegação da falta de recursos não esteja ligada à má gestão administrativa ou a escolhas diversas daquelas previstas na Constituição Federal, por meio de prova documental que ateste que a administração pública alocou as verbas públicas da forma prevista constitucionalmente, atentando para as regras orçamentárias; (iii) que observou os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e igualdade na aplicação do dinheiro público; (iv) que buscou efetivar os direitos fundamentais constantes do rol previsto na Constituição Federal mediante a destinação de recursos minimamente condizentes com as necessidades de atendimento em cotejo com outras de menor importância contempladas no orçamento. 45. Comprovadas essas etapas, ônus que incumbe à administração pública, e demonstrada a inexistência de recursos financeiros para atender determinada política pública, o argumento da reserva do possível deve ser aceito. 46. Exemplificou-se a conclusão do item acima com a questão do fornecimento de medicamentos pelo Poder Público e conclui-se pela importância do Poder Judiciário como garantidor dos direitos fundamentais quando negados de forma indevida pelo Estado. 206 47. Sobre os instrumentos para a efetividade das políticas públicas, afirmou-se que o controle judicial de política pública veiculada por lei deve obedecer as mesmas premissas do controle de constitucionalidade da legislação em geral. 48. Caso uma política pública constitucionalmente prevista tenha o seu exercício inviabilizado pela inexistência de norma regulamentadora, deve o provimento jurisdicional conferir o direito no caso concreto, sendo desnecessária a declaração da mora do órgão competente, que é presumida diante da vigência da Constituição Federal há mais de vinte anos. 49. Sobre os limites do controle judicial de política pública veiculadas por ato administrativo, asseverou-se que, em caso de expedição de ato administrativo vinculado, sempre que o administrador se afastar da determinação legal, o ato deve ser fulminado. 50. No tocante à política pública implementada no exercício de competência discricionária, sempre que o administrador adotar a providência considerada excelente perante o caso concreto, não haverá espaço para o magistrado se imiscuir. No entanto, sempre que instado, o juiz deverá analisar a regularidade do ato administrativo discricionário, pois somente poderá pronunciar sua conformidade após efetiva análise. 51. Por outro lado, quando a providência adotada não for a melhor, não se afigurar como excelente, segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade, poderá o Judiciário sindicar a opção do administrador público. 52. Diante de conceitos vagos, imprecisos e indeterminados haverá sempre uma zona em que a atuação administrativa certamente será a adequada, e outra em que certamente não o será. Entre ambas, existe a chamada “zona cinzenta”, na qual a dúvida é ineliminável. 207 53. Atuando o administrador na zona certamente adequada ou na certamente inadequada, caberá ao Judiciário, respectivamente, manter a ato adequado e fulminar o ato inadequado. 54. Caso a atuação administrativa esteja na zona de incerteza, cabe ao Judiciário verificar se a política pública implementada se manteve dentro dos limites do razoável, com proporcionalidade, respeitando a isonomia, quando, então, não caberá intervenção judicial. Desrespeitados tais limites, caberá intervenção judicial para fulminar o ato que se revelar ilegítimo. 55. Foram analisadas as tutelas de remoção de ilícito para efetividade da decisão judicial que determina a realização de uma política pública. 56. Há a possibilidade de condenação em obrigação de fazer, e nessa hipótese o juiz deve julgar procedente o pedido e declarar a mora da administração pública em atender determinado direito fundamental, condenando a administração pública na obrigação de fazer consistente em inserir na próxima proposta orçamentária a verba necessária para a implementação da política pública. 57. Em casos de urgência, o juiz poderá determinar a abertura de crédito suplementar para suprir os gastos da política pública determinada, instituindo uma política pública mínima a vigorar enquanto não for implantada outra que atenda de modo satisfatório o direito pretendido. Poderá, ainda, determinar a realocação de recursos do próprio orçamento, destinando as verbas previstas com publicidade para a efetividade de política pública não atendida. 58. Afirmou-se a possibilidade de aplicação de multa diária, desde que recaia ao final sobre o patrimônio do administrador público faltoso. Existe ainda a possibilidade de responsabilização por ato de improbidade administrativa, responsabilização criminal e a intervenção da União nos Estados e dos Estados nos Municípios descumpridores da ordem emanada da Justiça. 208 59. Há ainda a medida mais drástica de sequestro de verbas públicas, desde que as demais medidas de coerção não sejam suficientes para fazer cumprir a ordem judicial. Nesse caso, pela aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, o mesmo deve se dar nos moldes do artigo 100, § 2.º, da Constituição Federal, e o Presidente do Tribunal deve optar por sequestrar verbas que não estejam ligadas à implementação de direitos fundamentais ou ao funcionamento da máquina administrativa. 60. Rechaçou-se, assim, a possibilidade de sequestro de verbas públicas diretamente pela magistrado singular, afastando-se a possibilidade de aplicação do artigo 461 do Código de Processo Civil, por ferir a regra disposta no artigo 100, § 2.º, da Constituição Federal. 61. Não é apenas de instrumentos processuais de coerção e de soluções adjudicadas imperativamente pelo Poder Judiciário que se resolvem os conflitos envolvendo políticas públicas. 62. Os métodos alternativos de solução de conflitos são importantes instrumentos colocados à disposição dos operadores do direito para resolução dos problemas ligados às políticas públicas, dentre eles a conciliação e a mediação. 63. Sugeriu-se a utilização da política pública de tratamento adequado dos conflitos veiculada pela Resolução n.º 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça para a solução de conflitos envolvendo políticas públicas, por meio da atuação de conciliadores e mediadores, além de profissionais de outras áreas do conhecimento a colaborarem na resolução dos litígios. 64. Para tanto, conclamou-se pela imperiosa mudança de mentalidade dos operadores do direito, principalmente dos Procuradores dos entes estatais, dos membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos advogados em geral, além da colaboração e direcionamento efetivo do problema pelo Poder Judiciário. 209 65. Sugeriu-se a atuação mais efetiva das demais funções essenciais à justiça para a efetivação das políticas públicas no Brasil. 66. Com relação ao Ministério Público, ele deve atuar de forma mais efetiva junto ao poder público, fiscalizando a ordenação e liberação das despesas previstas no orçamento, o contingenciamento de verbas, a aplicação e destinação das verbas desvinculadas, como também fiscalizar a regularidade do processo licitatório, desde a publicação do edital, zelando para que não haja direcionamento, fracionamento e desvios de toda ordem, até a garantia da contratação de empresas que tenham condições de cumprir os compromissos assumidos, independentemente de provocação de terceiros. 67. A instituição possui instrumentos judiciais e extrajudiciais para a realização de seu mister, dentre eles o inquérito civil público, a ação civil pública, a possibilidade de realização de termos de ajustamento de conduta, além da recomendação ministerial. No tocante à última, embora não possua caráter vinculante, o não atendimento da recomendação ministerial deve ser devidamente fundamentado pelo recomendado, seja por meio de contraargumentos na esfera administrativa, seja mediante questionamento judicial dos termos da recomendação, para fins de declaração de sua inexigibilidade. 68. A Defensoria Pública também é função essencial à justiça, prevista constitucionalmente, e não deve se preocupar apenas com a representação judicial dos necessitados, mas também atuar no âmbito administrativo, acompanhando as políticas públicas voltadas para a população carente. Deve zelar para que os programas sociais previstos nos orçamentos públicos sejam efetivamente implementados, exercendo atuação contínua junto aos parlamentares para que as necessidades sociais de determinada localidade sejam incluídas nos orçamentos e posteriormente executadas em benefício da população carente. 69. Possui legitimidade ativa para ingressar com ação civil pública e precisa ser adequadamente estruturada em todos os Estados da Federação para que possa cumprir o seu mister, não apenas com quadro de defensores públicos 210 concursados e em número suficiente para atender toda a população carente, como também com estrutura física, material e humana adequada para o desempenho de suas atividades. 70. No que concerne aos advogados públicos, eles têm o dever de informar o administrador público das demandas mais recorrentes, das necessidades da população local e das providências essenciais para atender os problemas levados ao conhecimento do Judiciário, por meio de uma gestão inteligente dos processos, atuando de forma articulada com os representantes eleitos para que as necessidades reveladas no âmbito judicial sejam resolvidas definitivamente no âmbito administrativo. 71. É imperioso que a advocacia pública repense a sua forma de atuação, deixando de insistir em teses já rechaçadas definitivamente pela jurisprudência e passando a atuar de maneira mais efetiva no cumprimento das decisões judiciais, de olhos voltados às necessidades da população, para que o dinheiro público seja revertido à efetivação dos direitos fundamentais, dado que o advogado público possui autonomia funcional e deve buscar o atendimento do interesse público primário. 72. Para tanto, administrativas possui pelos instrumentos como chefes procuradorias, das a veiculação de autorizando súmulas a não interposição de recursos em casos já reiteradamente decididos pelos Tribunais, a possibilidade de resolução dos conflitos na esfera extrajudicial e a utilização do processo administrativo no âmbito interno. 73. No âmbito processual, é preciso que o advogado público se comprometa com o substrato probatório de seus argumentos, demonstrando por números as suas razões quando da alegação da reserva do possível. 74. Portanto, a responsabilidade pelo controle das políticas públicas não pode ser carreada somente ao Poder Judiciário, visto que a Constituição Federal também trouxe diversos deveres às instituições essenciais à justiça, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e os Advogados Públicos. 211 75. Se tais instituições caminharem em conjunto com o Poder Judiciário, com maior preocupação de atuação administrativa e de cobrança dos entes federativos de suas responsabilidades, haverá um avanço significativo para a efetivação das políticas públicas no Brasil. 76. Todos os poderes da República Federativa do Brasil devem respeitar e fazer cumprir a Constituição Federal, pois as políticas públicas se revestem de especial importância dadas as carências sociais e econômicas de nosso país. 212 REFERÊNCIAS ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Tradução da 3.ª edição italiana por Buenaventura Pellisi Prats. Barcelona: Bosch, 1970. t. 1. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afosno Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ––––––. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2006. AWAZU, Luís Alberto de Fischer. Algumas considerações acerca da teoria da separação dos poderes e políticas públicas: competências para formulação e execução. Revista Brasileira de Direito Administrativo e Regulatório, São Paulo, n. 3, p. 143-158, 2011. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Org.). Direito administrativo e interesse público. Estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. ––––––. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. ––––––. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. v. 1. BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ––––––. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ––––––. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, p. 25, jan. 2007. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br/revistas.php>. Acesso em: 10 nov. 2011. BARROSO, Luis Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 213 ––––––. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 55, p. 20-29, 2011. ––––––. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. BÉNOIT, Fracis Paul. Le droit administratif français. Paris: Dalloz, 1968. t. II. BEZERRA, Hallison Rego. O Judiciário e o princípio da separação dos poderes. Revista Brasileira de Direito Administrativo e Regulatório, São Paulo, n. 2, p. 99-109, 2010. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Ariani Bueno Sudatti e Fernando Pavan Batista. 5. ed. São Paulo: Edipro, 2012. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. BORGES, Alice Gonzalez. Temas do direito administrativo atual (estudos e pareceres). Porto Alegre: Fórum, 2003. v. 2. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. –––––– (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação, conciliação. Resolução CNJ 125/2010. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ––––––. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002. CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011. ––––––. Orçamento e a “reserva do possível”: dimensionamento no controle judicial de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 225236. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997. 214 ––––––. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1993. ––––––. Estudos sobre direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. CASTILHO, Ricardo. Acesso à Justiça: tutela coletiva de direitos pelo Ministério Público: uma nova visão. São Paulo: Atlas, 2006. ––––––. Justiça social e distributiva: desafios para concretizar direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2009. CHAVES, Cristiano et al. (Coord). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos de Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de polícias públicas. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 737, p. 11-22, mar. 1997. ––––––. Ensaios sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio (Org.). Direito administrativo e constitucional: estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997. ––––––. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Org.). Estudos de direito constitucional: homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003. ––––––. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 40, p. 63, jul.-dez. 2001. CONTI, José Maurício. A autonomia do Poder Judiciário. São Paulo: MP, 2006. ______; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2011. DALLARI, Adilson Abreu. Autonomia e responsabilidade do Ministério Público. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas, 2010. ––––––. Elementos de teoria geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. ––––––. Orçamento impositivo. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. DERANI, Cristiane. Política pública e norma política. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. DIAS, Jean Carlos. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Método, 2007. 215 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. DWORKING, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ELSTER, Jon. Local Justice. How institutions allocate scarce goods and necessary burdens. New York: Russel Sage Foundation, 1992. ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. Madrid: Civitas, 2000. v. 1. FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Reserva do possível, direitos fundamentais e a supremacia do interesse público. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Org.). Direito administrativo e interesse público. Estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. FERREIRA, Éder. Ações individuais no controle judicial de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005. FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e do Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000. GASPARINI, Luciana Rita Laurenza Saldanha. A gestão de políticas públicas e a efetividade dos direitos sociais. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. GONÇALVES, Alcindo. Políticas públicas e a ciência política. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Parte Geral. 8. ed. Buenos Aires: FDA, 2003. t. 1. GRAVONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: RT, 2010. 216 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: ––––––; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. ––––––. Os fundamentos da justiça conciliativa. In: ––––––; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 3-5. ––––––; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. ––––––; ––––––; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. GROSMAN, Claudia Frankel; MANDELBAUM, Helena Gurfinkel (Org.). Mediação no Judiciário: teoria na prática e prática na teoria. São Paulo: Primavera, 2011. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As agências reguladoras. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n. 6, maio-jul. 2006. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 28 jan. 2012. HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2006. ––––––. Fiscalização financeira e orçamentária e a atuação dos Tribunais de Contas. Controle interno, controle externo e controle social do orçamento. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: RT, 2011. JACOB, Cesar Augusto Alckmin. A “reserva do possível”: obrigação de previsão orçamentária e de aplicação de verba. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. KELSEN, Hans. Teoría general del derecho y del Estado. Tradução de Eduardo García Maynez. México: Imprensa Universitaria, 1950. LOPES, José Reinaldo de Lima. Judiciário, democracia, políticas públicas. Revista de Informação Legislativa Brasileira, Brasília, ano 31, n. 122, p. 255-265, 1994. LUCHIARI, Valeria Ferioli Lagrasta. Comentários da Resolução n. 125, do Conselho Nacional de Justiça, de 29 de novembro de 2010. In: GROSMAN, Claudia Frankel; MANDELBAUM, Helena Gurfinkel (Org.). Mediação no Judiciário: teoria na prática e prática na teoria. São Paulo: Primavera, 2011. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: RT, 2001. 217 MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexão sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 1982. MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed.São Paulo: Saraiva, 2007. ––––––. O inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999. MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2008. MILARÉ, Édis (Coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. A recomendação ministerial como instrumento extrajudicial de solução de conflitos ambientais. In: CHAVES, Cristiano et al. (Coord.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos de Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. MOCCIA, Maria Hermínia Penteado Pacheco e Silva. O direito à saúde e a responsabilidade do Estado. 2005. 393 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. MORAES, Sílvio Roberto Mello. Princípios institucionais da Defensoria Pública. São Paulo: RT, 1995. MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/99. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza, A Constituição dirigente está morta... Viva a Constituição dirigente! In: BARROSO, Luis Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009. ––––––. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. 2003. 599 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. OLIVEIRA, Vanessa; CARVALHO, Ernani. A judicialização da política: um tema em aberto. In: XXVI ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓSGRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS – ANPOCS. Caxambu, MG, 2002. 218 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo: Saraiva, 2006. PIOVESAN, Flavia. Proteção judicial contra omissões legislativas. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. 2. ed. São Paulo: RT. 2003. PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. São Paulo: Campus Jurídico, 2008. PONTES FILHO, Valmir. O controle das políticas públicas: cadernos de soluções Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003. PONTES, Manuel Sabino. Inconstitucionalidade dos meios alternativos à Defensoria Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2179, 19 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12996>. Acesso em: 15 nov. 2011. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas. 2010. ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Controle das políticas públicas. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO ADMINISTRATIVO. 2005. ––––––. Controle judicial de políticas públicas. In: VI CONGRESSO ALAGOANO DE DIREITO PÚBLICO. 2006. SAAD, Amauri Feres. Contribuição ao estudo do regime jurídico das políticas públicas em direito administrativo. 2011. 195 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. SANTANA, Isaías Jose de. O princípio da separação de poderes e a implementação das políticas públicas no sistema orçamentário brasileiro. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: RT, 2011. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ––––––; TIMM, Luciano Benetti (org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 219 SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 7, n. 32, p. 213-226, jul.-ago. 2005. SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães. O sentido e o alcance do conceito de integralidade como diretriz constitucional do Sistema Único de Saúde. 2009. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. SOUTO, Marcos Juruena Villela. A era da consensualidade e o Ministério Público. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas. 2010. p. 304. SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ação civil pública e inquérito civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação democrática. In: BARROSO, Luis Roberto. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 1. WATANABE, Kazuo. A mentalidade e os meios alternativos de solução de conflitos no Brasil. In: ––––––; GRINOVER, Ada Pellegrini; LAGRASTA NETO, Caetano (Org.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2008. ––––––. O controle jurisdicional de políticas públicas – “mínimo existencial” e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. In: ––––––; GRINOVER, Ada Pellegrini (Org.). O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. WEINGARTNER NETO, Jayme; VIZZOTTO, Vinicius Diniz. Ministério Público, ética, boa governança e mercados: uma pauta de desenvolvimento no contexto do direito e da economia. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. ZENKNER, Marcelo. Ministério Público e solução extrajudicial de conflitos. In: RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas. 2010.