O ENSINO DA LITERATURA E DA HISTÓRIA DA LITERATURA A mocinha e a vilã? Fabiana Cardoso Fidelis (UFSC/IFRS) Assim, meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao que era antes de se partir ao maio. Mas tinha a experiência de uma e de outra metade refundidas, por isso devia ser bem sábio. Ítalo Calvino Quantas vezes já não ouvimos a seguinte exclamação ou nós mesmos a pronunciamos: “O problema é que os professores trabalham com a história da literatura em vez da literatura.” Nesta exclamação apresentam-se duas personagens: a história da literatura como uma vilã; a literatura, uma entidade abstrata composta por obras que deveriam ser lidas, como uma mocinha. Apresento neste texto esta dicotomia estabelecida pelo ponto de vista do senso comum, que imputa os fracassos do ensino de literatura a uma tradição historicista e compiladora de informações de obras e autores no tempo e no espaço. Como interlocução teórica, tomo como mote a proposta de Roland Barthes (2004, p. 23) de que a história da literatura seja a história “das produções de linguagem”. Tal proposta pode ser encontrada no ensaio História ou literatura?, de Roland Barthes, publicado em 1960. O texto de Barthes e este artigo apresentam algo em comum: um ponto de interrogação no título. Diferentemente do texto de Barthes, o título deste texto apresenta a conjunção “e” em vez de um “ou”, a fim de evitar um ponto de escolha. O “e” enfatiza a soma de imaginários que se sobrepõem na escola – nos discursos sobre o ensino de literatura e nas visões dos alunos sobre o que é literatura e seu ensino e aprendizagem. Trago a este texto dois novos olhares: o olhar de quem nunca se viu pesquisando do ponto de vista da história da literatura e o olhar sobre como tenho visto, ao longo de minha experiência docente, o ensino de literatura e a relação da literatura com a história. Assim, procurei destrinchar a suposta condenação pedagógica contemporânea ao ensino da história da literatura (a vilã) em vez do ensino da literatura (a mocinha), vistas como duas práticas que concretizam o mau e o bom ensinar. 767 Para segurar-me em um índice desses olhares, tomo um trecho das Orientações Curriculares para o Ensino Médio, de 2006, sobre os conhecimentos de Literatura na área de Linguagem, Códigos e Suas Tecnologias: Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o ensino médio, um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais, seja de livros da Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representativos da Literatura brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da Literatura e seus estilos. Percebe-se que a Literatura assim focalizada – o que se verifica sobretudo em grande parte dos manuais didáticos do ensino médio – prescinde da experiência plena de leitura do texto literário pelo leitor. No lugar dessa experiência estética, ocorre a fragmentação de trechos de obras ou poemas isolados, considerados exemplares de determinados estilos, prática que se revela um dos mais graves problemas ainda hoje recorrentes. (BRASIL, 2006a, p. 63). No trecho citado, entende-se que, em nome da “história da literatura”, deixa-se de ensinar a própria literatura; ou seja, não se fazem leituras com os alunos e não se formam leitores. Tal constatação tornou-se um senso comum aos professores que criticam os programas da disciplina de Literatura centrados nos períodos literários e no estudo de obras e autores. Cabe definir então o que é a literatura que se quer ensinar na escola. As Orientações Curriculares de 2006 pretendiam resolver problemas dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de 2002, como o: - foco exclusivo na história da literatura. Apesar de assinalar a permanência dessa prática viciada no ensino da literatura (“os estudos literários seguem o mesmo caminho. A história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto; uma história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo”), não indica como romper com ela. (BRASIL, 2006a, p. 59). Destaco: “prática viciada no ensino da literatura” – a do foco exclusivo do ensino na história da literatura. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio identificam, portanto, uma vilã, que é viciada e precisa ir para uma casa de recuperação se tratar. 768 Entretanto, é preciso entender que tal crítica e condenação se referem à forma como a história da literatura é tratada na disciplina de Literatura1, reduzindo-se à abordagem dos períodos literários e o enquadramento de obras e autores em tais períodos. Encontra-se nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio um resumo desta situação: Os professores, pressionados por programas panorâmicos, sentem-se obrigados a cobrir toda a linha do tempo (assim como se sentem pressionados a cobrir todos os pontos de gramática), fazendo uso da história da Literatura, ainda que isso não sirva para nada: aulas “chatas”, alunos e professores desmotivados, aprendizagem que não corresponde ao que em princípio foi ensinado. (BRASIL, 2006a, p. 76). A discussão sobre ensinar “x” ou a “história de x” não se restringe à disciplina de Literatura. As mesmas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, que condenam, no caso da Literatura, o ensino historicista, o incentivam em relação ao ensino dos conhecimentos de Filosofia: Cabe insistir na centralidade da História da Filosofia como fonte para o tratamento adequado de questões filosóficas. [...] É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se desconsidere a sua história, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competência e também elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel central no ensino da Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo – o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno. Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do educando. (BRASIL, 2006b, p. 27). 1 Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de 2002 incorporam os conteúdos de Literatura aos estudos da linguagem. As Orientações Curriculares do Ensino Médio, de 2006, defendem a especificidade da literatura dentro do estudo da linguagem e se propõem a ratificar a importância da presença da disciplina no currículo do ensino médio (BRASIL, 2006a, p. 49-50). Luís Augusto Fischer (2011) denuncia o que ele chama de desprezo do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) pela história da literatura: “O certo é que o Enem trata o texto literário como apenas um texto entre outros, um poema de Drummond no mesmo patamar que um anúncio de remédio e um cartaz contra o cigarro, sem nenhum contexto.” 769 Diante da inserção da disciplina de Filosofia no currículo do ensino médio como obrigatória 2 e diante das orientações do Ministério da Educação brasileiro para o currículo da disciplina, Ester Maria Heuser (2010, p. 5) remonta à experiência negativa do filósofo Gilles Deleuze (apud HEUSER, 2010, p. 5) com seus estudos formais de Filosofia. Assustado com o que chamou de “história demais”, Deleuze, em vez de abandonar a história da filosofia, passou a se perguntar sobre como funciona a filosofia na história, com: [...] intensidades, fluxos, processos, coisas que não querem dizer nada, que não têm um significado escondido a ser encontrado, uma verdade a ser desvendada; coisas que têm ligação com o Fora, com o exterior do pensamento, com aquilo que impulsiona, provoca, violenta o pensamento, tira-o do mero exercício de reconhecimento e abre-o para a possibilidade da criação. (HEUSER, 2010, p. 5). Ester Maria Heuser (2010, p. 2) aponta ainda para o trabalho coletivo que se faz necessário diante da nova configuração da disciplina de Filosofia no ensino médio. Tendo passado o momento de reivindicar sua inclusão, é preciso: [...] juntos pensar como fazer funcionar a filosofia na escola. Como fazer da filosofia algo notável, importante e interessante nas escolas, para os estudantes, aos professores das outras disciplinas e, também, para nós mesmos, os professores de filosofia? Uma das perguntas de acima é um tanto quanto nova e pouco feita pelos professores: Como tornar a aula interessante para o próprio professor? Esse, muitas vezes, se pergunta sobre como fazer a aula ser mais prazerosa, como tornar a atividade do aluno mais prazerosa, mas raramente se pergunta sobre como seu trabalho pode ser mais profícuo e amoroso para consigo mesmo. O professor costuma pensar em dar uma aula para, em preparar sua aula para dá-la, sempre se dirigindo ao outro que a receberá. Parece que não faz o que faz, que é ler, resumir, criar, interpretar, inventar, digerir conhecimentos, textos, imagens, sons e afetos, para si mesmo. Antes de preparar algo para alguém o professor prepara-se, transforma-se na composição de sua aula e transforma-se ao conduzi-la. Da mesma forma que Ezra Pound (2006, p. 81) sugere aos professores que leiam com os alunos – e não para eles –, cabe lembrar ao professor que sua aula é também para si, que não se trata de uma doação vocacional e sim de uma troca investida de amor e ódio na relação. Assim, a 2 A Lei n. 11.684, de 2 de junho de 2008, inclui a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. 770 melhor parte de ser professor de Literatura é ter a oportunidade (e a obrigação) de ler e reler com seus alunos obras e livros, que em outras circunstâncias, dificilmente, seriam lidos. O professor de literatura precisa ser antes um crítico, além de leitor, para experienciar e vivenciar a leitura dos textos que leu com seus alunos. Isso inclui aprender a lidar com a história da literatura como algo vivo, e não como uma coleção de datas e nomes. Leyla Perrone Moisés (2011) destaca como o ensaio de Roland Barthes, História ou literatura?, permanece espantosamente vivo depois de cinquenta anos e instiga: “Todos os críticos literários e professores de literatura deveriam ler com atenção esse capítulo.” Seguindo a sugestão de Perrone-Moisés, debruço-me no texto de Barthes e tiro dele alguns elementos para desenhar o retrato da mocinha e da vilã no ensino escolar de literatura. Mas antes algumas palavras sobre o livro Sobre Racine, de 1963, em que o capítulo está publicado. O livro se compõe de três estudos: O homem raciniano, Declamar Racine e História ou literatura? Diante deste livro pequeno, discreto, ninguém imaginaria que se levantaria na França um grande debate sobre a crítica literária e que promoveria perguntas sobre o que é a literatura, como deve ser lida e ensinada, qual a função do crítico e quais os seus deveres e direitos (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 31). Tal debate culmina em fúria expressa, dois anos depois, em 1965, pelo porta-voz da indignação, Raymond Picard, chamando Roland Barthes de “escroque intelectual”, acusando-o de subjetivismo e de interpretações abusivas manifestada numa forma estranha de linguagem. Leyla Perrrone-Moisés (1983, p. 37) explica que a acirrada oposição a Barthes, na época, devia-se tanto a concepções políticas e a uma crise do ensino, quanto ao estilo de escrita de Barthes, cheio de “[...] imagens inesperadas, de termos técnicos e científicos, de neologismos criados por ele.” O que se criticava também era a linguagem e a forma como Barthes falava de escritores e obras consagrados, que eram um mito pertencente à academia, como Racine. Em História ou literatura?, Roland Barthes (2008, p. IX) propõe um interlocutor implícito: [...] o historiador da literatura, de formação universitária, a quem se pede, que empreenda uma verdadeira história da instituição literária (se quiser ser historiador), ou então que assuma abertamente a psicologia à qual se refere (se quiser ser crítico). 771 Roland Barthes propõe que o historiador da literatura empreenda a história da instituição literária, em vez de realizar um estudo de autores e de obras que se sucedem em uma sequencia temporal. O primeiro problema posto para a realização da tarefa é o estatuto da literatura como produto histórico, que é ao mesmo tempo “[...] signo de uma história e resistência a essa história." (BARTHES, 2008, p. 188). É fácil perceber que a obra escapa à “[...] sua história, a soma de suas fontes, influências ou modelos [...]” (BARTHES, 2008, p. 188). Sendo assim, Barthes propõe que se deixe ao estudo do que ele chama de “criação literária” o método de investigação psicológica, evitando-se a mistura dos dois estudos. Para Barthes (2008, p. 189), a história da literatura não diz respeito ao que ocorreu com o autor quando escreveu, e sim cabe a ela “[...] perguntar o que uma obra nos fornece de seu tempo.”. Então a obra é tomada como “[...] documento, vestígio particular de uma atividade [...]” (BARTHES, 2008, p. 189). E prossegue: “[...] a história literária só é possível se sociológica, se interessada nas atividades e nas instituições, e não nos indivíduos.” (BARTHES, 2008, p. 197). A definição clichê de Literatura, que perpassa o senso comum, é: “Livro de literatura é aquele que pertence ao cânone literário e é apresentado como uma obra de valor dentro da história literária.” Esta clareza tende a impedir os professores de questionar o que ler e como ler com seus alunos, eximindo-se, por exemplo, de ler obras contemporâneas, quando o enquadramento dos livros ficcionais nessa definição não fica tão fácil. Neste ponto de vista limitado, a leitura do livro literário tem a finalidade de ilustrar o conhecimento cultural de uma civilização – lê-se literatura para aprender a história literária. Mesmo tendo como definição de literatura as obras que pertencem ao cânone, ainda assim é difícil fazer uma seleção para a leitura. É nesse sentido que estabelecer uma linha do tempo a ser percorrida facilita a seleção de quais obras ler ou sobre as quais falar. Além disso, sobre essas obras só é permitido falar de uma única forma, já institucionalizada e consagrada; conhecem-se títulos e autores, mas quase nada do texto deles; é mais fácil mensurar o “conhecimento” adquirido – tem-se a sensação de algo foi ensinado e pode-se medir as respostas dos alunos como corretas ou incorretas. A vilã, a história da literatura, só atrai tanto porque se travestiu de boazinha e facilita a vida do professor. Em sua crítica de Racine, Roland Barthes aflora o objeto do amor, investe-o, pois responde à pergunta da nova crítica: O homem de hoje pode ler os clássicos? Sua resposta é sim, visto que seu Racine “[...] é uma reflexão sobre a infidelidade, e portanto 772 não está em nada isolado dos problemas que nos interessam imediatamente.” (BARTHES, 2004, p. 57). Neste ponto, a questão não é o que ler, mas sim como ler. O interessante não é o livro em si, mas as questões e provocações que podem ser feitas dele. O aluno de hoje pode e consegue ler os clássicos? Como conciliar o gosto pela leitura que ser quer incutir nas crianças e jovens com o ensino de literatura, que se enquadra dentro de uma disciplina escolar regida institucionalmente e que determina as leituras a serem feitas (na verdade, os períodos literários a serem conhecidos)? Se os clássicos só podem ser lidos se forem investidos de amor, como fazer esta investidura na sala de aula? Os clássicos e seus escritores precisam tornar-se propriedade individual. Roland Barthes lê o seu Racine. Não é mais o mesmo Racine que pertencia aos críticos e à academia, bem como era um mito social, e de quem era permitido falar apenas desse e daquele jeito. A obra torna-se uma nova quando lida transversalmente, investida de amor e passa a fazer sentido para quem lê. Para o ensino, pensar desta forma é geralmente inconveniente, pois o professor está pouco acostumado a sobrepor a sua leitura, o seu desejo, o seu amor. É muito difícil conciliar relações diferentes com o texto, que não uniformizem uma resposta esperada. Nos três anos do ensino médio, o programa usual inicia nas cantigas trovadorescas em Portugal e vai até a literatura contemporânea brasileira nas suas inúmeras manifestações. Algumas escolas optam por fazer o caminho inverso; outras articulam as obras em torno de redes temáticas. Independentemente da metodologia empregada para organizar o currículo, o professor se vê em meio a um universo de textos clássicos e história literária sobre os quais tem de dar conta. Os alunos têm dificuldade para entender por que precisam ler ou conhecer tantas obras antigas e contextualizá-las histórica e esteticamente. O professor, naturalmente, não poderá se aprofundar; em alguns casos, nem mesmo teve a oportunidade de ler todos os livros mencionados no currículo. Se o professor, ou o currículo escolar a que ele segue, acompanha uma linha do tempo, não há porque se assustar. Embora, considerando apenas o terceiro ano do ensino médio, por exemplo, cujo programa regular vai do pré-modernismo aos dias atuais, sejam no mínimo cinquenta autores, é possível fazer disso uma aventura. O acúmulo de leituras não se faz nas vésperas da aula a ser ministrada – o percurso começa na faculdade de Letras ou anteriormente –, mas mesmo assim é muito difícil dar 773 conta de todo o panorama histórico. Já a aventura começa quando o professor se propõe a ler os textos como seus alunos, mesmo que já os tenha lido anteriormente. Cabe também, diante da linha do tempo, a pergunta por que ler. O caminho entre deve ler, o que ler e por que ler diz respeito a um modelo de pedagogia do ensino de literatura que precisa ser mais problematizado ainda. Diante dessa problematização, não se trata de desenhar duas personagens planas e estáticas, mocinha e vilã. Cabe pensar que o ensino de literatura apresenta um cenário complexo, envolvendo múltiplos atores e, por sua vez, tem também sua própria história. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Sobre Racine. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008. BARTHES, Roland. O grão da voz. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2004. BRASIL. Ministério da Educação. Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2006a. BRASIL. Ministério da Educação. Orientações curriculares para o ensino médio: ciências humanas e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2006b. CALVINO, Ítalo. O visconde partido ao meio. In: CALVINO, Ítalo. Os nossos antepassados. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 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